Noel Rosa em seu tempo ou o samba em forma de arte

October 8, 2017 | Autor: Dmitri Cerboncini | Categoria: Brazilian Studies, Samba, Brazilian Popular Music
Share Embed


Descrição do Produto

Noel Rosa em seu tempo ou o samba em forma de arte Revista Cultura Crítica, volume 12, páginas 23-29, 2011. Dmitri Cerboncini Fernandes – Bacharel em Ciências Sociais (FFLCH-USP), Doutor em Sociologia (FFLCH-USP) e Bolsista FAPESP de Pós-Doutorado em História Social (FFLCH-USP). Impossível interessar-se pela música popular do Brasil e não se admirar com a proficuidade ímpar de Noel Rosa (1910-1937). Autor de uma fornada de cerca de trezentas composições em curtíssimo espaço de tempo, o caso de Noel é dos raros em que grande quantidade não significa perda de qualidade, conforme atestam a demanda do público e a opinião de críticos e especialistas: seus êxitos são incessantemente regravados, fato que o torna um dos maiores fenômenos que nosso cancioneiro jamais concebeu. Longe de se restringir à esfera musical, a perpétua adoração à figura de Noel Rosa

suscita

empreitadas

variadas:

avolumam-se

biografias,

reportagens,

documentários, estudos, filmes, revistas, coletâneas, songbooks, programas especiais no rádio e na televisão voltados ao simples encômio ou, raríssimas vezes, à detração polemista da figura e seu legado, indícios da incrível posição ocupada na cena cultural por alguém desaparecido há mais de setenta anos. Tal fartura de materiais, opiniões e escrutínios sobre vida e obra do sambista de Vila Isabel facilita o acesso ao conhecimento do legado de um personagem incontornável, algo meritório em um país que tradicionalmente não confere grande importância à salvaguarda de sua própria história. Por outro lado, a abundância e o tom amiúde incensador de tudo o que diga respeito a Noel chegam ao ponto de frustrar a realização seja de uma análise minimamente objetiva, seja de um tributo à altura do laureado, quer dizer, que fuja ao lugar-comum das convencionais constatações de genialidade. Neste sentido, penso que mais proveitoso do que repisar a simples exaltação à figura tornada romanesca ou a exegese de versos e melodias seria desvendar sentidos dotados de valor historiográfico ocultados em meio a episódios bem conhecidos de sua trajetória. É o que tentarei empreender nos limites das próximas breves linhas. Sujeito e produto de uma era, a era em que o samba galgou espaços anteriormente inimagináveis, Noel Rosa contribuiu de inúmeras formas – e muitas vezes de maneira não-intencional – em setores diversos do da composição. A própria noção de genialidade quando restrita ao domínio das manifestações populares urbanas,  

1

por exemplo, não existiria sem o concurso pretérito de Noel e seus companheiros de música, fato ironicamente ignorado pelos maiores entusiastas e usuários da expressão. Assim também sucede com a elevação do samba ao estatuto de arte, intricado processo tributário de diversos agentes, dentre os quais, claro, ele: Noel. Mas que seja frisado: não só ele. Levando em consideração a perspectiva das relações sociais que permitiram sua existência artística encaramos o artista mais de perto, como homem de seu tempo: nem títere enleado em estruturas totalizadoras, nem indivíduo sobre-humano livre de constrições. E talvez esse modo de visão seja o que maior subsídio enseje para compreendermos como este filiado a uma atividade então subalterna pôde chegar ao que é hoje: clássico celebrado da cultura de um país. *** Os anos de 1930 presenciaram a entrada em cena de brancos de classe média no universo das manifestações musicais populares urbanas. Diferentemente dos personagens do pretérito, cultores de uma forma musical supostamente funcional, quer dizer, voltada à comunidade de origem, os recém-chegados iniciavam-se de cara nas ascendentes estações de rádio e indústrias fonográficas da Capital Federal. O ícone dessa nova geração, Noel Rosa, expressa por meio de sua trajetória com exatidão as transformações em pauta. A meio-caminho da boêmia e a vida burguesa, decidido a tornar-se artista popular, Noel abandona o curso de medicina no primeiro ano. Emblemática declaração, no entanto, sugere que ele não teria rompido de vez com o universo social legítimo, visto que pretendia ser o “[...] Miguel Couto do samba”.1 Neste ponto o pretendente dava à mostra aquela que se tornará a característica central das investidas dos colegas de sua geração: a alta aspiração transposta a um domínio até aquele instante reservado às camadas inferiores. O remediado morador de Vila Isabel, filho de um comerciário e de uma mestraescola realizou os estudos no prestigioso Mosteiro de São Bento, tendo sido exposto a precoce contato informal com o ensino musical. A esperança era a de que o primogênito formasse-se em medicina: assim, a família sairia da precária situação econômica em que se encontrava após a demência precoce que acometeu seu chefe. Noel, no entanto, não logrou conciliar a faculdade com a vida noturna que levava. A renúncia ao título de doutor demarcou o primeiro ato de desinteresse em prol de uma carreira incerta e                                                              1

