Nos 80 Anos de \"Doidinho\" de José Lins do Rego

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: Brazilian Literature, Brazilian Contemporary Literature, José Lins Do Rego
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O século XX abriu no Brasil numa atmosfera de grande agitação política e renovado esforço de modernização económica que não parece ter sido devidamente correspondida em renovação da produção literária. Recorde-se que os primeiros anos do século passado ainda beneficiaram da enorme prosperidade comercial vinda dessa derradeira fronteira do grande Brasil continental, a Amazónia, responsável pelo forte desenvolvimento da produção de borracha que, disparando desde 1860, atingia o seu pico na década de 1910, atraindo mesmo as atenções e a muita cobiça internacional pela exótica gigantesca floresta tropical. Relembrese igualmente que a abolição da escravatura com a Lei Áurea de 1888 tinha sido compensada por uma vaga continuada de emigração europeia trazendo para o Brasil, para além de muitos mais portugueses, levas de largos milhares de espanhóis, italianos, alemães e, desde 1908, japoneses. Nos horizontes da política, a República encontrava-se confortavelmente instalada desde 1889, mas não conseguiu gerar nas décadas subsequentes os prometidos entusiasmos populares, rapidamente se vazando em austeridade, conflitos, revoltas e um crescente fraccionismo

lusofonias nº 16 | 28 de Outubro de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS: • O Primeiro Modernismo Brasileiro: A Semana de Arte Moderna de 1922 • A Revolução Literária do Regionalismo Nordestino • José Lins do Rego: a reinvenção do romance brasileiro • O Doidinho, oitenta anos depois • José Lins do Rego Doidinho (1933) • Mia Couto, estamos todos à rasca

Dia 05 de Novembro: IV Conferência Ministerial do Fórum de Macau: Novo Ciclo, Novas Oportunidades

APOIO:

Nos 80 anos de

Doidinho

José doLins

de

Rego

Nos Oitenta anos de Doidinho de José Lins do Rego:

a revolução do romance brasileiro Ivo Carneiro de Sousa

O

século XX abriu no Brasil escritores epocais consideravam dever seguir e numa atmosfera de gran- imitar. de agitação política e renovaAs reacções literárias foram-se, assim, dividindo esforço de modernização do entre a exaltação mais radical do Brasil que económica que não parece se encontra, entre alguns outros, em Afonso Celso ter sido devidamente cor- através desse seu livro Por que me ufano do meu respondida em renovação da país, editado em 1900, e o mais profundo pessiprodução literária. Recorde- mismo que envolve uma das grandes obras-primas -se que os primeiros anos do da literatura brasileira de sempre, a prosa mais século passado ainda benefi- do que famosa publicada em 1902 por Euclides da ciaram da enorme prosperida- Cunha com o título Os Sertões. O preciso ano em de comercial vinda dessa der- que saía dos prelos o primeiro grande romance poradeira fronteira do grande Brasil lémico de ficção, Canãa, de José Pereira da Graça continental, a Amazónia, responsá- Aranha, um demorado texto ideológico indagando vel pelo forte desenvolvimento da preocupadamente a caracteriologia do Brasil consprodução de borracha que, dispa- trangida entre concorrência étnica e competição rando desde 1860, atingia o seu social. Apesar destas obras e autores maiores tepico na década de 1910, atrain- rem gerado imediata influência entre intelectuais, do mesmo as atenções e a muita escritores e ensaístas, ecoando também pela princobiça internacional pela exóti- cipal imprensa urbana, acabariam por agregar um ca gigantesca floresta tropical. pesado tom de decadência cultural à primeira déRelembre-se igualmente que a cada do século vinte que se afigurava marcada por abolição da escravatura com uma incontornável orfandade literária: Machado a Lei Áurea de Assis morria de 1888 tiem 1908, enquannha sido comto Aluísio de Aze(...) pensada por uma vedo deixaria de vaga continuada de publicar novelas emigração europeia Apesar das ideias dominantes na nova centútrazendo para o Braria apesar de ter sil, para além de mui- entre ensaios e crítica literária vivido ainda até tos mais portugueses, 1913. Não parelevas de largos milhares destacarem o descontinuado cia terem deixado de espanhóis, italianos, herdeiros capazes alemães e, desde 1908, fim dos escritores maiores e do de continuarem japoneses. Nos horizontes em prosa as suas da política, a República referenciais crógrande romance (...) encontrava-se confortavelnicas, romances mente instalada desde 1889, e contos muitos mas não conseguiu gerar nas marcados por um décadas subsequentes os prometidos entusias- realismo tão densamente psicológico quanto finamos populares, rapidamente se vazando em mente sociológico escorado ainda numa muito cuiausteridade, conflitos, revoltas e um crescen- dada escrita formal. Apesar das ideias dominantes te fraccionismo. Neste contexto complexo, os entre ensaios e crítica literária destacarem o desprincipais intelectuais e escritores brasileiros continuado fim dos escritores maiores e do grande abrigados às grandes cidades em multiplicado romance, o panorama carregado apresentava-se crescimento, sobretudo o Rio de Janeiro e São um pouco menos sombrio no campo da poesia tanto Paulo, encontravam-se nos primeiros anos do para alguns poetas ainda filiados na tradição parséculo XX debruçados quase psicanaliticamente nasiana como Olavo Bilac ou Alberto de Oliveira, em torno de um enredado processo de auto- quanto para os principais arautos do simbolismo -reflexão procurando iluminar um muito an- que foram Afonso de Guimarães e Vicente de Cartinómico debate: o Brasil descobrira mesmo valho. Muito pior, a produção dramática era escaso progresso na viragem do século ou mer- sa, penava e o público elitário das grandes cidagulhava perdido na decadência? Pergun- des brasileiras, do Rio a Manaus, entusiasmava-se tas fundamentais com que a inteligência muito mais com as óperas europeias do que com as brasileira procurava perceber se o país representações teatrais domésticas pouco concorpoderia algum dia aspirar a ser verda- ridas e ainda menos inovadoras. A década de 1920, deiramente civilizado como as grandes felizmente, traria novidades muitas e provocações potências ocidentais que intelectuais e literárias mais do que revolucionárias. LUSOFONIAS - SUPLEMENTO DE CULTURA E REFLEXÃO Propriedade Tribuna de Macau, Empresa Jor­na­lística e Editorial, S.A.R.L. | Administração e Director José Rocha Dinis | Director Executivo Editorial Sérgio Terra | Coordenação Ivo Carneiro de Sousa | Grafismo Suzana Tôrres | Serviços Administrativos Joana Chói | Impressão Tipografia Welfare, Ltd | Administração, Direcção e Redacção Calçada do Tronco Velho, Edifício Dr. Caetano Soares, Nos4, 4A, 4B - Macau • Caixa Postal (P.O. Box): 3003 • Telefone: (853) 28378057 • Fax: (853) 28337305 • Email: [email protected]

