\"No Tempo da Guerra”: Algumas notas sobre as violações dos direitos dos povos indígenas e os limites da justiça de transição no Brasil

June 24, 2017 | Autor: Orlando Calheiros | Categoria: Transitional Justice, Ethnology, Antropología y Sociología Jurídica
Share Embed


Descrição do Produto

Originalmente em: CALHEIROS, Orlando. “No Tempo da Guerra”: Algumas notas sobre as violações dos direitos dos povos indígenas e os limites da justiça de transição no Brasil”. Re-vista Verdade, Memória e Justiça. V9. 2015.

“NO TEMPO DA GUERRA”: ALGUMAS NOTAS SOBRE AS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS E OS LIMITES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL Orlando Calheiros (FAPERJ-PUC-Rio) Doutor em Antropologia Social pela UFRJ, ex-assessor da Comissão Nacional da Verdade Resumo: O intuito deste texto é fornecer ao leitor uma pequena descrição e sistematização das graves violações dos direitos dos povos indígenas cometidas durante o período da ditadura militar, e, ao mesmo tempo, propor um debate sobre os limites da Justiça de Transição no Brasil no que diz respeito ao reconhecimento da dimensão coletiva destas violações e de formas adequadas de reparação. Compreende-se, aqui, que o bem jurídico em tela nestes casos é supra individual, que o seu titular não é a pessoa física, mas um grupo étnico, uma coletividade, e, portanto, três conceitos são acionados para melhor compreende-los: genocídio, etnocídio e deslocamento forçado.

“Do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem". Gilles Deleuze & Felix Guatarri

Introdução: A anistia política dos Aikewara do Pará No dia 19 de setembro de 2014, a Comissão de Anistia concedeu à 14 indígenas Aikewara (popularmente conhecidos como Suruí do Pará) a condição de anistiado político, oferecendo-lhes reparação pelas violações de seus direitos durante ditadura militar; mais especificamente, durante a campanha de repressão à Guerrilha do Araguaia. Foram reconhecidos os crimes de exceção praticados pelos militares e agentes do Estado contra os membros deste povo que, na época, pouco ou nada falavam de português e contavam com pouco mais de 60 pessoas. O fato detalhado: durante meses (entre 1972 e 1973) as imediações da aldeia foram utilizadas como ponto de apoio do esforço militar, homens aikewara foram obrigados a servir de guias para as tropas e a realizar serviços

forçados – como carregar munição, alimentos e corpos –, mulheres e crianças foram mantidas em cárcere privado dentro de suas malocas, impedidos de sair para buscar comida, de se banhar nos rios – dependiam das rações oferecidas pelo exército. 1 “A partir de hoje a história do Brasil tem que ser contada diferente”, declarou, na ocasião, o Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão. Marco histórico, de fato. Pois a sentença não coroa apenas – e esse apenas, na atual conjuntura, já significativo, sabemos – o reconhecimento oficial dos crimes cometidos por agentes do Estado contra indígenas, mas do reconhecimento de que – nas palavras do próprio Presidente – “[o] conjunto de uma comunidade indígena também foi vítima da ditadura militar”. Movimento tímido, ato simbólico, trata-se do primeiro pedido de desculpas formal do Estado brasileiro a um povo indígena pelos crimes cometidos durante essa fase aguda da colonização brasileira. Movimento tímido, diz-se, pois o gesto reparativo esbarra nos próprios limites formais da Comissão – estabelecidos pelas leis 9.140, de 4 de dezembro de 1995, e 10.559, de 13 de novembro de 2002 – que, como se sabe, opera por meio de compensações financeiras que tomam por base as atividades laborais dos afetados.2 Destarte, ainda que o Estado tenha reconhecido de maneira inédita a pertinência da questão, que tenha reconhecido que suas ações durante a ditadura afetaram não apenas os 14 anistiados, mas o “conjunto de uma comunidade”, uma comunidade indígena, ele se mostra incapaz de repará-lo por meio da anistia política. Ignora-se, assim, a principal reivindicação desta população, aquela que os próprios julgam ser capaz de diminuir os danos causados pela intervenção do Estado: a demarcação de suas terras que lhe foram tomadas pelo próprio Estado e entregues a fazendeiros e regionais como parte deliberada do esforço de contenção a guerrilha. 3 Só a terra, afirmam os próprios Aikewara, é capaz de lhes garantir algo que lhes foi tomado no passado, algo que o dinheiro não pode comprar, a sua identidade cultural. Como bem colocou Iwynuhu Suruí, neto de um dos anistiados, “nós eramos da região do Rio Araguaia e agora o rio mais próximo fica a 70 quilômetros”. Literalmente condenados a viver ao lado dos não-indígenas, os Aikewara não apenas estiveram sujeitos a toda sorte de intempéries relacionados ao contato com a sociedade brasileira (doenças, violência, vícios) – não obstante, uma BR corta a terra demarcada, engolindo quase 20% de sua extensão –, como viram desaparecer 1 Para uma descrição mais detalhada ver Ferraz e Calheiros (2015) e Calheiros (2014). 2 Naturalmente, o autor não ignora, e tampouco discorda, da dimensão “coletiva” da Comissão de Anistia, caráter enfatizado, sobretudo, durante as realizações das Caravanas da Anistia e no projeto Marcas da Memória. 3 Documentos encontrados por pesquisadores da Comissão Nacional da Verdade revelam que o exército esperava, por meio da ocupação extensiva do Sudeste do Pará, coibir a proliferação de possíveis focos de guerrilha revolucionária e “sentimentos insurgentes”. Para maiores detalhes, ver o capítulo referente à Guerrilha do Araguaia no relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

