NORBERTO, Rafael; LUCAS, Elizabeth. Saudade do meu interior e Recordando os velhos: memórias nostálgicas na \"música do Beiradão\" amazonense. ANAIS do XXVI Congresso da ANPPOM. 2016.

May 30, 2017 | Autor: R. Branquinho Abd... | Categoria: Music, Ethnomusicology, Amazonia, Memory Studies, Brasil, Música, Amazonas, Etnomusicologia, Memoria, Música, Amazonas, Etnomusicologia, Memoria
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XXVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – B. Horizonte - 2016

Saudade do meu interior e Recordando os velhos: memórias nostálgicas na “música do Beiradão” amazonense MODALIDADE: COMUNICAÇÃO SUBÁREA: ETNOMUSICOLOGIA Rafael Branquinho Abdala Norberto UFRGS - [email protected]

Maria Elizabeth da Silva Lucas UFRGS - [email protected] Resumo: Este trabalho dá continuidade a um conjunto de indagações etnográficas em torno do complexo sonoro amazonense conhecido como “música do Beiradão”, o qual foi objeto de estudo em meu mestrado. Desta feita, busco aprofundar a reflexão de como as memórias nostálgicas e o imaginário tecido em torno das performances “de antigamente” povoam as composições de músicos amazonenses, formados nas sociabilidades em trânsito fluvial entre interior (“beiradões”) e capital (Manaus), com os quais convivi ao longo dos trabalhos de campo etnográficos (2014 e 2015). Para alcançar o objetivo proposto, dialogo com a literatura etnomusicológica na linha de música, memória, performance e sociabilidade. Palavras-chave: Regionalismo musical. “música do Beiradão”. Música e memória. Amazônia. Saudade do Meu Interior and Recordando os Velhos: Nostalgic Memoirs in “Beiradão Music” from Amazon State Abstract: This paper continues a set of ethnographic inquiries around the Amazonian sound complex known as "Beiradão music”, which was the object of my master’s degree. This time, I seek to explore how nostalgic memories as well as the imaginary around the performance practice named by some musicians as "like in the old days", populate the compositions of Amazonian popular musicians, trained in the sociability transits between the country riversides (“beiradões”) and the urban scape of Manaus city. To achieve the proposed objective, I dialogue with the ethnomusicological literature on music, memory, performance and sociability as much as the lived experience during fieldwork (2014 and 2015). Keywords: Musical regionalism. “Beiradão music”. Music and memory. Amazon.

1. Introdução e diálogos teóricos/teórico-metodológicos Busco, neste trabalho, refletir acerca de meu processo de encontro em campo com os músicos dos “beiradões” amazonenses1 e de como comecei a observar o “trabalho da memória” nas composições desses músicos, nascidos em localidades ribeirinhas (“beiradões”) e que migraram para Manaus entre as décadas de 1950 e 1960 em busca do “aperfeiçoamento” técnico-musical e da ascensão para o status de “músico profissional”. Entretanto, em Manaus, esses músicos defrontaram-se com múltiplas precariedades e não ascenderam socioeconomicamente através da música como esperavam. Foram afetados pelas desigualdades sociais, passaram a habitar palafitas e casas em locais sem saneamento básico e, de um modo geral, sem acesso aos consumos coletivos urbanos primários. Somando-se a isso, foram levados a dividir a vida de músicos que animavam as festividades nos “beiradões”