II

Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS

lusofonias

O A

N

a verdade, os ventos literários agitaram-se mais fortes com o fim da Primeira Guerra Mundial quando a busca por novas respostas e formas culturais foi mesclando entre a intelectualidade brasileira as mais diversas correntes bebidas embriagadamente entre o futurismo europeu e domesticamente excitadas por novos ideários fortemente nacionalistas. Desde o debutar da década de 1920, São Paulo transforma-se no epicentro das letras, artes e música brasileiras, um processo largamente plasmado pelo seu enorme surto industrial e financeiro. É, por isso, precisamente em São Paulo que se organiza a mais do que célebre Semana de Arte Moderna, de 11 a 18 de Fevereiro de 1922, atraindo ao Teatro Municipal as mais variadas vanguardas culturais. Dominadas por uma geração absolutamente original de poetas iconoclastas que, fundadores de um novo e primeiro modernismo, trouxeram para o mundo das letras essas noções e movimentos que foram intitulando do Verdeamarelismo, da Anta (animal de funções míticas entre as culturas tupis...), do Pau-Brasil e da Antropofagia que se prefiguram na poesia inolvidável de Oswald de Andrade (1890-1954), Mário de Andrade (1893-1945) e António de Âlcantara Machado (1901-1935). Em todos eles, e nos muitos outros que influenciaram, foi-se multiplicando a crítica feroz contra a escrita convencional e tida como própria em favor da espontaneidade, do gozo, da jovialidade e dos muitos nativismos e regionalismos folclóricos. Uma renovada poesia que imediatamente influenciou uma prosa que se queria experimental, aventureira e indígena, esclarecendo um novo sentimento nacional que se expressa provocador nesse afamado grito literário do “Tupi or not Tupi, that is the question!” com que Oswald de Andrade agitava o seu Manifesto antropófago, de 1928. Ideias logo consagradas em prosa na sua “Trilogia do exílio” (título depois mudado para Os condenados) através de Alma (1922), A estrela de absinto (1927) e A escada vermelha (1934). A trilogia haveria, porém, de ser interrompida pela publicação dos dois mais conhecidos textos de ficção de Oswald de Andrade: Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Romances telegráficos, episódicos, cerzindo memórias de viagens, impressões visuais, fragmentos poéticos, reflexões filosóficas e farta paródia com que se procurava construir uma anti-novela em que alguns viram um estilo cubista marcado por uma carnavalização que chega ao próprio copyright do texto em que se lia: pode ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as linguagens.

lusofonias

Primeiro Modernismo Brasileiro: de Semana de Arte Moderna 1922

O papa e primeiro teórico do modernismo que foi Mário de Andrade cultivou também tanto longos romances como curtas novelas. A sua colecção importante de narrativas breves – Primeiro andar (1926), Belazarte (1934) e Contos novos (editados postumamente em 1947) – exibe um continuado compromisso com os problemas sociais das gentes anónimas para destacar inspiradamente a sagacidade peculiar desse representado povo miúdo. No entanto, apesar da criatividade abundante destas séries de contos, Mário de Andrade sugeriu muito mais novos caminhos à ficção brasileira através dos seus dois grandes romances: Amar, verbo intransitivo (1927) e, sobretudo, Macunaíma (1928). O primeiro destes dois romances convoca uma linguagem absolutamente tradicional para se envolver provocadoramente com uma sinuosa história em que uma emigrada governanta alemã se encarregava da iniciação sexual de jovens brasileiros. Nada que se aproxime, porém, do original surrealismo de Macunaíma, o nome de um anti-herói que, nascido no mato-virgem, preto retinto e filho do medo da noite, representa uma renovada ideia nativista de um povo brasileiro ontem originalmente índio, mas marcado agora pelo seu migrante deslumbramento face ao apelo da civilização industrial de que a moderna São Paulo era o paradigma. Personagem sem carácter em demanda de um perdido amu-

leto tribal, verdadeiro tipo cómico com o seu constante Ai que preguiça!, serve Macunaíma para cerzir em surreal romance uma colecção de paródias fantasiosa e legendária em que se organiza uma crítica mordaz do romantismo, se interroga a miscigenação étnica e religiosa, propondo-se até com fundamentação etnográfica a necessidade de uma “gramatiquinha” brasileira capaz de libertar o português do Brasil da língua pesada e formal cultivada em Portugal. Em 1969, Macunaíma haveria de se difundir em filme, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, classificado (terá sido mesmo conveniente?) na classe das comédias, o que talvez não renda inteiramente justiça a uma banda sonora excepcional em que se cruzaram as músicas de Jards Macalé, Sílvio Caldas e Heitor Vila-Lobos, este último um dos grandes animadores musicais da Semana de Arte Moderna de 1922 (onde se apresentou com um pé calçado com um sapato e o outro com um chinelo...) para depois se consagrar como um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos. António de Alcântara Machado, o terceiro dos três principais poetas da Semana de Arte Moderna, mais novo do que os dois Andrades, dedicou igualmente atenção à renovação de uma prosa ficcional que entendeu concentrar nos tipos sociais das classes médias e baixas de São Paulo, a que se juntaram os emigrantes ita-