Apud: Máximo, João & Didier, Carlos. Noel Rosa: Uma Biografia. Brasília, UnB, Linha Gráfica Editora. 1990, p. 158. A maioria das informações trazidas à baila neste texto provém deste livro. 

 

2

altamente arriscada. Seu desprendimento, contudo, fez com que angariasse legitimidade no circuito da música popular urbana, haja vista o sacrifício econômico e de status em favor daquela manifestação e de seu estilo de vida correlato. Noel distinguia-se positivamente, ademais, por outras razões: embora tivesse se integrado com mestria naquele ambiente, fazendo da própria vida uma obra de arte, sua formação cultural pregressa destoava dos compositores contemporâneos; as sutilezas lingüísticas e preocupações formais presentes nos versos de suas composições entregavam sua origem social. O famoso problema no maxilar lhe trouxe diversos estigmas, como o de jamais comer em público; em contrapartida, serviu para que a mãe, compungida pela má sorte do filho, o deixasse solto pelo submundo do samba. Presente desde 1929 nas gravações em disco e estações de rádio, passou a tirar dos serviços prestados a essas instituições seu ganha-pão. Casado por pressão da família da noiva aos vinte e quatro anos, Noel, além de sustentar a esposa, ainda separava um montante para manter a vida desregrada que comportava a dissipação de dinheiro por meio do sustento de amásias e bebidas aos montes. Tais fatores forçaram-no a manter um ritmo de produção de canções jamais visto em termos de música popular, muitas delas compostas em conjunto com seus companheiros de cafés, bares e casas noturnas. Sua fama em fornecer acabamento estético a letras e canções carecedoras de graça e criatividade, no mais, atraía muitos compositores medianos atrás de parceria. O “Filósofo do Samba” ou “Poeta da Vila”, alcunhas recebidas pela imprensa da época por conta da pretensa profundidade contida nos versos de suas produções jogou-se neste universo de corpo e alma, encarando-o como um trabalho ipsis litteris. Almejava, em razão disso, arregimentar determinada legitimidade à nova “profissão” no intento de apagar aspectos socialmente negativos que ele pudesse carrear. Em entrevista concedida a um jornal em 1936 Noel dissertava sobre a relação que poetas como Orestes Barbosa e Catulo da Paixão Cearense teriam mantido com as criações populares, relação esta que, em sua opinião, configurava-se em via de mão dupla. Ele deixava claro que “(...) Da recíproca ação dessas duas tendências resultou a elevação do samba como uma forma de arte”.2 Noel, neste período, era o sambista mais afamado do Brasil. E como sua declaração dá a perceber, tencionou considerar-se um                                                              2

  Apud: McCann, Brian. Hello, Hello Brazil: Popular Music in the Making of Modern Brazil. Estados Unidos da América, Duke University Press. 2004, p. 56. 