partes importantes de sua vida cultura. Sem acesso ao rio, os Aikewara abandonaram a fabricação de utensílios de barro e argila, uma atividade central no universo feminino desta população; deixaram ainda de fabricar canoas e de pescar – “nós eramos canoeiros e hoje só conhecemos canoa da televisão”, como colocou o mesmo Iwynuhu Suruí. Que o leitor tenha em mente de que não se trata, aqui, de diminuir a importância histórica da decisão da Comissão de Anistia, ou do impacto positivo do sistema de reparação adotado. Enfim, que não se trata de criticar a reparação financeira dos Aikewara. Trata-se, aqui, de apontar alguns limites da Justiça de Transição no que diz respeito ao reconhecimento das violações de direitos dos povos originários, que vão além – com o perdão da expressão – da tríade habitual “tortura, execução e desaparecimento forçado” de indivíduos, e que em boa parte dos casos não pode ser reparada financeiramente. Tratar-se-ia de apontar uma espécie de limite natural da teoria dos Direitos Humanos e da Justiça de Transição adotados pelo Ministério da Justiça, notoriamente assentadas em uma perspectiva ocidental, etnocêntrica (Bobbio 1991; Baxi et. all 2009; Segato 2006). As particularidade das violações dos povos indígenas: o genocídio, por exemplo. Por meio da lei de nº 9.140 de 04 de dezembro de 1995 o Estado brasileiro reconheceu como mortos 136 oposicionistas políticos perseguidos pela ditadura militar e desde então desaparecidos e criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) com mandato para reconhecer outros casos de pessoas “acusadas de participação em atividades políticas” falecidas “por causas não naturais, em dependência policiais ou assemelhadas”. Iniciativa fundamental, contudo, incapaz – mesmo após uma significativa ampliação em seu escopo – de amparar os povos indígenas afetados durante o período. Em parte, essa dificuldade reside sobre a incapacidade do Estado de não apenas reconhecer que estes foram atingidos por conta de sua especificidade étnica,4 mas de reconhecer que o próprio conjunto destas populações, a sua dimensão coletiva, como se diz, foi alvo prioritário dos governos de outrora. Com efeito, hoje, com respaldo de uma crescente literatura dedicada,5 pode-se afirmar com certeza de que a repressão política e social aos povos indígenas durante a ditadura militar não apenas foi ampla e letal, mas de que não se tratou, como era erroneamente difundido, de um mero efeito 4 Estamos aqui falando de culturas um tanto estranhas ao conceito de indivíduo – marca indelével da cosmologia ocidental (Dumont, 1983); estamos falando de culturas onde a pessoa é pensada de uma maneira essencialmente relacional (Seeger et all 1979; Calheiros 2014). 5 Ver o relatório intitulado “A Ditadura Militar e o Genocídio do Povo Waimiri-Atroari: por que kamña matou kiña?” produzido pelo Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas (2014); e o relatório “Violações aos direitos humanos e territoriais dos Guarani no oeste do Paraná: subsídios para a Comissão Nacional da Verdade”, produzido pelo Centro de Trabalho Indigenista (2014).

