Nos bastidores da Cultura: A Revista como destino turístico (2015)

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Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos

Sílvia Gomes, nº 35538

Nos bastidores da Cultura: A Revista como destino turístico

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Fig. 1 – Fachada da bilheteira do Teatro Maria Vitória .

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Fonte: Fotlog. (2013) «TEATRO MARIA VITORIA inaugurado em 1922», 15 de Agosto. Disponível em [consultado a 17 de Dezembro de 2014]. 1

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PALAVRAS-CHAVE Autenticidade encenada; Identidade nacional; Teatro de Revista; Turismo;

RESUMO Aborda-se o Teatro de Revista enquanto produto turístico. Evidencia-se o género enquanto ícone identitário a nível nacional, bem como os processos de foclorização e objectificação da cultura popular que neste se espelham, analisando-se assim a trilogia Povo/Fado/Bairros de Lisboa enquanto uma criação emblemática que é consumida pelo público do turismo cultural.

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Índice Índice ....................................................................................................................... 3 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 4 ENTERRAM-SE OS MORTOS, ANIMAM-SE OS VIVOS .................................... 5 Ó EVARISTO, JÁ HAVIA CÁ DISTO! .................................................................... 8 NO TEMPO DO ZÉ DA BEIRA, ANTES DE CAIR DA CADEIRA .................... 10 É SÓ FOCLORE, É SÓ FOCLORE! ........................................................................... 13 A plebe revisteira…....................................................................................... 13 Lisboa é linda! A imagética bairrista de uma cidade popular…16 Tudo isto existe, tudo isto é triste… ............................................... 18 FALAR VERDADE A MENTIR… .......................................................................... 21 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 24

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INTRODUÇÃO Salienta Xerardo Pereiro que o turismo cultural tem servido de "guarda-chuva conceptual para um conjunto de actividades", sendo também uma forma de diferenciação entre os diferentes tipos de turismo (Pereiro, 2009: 111). Este faz-se valer de uma instrumentalização da cultura convertendo-a num produto mercantil com vista à sua posterior mercantilização (Pereiro, 2009). Mas é certo que a evolução da percepção do que é a cultura e o património contribuíram para uma democratização da oferta turística, bem como para solidificar o turismo cultural, até porque as primeiras atracções turísticas alicerçavam-se numa visão clássica acerca do património, "qui correspondait à une vision classique de la culture civilisationnelle, atavique, monolithique et territorialisée" (Silva, 2011: 33). Mas esta solidificação do turismo cultural assumiu uma vertente cada vez mais holística, educativa, experiencial e lúdica, no sentido em que a cultura deixa de ser apenas transmissivel para passar a ser interpretada e experienciada (Silva, 2011). Assim, torna-se também mais rentável, como refere Maria Cardeira da Silva "elle peut, chaque fois plus, être emballée et commercialisée de différentes formes et transformée en différents «sous-produits»" (Silva, 2011: 36). É necessário, no entanto, reconhecer os perigos de um excesso de mercantilização que poderá converter a cultura num produto de consumo massivo, reconhecido pelo seu carácter ficcional, superficial, passivo, banalizado e espectacularizado, pelo que, como acrescenta a Maria Cardeira "il est important d’éviter que la marchandisation de la culture la congèle et dissipe sa valeur identitaire et potentiellement revendicative (Silva, 2011: 36). O turismo cultural é, portanto, um tipo de turismo que dá maior destaque à cultura em detrimento da natureza. E, se acordo com Urry, vivemos numa sociedade pós-moderna onde prevalece a tendência para a nostalgia, uma das motivações mais fortes para a prática do turismo cultural está precisamente relacionada com essa actracção nostálgica pelo património cultural enquanto representação simbólica da cultura (Pereiro, 2009). Destacando o valor identitário que a mercantilização da cultura assume e de que o turismo se vale, irei tentar fazer uma abordagem teórica ao Teatro de Revista dentro de uma perpectiva do turismo cultural. Isto porque a Revista para além de ser um produto para consumo cultural, é um ícone identitário do país que toma parte nos processos de foclorização e objectificação da cultura popular. Assim os turistas culturais procuram aquilo que se denomina “sintoma de Stendhal”, ou seja “uma intensa e rica experiência emocional de cariz psicológico”, 4

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos encontrando-a na complexa e enigmática trilogia do povo, do Fado e de uma cidade popular, bairrista e pitoresca que se cristaliza no teatro de Revista. Assim, o teatro de Revista leva a cabo uma «reciclagem» e «reprodução» de «ícones nacionais» de forma a criar toda uma produção turística baseada na memória histórica. É visível, deste modo, uma mercantilização dos locais, sujeitos e imaginários associados a Lisboa, levando a rearticulações do passado no presente e numa esfera pública e mercantilizada.