Grupo

lianos que, transmutados em italo-brasileiros, mobilizaram a sua subtil psicologia literária. Autor de um romance inacabado, Mana Maria, Machado é especialmente frequentado através da sua colecção de pequenos contos publicada em Pathé-Baby (1926), Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) e Laranja da China (1928), mosaico de textos em que se afirma uma escrita cinematográfica, combinando impressões de andanças europeias com viagens à descoberta das raízes do Brasil, enformando uma prosa escorada numa escrita sóbria mas bem humorada, claramente distanciada dos excessos quase barrocos do primeiro modernismo literário brasileiro. Apesar da importância dos três grandes poetas saídos da Semana de Arte Moderna de 1922 e das suas originais incursões nos domínios da prosa, os seus textos tornaram-se influentes (pelo menos nos meios académicos...) bem mais tardiamente, enquanto as suas novelas e colectâneas de contos não produziram a revolução com que o romance brasileiro do século XX procurava ganhar os novos públicos urbanos sedentos de originais aventuras culturais. Essa revolução veio de dentro, do coração histórico do Brasil, desse Nordeste que nunca foi verdadeiramente rico mesmo nos tempos mais generosos da grande exploração da cana-de-açúcar, chegando às primeiras décadas do século XX exaurido, pobre, esquecido.

organizador da

Semana

de

Arte Moderna

de

1922

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013

III

A Revolução Literária do Regionalismo Nordestino É

ao longo das décadas de 1930 e 1940 que o Brasil assiste à mais profunda (e, provavelmente, duradoura) revolução literária no domínio do romance. Um novo tipo de narrativa, regionalista e realista, mas nos antípodas das tradições naturalistas do romantismo, começa a sair da prosa de alguns novos escritores do Nordeste para rápida e surpreendemente ganhar o panorama literário e cultural brasileiro. Quatro nomes são referenciais: Graciliano Ramos (1892-1953), José Lins do Rego (1901-1957), Rachel de Queiroz (1910-2003) e Jorge Amado (1912-2001). A que convém acrescentar o devido precursor que foi José Américo de Almeida (1887-1980) que, nascido em Areia, na Paraíba, daria ao novo romance brasileiro muitas das suas características temáticas, psicológicas, sociais e formais com a publicação, em 1928, de A bagaceira, um livro comprometido e genuinamente preocupado com as vítimas das cíclicas secas do Nordeste. Almeida haveria ainda de publicar anos mais tarde outros dois romances importantes – O boqueirão (1935) e Coiteiros (1936) – convocando para o centro das narrativas a figura do cangaceiro entre romântico bandido e tipo cómico e folclórico regional. Mas é com as obras de Graciliano Ramos, Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado que o romance vindo do Nordeste se torna em movimento literário e cultural profundamente vinculado às situações e problemas sociais, mobilizando pessoas e tipos reais, sublinhando o seu apreço pelas gentes mais miseráveis e exploradas, enformando uma escrita simples mas qualificada, realista mas simbolicamente densa, assim transformando os grandes desastres naturais e humanos de uma região pobre em inspiração para a produção de uma literatura na fronteira das reivindicações radicais de reforma política e mesmo de revolução. Um movimento que se pode comparar, com as devidas prevenções, a essa literatura norte-americana consagrada aos muitos explorados e marginalizados das regiões meridionais mais empobrecidas representados pela pena de vultos maiores do romance do século XX como o foram William Faulkner, Tennessee Williams, Erskine Caldwell ou John Steinbeck. Um movimento que haveria também de influenciar profundamente a literatura ficcional portuguesa chegando nos finais da década de 1930 a Alves Redol, Miguel Torga ou, anos mais tarde, a Carlos de Oliveira, sem naturalmente esquecer Ferreira de Castro (1898-1974) cuja obra-prima, A Selva, de 1930, recorda a sua emigração para o Brasil aos doze anos para viver no seringal Paraíso, na Amazónia, junto ao Rio Madeira, entre a miragem da rápida prosperidade prometida pela produção da borracha e as realidades mais brutais de uma vida tão difícil quanto marcada por desgraças abundantes. Graciliano Ramos, nascido em Quebrângulo, no Estado de Alagoas, foi o primeiro escritor nordestino a alcançar não apenas generoso aplauso nacional como também a conquistar larga ressonância internacio-

IV

nal. Traduzidos em mais de doze línguas, os seus mais lidos quatro romances – Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas secas (1938) – foram publicados em rápida sucessão para criar uma impressionante galeria de gentes solitárias, frustradas e falhadas na pessimista tradição de Machado de Assis. Características que se encontram também nos romances de Rachel de Queiroz, a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras e também a primeira a ganhar, em 1993, o prestigiado Prémio Camões. Em especial nessa obra quase de estreia que intitulou O quinze, um romance de 1930, descobre-se uma narrativa pessimista das vítimas da seca do Nordeste que parece terem perdido toda a esperança de poderem algum dia vir a almejar um mínimo de felicidade e reconhecimento sociais, apesar da mobilização militante da nossa referencial autora neste período na organização do Partido Comunista Brasileiro em Fortaleza, a sua cidade natal. Um pessimismo que perdura ainda nos seus dois romances subsequentes, João Miguel (1932) e Caminho de pedras (1937), instalando-se também nos primeiros títulos de Jorge Amado, de longe o mais lido e traduzido dos quatro grandes escritores nordestinos. Na verdade, no seu romance de estreia, escrito aos dezoito anos, O País do Carnaval, editado em 1930, descobre-se uma narrativa extremamente negativa sobre a intelectualidade da década de 1920 e ainda mais crítica sobre a mestiçagem brasileira. O tom pessimista adensa-se no segundo romance de Jorge Amado, Cacau, publicado em 1933, narrando as muitas desgraças dos trabalhadores das fazendas de cacau na região baiana. Datado de 1934, Suor mostra-se ainda mais negro, descrevendo os moradores de um prédio na ladeira do Pelourinho, em São Salvador, misturando pedintes, operários, prostitutas, a mulher tísica, o operário que perdeu um braço por ganância do patrão ou o desgraçado sem abrigo obrigado a pedir esmola e a dormir ao relento por causa de um ferimento num pé. Um ciclo narrativo verdadeiramente pessimista e desesperado que desagua nessa obra maior que é Jubiabá, romance de 1935 em que se contam as desgraças e esperanças revolucionárias do negro António Balduíno perdido entre pequenos crimes, brigas, combates de boxe e a descoberta da agitação política. Seja como for, estes quatro romances de Jorge Amado prefiguravam já essa sorte de fórmula mágica misturando política, sexo e revolução social que asseguraria a enorme popularidade das suas obras no Brasil e pelos quatro cantos do mundo. Um sucesso que José Lins do Rego nunca conheceu. Tornou-se o autor menos lido, menos traduzido e mais fragmentariamente frequentado nos nossos dias. E, no entanto, é a sua obra que revoluciona para sempre o romance brasileiro do século XX. Um autor, por isso, a redescobrir com urgência quando passam oitenta precisos anos da publicação do seu segundo romance, Doidinho.

Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS

J

osé Lins do Rego Cavalcanti nasceu em 1901 no engenho do Corredor, em Pilar, no Estado da Paraíba. Poucos anos conviveu com a sua mãe assassinada pelo seu pai, homem perturbado e esquizofrénico. Foi, por isso, criado pelo avô materno, um desses famosos coronéis, dono de vários engenhos e muito influente político local. Lins do Rego fez os primeiros estudos no Instituto de Nossa Senhora do Carmo, em Itabaiana – cenário do romance Doidinho –, passando depois para o Colégio Diocesano Pio X na então cidade da Paraíba, hoje João Pessoa. Seguiu para o Colégio Carneiro Leão e Osvaldo Cruz, no Recife, matriculando-se em 1920 na Faculdade de Direito local. Data deste período a sua colaboração com o Jornal do Recife e a amizade demorada com Gilberto Freyre, uma das suas principais influências intelectuais. Em 1922, fundou o semanário Dom Casmurro, concluindo no ano seguinte a sua licenciatura em Direito numa altura em que foi cultivando contactos literários regulares com José Américo de Almeida. Aceitou, em 1924, um lugar de promotor no Ministério Público de Manhuaçu, em Minas Gerais, mas não se demorou. Em 1926, instalou-se na capital de Alagoas, a cidade de Maceiô, cumprindo as funções de fiscal de bancos, até 1930, e de fiscal de consumo entre 1931 e 1935. É por Maceiô que passa a integrar um activo grupo de intelectuiais e escritores reunindo Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Aurélio Buarque de Holanda e o poeta Jorge de Lima, uma das suas outras mais relevantes referências. Na capital de Alagoas publicou, em 1932, com enorme dificuldade e o seu próprio dinheiro em edição de autor o seu primeiro romance,  Menino de engenho.  Recebido favoravelmente pela pouca crítica que visitou a obra, José Lins do Rego não teve dificuldades em encontrar na Areal uma grande editora disponível para difundir o seu segundo romance, Doidinho, estampado há oitenta anos, em 1933. Em 1935, Lins do Rego partiu para ficar no Rio de Janeiro, publicando imediatamente em 1936 o seu único livro infantil, Histórias da Velha Totônia, conquistando nos anos seguintes a unanimidade da crítica literária, generoso reconhecimento intelectual e continuada colaboração no jornal O Globo. A fama literária de José Lins do Rego assenta largamente nos seus seis primeiros romances: ao Menino de Engenho e Doidinho, seguiram-se Banguê (1934), O Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936), um políptico que ficou conhecido como o ciclo da cana-de-açúcar concluído em sorte de posfácio já em 1943 com Fogo Morto, uma outra obra-prima fundamental da literatura brasileira do século XX. Recordando o mundo perdido da casa-grande e senzala de Gilberto Freyre, os engenhos açucareiros, os grandes latifúndios, coronéis e cangaceiros, este ciclo literário tem como protagonista principal Carlos de Mello, esse menino de

engenho em a estudar em depois regre para fracass sendo obriga ro de infânc dá o nome a um moleque trabalho ope preso, reapa relação hom

sua plantaçã tempos de f to recuperafazendeiro n fogo cruzado de duras rep finitiva deca se mundo pe Rego. Desco de seis roma fatalismo e p te as grande terrogando a

lusofo

do Rego: a reinvenção do romance brasileiro

m que se espelha o próprio autor, obrigado m repressivo colégio interno em Doidinho, essando ao seu engenho natal em Banguê sar completamente na sua gestão, logo ado a vendê-lo em Usina. O companheicia de Carlos, o irrequieto negro Ricardo, ao quarto romance do ciclo: encontra-se e que emigra para o Recife em busca de erário, envolvendo-se em greves, sendo arecendo em Usina quando mantém uma mossexual no cárcere, antes de retornar à

ão de açúcar definitivamente perdida em forte mudança industrial. Em Fogo mora-se uma narrativa centrada num grande nordestino, velho e doente, apanhado no o de violentos ataques de cangaceiros e presálias governamentais, assistindo à deadência do seu engenho, paradigma deserdido soberbamente narrado por Lins do obre-se, assim, neste extraordinário ciclo ances uma escrita pautada também pelo pela decadência, revisitando criticamenes transformações industriais e sociais, ina modernidade económica do Brasil. Mas