 

3

artista na plena acepção do termo, artista de uma arte recém-inventada por figuras como ele próprio, que faziam ver e crer por meio de suas descrições, obras e ações em que deveria consistir o emergente gênero musical. Cabia ainda dentro do espírito dessas afirmações bombásticas a denegação do interesse no sucesso junto a um público alargado: no auge de sua curta carreira ele declarou ao Jornal do Rádio, em 1935, sobre a venda de quinze mil cópias de discos do antigo sucesso Com que Roupa (1931): “(...) Não gosto do Com que Roupa. Foi feito para o povo, e os sambas que eu mais gosto são feitos para mim”.3 O individualismo caro àqueles que podem se dar ao luxo de satisfazer apenas a si próprios, aos pares ou a um círculo restrito demarca com precisão o instante em que certa autonomia simbólica passava a envolver e a ditar a produção do samba enquanto gênero musical organizado, dotado de parâmetros próprios de avaliação e classificações hierárquicas. As possibilidades de criação, de filiação e as “escolhas” que tanto recém-chegados quanto antigos realizariam nesta arena foram constrangidas após a década de 1930 por tais divisões.4 *** Os enunciados pertencentes à geração de Noel, como Braguinha (Carlos Alberto Braga, 1907-2006) – filho de um diretor de indústria –, Almirante (1908-1980) – filho de um endinheirado comerciário –, Mário Reis (1907-1981) – filho de um industrial –, Ary Barroso (1903-1964) – filho de um deputado estadual e promotor público –, Lamartine Babo (1904-1963) – filho de um comerciário – alteravam as relações então estabelecidas entre compositores/cantores e as instituições comerciais. Em meio aos mencionados, apenas Braguinha não perdeu o pai de modo precoce antes de se aventurar no mercado da música popular – levando em consideração que o pai de Noel Rosa tornara-se demente na adolescência do compositor, vindo a se suicidar poucos anos à frente.5 Braguinha, por outro lado, ocultou durante muito tempo a atividade exercida no meio artístico, disfarçando-se sob o pseudônimo de João de Barro. Partilhando a carência da autoridade paterna, quiçá de figura impeditiva aos sobrevôos demasiado temerários à reprodução de suas posições sociais, esses trânsfugas de classe                                                              3

Idem.  Para maiores informações sobre este processo, consultar Fernandes, Dmitri Cerboncini. A Inteligência da Música Popular: a “autenticidade” do samba e do choro. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2010.   5 Almirante tinha dezesseis anos quando seu pai faleceu, Mário Reis, dezessete, Ary Barroso, sete e Lamartine Babo, doze anos. 4

 

4

puderam se arriscar de forma pioneira no métier indesejado pelos membros de “famílias respeitáveis”. A ausência de interditos à empreitada artística consistiu, portanto, na coincidência histórica que reuniu aqueles que maior êxito conheceram no rádio, nas vendas de discos e nas profissões correlatas oferecidas na primeira metade do século XX no Brasil. Nascidos em um espaço de tempo muito aproximado – não mais que sete anos –, esses pioneiros brancos de classe média e média-alta, desistentes de carreiras promissoras forçavam, por outro lado, as indústrias fonográficas e as estações de rádio a não mais agirem de forma amadora, prática comum até fins da década de 1920. Os capitalistas do rádio e do disco passavam a lidar com cidadãos distintos do lumpesinato carente de informações sobre seus direitos, disposto a vender sua força de trabalho a qualquer preço. Paralelamente, as referidas instituições comerciais já haviam iniciado um processo de racionalização organizacional e estética. Planos de expansão de lucros fizeram que determinados segmentos do processo de produção da mercadoria musical, outrora ignorados, passassem a atrair a atenção dos diretores dessas empresas. A escolha do repertório e do catálogo de artistas, por exemplo, demandava alguém especializado, capaz de também cuidar do arranjo dos discos e da mediação com os músicos, compositores, cantores. Um dos primeiros managers da indústria fonográfica foi Braguinha, figura que carreava os requisitos ao desempenho da função. Braguinha conquistou quando de seu início nas gravadoras, lá pelos idos de 1929, amizades e contatos os mais diversos. A fama de bom compositor e de homem de trato fino abriu-lhe as portas para cargos de responsabilidade em variados âmbitos artísticos. Logo em 1934, o compositor e exestudante de arquitetura participou como roteirista e assistente de direção dos filmes que começaram a ser rodados no Brasil, dividindo este ofício com o musical até o ano de 1937, quando um dos diretores da Columbia Pictures, empresa para a qual Braguinha prestava serviços, o convidou a integrar o setor de discos. A partir de então o ex-líder do Bando de Tangarás, conjunto musical no qual Noel Rosa iniciou-se nesse meio, permaneceu durante toda a vida vinculado ao gerenciamento e à produção. Percebe-se que a presença de agentes como ele, Almirante, Ary Barroso e Lamartine Babo, ocupantes das estruturas do rádio na década de 1930 em funções de direção, produção e apresentação, modificava de vez a feição desse universo em um sentido determinado. Grande parte dos cantores e cantoras de sucesso passava ainda a ser composta por artistas da estirpe de Mário Reis e Marília Batista (1918-1990), quer dizer, “cartazes”  