ENTERRAM-SE OS MORTOS, ANIMAM-SE OS VIVOS Apesar de Portugal se apresentar como um país periférico relativamente aos percursos do tão aclamado Grand Tour2 que foi um marco na história contemporânea do turismo, o ano de 1755 constitui-se como uma importante «lufada de ar fresco» no que diz respeito à literatura de viagem sobre Portugal. Nesta altura, após o Terramoto de Lisboa, dá-se um recrudescer do interesse pelo país. Como refere Borges Paulino, “na segunda metade do séc. XVIII aumenta, em particular, o número de textos de viagem escritos por viajantes oriundos do centro e norte da Europa” (Borges Paulino, 2011). Nestas descrições de viajantes a paisagem urbana é valorizada, mas critica-se a ausência de residências particulares, consequência atribuída “ao frágil poder económico da classe média abastada” (Borges Paulino, 2011: 420). Relativamente a Lisboa, é digno de elogios o Aqueduto das Águas Livres, a Baixa pombalina e o, então denominado, Passeio Público (Borges Paulino, 2011). Tentando colmatar algumas das suas deficiências, exageradamente evidenciadas pelos viajantes que haviam passado por Portugal, Lisboa, no final da década de 70 do século XVIII, à semelhança dos Champs-Élysées de Paris, viu-se rasgada por uma boulevard Lisboeta que cedia lugar a variados espaços lúdicos (Turismo de Lisboa, s.d.). Assim, a Avenida da Liberdade era um placo de numerosas atracções que subiam a Avenida até àquele que viria a ser o Parque Mayer (Garcia, 2012).

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A história contemporânea do turismo é marcada, entre os séculos XVIII e XIX pelo “Grande Tour” clássico, uma viagem educativa dos nobres e burgueses cujo objectivo era contactar com outros povos e culturas, acumulando um capital cultural e contactos de apoio que lhes assegurava o estatuto e reforçava o seu futuro nas tarefas empresariais familiares (Towner, 1985). Mas, essa viagem que inicialmente era quase exclusiva da aristocracia alargou-se à burguesia enriquecida e já nos finais do séc. XVIII surge aquele que viria a ser chamado de Grand Tour romântico, sendo que “these embraced a passion for the medieval and a love of wild nature with its sublime and picturesque scenery”, sendo este visto em termos de um “scenic tourism” (Towner, 1985).

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Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos Vêem-se nascer também salas de espectáculo e começam a surgir as primeiras Revistas, saliente-se que o Teatro de Revista havia surgido nos teatros de feira, nos arredores de Paris, ainda neste mesmo século. Nas feiras de Saint-Laurent e de Saint-Germain, começou-se a levar à cena espetáculos que passavam “em revista os principais acontecimentos teatrais do ano”, parodiando grandes autores dramáticos (Marques, 2001: 42). Devido ao sucesso que o género obteve entre o público, a Revista passou a abordar não apenas factos teatrais, mas também os principais acontecimentos do ano. O género acabou, assim, por se estender rapidamente a outros países da Europa, mas enquanto, em França, o music-hall acabou por roubar o lugar de destaque da revista, em Portugal o género resistiu (Rodrigues, 2007). Assim, na Rua da Palma erguia-se, desde 1866, o teatro do Príncipe Real, onde se apresentavam “dramas populares e baixa comédia, operetas e teatro de revista” (Rodrigues, 2007:46). Até mesmo no teatro da República, que em 1918 passa a ser designado teatro São Luiz (o seu actual nome), apesar de não ser o género mais apresentado, a Revista subia à cena pela altura do Carnaval (Ibidem). E por a Revista ser urdida com determinados elementos da cultura «portuguesa», é visível uma reivindicação de uma portugalidade nas origens por parte de vários historiadores que se dedicaram à história do Teatro de Revista em Portugal. Esta ansiedade por uma origem portuguesa é, por exemplo, argumentada por Luiz Francisco Rebello que, por vezes, tropeça nas suas próprias contradições. Se por um lado Luiz Francisco Rebello considera o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, a “primeira revista (…), com o desfile de várias personagens que emitem a crítica dos sucessos e revezes da época”, numa estrutura semelhante às revistas dos séculos XIX e XX (Rodrigues, 2007: 31), por outro, refere ao mesmo tempo que o Teatro de Revista como o conhecemos nasceu nos teatros de feira, nos arredores de Paris, no século XVIII (Marques, 2001). Numa referência mais actual, também o historiador Jorge Trigo o refere na própria página oficial do Teatro Maria Vitória: “O Teatro de Revista que surgiu em Portugal em meados do século XIX, através de França, mas sobretudo influenciada pelo Teatro de Gil Vicente, sempre foi o género preferido do público, tendo acabado por adquirir características próprias tornando-se na Revista à Portuguesa, única no Mundo3.” Este reclamar de uma origem portuguesa no que diz respeito à Revista, não se reduz a um historicismo barato4, mas é também visível ao nível do próprio imaginário popular, pois já me 3

