Noite Ocidental e a luneta de uma lente só - uma leitura da terceira parte do poema O sentimento dum ocidental de Cesário Verde

May 24, 2017 | Autor: S. Novo | Categoria: Baudelaire, Literatura Portuguesa, Modernidade, Poesia, Cesario Verde, Poesia Portuguesa
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Primeira estrofe de Aves-marias (2013, p. 84).
Emerson citado por Harold Bloom (2009, p. 150).
Primeiro verso de Ao Gás (2013, p. 85).
Espero que as comparações não se tornem excessivas e que não sejam vistas como um modo meu de reduzir Cesário Verde a um mero seguidor ou pastiche de Baudelaire. Ao meu ver, a comparação elucida e simplifica, de alguma maneira, a minha interpretação do poema. Baudelaire, aqui, como meio, não como fim.
Oitava estrofe da segunda parte, Noite Fechada, terceiro verso (2013, p. 84).
Quarta estrofe de Ao gás (2013, p. 85).
Última estrofe de Ao Gás (2013, p. 85).


Uma noite ocidental
e a luneta de uma lente só
uma leitura da terceira parte do poema O sentimento dum ocidental de Cesário Verde


UFRJ – LETRAS
Poesia Portuguesa
Trabalho apresentado para a Profa. Sofia Silva (UFRJ)


Sergio Alexandre Novo Silva
(DRE: 114157886)













Noite ocidental
e a luneta de uma lente só:
uma leitura da terceira parte do poema O sentimento dum ocidental de Cesário Verde














(...)
Para o excesso e a falta
um só mover do pescoço.
Wisława Szymborska, Elegia de viagem
O que distancia e opõe mundo poético e mundo real é também o que os enlaça em um vínculo mortal.
Alfonso Berardinelli, Da poesia à prosa
O poema não para o tempo: ele o contradiz e transfigura.
(...)
O homem moderno se vê lançado ao futuro com a mesma violência com que o cristão se via lançado ao céu ou ao inferno.
Octavio Paz, Os Filhos do Barro
1.
Pode-se ver traços de um poeta maldito em Cesário Verde. A estrofe que inicia o poema O sentimento dum ocidental, marca bem a característica "maldita", ou o que discorre sobre características do mal, dionisíacas; de alguém que está, ou se sente, profundamente amaldiçoado no ambiente em que se encontra, e – se podemos dizê-lo – que age de maneira transgressiva com os interditos desse mesmo ambiente. Nas ruas, ao anoitecer,/ Há tal soturnidade, há tal melancolia,/ Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Nesses versos, o poeta conjura o nosso desconforto imediato causado pelo verbo sofrer e dá, com isso, toda a ambientação melancólica e soturna que vai nos acompanhar por todas as quatro partes desse poema.
Chamo, aqui, Cesário Verde de poeta maldito, não para reduzi-lo a uma classificação que principalmente se refere a poetas franceses que não se sentem confortáveis no seu próprio tempo. Acho pertinente a designação, entretanto, para associá-lo, num primeiro momento, a Baudelaire e a questão da modernidade. Como poeta pós-baudelairiano, Cesário Verde pode ser lido como símbolo de uma modernidade portuguesa; ou seja, símbolo de um momento totalmente presente – como expressa a raiz latina da palavra modernidade, modo –, e que vai contra o passado, a tradição. "Contra", explicito, não num sentido de renúncia ou desdém. Mas, para além de uma ideia lugar comum benjaminiana de algo que faz um movimento a contrapelo; esse contra, moderno, no sentido de se ocupar em ter um olhar crítico sobre o seu próprio tempo e, principalmente, sobre as tradições que nele se perpetuam e se perpetuarão. Uma verdadeira face de Janus, um anjo da história. Parece-me, à primeira vista, que Cesário Verde se dispõe a participar desse embate "contra tudo e contra todos", e não se importa tanto com o fato de não existir para o seu tempo (VERDE, 2006). É, pois, um verdadeiro poeta moderno.