5

bem apessoados, brancos e bem nascidos. *** Conforme visto, a nova geração que ascendia junto às gravadoras de discos e estações de rádio impunha, ainda que imperceptivelmente a si próprios e aos outros, suas visões de mundo e anseios quanto ao que deveria consistir a profissão de artista popular. Muitas vezes o que eles almejavam, no entanto, conflitava com valores fomentados por antigos e novos convertidos a sambistas, revelando a fissura existente entre mundos sociais distintos no mesmo domínio artístico. Wilson Batista (1913-1968), negro, filho de um pintor de paredes de origem muito pobre nascido em Campos, norte fluminense, migrou sozinho à cidade do Rio de Janeiro com quinze anos a fim de galgar algo mais em sua vida. Após ter passado por ocupações subalternas na capital lançou-se à composição de sambas de forma muito promissora. O forasteiro fluminense criou em 1933, com vinte anos de idade, uma canção sem maiores novidades formais nem temáticas, a Lenço no Pescoço, cuja letra continha espécie de ode aos traços identificadores do “malandro” sambista carioca, tema habitual desde a década de 1920.6 A canção foi gravada no mesmo ano pelo ascendente Sílvio Caldas (1908-1998). Dizia a referida letra: Meu chapéu do lado/Tamanco arrastando/Lenço no pescoço/Navalha no bolso/Eu passo gingando/Provoco e desafio/Eu tenho orgulho/Em ser tão vadio/Sei que eles falam/Deste meu proceder/Eu vejo quem trabalha/Andar no miserê/Eu sou vadio/Porque tive inclinação/Eu me lembro, era criança/Tirava samba-canção/Comigo não/Eu quero ver quem tem razão/E 7 eles tocam/E você canta/E eu não dou.

Wilson punha em expresso na composição hábitos e maneiras do submundo freqüentado também pelo já célebre Noel Rosa, positivando e assumindo uma condição marginal fortemente condenável pelos próceres da moralidade e bons costumes. O malandro tomava carne, traduzia-se em vestes e certa maneira de ser “natural” àqueles que, como Wilson, apresentaram inclinação, pois segundo assinalava “era criança” e “tirava samba-canção”. Forma de justificativa aos não aptos à modorrenta vida do trabalho “dignificante”, a reflexão sobre a malandragem imiscuída em meio aos versos                                                              6

Sinhô compôs algumas canções que continham certa reflexão sobre a malandragem já em 1927, como a Ora, vejam só, que trazia os seguintes versos: Ora vejam só/A mulher que eu arranjei/Ela me faz carinhos até demais/Chorando, ele me pede/Meu benzinho/Deixa a malandragem se és capaz/A malandragem eu não posso deixar/Juro por Deus e Nossa Senhora/É mais certo ela me abandonar/Meu Deus do céu/Que maldita hora/A malandragem é um curso primário/Que a qualquer um é bem necessário/É o arranco da prática da vida/Que só a morte/Decide o contrário. Para maiores informações sobre os antecedentes de sambas “malandros”, ver Matos, Claudia. Acertei no Milhar: Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1982. 7 Lenço no Pescoço (1933), de Wilson Batista.