Teatro Maria Vitória. «Nova Produção do Maria Vitória Assinala os 160 Anos da Revista á Portuguesa», [s.d.]. Disponível em [consultado a 17 de Dezembro de 2014]. 4

Por esta ordem de ideias, facilmente se poderia ir mais longe para reivindicar esta portugalidade, bastaria agarrar numa luneta astronómica e passar melhor o olho mecânico sobre o apogeu expansionista, puxam-se um 6

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos referia o actor Ricardo Castro que “a revista tem uma história, podemos ter que ir a Gil Vicente, Gil Vicente o que é que usava? Usava personagens que acabavam por representar a sociedade e a angústia e criticar o que se estava a passar na altura” (Entrevista a Ricardo Castro, 2013). Isto vem reiterar mais uma vez a ideia que Lofgreen destacava de que “some national ideologies have been naturalized so early that they are rarely questioned today” (Lofgreen, :9). Mas é certo que a própria relação entre turismo e identidade nacional não se circunscreve a um discurso ideológico em torno de uma ideia abstracta de Nação, mas também a “novas concepções e usos do território nacional que surgem com o desenvolvimento da prática turística” (Aurindo e Vidal, 2010). Mas retomando a Revista, a primeira definição do que é o género surgiu, em 1860, nas palavras de Andrade Ferreira que a classificava como “um resumo dos acontecimentos que deram uma fisionomia especial ao decurso do ano, personificados ou simbolizados em figuras que a sátira encara pelo seu lado cómico” (Rodrigues, 2007: 27). A primeira revista representada em Lisboa, de seu nome Lisboa no Ano de 1850, subiu à cena no teatro do Ginásio, em 1851, sendo que Luiz Francisco Rebello considera que nessa noite de 11 de Janeiro de 1851 “nasceu a revista portuguesa” (Rebello, 1985). Certo foi que a 1 de Janeiro de 1852 se estreava a segunda revista, O Festejo Dum Noivado (Rodrigues, 2007), e quatro anos depois, em 1856, dá-se uma tentativa falhada de proibir a revista Fossilismo e Progresso (Rodrigues, 2007: 7). Já Sousa Bastos, em 1908, no seu dicionário do Teatro Português acentuava essa ânsia pela proibição da Revista no tempo da Monarquia, bem como a sua crescente espetacularização que tinha uma relação directa com a procura turística, possivelmente ainda apenas a nível nacional: “Houve epocha em que, nas revistas, o escândalo predominava e eram festejadíssimas as caricaturas de personagens importantes da política. Tudo isto hoje está prohibido (…). O que principalmente augmenta de anno para anno é a natural exigencia do publico em querer ver essas peças luxuosamente montadas. Já que aos ouvidos falta a critica mordaz, que gozem os olhos os deslumbramentos de scenario, vestuário e adereços” (Sousa Bastos, 1908: 128). Mas, como se irá ver, para além da Revista se afigurar enquanto um veículo de expressão do descontentamento social que recorre à memória colectiva e à construção e transformação de identidades (Cedeño, 2010) para sua posterior mercantilização, é ela própria um lugar de memória, um espelho do mundo num lugar dianteiro, permitido pela componente política e social deste género que se constitui como uma das suas características mais importantes:

cordelinhos daqui e outros dali e também se consegue alguma ligação às moralidades bazochianas, já que estas se pautavam por ser “uma espécie de paródia do estado social”, “em que se misturavam o divino com o profano, satirizando tudo, tornando as hierarquias sociais iguais perante a gargalhada” (Braga, 1870: 17-21). 7