onias

José Lins

trata-se de romances tão fabulosos quanto atraentes. O que verdadeiramente atrai nos primeiros romances de José Lins do Rego é o seu cuidado memorialismo e a sua enorme acessibilidade. Os seus romances cumprem um papel semelhante ao da poesia de Jorge de Lima, aos ensaios sócio-históricos de Gilberto Freyre ou à arte singular de Cândido Portinari ao descreverem uma sociedade nordestina definitivamente perdida, mas fundamental para a compreensão memorial das identidades brasileiras cerzidas entre colónia, tradição, escravatura, folclore e tropicalismo. Romances simples mas exuberantes, telúricos mas carregados de sensações tropicais debuxando narrativas lineares apoiadas em intrigas minimalistas, preferindo mais os solilóquios do que os diálogos enredados e prolixos, mobilizando ainda uma generosa colecção de temas e tipos folclóricos, muito conhecimento etnográfico e uma memória vivida das sociedades dos engenhos do Nordeste. Estes seis romances alimentam-se igualmente de uma constelação arrebatadora de personagens: o coronel José Paulino é o paradigma do grande latifundiário justo, rigoroso e poderoso do passado; os vários contadores de histórias em circulação pelas plantações; os numerosos antigos escravos; as negras e mulatas que faziam tanto de feiticeiras como de enfermeiras; os muitos descendentes mestiços de ricos senhores de engenho; moleques abundantes; dedicados trabalhadores negros; fascínio indisfarçável pela figura do cangaceiro que José Lins do Rego frequenta admirado entre herói quixotesco, algoz perdoável e vítima inexorável da mudança definitiva do tempo social e económico brasileiro. A esta gente, o nosso autor dedicaria outros dois romances, Pedra Bonita (1937) e Cangaceiros (1953), frequentemente entendidos pela crítica da especialidade como um outro ciclo literário, o do cangaço, mas fortemente marcados pelo messianismo, a superstição e o atavismo desse perdido mundo nordestino dominado por poderoso senhores de engenhos com as suas milícias, rivalidades e violentos afrontamentos. Longe, mesmo muito longe, destas memórias das arcanas sociedades das fazendas do açúcar, José Lins do Rego publicou ainda quatro outros romances: Pureza (1937), Riacho doce (1939), Agua-mãe (1941) e Eurídice (1947). Estes dois últimos títulos oferecem narrativas já completamente passadas no Rio de Janeiro, envolvendo-se em temários quase psicanalíticos, explorando mesmo aberrações mentais e difíceis relações inter-pessoais. Apesar do seu interesse e fina qualidade, estes romances perderam memória, história e, sobretudo, a simbiótica coesão narrativa e tipológica daquelas obras maiores formando o ciclo da cana-de-açúcar. Conversador, solidário, radical adepto do seu Flamengo, eleito para a muito selecta Academia Brasileira das Letras, José Lins do Rego faleceu em 1957 e a sua obra, infelizmente, tem vindo a ser esquecida. A sua redescoberta é urgente.

O Doidinho,

oitenta anos depois

P

ode começar-se a reler e a descobrir a produção literária genial de José Lins do Rego por esse seu segundo romance, Doidinho, editado há precisamente oitenta anos. Uma vida. E é da vida desse perdido mundo dos grandes latifúndios açucareiros do Nordeste que o romance trata ao revisitar a passagem de Carlos de Mello (na verdade, o nosso autor...) aos doze anos por um colégio interno em Itabaiana, o Instituto de Nossa Senhora do Carmo, dirigido entre palmatórias e sevícias várias pelo seu Maciel. Uma espécie de antítese dramática da muito feliz infância de Carlos, o Menino de Engenho, na grande fazenda Santa Rosa do seu avô José Paulino. Doidinho apura e consagra a escrita singular de Lins do Rego: a ausência de artifícios literários não deixa de autorizar uma escrita cuidada e qualificada; a memória rigorosa verte-se em prosa documentada, factual, vivida; a espontaneidade única da oralidade transmite-se literariamente em romances que falam e se escutam. O nosso escritor foi, por isso, sublinhando várias vezes que a sua prosa se inspirava directamente na rua para enformar uma arte narrativa popular: “Quando imagino os meus romances tomo sempre como modo de orientação o dizer as coisas como elas surgem na memória, com os jeitos e as maneiras simples dos cegos poetas.” Apesar da simplicidade, oralidade e acessibilidade, Doidinho é também um romance que prende o leitor pela densidade e complexidade psicológicas com que se trata a infância dramatizada de Carlos de Mello, a sua descoberta da amizade na figura pobre do seu colega Coruja ou do amor em Maria Luísa. Uma intriga enredada igualmente na dramática descoberta da repressão educativa, da delacção, da intriga, dos acusadores e queixinhas, dos amigos de ocasião, da violência física e moral, da pedofilia. No final, porém, Doidinho foge do colégio, apanha um trém e regressa ao seu engenho para reencontrar a liberdade. Os dois primeiros livros de José Lins do Rego, Menino de Engenho e Doidinho, são obras de leitura mais do que indispensável: fundaram verdadeiramente o moderno romance brasileiro, concretizando em prosa singular e inovadora o que, entre 1925 e 1927, Jorge de Lima (1895-1953) tinha conseguido edificar em síntese paradoxal entre tradicionalismo e modernismo com a sua poesia inesquecível em “O Mundo do Menino Impossível” e, sobretudo, “Essa Nega Fulô” tantas vezes dita e recitada (ou cantada?) por João Villaret. A ouvir (http://www.youtube.com/watch?v=ALzzC1qnypM) para, depois, se reler mais saborasamente a obra única de José Lins do Rego a visitar através das páginas iniciais de Doidinho, oitenta anos depois. LUSOFONIAS • Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013