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com a de pequenos comerciantes, ajudantes de pedreiro, carpinteiros, entre outros ofícios nos bairros populares de Manaus. A partir do tratamento do tema da memória e sociabilidade na literatura etnomusicológica, das experiências intersubjetivas e diálogos em campo e das observações participantes em eventos/performances musicais, trago como recorte interpretativo neste texto um esboço reflexivo de algumas questões ausentes em minha dissertação de mestrado (NORBERTO, 2016)2. Nela, trabalhei com as trajetórias musicais e geracionais de três músicos nascidos nos “beiradões” e que em algum momento de suas vidas migraram para Manaus. Um deles, Chico Cajú (72 anos)3, representou a geração de músicos mais velhos com os quais trabalhei. Cajú, como prefere ser chamado, também foi o músico desta geração com quem mais convivi e experienciei, a partir do universo musical do “Beiradão”, os trânsitos e as sociabilidades em trânsito entre Manaus e as viagens aos “beiradões”. Os músicos da geração do Cajú enfatizavam uma diversidade de memórias em que passado e presente pareciam coabitar um tempo fluido nas lembranças e histórias vivenciadas na imensidão espacial amazonense que ganhava vida nas contações de “causos”, nos relatos acerca da “música do Beiradão” e em suas narrativas biográficas. Essas memórias e seus relacionamentos aparentemente fluidos também se faziam presentes na constante busca em marcar as relações com uma cultura local forte, como os “festejos de santo” das populações ribeirinhas, porém, buscando também acompanhar as modernizações no âmbito musical através dos programas de rádios manauaras e do contato com outras gerações nos bairros populares de Manaus. Percebendo a atuação das memórias desses músicos na construção de uma narrativa histórica da “música do Beiradão”, fui compreendendo que o diálogo com a etnografia da duração, proposta por Eckert e Rocha (2013) que enfatiza a convivência prolongada e as narrativas biográficas de personagens que transitam pelo tempo sincrônico e diacrônico através de suas respectivas memórias, poderia oferecer outras pistas interpretativas levando em conta, principalmente, minha identidade em campo, como músico mais jovem. Orientei-me pela etnografia da duração na construção das trajetórias musicais na dissertação. No entanto, percebi que as memórias dos músicos dos “beiradões” não eram exaltadas somente em seus relatos biográficos, mas também nas performances musicais, pois algumas de suas composições expressavam, sob minha ótica, uma nostalgia em seus títulos, em seus “leves toques vocais”4 ou em algumas especificidades estético-musicais (sonoroperformáticas) que faziam alusão aos mais velhos ou à maneira de tocar nominada por Cajú e por outros músicos de sua geração como “de antigamente”.

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Para alcançar os objetivos deste trabalho e visando agregar-me ao escopo da linha de Música e memória, amplio aqui os diálogos teóricos sobre memória tratados na dissertação - mais circunscritos ao referencial teórico-metodológico da etnografia da duração - para um diálogo com outras discussões recentes. O balanço realizado por Reily (2014), na revista Música e Cultura, mostra que esta linha de pesquisa tem recebido cada vez mais atenção dos etnomusicólogos, os quais enfatizam a memória em diversos níveis analíticos e interpretativos, o que de fato se reflete nas diferentes abordagens dos artigos reunidos nessa edição da revista da ABET. Apesar de cada um dos autores enfatizarem diferentes aspectos a partir das demandas surgidas em seus respectivos trabalhos de campo, fica patente a importância da memória como meio de compreensão das “tensões e intenções” (BRAGA, 2014), ou seja, a maneira, política ou não, de construção das memórias tecidas no tempo sincrônico e diacrônico em que os diferentes contextos musicais emergem. Seguindo esta linha de reflexões em torno da música como “prática da memória” (REILY, 2014), enfatizo também as afinidades com o trabalho de Albernaz (2008), o qual entre “o conviver e o lembrar”, abordou as trajetórias de três músicos pertencentes a uma banda musical centenária, a partir das histórias de vida presentes nas memórias que vêm à tona nas falas dos colaboradores no momento dos diálogos com o pesquisador, entre eles, e em suas performances. Saliento ainda o estudo de Ecléa Bosi (2003), que através de uma sensibilidade ímpar advinda da psicologia social nos alerta para a prática do “ouvido disponível e atento”, através do qual, memórias individuais íntimas, não ressaltadas na história oficial dos grandes acontecimentos, nos são confiadas. Ainda na linhagem de estudos etnomusicológicos da memória, cabe lembrar as contribuições de Kay Shelemay. Em um de seus trabalhos, a autora reflete acerca de como as memórias dos músicos nos ajudam a contextualizar historicamente suas músicas e, ao mesmo tempo, também mostram outro lado da história e das transformações socioculturais por vezes não aparentes em diálogos e na observação de eventos musicais. Ressalta que os “etnomusicólogos podem explorar a dialética entre memória e história olhando para o oculto, o silenciado e o ignorado [...]”5 (2006: 33). Shelemay une as perspectivas de música, história e memória levando em conta que as memórias dos músicos também transmitem a história de uma determinada época e sua realidade sociocultural. A autora acumulou vasta experiência com o que ela denomina de “comunidades da diáspora” de judeus sírios em diversas partes do mundo onde vivenciou as memórias dos seus colaboradores a partir de diferentes maneiras de interação e observação. Shelemay (2006: 32) ressalta que as memórias das performances pizmon se faziam presentes nas letras e nas melodias das canções e que as redes sociais eram