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos “da Regeneração de 1851 à Revolução de Abril de 1974 e às vicissitudes a que esta tem sido submetida, é possível seguir quase a par e passo, através das rábulas, dos sketches e das canções das revistas, a trajectória sociopolítica do país”. (Rodrigues, 2007: 32)

Ó EVARISTO, JÁ HAVIA CÁ DISTO! O período entre as duas guerras mundiais (1918- 1939) foi bastante propício ao desenvolvimento do turismo, não apenas pelo progresso tecnológico que estimulava o aumento da produtividade, mas também pela crescente preocupação das classes médias e trabalhadoras com o estilo de vida e a sua busca por bens de consumo não essenciais, aliada a um aumento do tempo livre (Dann e Parrinello, 2009). Mas, apesar desse panorama ser comum aos vários países da Europa, a situação estava longe de ser homogénea, pois “european countries and regions differed both in their traditional cultural practices and in their domestic and international tourism development, along with their diverse global ventures” (Dann e Parrinelo, 2009). Posto isto, foi durante a I República e ao longo dos “loucos anos 20” caracterizados por uma busca desenfreada por diversão, libertinagem, inovação e modernidade que se desenvolveu o Turismo institucionalizado em Portugal (Pina, 1987). Numa vontade do regime republicano provar ao país que as suas promessas, alicerçadas a um ideário progressista de abertura ao mundo e virado para modernidade, não haveriam apenas sido, como refere Paulo Pina, “o costumeiro foguetório propagandístico” (Pina, 1987), e tirando proveito do IV Congresso Internacional do Turismo, decide-se a 20 de Maio de 1911 criar uma repartição do Turismo, integrada no Ministério do Fomento. Assim, sucedia à Sociedade Propaganda de Portugal o departamento estatal do turismo, fazendo de Portugal uma das primeiras nações europeias, ao lado da França e da Áustria, a enveredar pela institucionalização governamental do turismo. A repartição do turismo integrava-se autonomamente no Ministério do Fomento que, em 1919, se transformou em Comércio e Comunicações (Pina, 1987). Este ministério, em 1920, sofre uma profunda transformação e deixa entregue e subordinada a repartição de turismo a um recém-criado pelouro das estradas (Conselho de Administração de Estradas e Turismo) que servia de substituto ao Conselho de Turismo, o que na altura gerou grande polêmica (Pina, 1987). Saliente-se, a título comparativo, que por esta altura, funcionava no Palácio Mayer, actual Parque Mayer, o Club Mayer, um clube noturno de recreio e jogo. Mas retomando, em 1922, viria a ser recriado, novamente no mesmo ministério, o 8