2.
O poema em questão se divide em quatro partes de onze estrofes cada uma, e que são assim chamadas: Ave-marias, Noite Fechada, Ao Gás, e Horas Mortas, respectivamente. Cada estrofe possui quatro versos, sendo o primeiro sempre um decassílabo, de ritmo variado, e os demais versos, dodecassílabos. A disposição das rimas é sempre ABBA. Essa forma extremamente fixa nos remete logo ao tipo de rima dos quartetos de um soneto clássico. O decassílabo, por outro lado, é marca registrada camoniana, principalmente o chamado heroico, presente em alguns desses versos; e os dodecassílabos são versos de mesmo número de sílabas poéticas dos famosos versos alexandrinos – versos clássicos da tragédia francesa. Isso já insere o poema de Cesário Verde a uma tradição; isso é relevante ao menos para que o poeta possa criticá-la, ou mesmo participar dela.
Nesse curto ensaio, entretanto, pretendo analisar apenas uma das partes desse grandioso poema. Ao gás, quando o poeta já caminhou pela Lisboa do fim de tarde, e, desejoso de sofrimento, ele evoca o passado, de maneira épica à maneira de Camões, para nos mostrar os pontos de intersecção desse mesmo passado glorioso com o seu presente de uma cidade moderna e burguesa (Ave-Marias); e imediatamente após ele se aventurar mais ainda pela história dessa cidade, agora, já tão escura e fechada, e "triste" (Noite Fechada). Quero ler, aqui, Ao gás, parte dessa sua andança, de sua flânerie, na qual as luzes já clareiam a cidade, e, talvez, um momento de esperança vigore para o leitor. Somente para o leitor, pois para o olhar de um poeta moderno e maldito, a luz é motivo para se enxergar a podridão em toda a sua definição, forma, e moscas; e para isso o poeta utilizará a melhor das lunetas de uma lente só.

3.
Impossível recortar parte de um poema para uma única análise, com a ingenuidade de que ela será plena e satisfatória. Essas são as devidas ressalvas acadêmicas. Os tão necessários recortes: esse momento em que nossos olhos se fecham um pouco e focalizam o que, para nós, é pertinente; ignorando o que não nos interessa, ou o que nos atrapalha. "Se cortarmos as palavras, elas sangram; são vasculares e vivas". Assim também é o poema; e assim são os seus versos, as suas estrofes e as suas partes.
Tentarei mencionar sempre que for possível as outras partes desse poema, para se ter uma leitura mais completa. Mas, como já dito, focalizarei na parte chamada Ao gás, terceira parte que sucede já toda uma andança do poeta pelo entardecer e pela noite escura, e que aparece como um símbolo de esperança e luz; mas ainda um símbolo falso, feito artificialmente com lampiões abastecidos por um gás nauseante. Esse momento precede uma madrugada de horas mortas, que nos puxa e nos bofeteia quando a gente menos espera. É um porém, um mas, que aparece diversas vezes durante o poema para que não nos esqueçamos que tudo, até mesmo a esperança, já está perdida.

4.
No começo da terceira parte desse poema, o narrador sai da Brasserie em que ele se encontrava anteriormente. Restaurante francês, em plena Portugal, repleto de "emigrados"; emigrantes que jogam, rindo, dominó. É importante parafrasear esses últimos versos que vêm antes da parte em questão, para que, enfim, se perceba o contraste ao qual o poeta quer nos submeter. O restaurante francês e seus fregueses podem ser vistos como símbolos de uma época clássica e de uma sociedade fina, racional, iluminista. Após sair de um recinto, aparentemente, feliz e iluminado, o flâneur é pego pela noite que o esmaga! Claro e escuro, barroco; o mesmo efeito provocado por um porém contrastante.
Agora sou tentado a ler esse primeiro verso sem a pausa do ponto final que sucede o verbo esmagar: E saio. A noite pesa, esmaga. Nos. Como se o poeta dissesse que essa noite nos esmaga; a nós, leitores e a ele, poeta. Mas o verso continua num enjambement que – caso não aceitemos o fenômeno fonético aludido no verso anterior – nos puxa para prosseguir, num ritmo quase que de prosa, o andar do poema em direção ao próximo verso.
Nas calçadas, o narrador, como Baudelaire, vê passantes. Essas, na verdade, se arrastam e são visualmente impuras. Seriam prostitutas cujos ombros nus se arrepiam com um sopro que sai das ruas? Num segundo momento, o flâneur se vê cercado por edifícios, lojas e igrejas. Não é a primeira vez que ele se encontra emparedado: já, em Ave-Marias e Noite Fechada, imagens de edifícios e outros recintos compõem, quase que excessivamente, essa Lisboa do século XIX retratada por ele. Aqui, porém, o foco é no sagrado, na religião, no interdito. Logo a seguir, o narrador pensa ver uma procissão diante de uma catedral de um comprimento imenso. Catedral gótica? Lembrança da Baixa Idade Média numa Lisboa moderna. Exemplo de tantas imagens interseccionadas de passado e futuro que o poeta nos força a vislumbrar. Na segunda parte do poema a Idade Média também aparece: ela anda a pé, enquanto outras épocas, como a do poeta, vão a passos lentos. Todavia, o que ele vê, nesse tipo de procissão moderna, imitando uma religiosidade do passado ao som de um piano doente, são as "burguesinhas do Catolicismo". Elas são comparadas às freiras em jejuns do passado, mas não só. Elas, agora, resvalam pelas mesmas ruas em que as impuras se arrastam. Elas, de fato, também, se arrastam pelo mesmo chão; elas também são impuras. "A modernidade estética se define essencialmente pela negação: antiburguesa, ela denuncia a alienação do artista num mundo filisteu e conformista, onde reina o mau gosto." (COMPAGNON, 2010 p. 24).