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reforçadas através das dedicatórias de canções e das próprias performances que assumiam as memórias (históricas) do passado recordando o lar na diáspora. De certa forma, podemos assumir que na maioria dos contextos de diásporas e/ou migrações e nos deslocamentos intranacionais as memórias evocadas através dos elementos sonoro-musicais e que trazem a lembrança de um ponto de origem perdido são, em algum nível, “memórias nostálgicas”. Mas como seria possível interpretar o trabalho da memória na música e estas “memórias nostálgicas” no variado repertório do complexo conhecido como “música do Beiradão”? 2. Memórias nostálgicas na “música do Beiradão” Em minhas andanças em campo, observei com frequência que os músicos dos “beiradões” contavam, não somente através dos seus relatos acerca do “Beiradão” e de suas narrativas biográficas, mas também através de memórias nostálgicas que povoavam suas composições, a história do trágico reordenamento rural dos “beiradões” no meio urbano manauara e como a “saudade do interior” era algo sempre presente na realidade dos bairros populares de Manaus formados a partir das migrações desses músicos. Apesar da maioria das composições gravadas pelos músicos da geração do Cajú, que estão hoje na faixa dos 70 anos, trazerem nitidamente o forte apelo e incidência da indústria musical de Belém (PA), comandada sob a batuta do compositor, músico e produtor musical conhecido pelo nome artístico Pinduca6, algumas composições se sobressaíram por terem uma “identidade amazonense” e ficaram “marcadas” por não dialogarem com os “sotaques caribenhos”, muito presentes nas produções do Pinduca. Alguns exemplos dessas composições que são parte integrante e obrigatória ainda hoje nos repertórios que animam as festividades nos “beiradões” são principalmente composições dos saxofonistas Teixeira de Manaus, Chico Cajú, Aurélio do Sax, Agnaldo do Amazonas, Souza Caxias, entre outros. Entretanto, músicas de outros compositores desta geração também enfatizavam essas memórias nostálgicas, ou afirmavam uma “identidade do interior amazonense”, e fizeram parte dos repertórios nos “beiradões” durante muito tempo. Entre estas, podem ser lembradas composições de outros instrumentistas (guitarristas), como por exemplo, Homenagem ao povo do interior, Saudades de Tefé, Lambada de Tefé e Lambada amazonense, todas de Oseas da Guitarra. Algumas composições do Teixeira de Manaus (72 anos) trazem essas memórias, seja através do título, dos “refrãos”, das especificidades sonoro-musicais (“sotaques amazonenses”), ou da junção disto tudo: Beiradão (LP Solista de sax vol. 1, 1981); Xote do