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos Conselho Nacional de Turismo, enquanto a repartição de turismo ia criando comissões de iniciativa pelo país que visavam a protecção e defesa dos monumentos, propagandas locais, entre outros. Estes tempos da I República foram extremamente importantes na “construção de uma imagética turística homogénea e de descoberta do território nacional”, isto porque havia uma particular sensibilidade à dimensão educativa do turismo, como “modo de aprendizagem e de conhecimento” (Aurindo e Vidal, 2010). Este era também entendido como uma forma de preservar a diversidade da paisagem e dos costumes locais. Assim os Republicanos viam o turismo como um factor de desenvolvimento que visava uma construção de uma imagem moderna da nação, onde “o olhar turístico sobre a nação tenta ainda superar a contradição subjacente entre uma modernidade enquanto factor de uniformização (…) e a valorização do “autêntico”, do “diferente”, do “típico” que está na base da procura turística” (Aurindo e Vidal, 2010). É, portanto, neste contexto e com o progressivo desenvolvimento do turismo, que se inaugura em Lisboa o Parque Mayer, com o nome de Avenida Parque a 15 de Julho de 1922, fazendo pretensões de se tornar um Pólo teatral e uma fonte de turismo cultural (Garcia, 2012). Paralelamente a esta ideologia progressista, o Parque Mayer surge num período da história também marcado pela hiper-realidade, ou seja, um tempo de “imitation and reproduction, sometimes so that the copies are better than the originals” (Graburn, 1995: 171). Assim o Parque Mayer procurou desenvolver-se à imagem de outros grandes espaços culturais europeus, pois “o pensamento sobre a essência da identidade portuguesa, sobre a “portugalidade”, nasce também da comparação com outros países e outros povos” (Aurindo e Vidal, ). O único problema foi que “o leque de motivações turísticas com que Portugal avançou traduzia, com efeito, um decalque impossível de ombrear com as espectaculares atracções e com o adiantamento social de que as grandes nações europeias disfrutavam” (Pina, 2010 ). Mas foi certo que este seguidismo utópico seria mais tarde também seguido pelo SPN/SNI de António Ferro que recorreu ao património popular “cenatizado numa paisagem mimosa e multifacetada” (Pina, 2010). Mas retomando o fio à meada, o Parque Mayer resulta de uma herança familiar do palácio Mayer e dos seus jardins que são adquiridos em 1920 por Raúl Brandão e, posteriormente, pelo dramaturgo Luís Galhardo que nele construiu uma série de casas de espectáculo. Este viria, assim, substituir a Feira da Rotunda nos antigos terrenos do Palácio Mayer, incorporando também a função lúdica da Feira de Agosto, com comércio e diversões, tais como barracas de “tirinhos”, carrinhos de choque, carrosséis, circo e combates de boxe e luta-livre. Ainda, em 1932 por iniciativa de Raúl Brandão, foi palco do primeiro desfile dos grupos representantes dos bairros 9

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos lisboetas que viria a dar origem às Marchas Populares, tão características de uma identidade lisboeta e bairrista (Brito Silva, s.d.). E porque “toda construção da identidade (…) necessita reencontrar pontos de referência espaciais, sejam eles de cidades míticas, de estilos arquitetônicos particulares ou de técnicas construtivas” (Biase, 2005), o Parque Mayer acompanhava também as tendências artísticas internacionais hasteando um pórtico de entrada com duas colunas estilo Art Déco iluminadas que se alicerçavam no ideário progressista da I República. Concentrava ainda no seu espaço envolvente uma extraordinária oferta de comércio e hotelaria (Garcia, 2012). Mas, apesar desta não ter sido uma iniciativa estatal, enquadrava-se dentro de uma ainda incerta ideia de turismo cultural, neste caso impulsionado pela sociedade civil que procurava integrar “o local na economia e na política globais” (Pereiro, 2009: 112). O Parque Mayer saciava a sede das classes médias de consumo boémio, bem como também era frequentado pela elite política e intelectual de Lisboa, permitindo assim que se diluíssem “os limites entre cultura popular, cultura de massas e alta cultura, que se converteram em produtos para o turista cultural” (Pereiro, 2009: 132). Após cinco meses da inauguração do Parque Mayer abriram-se as portas do seu primeiro teatro: o Maria Vitória. Mas, apesar de abertura de outros teatros na área, como o Variedades ou ABC, rapidamente o Teatro Maria Vitória se tornou numa referência no que diz respeito ao Teatro de Revista, que tem a sua maior expressão na crítica e caricatura política. Tendo resistido à censura por meio dos mais criativos subterfúgios linguísticos e cénicos, manteve as portas abertas após a revolução de Abril de 1975. A determinada altura, com a popularidade da televisão, chegou a albergar a indústria cinematográfica. O Teatro Maria Vitória tornou-se ao longo do tempo uma referência não apenas para a cidade de Lisboa, mas também a nível nacional, fixandose no imaginário nacional como a “Catedral da Revista” (Garcia, 2012), e evidenciando o tal fenómeno da iconização de sinais levantado por Roland Barthes (Dann e Parrinello, 2009).