5.
O que se segue nas próximas estrofes é a descrição do cerne, o âmago, ainda não visto até aqui, dessa burguesia que domina a cidade: "Num cutileiro, de avental, ao torno,/ Um forjador maneja um malho, rubramente;/ E de uma padaria exala-se, inda quente,/ Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.". Esse âmago, como o chamo, é apresentado de maneira positiva. Não vemos mais o lado negativo da burguesia – lembre-se o ar irônico das "burguesinhas católicas". Nessa estrofe parece que a gênese, o passado, da burguesia está em jogo, seu caráter artesanal. Deparamo-nos com artesãos, não os tão conhecidos burgueses que visam somente o lucro. O poeta sente o cheiro de um pão que o remete logo a qualidades boas, como a honestidade. Me pergunto se são qualidades só passíveis de serem vistas à luz de um lampião que ilumina a cidade. Os versos seguintes retratam a inconsistência, o descompasso da ficção (representada, para mim, pela imagem do "livro que exacerbe"; seria uma imagem da história?) com a realidade. O mundo artesão, aparentemente ingênuo e inocente é confrontado, agora, com a imagem de um jovem gatuno que olha pelas suas vitrinas, provavelmente, esperando para furtá-las. Uma análise com um viés marxista poderia muito bem se inserir nesse momento de embate entre luta de classes. Novamente, é o passado, o presente e um futuro amargo de uma cidade, de uma história ocidental que são postos lado a lado, às vezes até mesmo, sobrepostos.

6.
Saltarei para a penúltima estrofe, cujo desfecho me interessa profundamente. Essa estrofe começa com uma conjunção adversativa: "Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes/ Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;/ Da solidão regougo um cauteleiro rouco;/ tornam-se mausoléus as armações fulgentes. A conjunção marca a falta de esperança; como em outras partes do poema, o poeta nos pega de surpreso e acaba com a ilusão na qual ele mesmo nos afogou. A noite fecha novamente após o apagamento das luzes. Eis o terrível da modernidade: a luz dura pouco. O que antes brilhava – todos os edifícios, com suas luzes, seus fregueses e vitrines – agora são mausoléus. Tudo se transforma, se deforma; assume uma nova face medonha e soturna. Logo, logo, os cães vão se tornar lobos. Não será essa a verdadeira face de uma cidade do século XIX?
Que olhar atento e crítico! Cesário Verde percebe no seu incômodo o que há de errado. Seu desejo de sofrer é o que o liberta dessa modernidade burguesa, cujo desejo, por outro lado, é de ter prazer constante, sem limite, e propiciado pelo capital. Mas não lhe basta a crítica ao presente. O passado não o satisfaz. Ele termina Ao Gás com a imagem da antiguidade em miséria: "'Dó da miséria! ... Compaixão de mim! ...'/ E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,/ Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,/ Meu velho professor nas aulas de latim!". A tradição também não é uma opção. Só serve para se admirar ao ascendê-la "num pilar"; mas nela não há mais resposta. E ainda que seu fazer poético perpasse por ela, Cesário Verde é tomado por uma força que o impele "contra tudo e contra todos". Vejo prosa em sua poesia.

BIBLIOGRAFIA
Antologia da poesia portuguesa – Linhas Mestras: Tomo II – Séculos XVI a XIX. Org. Setor de Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro: Setor de Literatura Portuguesa / UFRJ, 2013.
BLOOM, Harold. Onde encontrar a sabedoria? Trad. de J. R. O'Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. de C. P. Mourão, C. F. Santiago e E. D. Galéry. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
VERDE, Cesário. Obra Poética integral – 1855-86 (tábua e cartas). Org. Ricardo Daunt. São Paulo: IPLB / Landy, 2006.

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