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interior e Alô Norte e Nordeste (LP Solista de sax vol. 2, 1982); Meu querido velho, Forró amazonense, Xote do amor e Chorinho do Rio Negro (LP Solista de sax vol. 3, 1983); Lambada do interior, Quantas saudades, O canoeiro e Pau de sebo (LP Solista de sax vol. 4, 1984); Cabelos brancos, Garimpeiro e seringueiro, Lambada do Amazonas e Muriçoca (LP Solista de sax vol. 5, 1985); Balanço do Norte e Filho do interior (LP Solista de sax vol. 6, 1987). Dessas, somente não presenciei nas performances que etnografei nos “beiradões” as valsas e os chorinhos (atualmente são tocados em ritmo de “forró”), o que evidencia uma transformação no gosto dos públicos nos “beiradões” e ressalta ainda mais a saudade expressada em valsas como Meu querido velho (Teixeira), Cabelos brancos (Teixeira) e Recordando os velhos (Cajú). Para um primeiro esboço de análise e interpretação, neste texto, selecionei duas composições do Cajú que fixaram a sua “marca” como compositor e músico amazonense. Apesar de compor e gravar, em parceria com Pinduca, lambadas, cúmbias, merengues, etc., Cajú ficou conhecido no Amazonas entre públicos de diferentes gerações principalmente pela sua composição em parceria com Paulo Gilberto intitulada Saudade do meu interior, e entre os públicos de gerações com mais idade, com a composição instrumental Recordando os velhos. A primeira foi gravada no LP Super Sax (1983) e a segunda no LP Chico Cajú e Seu Super Sax (1985)7. Mas como interpretar as memórias contidas nessas duas composições? Podemos começar a partir do “refrão” de Saudade do meu interior: “Eu sou do Amazonas, filho de Manaquiri, pertinho do Ajará, terra do Bacuri, tem o Italiano, terra do cupuaçu, forró é animado com o sax do Cajú”. Este “refrão”, por mais breve que seja, não deixa de transmitir através do título (Saudade do meu interior) um sentimento de perda que ganha sentido nas sociabilidades de reordenamento do cotidiano interiorano no meio urbano, na maneira com que ressalta as virtudes da vida rural nas localidades próximas ao Lago do Ajará e na localidade conhecida por “Italiano, terra do cupuaçu”, ambas pertencentes ao município de Manaquiri: alusão à fartura das frutas bacuri e cupuaçu, a primeira é abundante ao redor do Lago do Ajará, a segunda é a principal fonte de subsistência na localidade do Italiano. O “refrão” é concluído então com o “slogan”: “forró é animado com o sax do Cajú”. Esse é um “refrão” que se popularizou entre as classes populares amazonenses, sendo que é importante ressaltar o fato das gravadoras (principalmente as produções do Pinduca) terem incidido nessas “especificidades” sonoro-musicais que foram firmando uma “marca identitária” nas gravações dos músicos dos “beiradões”. Uma dessas especificidades, nos “refrãos”, são as