colateral da repressão política aos movimentos de esquerda e/ou de uma consequência natural, inevitável, do desenvolvimento nacional. Sabe-se, hoje, que esta operação repressiva multifacetada foi deliberadamente orquestrada para desarticular qualquer resistência que estes povos pudessem oferecer ao projeto político do Estado. Da perspectiva do estado os povos indígenas eram opositores políticos per se, e sua mera existência, o seu “conjunto comunitário”, representava uma resistência ao projeto nacional. E por esta razão foram presos, torturados, mortos, vítimas de desaparecimento forçado; por esta razão as bases de sua mobilização coletiva foram atacadas. É fundamental que a Justiça de Transição compreenda que as violações perpetradas contra os indígenas são indissociáveis de sua “condição étnica” – e que a reparação tenha isto em vista. Para tanto, basta um rápido exame no conceito de Genocídio, que tipifica os atos e ações que têm como objetivo a eliminação da existência física de “grupos nacionais, étnicos, raciais, e/ou religiosos”. 6 No Brasil, a Lei no .2.889, de 01 de outubro de 1956, define o crime de genocídio da seguinte maneira: Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) Matar membros do grupo; b) Causar lesão leve à integridade racial ou física de membros do grupo; c) Submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. Ressalte-se, ainda, o agravante de 1/3 na pena quando o ato for cometido por “governante ou funcionário público”. Destarte, entende-se que quando, em 1968, o Governo Militar determinou a invasão do território Waimiri-Atroari (também conhecidos como Kiña), quando determinou o bombardeio das aldeias deste povo para garantir a construção da rodovia BR-174, Manaus – Boa-Vista, promovia diretamente o genocídio dessa população. Os Waimiri-Atroari foram os massacrados por resistirem aos avanços do Estado sobre suas terras originárias – que, segundo a constituição da época, já lhes seria de direito –, massacrados por resistir à perspectiva assimilacionista do governo de então que os compreendia como uma categoria social transitória. Com outras palavras, foram massacrados por não se submeterem a chamada “pacificação”. Não obstante, indícios coletados pelo Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas, expostos no relatório relatório “O Genocídio do Povo Waimiri-Atroari”, apontam que a condição étnica diferenciada dos WaimiriAtroari não apenas motivou os ataques, como os condicionou: tudo indica que o exército brasileiro 6 LEMKIN, Raphael Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation - Analysis of Government - Proposals for Redress. Washington, D.C.: Carnegie Endowment for International Peace, 1944, p. 79 – 95. Ver também o texto integral da Convention for the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide das Nações Unidas, de 9 de dezembro de 1948.

se utilizou de um parco conhecimento sobre a cultura dos Waimiri-Atroari para maximizar a eficiência de sua ofensiva. Atacavam quando estes estavam reunidos em suas aldeias para a realização de rituais. Talvez o genocídio dos Waimiri-Atroari seja um dos casos mais emblemáticos de genocídio de um povo indígena na história recente do Brasil, mas nem de longe é o único. Os casos se multiplicam se levarmos em conta que na maioria das vezes genocídio não corresponde ao massacre direto de uma população. Nos termos da lei, genocídio corresponderia também a “submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”. Enquadra-se, aqui os casos em que agentes do governo, sob ordens diretas de seus superiores, forçaram deliberadamente o contato com grupos de frágil condição epidemiológica, muitas vezes apenas para garantir o sucesso de empreendimentos econômicos (públicos e privados). Como ocorreu com diversos povos indígenas durante a abertura da Transamazônica, em meados dos anos 1970. Na ocasião, uma das etnias afetadas, os Araweté do Pará, chegou a perder 36% de sua população vitimada por uma gripe (cf. Viveiros de Castro 1992). É fundamental que se ressalte que o Estado pode ser responsabilizado mesmo pelos casos onde o ato não foi perpetrado pela ação direta de seus agentes. E para tanto sequer precisaríamos recorrer ao entendimento do direito internacional de que neste tipo de crime deve ser utilizada a “teoria do domínio da organização” (cf. Canêdo 1999). Bastaria uma rápida inspeção nos casos de violações para comprovar que, ora ele ocorrem por omissão do Estado, ora, por meio da ação de um conluio de forças estatais e privadas.7 Em diversas ocasiões o Estado não apenas se omitiu na garantia dos direitos destas populações, como incitou diretamente a ocupação de suas terras – e, assim, submetendo seus ocupantes a “condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”. Um exemplo: em 1968, o governo federal adotou uma política de estímulo de projetos agropecuários em uma região sabidamente ocupada por indígenas Nambikwara, o Vale do Guaporé em Rondônia. A Funai, então sob a direção do general Bandeira de Melo, era parte fundamental desta política, emitindo documentação oficial que negava a presença de índios na região; emitindo as “certidões negativas” necessárias para que os agropecuaristas tivessem acesso aos recursos federais da Sudam. Como resultado direto dessa política de incentivo, os Nambikwara foram acometidos epidemias de gripe, malária; uma epidemia de sarampo chegou a dizimar toda a população com menos de 15 anos. Não obstante, a pequena parcela de sobreviventes, além de serem continuamente atacados pelos fazendeiros, tinham suas roças bombardeadas com o desfolhante Tordon 155-BR, popularmente conhecido como Agente Laranja. 7 Para uma discussão sobre a possibilidade do genocídio ser praticado por omissão, ver Fragoso (1973 e 1998).