V

José Lins

do

Rego

Doidinho (1933) P

ode deixar o menino sem cuidados. Aqui eles endireitam, saem feitos gente, dizia um velho alto e magro para o meu tio Jucá, que me levara para o colégio de Itabaiana. Estávamos na sala de visitas. Eu, encolhido numa cadeira, todo enfiado para um canto, o meu tio Jucá e o mestre. Queria este saber da minha idade, do meu adiantamento. O meu tio informava de tudo: doze anos, segundo livro de Felisberto de Carvalho, tabuada de multiplicar. — Então não esteve em aula desde pequeno, pois aqui tenho alunos de sete anos mais adiantados. Já me olhava como se estivesse me repreendendo. — Mas o senhor vai ver: com um mês mais, estará longe. Eu me responsabilizo pelo aluno. O menino de Vergara chegou aqui de fazer pena: não sabia nem as letras. E está aí. E gritou para dentro de casa: — Emília, mande aqui o sr. Francisco Vergara. Depois, para o tio Jucá: — Esse que o sr. vai ver é o pior aluno do meu colégio. Chegou-me que nem sabia soletrar. Um vadião de marca. E com pouco entrava um menino de minha idade, moreno, gordo. Vinha com medo, os olhos assustados. — É este. Hoje já pode escrever uma carta. Deu-me o que fazer. Quisera que o sr. o visse no primeiro dia de aula, gaguejando. O pai perdeu um dinheirão no colégio dos padres; botoumo aqui desenganado. Quando voltou para as férias de S. João, recebi uma carta do velho, espantado. Dizia-me que o menino já sabia mais do que ele. Deus sabe o trabalho que me deu. O menino já se sentia outro com as palavras pacíficas do velho. Passara-lhe o susto, me olhava como a um companheiro. — Mas olhe, me dizia o director, não tome o exemplo dele. É um peralta. Quero que o sr. estude e se aplique. Menino bom é meu amigo, sou um amigo do aluno estudioso. Pode ir lá para dentro com o sr. Vergara. E o meu tio me chamou para o abraço. Parecia que me deixava de vez, porque foi com o coração partido que me cheguei para perto dele. — Estude. Em junho venho-lhe buscar. Saí chorando. Era a primeira vez que me separava de minha gente, e uma cousa me dizia que a minha vida entrava em outra direcção. O colégio de Itabaiana criara fama pelo seu rigorismo. Era uma espécie de último recurso para meninos sem geito. O Diocesano não me aceitara porque estava de matrícula encerrada. Lembraram-se do colégio do seu Maciel, como era conhecido nos arredores o Instituto Nossa Senhora do Carmo. Lá estiveram os meus primos uns dois anos. Voltaram contando as mais terriveis histórias do director. Um judeu. Dava sem pena de palmatória, por qualquer cousa. Era ali onde estava agora. O menino gordo me levou para o quarto de dormir. Era preciso mudar a roupa. O colégio estava

VI

Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS

vazio. A meninada saíra para a feira com os pais. A casa grande, com um salão cheio de tamboretes, e uma cadeira de braços em frente de uma mesa, em cima de um estrado. Fiquei por ali, com essa dor pungente de quem se sente isolado no mundo. Não tinha de quem me aproximar. Foi quando uma mulher meio velha me chamou: — Você é primo de Silvino? Era um menino danado, inteligente como ele. Está fazendo figura no Diocesano. O Maciel dava-lhe muito. Tudo por comportamento. Por causa de lição nunca apanhou neste colégio. Foi o melhor aluno de aritmética que tivemos até hoje. O outro irmão não dava pra nada. O Maciel se cansava, inchava-lhe as mãos de bolo, mas era o mesmo que nada. Você parece que é bonzinho. Está é muito atrasado. Era D. Emília, a mulher do director. Depois começaram a chegar os meninos, uns dez

internos. Passavam por mim dizendo: — é um novato. E iam-se lá para dentro com as mãos cheias de embrulhos. Traziam os bonézinhos pretos com as iniciais do colégio: I. N. S. C. — Instituto Nossa Senhora do Carmo. Eu tinha também que comprar meu bonézinho preto, com a pala caída sobre os olhos e as letras douradas. A farda do colégio Diocesano, sim, que era bonita. Farda mesmo de soldado, com quépi e dragonas de oficial. Foram-se chegando os colegas: — É do Pilar? Primo do Silvino? me perguntava

um mais velho. O meu pai conhece muito o seu avô; compra gado a ele. Eu sou do Sapé. Estive com o Silvino aqui no Colégio um ano. Zé Bahu, o irmão dele, apanhava que só cachorro. Seu Maciel não tinha pena. O velho é uma peste: por qualquer cousa está dando na gente. O Chico Vergara da Paraíba chega a ter a mão azul de bolo: é de manhã e de noite. Estavam chamando para o jantar. Descemos uma escada para a sala de refeições. Uma mesa grande para todos. O seu Maciel na cabeceira, D. Emília e o pai dela de lado, e a negra Paula servindo. Quando me botaram o prato de feijão, recusei: — Não gosto de feijão. — Pois é o que o senhor tem de comer aqui todos os dias. Engoli, com um nó na garganta, a minha primeira bóia de prisioneiro. Se o sr. quiser escolher comidas, vá para o hotel. Isto com uma voz seca, estridente, atravessando o interlocutor de lado a lado. O resto dos meninos olhando para o prato, devorando a ração num silêncio de igreja. Pareceu-me aí o director uma figura de carrasco. Alto que chegava se curvar, de uma magrem de tísico, mostrava no rosto uma porção de anos pelas rugas e pelos bigodes brancos. Tinha uns olhos pequenos que não se fixavam em ninguém com segurança. Falava como se estivesse sempre com um culpado na frente, dando a impressão de que estava pronto para castigar. A mulher, com uns olhos azuis e uns cabelos de inglesa, era bem mais simpática. Percebia-se também que a fúria de seu marido ia até às intimidades domésticas. O pai, o seu Coelho, era um boémio, uma dessas velhices que trazem sempre consigo o pouco juízo da mocidade. Mas tudo isto eu viria a perceber depois. Quando saí da mesa os meninos me cercaram. Ainda com os olhos vermelhos do choro, respondi às perguntas. Um deles queria saber dos meus estudos; um outro, se trazia colecção de selos, quanto trouxera em dinheiro. — Quando entrei no colégio, o meu pai me deixou com 4$000, e todas as terças-feiras eu recebia merendas. — Ele vai dormir no nosso quarto; botaram a cama dele perto da de Aurélio. Perguntaram também pelos meus pais, se eu era de engenho ou se voltaria para passar a semana santa em casa. E todo este inquérito ia desviando as minhas preocupações. O nosso recreio era situado numa nesga de quintal, e o único jogo permitido — a conversa. O director, numa preguiçosa, lia jornais. Um dos meninos conhecia meu avô, minha família: — O avô dele tem nove engenhos. Meu pai vota com ele nas eleições. É o velho Zé Paulino do Santa Rosa. Um magro procurava saber se a minha roupa preta tinha sido feita por alfaiate. E começaram a contar historias da feira. Um havia almoçado no