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construções de “slogans”, muitas vezes em tom “regionalista”, que eram pensados para agradar ao público e vender mais discos, respectivamente. Entretanto, o caso de Saudade do meu interior é uma das composições que se distingue do modelo mais comercial exigido pelas gravadoras, pois o refrão é maior e traduz as memórias nostálgicas, como em todos os casos da geração do Cajú, de um músico que deixou o seu lar (“beiradão”) em busca de melhores condições de vida e, principalmente, oportunidades de estruturar-se como “músico profissional”, aquele que sobrevive somente do seu ofício. No entanto, como ressaltei na introdução deste texto, esse reordenamento da vida rural no meio urbano e as conquistas que esses músicos residentes nos bairros populares de Manaus obtiveram com muito esforço ao longo das suas trajetórias não foram o suficiente para que eles ascendessem em nível socioeconômico e chegassem ao patamar almejado pelos mesmos. Ressalto que grande parte dos colaboradores da geração do Cajú foram levados a animarem as festividades somente nos “beiradões” por não terem oportunidades nos espaços musicais manauaras. De certa forma, os trânsitos e as sociabilidades em trânsito a partir desses deslocamentos interior-capital oportunizaram a continuidade do contato com os “beiradões”, no entanto, como o Cajú salientou em uma de nossas viagens retornando a Manaus: “Eu gosto mesmo é do beiradão, coisa boa é quando a gente sai de Manaus pra tocar no beiradão”. Ou seja, todas as barreiras que esses músicos enfrentaram ao migrar para Manaus, tanto os percalços financeiros como os socioculturais, estão circunscritos de alguma forma quando o Cajú ressalta sua identidade interiorana e alude nostalgicamente no “refrão” de Saudade do meu interior à abundância e fartura de sua terra que, de certa forma, foram “arrancadas” deles no complexo processo de migração dos “beiradões” para os bairros populares de Manaus. Neste mesmo sentido de ressaltar a identidade de “ser do interior” e as memórias nostálgicas assinaladas no reordenamento do cotidiano interiorano (“beiradões”) no meio urbano (realidades dos bairros populares manauaras), transcrevo o refrão da composição Filho do interior (Teixeira de Manaus, LP Solista de sax vol. 6, 1987): “Eu sou do interior, e me orgulho de ser, isso que é terra boa menina, terra boa de viver”. Apesar de algumas composições desses músicos ressaltarem as memórias nostálgicas através de seus “refrãos”, a maioria delas eram puramente instrumentais e, sendo assim, ressaltavam essas memórias através dos títulos e da construção sonoro-musical (estética), na maneira de tocar o saxofone, o violino e a guitarra, na construção melódica, timbrística e nos “sotaques” aludindo às formas de tocar e aos arranjos que os músicos da geração do Cajú nomearam como “de antigamente”. Recordando os velhos é um desses exemplos de música puramente instrumental, porém, sem o caráter comercial que era exigido

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pelas gravadoras, tanto que é a faixa nº 12 (a última) do LP, o que também acontece com as valsas Meu querido velho e Cabelos brancos, ambas do Teixeira de Manaus. Eram nessas brechas, quando as gravadoras permitiam que esses músicos gravassem algumas composições que não eram “garantia” de sucesso, que eles aproveitavam para ressaltar as memórias nostálgicas da família e do convívio com os músicos que ficaram nos “beiradões”. Neste caso, toda a construção sonora do arranjo se alinha com o trabalho da memória. Recordando os Velhos é uma valsa que Cajú compôs em um momento de saudade e de lembrança do seu pai, na sonoridade das valsas que o pai, Manuel Cajú, tocava ao som do violino quando ambos residiam no Lago do Ajará. O timbre e o vibrato exacerbado e emocionado ressaltado no sax do Cajú são muito particulares e semelhantes às valsas tocadas pelos músicos dos “beiradões” mais antigos, conforme o próprio Cajú enfatizou em diversos diálogos. Além disso, Cajú lembrou em um encontro, que as valsas eram muito apreciadas nos “festejos de antigamente”, “[...] os mais velhos gostavam muito... era valsa, bolero, forró, mas não esse forró de agora, era o pé de serra [...]”. Então, gravar uma valsa, algo pouco comum entre os músicos amazonenses que gravaram na década de 1980, foi uma maneira de homenagear e “recordar os velhos”, mas não como uma memória qualquer, e sim, como uma memória muito específica, musical e nostálgica em todos os sentidos, por ressaltar a saudade através da maneira com que o pai tocava e das especificidades sonoras com que eram construídas as valsas “de antigamente”. 3. Considerações finais Elaborei este texto como um esboço interpretativo acerca das memórias nostálgicas circunscritas nas composições dos músicos dos “beiradões” amazonenses que migraram para Manaus nas décadas de 1950 e 60 e tiveram a oportunidade de gravar seus LPs na década de 1980. Pensando em trazer a relação entre música e memória a partir do que vivenciei etnograficamente ao longo dos trabalhos de campo, baseei-me nas abordagens utilizadas pelos etnomusicólogos inseridos na linha de pesquisa Música e memória buscando ampliar esses diálogos sob uma perspectiva interdisciplinar. A partir do que expus neste texto, ressalto que o enfoque das memórias nostálgicas circunscritas nas especificidades sonoromusicais, textuais e de performance (títulos e letras de canções) através das interpretações etnográficas de composições de músicos advindos de classes populares que estão inseridos em algum contexto diaspórico e/ou de migração pode ser um valioso investimento em pesquisas futuras. Desta forma, saliento duas questões que poderão ser exploradas em trabalhos futuros: 1. De que forma as memórias nostálgicas que povoam a geração de músicos referenciados