Sobre o etnocídio dos povos indígenas. [...] foi a sociedade branca que, na sua expansão voraz e cruel, levou a destruição e a morte aos índios Parkateje do sul do Pará. Não só eliminou fisicamente um grande número de pessoas, mas semeou no interior da tribo a desagregação social, a desmoralização, a doença, a fome, a exploração – condições de rendição incondicional do índio à sociedade “civilizada”. O branco levou à tribo o desequilíbrio demográfico, o comprometimento das linhagens e da organização social. Os Parkateje assumiram heroicamente a rendição, entregaram suas crianças órfãs aos brancos, para que, ao menos, sobrevivessem, ainda que como filhos adotivos. Mais tarde, quando conseguiram organizar a sua resistência contra o branco e conseguiram reorganizar a sua sociedade, saíram em busca das crianças dispersas, agora já adultas, disseminadas até por regiões longínquas, para que voltassem à sua tribo, para que compartilhassem a saga do povo Parkateje. Até mesmo pessoas que nem ao menos sabiam de sua origem indígena, porque os brancos lhes negaram essa informação, foram surpreendidas no meio de um dia, na casa adotiva, pela visita do velho chefe indígena, que lhes anunciava ter vindo buscá-las para que retornassem à sua aldeia e ao seu povo, que as esperava” (Martins 1991: 10).

Com estas palavras, José de Souza Martins, apresenta aos leitores o estudo de Iara Ferras “Os índios Parkatejê 30 anos depois” – contido no livro “O Massacre dos Inocentes. A criança sem infância no Brasil”. Como o leitor pode perceber, o relato trata não apenas da destruição física dos Parkateje do sul do Pará, da destruição física de uma comunidade indígena, mas da destruição daquilo que determina sua diferença, a destruição de sua singularidade no seio das culturas humanas. Trata, portanto, não apenas do genocídio deste povo, mas do seu etnocídio. Conceitos próximos e complementares. Se genocídio nos remete ao extermínio de uma minoria étnica, nos remete a destruição física de um povo por outro, o etnocídio, por sua vez, nos remete a destruição sistemática e deliberada de sua cultura, de seu modus vivendi e de seu pensamento singular. Nos remente, em suma, a uma política de assimilação forçada.

Isto posto, não é de se estranhar que em 1966, “a integração dos povos indígenas” tenha sido utilizada como justificativa por agentes do Estado para a criação em terras Maxakalí da Guarda Rural Indígena (GRIN).8 Uma espécie de destacamento policial composto inteiramente por indígenas que, na prática, atuava como mecanismo de repressão aos que se opunham aos ditames 8 Na época o SPI de Minas Gerais era chefiado pelo Capitão Manoel Pinheiro do Sistema Nacional de Informação (SNI)

dos Estado dentro das terras indígenas, desarticulando qualquer resistência ao esbulho das mesmas. Como apontado o Relatório figueiredo, o resultado da atuação da GRIN não foi outro do que manter os "contratos criminosos de exploração das terras indígenas", por meio da corrupção de lideranças tradicionais, estimulo do faccionalismo interno, do alcoolismo e da dependência do assistencialismo estatal.9