 

6

de sambas, quer dizer, sobre o estilo de vida à brasileira contraposto ao burguês alcançava o apogeu com Batista. A necessidade tornava-se virtude, tendo em vista que a negros como Wilson o acesso às posições econômicas dominantes era estruturalmente vedado; restava-lhes como consolo efetuar a inversão dos valores sociais “normais” por meio da exaltação de um estilo de vida marginal. O “Filósofo do Samba”, neste caso, revelou uma faceta distante da propalada pelos posteriores cultores, e mesmo contrária ao que preconizava em outras ocasiões.8 Embora aos olhos das “boas famílias” Noel levasse uma vida desregrada, com repetidas incursões em cabarés, bares e morros, inusitadamente ele respondeu de maneira um tanto ríspida e contraposta à ode à malandragem de Wilson Batista. Apesar de os dois não cultivarem amizade próxima, nenhum problema maior de relacionamento existia entre eles, razão pela qual qualquer espécie de vendeta pessoal deve ser afastada como estopim. Assim, naquele mesmo ano de 1933 o sambista-mor lançou prontamente, por intermédio da cantora Aracy de Almeida, sua preferida, a canção Rapaz Folgado, ratificando a tradição de intertextualidade presente em versos de diferentes composições de samba desde 1918, quando Pixinguinha, Donga e China batiam-se contra Sinhô em humoradas letras. Eis a canção-resposta de Noel Rosa: Deixa de arrastar o teu tamanco/Pois tamanco nunca foi sandália/E tira do pescoço o lenço branco/Compra sapato e gravata/Joga fora esta navalha que te atrapalha/Com chapéu do lado deste rata/Da polícia quero que escapes/Fazendo um samba-canção/Já te dei papel e lápis/Arranja um amor e um violão/Malandro é palavra derrotista/Que só serve pra tirar/Todo o valor do sambista/Proponho ao povo civilizado/Não te chamar de 9 malandro/E sim de rapaz folgado.

Os símbolos de malandragem eleitos por Wilson, quais sejam, o andar malemolente de um tamanco arrastado, o lenço posto no pescoço, a navalha, o chapéu de lado etc. deveriam ser substituídos na criação de Noel pelos que traziam a marca da civilização burguesa: o sapato, a gravata e a namorada. Apesar disso, Noel não tocou no ponto em que Wilson Batista criticava o trabalho de fato, pelo contrário; aconselhou a este último apenas que arranjasse um violão – sinal de que urgia a ele prosseguir a vida                                                              8

Interessante ressaltar neste ponto que não procuro aquilo que poderia ser considerada uma “coerência interna” que abrangesse e nivelasse as obras de determinado artista. Incoerências e modificações de posição sobre o que quer que seja habitam costumeiramente os discursos transfigurados em versos de canções. Tratando-se de criações artísticas, não de glosas imediatas sobre “a realidade”, seja esta encarada da maneira que for, a realidade a que se prendem estes discursos é de um segundo nível. Trata-se, portanto, de obras que muitas vezes estão mais interessadas em dialogar entre elas próprias, em formar uma rima etc., do que em dissertar de forma lógica sobre o mundo que as enseja. Essa precaução analítica poderia por vezes ter evitado o que costumeiramente é denominado de redução de uma obra a um contexto determinado. 9 Rapaz Folgado (1933), de Noel Rosa.

 