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neste texto podem proporcionar novos direcionamentos etnográfico-interpretativos nos diálogos teóricos com a linha Música e memória? 2. Como as potencialidades etnográficas da relação entre memórias nostálgicas, espaços, trânsitos e sociabilidades em performance nestas composições reconhecidas por “música do Beiradão” podem fazer avançar a compreensão dos conflitos e tensões vividos por músicos das classes populares nos espaços amazonenses? Referências: ALBERNAZ, Pablo de Castro. A música, o conviver e o lembrar: um estudo etnográfico entre os músicos da centenária Banda Rossini da cidade de Rio Grande, RS. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. BRAGA, Reginaldo Gil. Memória e patrimônio musical do choro de Porto Alegre: tensões e intenções entre tradição e modernidade. Música e Cultura: revista da Associação Brasileira de Etnomusicologia, v. 9, n. 1, 2014. ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografia da duração: antropologia das memórias coletivas nas coleções etnográficas. Porto Alegre: Marcavisual, 2013. NORBERTO, Rafael B. A. Espaços, trânsitos e sociabilidades em performance na “música do Beiradão”: uma etnografia entre músicos amazonenses. Dissertação (Mestrado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música, Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. REILY, Suzel Ana. A música e a prática da memória: uma abordagem etnomusicológica. Música e Cultura: revista da Associação Brasileira de Etnomusicologia, v. 9, n. 1, 2014. SHELEMAY, Kay Kaufman. Music, memory and history: in memory of Stuart Feder. Ethnomusicology Forum, v. 15, n. 1, p. 17-37, 2006. Notas

1

Utilizo “música do Beiradão” ou “Beiradão” (com a inicial maiúscula) quando trato dos contextos em que esta categoria é compreendida como gênero, movimento ou produto musical específico, e “beiradão” (com a inicial minúscula), quando faço referência às beiras de rios, igarapés, lagos e paranás habitados por ribeirinhos, ou quando faço alusões às músicas tocadas nesses espaços. Utilizo ambas (“Beiradão” e “beiradão”) entre aspas por tratarem-se de categorias nativas. 2 Trabalho orientado pela professora Maria Elizabeth Lucas no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Sobre a trajetória musical/sociocultural do Chico Cajú, ver Norberto (2016: 53-9). 4 “Leves toques vocais”, “refrãos”, entre outras, são categorias nativas que explicam a inserção de pequenos trechos cantados em algumas composições de “Beiradão”, que são concebidas para serem “puramente” instrumentais. 5 “Ethnomusicologists can explore the dialectic between memory and history, looking for the hidden, the silent and the unsuspected [...]”. 6 Pinduca é o nome artístico do músico paraense Aurino Quirino Gonçalves, conhecido como “o rei do carimbó”. Responsável por levar alguns músicos amazonenses na década de 1980, como por exemplo, Teixeira de Manaus e Oseas da Guitarra, para gravarem na Copacabana em São Bernardo do Campo (SP), Pinduca foi também o produtor musical da maioria dos músicos dos “beiradões” amazonenses que gravaram LPs em Belém, incluindo o Cajú. 7 Disponibilizo os áudios dessas gravações no You Tube através destes links: https://youtu.be/jE_EIcC4Ya4 e https://youtu.be/FY3145cq5hY.

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