Trata-se de um conceito de difícil categorização, que exige uma análise minuciosa dos casos envolvidos. Pois embora algumas práticas de etnocídio de fato possam se sobrepor às definições consolidadas pela lei de genocídio – e devidamente enquadradas por esta –, tais como a prevenção de nascimentos ou a transferência forçada de crianças – como a adoção compulsória de crianças Parkatejê por não-indígena –, é mister que se tenha em vista que o etnocídio tem como base a absorção compulsória de uma cultura por outra. Ato que por vezes não apenas prescinde de violência física, como surge transfigurado de ação social e/ou intervenção humanitária. Conceito de difícil categorização, porém essencial para que se tenha em vista a formulação de uma política reparativa que leve em conta a singularidade destes povos. Com efeito, pois a despeito do etnocídio per se não ser tipificado no Brasil, ele incide diretamente sobre aquilo que a constituição de 1988 reconhece como o “direito à diferença dos povos indígenas”. A saber: o direito dos indígenas de serem indígenas – com seus próprios costumes e organização social – e de assim permanecerem enquanto desejarem10. O artigo 213 da Constituição Federal de 1988 vai além, pois não apenas reconhece o direito à diferença destas populações, como o atrela de maneira indissociável aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (ou ocupavam). E isto nos remete a última categoria das violações, o deslocamento forçado destas populações.

A fuga dos povos indígenas Deslocamento forçado, noção fundamental, designa as migrações de um indivíduo, ou um grupo, que por razões alheias a sua vontade, se vê obrigado a abandonar sua terra natal. É notório que ao longo da história brasileira diversos povos indígenas se viram obrigados a empreender tal marcha de fuga compelidos e/ou constrangidos pelos avanços e interesses da sociedade envolvente. Outas vezes foram transferidos forçosamente de suas terras para outras pela ação direta das forças do Estado, como ocorreu com os índios Panará durante a construção da rodovia Cuiabá-Santarém. Expropriados de suas terras originais, populações inteiras tornaram-se – nos termos propostos pela 9 O documento com mais de 7 mil páginas, produzido pelo o procurador Jader de Figueiredo Correia em 1967, onde são descritas toda sorte de violações praticada por forças de Estado contra povos indígenas no Brasil 10 Ver Souza Filho (2001).

Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) – “deslocados internos”, isto é, refugiados dentro de seu próprio país. Situação que por vezes os levou a travar contatos pouco amistosos com outros povos, ou pior, que os pôs em rota de colisão direta com antigos inimigos. Como ocorreu durante, por exemplo, a construção da transamazônica, que acossou 100 indígenas Parakanã em terras ocupadas pelos Araweté, aumentando o número de conflitos entre estas populações. Existem ainda casos de que os povos se viram obrigados a buscar refúgio em ambientes cujos perfis ecológicos lhes eram estranhos, comprometendo a sua obtenção de alimentos, como ocorreu com os Panará, ou mesmo terras completamente adversas, onde o modus vivendi destas populações não pode ser atualizado de maneira alguma, como casos dos indígenas que, expulsos de suas terras se viram obrigados a buscar refúgios nas cidades próximas. A exemplo do que ocorre no caso de etnocídio, “deslocamento interno” não é tipificado pela constituição brasileira, e no momento, de fato, não existe nenhuma legislação internacional ou convenção sobre o tema que possa ser utilizado como base. A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, e a Declaração de Cartagena, de 1984 – das quais o Brasil é um dos países signatários –, trata exclusivamente de “pessoas que fugiram de seus países”, deixando de fora aqueles que não atravessaram uma fronteira nacional reconhecida internacionalmente, os deslocados internos.11 Contudo, as respostas a certas questões relativas, inter alia, como o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, o direito à liberdade de locomoção, ao direito de asilo destas populações são fornecidas pelos instrumentos obrigatórios já existentes. De fato, uma rápida análise dos deslocamentos forçados dos povos indígenas é capaz de revelar como o processo compromete não apenas a reprodução de seu modus vivendi tradicional – incidindo sobre o seu “direito a diferença” –, mas também na sua reprodução, enquadrando-os na lei de genocídio. Como, por exemplo, ocorreu durante o já citado deslocamento dos Panará de seu território original para a construção da rodovia Cuiabá-Santarém, no qual sucumbiram pelo menos 175 indígenas, aproximadamente 2/3 de sua população original, por conta de epidemias, fome e dificuldades de adaptação às condições ecológicas das terras para onde foram levados (Rocha, 2003). Contudo, no âmbito de uma política reparativa adequada, enquadrar o deslocamento forçado dos povos indígenas no quadro mais amplo do genocídio não seria suficiente para lhes garantir os direitos que lhes são devidos. Pois, a exemplo daquilo que ocorre no caso de desaparecimento 11 A ACNUR inclui os deslocados internos na execução do seu mandato, embora oficialmente os mesmos não sejam de sua competência.

forçado, o deslocamento forçado implica em um crime cuja resolução encontra-se em aberto enquanto as vítimas estiverem submetidas às suas consequências. Com outras palavras, a única medida reparativa para este tipo de ato é a recuperação das terras originárias destes povos, do contrário, permanecerão na condição de deslocados internos.