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hotel com o pai. E davam notícias: “vão botar luz eléctrica em Itabaiana”; ‘’chegou um circo para o pátio da cadeia”. E tinham ido à estação, aos Altos Currais, ao bilhar do Comércio, andado de bicicleta. Tudo isto me fazia esquecer a dura realidade do colégio do seu Maciel. Já ao escurecer me chamaram: — Seu Maciel quer falar com o Carlos de Mello. Era a primeira vez que me chamavam assim, com o nome inteiro. Em casa, era Carlinhos, ou então Carlos, para os mais estranhos. Agora, Carlos de Mello. Parecia que era outra pessoa que eu criara de repente. Ficara um homem. Assinava o meu nome, mas aquelle Carlos de Mello não tinha realidade. Era como se eu me sentisse um estranho para mim mesmo. Foi uma cousa que me chocou esse primeiro contacto com o mundo, esse dístico que o mundo me dava. A gente, quando se sente fora dos limites da casa paterna, que é toda a nossa sociedade, parece que uma outra personalidade se incorpora à nossa existência. O Carlos de Mello que me chamavam, era bem outra cousa que o Carlinhos do engenho, o seu Carlos da boca dos moradores, o Carlos do meu avô.; O director mandou-me sentar junto a ele. la-me submeter a um exame ligeiro. Fez-me umas perguntas de tabuada, que eu mal respondia com o susto. — Vá buscar o seu livro de leitura. Voltei com o meu segundo livro de Felisberto de Carvalho. Li para ele ouvir a lição do começo; li em sobresalto, trocando os nomes, com o livro tremendo nas mãos. — O senhor não sabe nada. A sua lição de amanhã é esta mesma. Pode ir lá para dentro, onde estão os outros. D. Emília foi que me disse: — Vou tomar conta de você. E voltando-se para o velho: — Ele passa para a minha classe, Maciel. — Não, fica comigo mesmo. Está muito atrasado. Fica comigo. Dizia isto com as mãos para trás, por cima do espaldar da cadeira, e com as pernas cruzadas. Ainda era mais magro assim, espichado na espreguiçadeira, com os olhos fechados sob um boné de pano mole. Lá fora os meninos indagavam para que me chamara ele. — Chico Vergara no dia que entrou no colégio levou uns bolos, diziam. Emperrou pra seu Maciel. A conversa toda agora era sobre um sargento que viria formar um Tiro no Colégio. Falavam da farda que iriamos ter. Uns achavam bonita a branca do Diocesano; outros queriam a amarela do Tiro, com o chapéu acabanado de lado. A grande alegria de todos ali estava na esperança dos exercícios militares. Eu também já me sentia da intimidade dessas ambições. Chico Vergara, que fora do Diocesano, contava dos passeios que o colégio fazia, com tambor e corneta, pelos arredores da Paraíba. As carabinas eram mesmo de atirar. As nossas seriam de madeira. Tinha a impressão de que já vivia com aquela gente há um mês. — Podem ir para a calçada, disse lá

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de dentro o director. Saímos, cada um com o seu tamborete. Até às nove horas ficava o internato tomando ares na rua. Podia-se passear de dois em dois. Comprava-se rolete de cana e pão sovado. O director dava o seu passeio pela cidade; e era como se o terror tivesse ido embora. Mas qual! ficava a sua sombra, um decurião, tomando conta da gente. — Seu Felipe, olhe estes meninos. O Senhor é o responsável: da menor cousa tome nota. Não permita gritarias nem palestras com gente de fora. O decurião ficava, legítimo representante da tirania, excedendo-se em zelos, provocando mesmo incidentes para o relatório do outro dia. Às nove horas nos recolhemos para dormir. Dormir com a cama preparada por mim, com lençóis que eu mesmo tirara da mala, fora do meu quarto do Santa Rosa! Na cama começavam a chegar os meus pensamentos. Éramos seis no quarto pequeno de telha vã. Ninguém podia trocar palavras. Falava-se aos cochichos, e para tudo lá vinha : — é proíbido. A liberdade licenciosa do engenho sofria ali amputações dolorosas. Preso como os canários nos meus alçapões. Acordar à hora certa, comer à hora certa, dormir à hora certa. E aquele homem impiedoso para tomar lições, para ensinar à custa de ferrão o que eu não sabia, o que não quisera aprender com os meus professores, os que não me davam porque eu era neto do coronel Zé Paulino. Agora não havia mais disso. Era somente um Carlos de Mello como os outros, menino atrasado, no segundo livro de leitura, quando existiam menores no “Coração”. E aos poucos, como uma dor que viesse picando devagarinho, a saudade do Santa Rosa me invadiu a alma inteira. O meu avô, os moleques, os campos, as negras, o gado, tudo me parecia perdido, muito de longe, de um mundo a que não podia mais voltar. E comecei a chorar mordendo os travesseiros. Mas o choro era daqueles que violam o silêncio, e cortei os soluços na garganta. — Que barulho é este aí? perguntaram lá da sala. — É o novato que está chorando. D. Emília veio saber por quê. — Você já tem tamanho para não estar com choro assim. Durma, menino; amanhã você nem se lembra mais de casa. E me passou a mão pela cabeça, com uma carícia indiferente, sem calor, uma carícia profissional de mulher de director. Dormi com um sono aperreado. Sonhei que estava no colégio, que ia ficar ali a vida inteira. Acordei no meio do sonho, como para me assegurar de que aquilo era mentira. Mas não era não. Fiquei acordado um tempão, imaginando, e dormi outra vez. Despertei com os meninos a se levantarem da cama, bem de manhãzinha. Dobrámos os lençóis, e saímos com a bacia e o copo. Na sala de jantar, sentado na espreguiçadeira, estava o seu Maciel. Cada um passava por ele e apertava-lhe a mão, dando