7

no meio musical, sob a condição de adotar procedimento distinto dos que propugnava. Ao mesmo tempo, Noel afastava a atuação do tocador de violão da esfera da malandragem anunciada por Wilson, enquadrando o instrumento musical de sua predileção em novo patamar. A questão central, contudo, é a de que Noel expressava certa rejeição à identificação imediata entre a figura do “malandro”, a carga de marginalidade que a palavra carregava, e o sambista, que neste ponto veria seu “valor” atado aos da própria sociedade “civilizada”. Wilson Batista, logo em seguida, respondeu na mesma moeda. Em Mocinho da Vila, de 1934, ele procura reafirmar a malandragem taxando Noel de mocinho, isto é, de um “otário”, antítese do malandro, pois não pertencia ao ambiente “pesado” do qual ele, Wilson, provinha e do qual o samba diria respeito. Se Noel era mais bem inserido nas instituições comerciais da música popular e possuía maior celebridade junto ao público, Wilson, em contrapartida, demarcava de modo um tanto ressentido que o fato de Noel ter acesso ao “microfone”, isto é, às gravadoras e as rádios, nada queria dizer a quem pertencia ao universo do samba por direito, pois “malandro não se faz”, se nasce. E, além dessa malandragem endêmica Wilson apregoava ainda que “tinha seu cartaz”, isto é, que comia pelas beiradas do sucesso. Dupla malandragem, de vez que além de amealhar lucros simbólicos na esfera em que Noel reinava, ele teria o samba correndo na veia, diferentemente do “mocinho”. A canção dizia o seguinte: Você que é mocinho da Vila/Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais/Se não quiser perder/Cuide do seu microfone e deixe/Quem é malandro em paz/Injusto é seu comentário/Falar de malandro quem é otário/Mas malandro não se faz/Eu de lenço no pescoço desacato e também 10 tenho o meu cartaz.

A contenda entre Noel e Wilson trouxe à luz a possibilidade da existência simbolicamente legítima de um samba “civilizado”, quer dizer, que se realizasse intrinsecamente pela mediação das instituições comerciais e que, não obstante, não abrisse mão de certa aura de pureza. Sem entrar na espinhosa questão da maior ou menor ascendência que o ambiente criado pelo governo trabalhista e “civilizador” de Getúlio Vargas possa ter exercido sobre transformações na arte popular daquele tempo, fica claro que, embora artistas como Noel partilhassem dos ambientes boêmios e de um estilo de vida não muito distante do propugnado por Wilson Batista, eles passavam a desejar ao samba e aos sambistas o estatuto de “arte” e “artista”, o que acarretava o apagamento de certos sinais prejudiciais a tal intento. Ao declarar que preferia as                                                              10

 

Mocinho da Vila (1934), de Wilson Batista.

8

canções que compunha para si, e não as que criava para agradar aos outros, isto é, ao grande público que se arvorava em torno do samba, Noel nada mais fez do que anunciar discursivamente a existência de outra inflexão que principiava a ditar o rumo das produções de samba. Noel Rosa ou qualquer outro dos nomeados acima que detivesse atributos sociais semelhantes incomodar-se-ia em “compor para os outros” porque à arte “verdadeira” não cabe a ânsia em deleitar um público anônimo. O caráter “universal” do samba encontrava-se aqui instituído, dado que sua lógica de reprodução ladeava a das artes legítimas. Noel Rosa e seu grupo inauguraram, ademais, um caminho alternativo ao proposto por Mário de Andrade, grande teórico das artes populares de então; a pretensa pureza musical popular urbana, qualidade referida tão-somente aos territórios dos morros, segundo Mário, infiltrava-se na intimidade do sambista-artista na década de 1930. Após a morte de Noel a chama manteve-se acesa; Almirante, Ary Barroso, Braguinha etc., do alto de seus microfones e de suas cadeiras de diretores de instituições musicais terminaram aclamados juízes e verdadeiros intérpretes das manifestações populares urbanas. Cristalizava-se por meio de seus discursos e avaliações, enfim, a divisão que permitiu a existência simbólica do desinteresse dentro dos mais interessados âmbitos, os das estações de rádio, indústrias fonográfica e cinematográfica, teatros de revista etc. Aqui, talvez, o verso de célebre canção de Noel, a Feitio de Oração, “(...) O samba, na realidade/Não vem do morro nem vem da cidade/E quem, suportar uma paixão/Sentirá que o samba então/Nasce do coração”, ganhe outro significado, uma vez que de forma poética seria a partir do “coração”, quer dizer, do que há de mais interno em termos de sentimentos, que o samba proviria e se realizaria. Nada mais artístico.

 

9

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.