Conclusão O objetivo desse texto foi mostrar de maneira preliminar e não exaustiva como algumas das particularidades das violações dos direitos dos povos indígenas vem sendo ignoradas pela Justiça de Transição, especialmente pela lei 9.140 de 4 de dezembro de 1995. Sobretudo, no que diz respeito a dimensão coletiva destas violações. Com efeito, trata-se, nestes casos, da defesa de um bem jurídico coletivo, supra-individual, cujo titular não é a pessoa física, mas o conjunto de uma comunidade indígena. Neste âmbito, alguns avanços recentes são dignos de nota. Além da anistia política do 14 aikewara, do reconhecimento, ainda que simbólico, de que a “conjunto de sua comunidade” fora afetada pelos atos do Estado, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em capítulo assinado pela comissionada Maria Rita Kehl, reconheceu oficialmente 10 etnias indígenas – e cerca de 8.350 indígenas mortos e desaparecidos – como vítimas de graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil durante o período de 1944 a 1988, por conta do esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos. O texto traz ainda um importante adendo sobre este número: “[d]eve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas”. Além, em suas recomendações, a Comissão Nacional da Verdade aponta para a necessidade de se criar uma Comissão da Verdade inteiramente dedicada às violações dos direitos humanos dos povos indígenas. Espera-se que esta futura comissão, caso efetivada, seja capaz de estabelecer uma linha de pesquisa, exame e esclarecimento capaz não apenas de garantir o acesso e eventual usufruto destes à Justiça de Transição, como estimular a adequação da lei para que este seja capaz de compensa-los adequadamente. Por fim, ressalte-se que dar importância ao caráter coletivo das violações contra os povos indígenas, não exclui a dimensão pessoal dos eventos, não ignora, portanto, a existência de vítimas individuais que podem (e devem) ser incluídas nos tramites usuais da Justiça de Transição. A questão deste texto é apresentar uma dimensão complementar, convergente, que seja capaz de garantir não apenas os direitos destes indivíduos e de seus familiares mais próximos, mas também os direitos étnicos e coletivos dos povos afetados, como, por exemplo, a demarcação de suas terras originárias.

Bibliografia consultada BAXI, Upenda; DENG, Francis; AN-NA’IM, Abdullahi; DENG, Francis; GHAI, Yash. Human Rights, Southern Voices. Cambridge: Cambridge University Press, 2009 BOBBIO, Norberto. 1991. "Sobre el fundamento de los derechos del hombre". In: El tiempo de los derechos. Madrid: Editorial Sistema. CALHEIROS, Orlando. Aikewara. Esboços de uma sociocosmologia tupi-guarani. Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2014. CANEDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. DUMONT, Louis, Essai sur l'individualisme. Une perspective anthropologique sur l'idéologie moderne. Le Seuil, Paris, 1983 FERRAZ, Iara & CALHEIROS, Orlando. O tempo de guerra – os Aikewara e a guerrilha do Araguaia. 2015 (no prelo) FRAGOSO, Heleno Cláudio." Genocídio ". Revista de Direito Penal. São Paulo, n 9/10, p. 27-36, jan-jun/1973, p. 32.

________________________. "Direito Penal: Parte Geral", 1998.

SEEGER, Antony.; DA MATTA, Roberto. & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. "A construção da pessoa nas sociedades indígenas", Boletim do Museu Nacional, 32. 1979. SEGATO, Rita Laura. “Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais”. Mana [online]. 2006, vol.12, n.1 LEMKIN, Raphael Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation - Analysis of Government Proposals for Redress. Washington, D.C.: Carnegie Endowment for International Peace, 1944, p. 79 – 95. MARTINS, José de Souza (org.) O Massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil.

Editora Hucitec, 1991

ROCHA, Ana Flávia. A Defesa dos Direitos Socioambientais no Judiciário. São Paulo. Instituto Socioambiental, 2003. SOUZA FILHO, C. F. Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 1 ed. Curitiba: Juruá Editora, 2001. p.107. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté, o povo do Ipixuna. São Paulo: CEDI, 1992.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.