bom-dia. Lavava-se o rosto, porque banho só tínhamos duas vezes por semana. O decurião Felipe começou a relatar os acontecimentos irregulares da noite anterior: o Chico Vergara estava impossível; o seu Heitor dando cocorotes nos outros. — Deixe estar, respondia o velho. Na aula eu falo com eles. Depois, o café com bolacha seca, um café que me fez saudades das tapiocas e dos cuscús do Santa Rosa. E todos seguimos para o salão de estudos. Com pouco mais, lá chegava o director, olhando para os cantos, espreitando alguma cousa. Sentava-se na cadeira de braços. — Senhor Francisco Vergara. O menino levantou-se, e ficou em pé diante dele. Com uma palmatória na mão, lá ia dizendo o director: — O senhor sabe que eu não quero moleques aqui; o senhor não se emenda. Venha para cá, seu atrevido. E o bolo estalou na sala. Por dentro de mim corria uma onda de frio. O menino voltou para o seu canto, com os olhos nadando em lágrimas. — Senhor Heitor! E as mesmas palavras, e as mesmas lágrimas derramadas. Quando ouvi — Senhor Carlos de Mello! — foi como se me chamassem para uma surra. Levantei-me tremendo. Sente-se aqui! Leia sua lição. Fui lendo sem saber o quê. “Júlia a boa mãe”. Mas truncava tudo, pulando as linhas. — É o cúmulo, gritava o velho, deixar-se um menino deste tamanho sem saber nada. Só bicho se cria assim. Porque está o senhor chorando? Volte para o seu canto. Mais tarde vou-lhe tomar a lição outra vez. Voltei não vendo ninguém na frente. Sentei-me, e pingava em cima de “Júlia, a boa mãe” as minhas lágrimas compridas. Iniciava assim o meu curso doloroso contra a ignorância. Com o livro entre as pernas, lia a minha lição palavra por palavra. Era a história de uma mãe que queria divertir o seu filho. Havia um gato e um novelo de linha. A figura mostrava o menino gordinho numa cadeira alta e a mãe brincando com o gato. Tudo aquilo para que o filho sorrisse. Não sei por quê, achava aquela Júlia parecida com a minha mãe. Esta deveria fazer o mesmo comigo; tudo daria também para que o seu filho sorrisse. Principiavam a chegar os externos. Entravam apertando a mão do director, colocando-se em seus cantos. Seu Maciel dirigiu-se a um que entrava por último: Senhor Pedro Muniz, o senhor não sabe que eu não permito aluno meu andar fumando na rua? — Sei sim senhor. — Passe-se para cá, seu sem vergonha. E o bolo entrou outra vez. Este não chorou. Foi vermelho para o seu lugar, mordendo os beiços, olhando para os outros com cara de raiva. A sala se enchera. O professor tomava lição das classes. D. Emília tinha os menores com ela. Mas ensi-

nava também gritando. Corrigia os erros da leitura num tom de voz de reprimenda. Depois do almoço ficava-se uma meia hora de descanso. Comi com a comida amargando na boca, e no recreio fiquei para um lado. Os meninos batiam boca, discutiam. Qualquer cousa, porém, me arrastava do meio deles: era o pavor da lição que iria dar. Uma impressão de terror oprimia-me todo. O velho Coelho conversava com os maiores: — Filho meu não apanhava assim. O Maciel bate neste Vergara todos os dias. O diabo do menino não se corrige; mas todos os dias assim é demais. Ninguém dava uma palavra à observação do velho. Não se gostavam, o sogro e o genro. De tarde fui dar minha lição. Levava o coração aos saltos, como nas noites em que acordava com o quarto às escuras. Muitas vezes a velha Sinhazinha me deixava esta impressão de pavor. Com a velha, porém, havia geito de fugir às suas iras. Aqui mudava muito para pior. Errei a lição toda. Sabia quase que decorada a história de Júlia, a boa mãe. O medo, no entanto, fazia a minha memória correr demais; e saltava as linhas. — Leia devagar. Para quê esta pressa? Foi pior. A língua não me ajudava. Quando vi foi ele com a palmatória na mão. — Levante-se. Não soube mais o que fiz. Senti as mãos como se estivesse com um formigueiro em cada uma. Como o Chico Vergara, apanhava no meu primeiro dia de aula! Dos externos só restava um na sala, e eu também, até dar certa a minha lição. No salão deserto, a minha angústia crescia ainda. Apanhava no primeiro dia, e fora tudo num instante, nem sei como. Quando a velha Sinhazinha me pegara uma vez, a casa toda ficara comigo. A minha vaidade de menino se enchera com essa dedicação. Ali fora com indiferença geral que a palmatória tinira nas minhas mãos. Talvez porque o castigo não fosse uma excepção naquela casa, apanhava-se todos os dias. Na parede da sala havia um quadro grande, representando a subida de Cristo aos céus. Parecia que estava ali para uma profanação. Jesus veria surrados todos os dias aqueles mesmos que queria que fossem a Ele, porque era deles o reino dos céus. Mas eu não pensava nisto olhando a imagem, eu pedia, sim, que ela me fizesse voltar para casa, que os dias corressem, que as semanas voassem. Antes do jantar, dona Emília me veio tomar a lição. Dei-!he certinha, sem um erro, do começo ao fim. — Por que você não leu assim para o Maciel? E depois: — Vá lavar o rosto para jantar. Fazem do Maciel um bicho. E quando passei pela sala de jantar, lá estava ele espichado na cadeira preguiçosa, com os olhos fechados e os ouvidos abertos às conversas dos meninos no alpendre.

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013

VII

Estamos

Publica

textos de estudo e opinião sobre a diversidade cultural das Lusofonias

TODOS à rasca

Ideias E

Mia Couto*

“Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado. Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais. São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração. São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer “não”. É um “não” que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!” VIII

Segunda-feira, 28 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS

stá à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida. Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos. Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor. Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...),mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada. Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes. Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou. Foi então que os pais ficaram à rasca. Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado. Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais. São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração. São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer “não”. É um “não” que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar! A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas. Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados. Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colec-

ciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional. Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere. Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam. Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras. Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável. Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada. Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio. Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração? Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos! Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós). Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida. E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos – e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas – ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!! Novos e velhos, todos estamos à rasca. Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens. Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles. A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam. Haverá mais triste prova do nosso falhanço? *Escritor Moçambicano. Prémio Camões de 2013

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