NO TEMPO DO ZÉ DA BEIRA, ANTES DE CAIR DA CADEIRA Referia Anne-Marie Thiesse que as origens das nações modernas “não se perdem na noite dos tempos, nos períodos obscuros e heróicos descritos nos primeiros capítulos das histórias nacionais” (Thiesse, 2000: 69), mas nascem no momento em que um grupo de índividuos declara que estas existem mediante provas (Thiesse, 2000). Ou seja,como sugere Lofgreen cada nação deve estar sujeita a um processo de construção da mesma, deve ter uma cultura popular nacional, 10

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos uma mentalidade nacional, valores nacionais, um território nacional, bem como uma série de símbolos associados à nação (Lofgreen, 1989). Este acaba por ser um processo raramente contestado porque aqueles que chegam depois deste já o interiorizam como um facto natural e não como uma construção ideológica (Idem). Possivelmente, no caso português, o exponente mais evidente da contrucção da nação deu-se durante o Estado Novo, para a qual contribuiu em larga escala o Secretariado da Propaganda Nacional. O Secretariado da Propaganda Nacional foi criado pelo governo de Salazar em 1933 e ficou encarregue de controlar a política cultural do governo, colocando as artes plásticas, o folclore, o cinema, o teatro ao serviço da sua retórica nacionalista, pois como reforçava AnneMarie Thiesse “todo o processo de formação identitária consistiu em determinar o património de cada nação e difundir o seu culto” (Thiesse, 2000: 70). Para melhor compreender esta questão será necessário uma breve contextualização deste órgão que se dedicou à construção de uma nação portuguesa que ainda perdura, bem como ao turismo, dado que “o desenvolvimento da prática do turismo está intimamente ligado ao processo de construção das identidades nacionais” (Aurindo e Vidal, 2010). O Conselho e Repartição de Turismo, entre 1936 e 1939, viveu as profundas consequências tanto a Guerra Espanhola, como Mundial, tendo paralizado de tal modo que a única função visível que mantinha era a regulamentação do excursionismo. Face a isto, passado um quarto de século do Congresso Internacional de Turismo de 1911 que havia levado à institucionalização do trismo em Portugal, propõe-se a nível nacional um I Congresso Nacional de Turismo na Sociedade de Geografia de Lisboa. Neste congresso critica-se o desinteresse por parte do Ministério do Interior pelo turismo e propõem-se medidas com vista ao fomento da indústria, como, por exemplo, a rejeição de uma gestão camarária dos órgãos locais de turismo, as tais Comissões de Iniciativa. Quatro anos decorridos desde aí, e constatada “a inoperância de um Ministério do Interior” (Pina, 1987), é transferida a tutela do sector de turismo para o Secretariado de Propaganda Nacional, ao encargo de António Ferro. E é sob a influência deste que Salazar vai tentar incutir “uma outra imagem moderna e dinâmica de si próprio”, imprimindo à imagem do Estado “um rosto jovem, competente e desembaraçado” (Pina, 1987). António Ferro propõe, portanto, a Salazar que se mobilize a arte, a literatura e a ciência “para a construção da grande fachada de uma nacionalidade” (Pina, 1987). Dados os progressos no campo do turismo, Salazar, em 1939, transfere o Turismo Central para o Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro, mas mantendo a administração do jogo e rede turística local subordinada à pasta do Interior. Posto isto, é já em 1944 que o Secretariado de Propaganda Nacional é elevado ao estatuto de Secretariado Nacional de 11

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos Informação, Cultura Popular e Turismo, continuando a propor uma enfatização nos recursos de cariz popular, tais como o tipismo das vilas e aldeias portuguesas, o artesanato, o folclore, a hospitalidade do povo português ou a culinária regional (Pina, 1987). Assim o regime produzia activamente “uma nação de «fachada», mas, simultaneamente, uma paisagem rural, visual e sonoro idílica e turisticamente atractiva” (Silva, 2010: 1289). Em 1968, por motivos de incapacidade física, Salazar afasta-se do seu cargo como chefe do regime e do governo, isto devido à “mais prosaica insólita das causas: a derrocada duma vulgaríssima cadeira de lona, acessório típico da placidez turística” (Pina, 1987). Assume-se assim a primavera marcelista, com Marcello Caetano no seu lugar. Este evidenciando o seu interesse pelo sector do Turismo, em 1968, eleva o Secretariado Nacional de Informação a Secretaria do Estado, da Informação e Turismo. Mas com uma activa oposição democrática a efervescer de um lado e a ala ultra-conservadora do outro, assiste-se ao completo desabar do Regime. Contudo, foi durante o Estado Novo que o recinto do Parque Mayer vive o seu apogeu, pois, se por um lado, a Revista era palco de exibição dos mais variados elementos da cultura popular, desde o Fado, o Futebol, o folclore, ao exotismo de uma lisboa bairrista, ou a um povo essencializado na figura do Zé Povinho; Por outro, caracterizava-se pela sua irreverência e intrínseca crítica política, pelo que sempre teve tendência para alcançar mais sucesso em momentos de crise. Mas de certo modo, como me referia o Director do Teatro S. Luiz, “é evidente que nalguns momentos não convém muito que esse espírito crítico se alastre tanto e é melhor encontrar formas de cultura de massas que tornem as pessoas todas iguais e que sejam motivos de conversa”, como “a telenovela e o futebol” (Entrevista a Luís Ferreira, 2013). Posto isto, em 1960 a acção da censura é bem-sucedida em relação à Revista, pois, como me evidenciou o director do S. Luiz Teatro Municipal, “a ideia desse tal comentário social, desse tal lugar social que o teatro favorece como resposta não era muito bem visto pelo regime político (…) via-se de, alguma maneira, como lugar de resistência e como lugar de exercício da capacidade crítica” (Entrevista a Luís Ferreira, 2013). Desde aí a revista vai ser sempre encarada com desconfiança e hostilidade pelo poder político que é “alvo de críticas mordazes, quase sempre certeiras, e com o poderoso “argumento” de suscitar o riso” (Rodrigues, 2007: 27). Isto levou a que os autores se adaptassem às circunstâncias, fazendo uso de subterfúgios, gíria ou calão, mudança metafórica de sentidos, principalmente nos períodos em que a censura se encontrava mais activa, como me referiu o dramaturgo Manuel Coelho, “até, no tempo da censura, os autores o faziam, com excecional habilidade para a tornearem [à crítica social e política] ” (Entrevista a Manuel Coelho, 2013).

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Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos No final da década de 60 a censura conhece um ligeiro abrandamento e, embora a mudança fosse unicamente aparente, certo é que os autores “não perderam a oportunidade de procurar devolver à Revista a sua vocação crítica originária” e, assim sendo, quatro das seis revistas que estrearam em 1969 não se inibiram de caricaturizar a figura do primeiro-ministro (Rebello, 1985: 144). Mas, apesar desta desconfiança em relação à revista por parte do Estado, a sua maior benéfice, tanto para o regime, como a nível turístico, teve precisamente a ver com a relação que esta estabelecia com a construcção da nação. Assim o turismo, bem como a Revista, serviam e servem para moldar imagens e representações mais ou menos banalizadas e consensuais (Aurindo e Vidal, 2010). E assim a foclorização empreendida durante o Estado Novo preparou “a música, e a «cultura popular» em geral, para a mercadorização turística” (Silva, 2010: 1289), tanto que muitos dos elementos inerentes à portugalidade, que foram na altura evidenciados nos palcos do Teatro de Revista, permanecem até aos dias de hoje, como se verá adiante.

É SÓ FOCLORE, É SÓ FOCLORE! A Revista para além de ser um produto para consumo cultural, é um ícone identitário do país que toma parte nos processos de foclorização e objectificação da cultura popular. Nesta apropriam-se variados elementos culturais, onde se afigura a célebre trilogia Povo/Fado/Bairros de Lisboa, portanto, uma estranha imagem folcloricamente exótica que tem uma estreita relação com a identidade e cuja maior expressão assume no pictórico. Através desta trilogia, é possível verificar como a folclorização da tradição resulta numa criação emblemática que é apropriada por autoridades locais, “visibilizada pelos media” e, finalmente, consumida “quer pelas audiências dos espectáculos fora do “habitat cultural, quer finalmente pelo público singular e mais reduzido do turismo cultural” (Raposo, 2004: 17).

A plebe revisteira… A Revista reúne no seu conjunto quadros de comédia, quadros de rua, números musicais e uma apoteose. Nestas rábulas evidenciam-se as mais variadas personagens, desde a personagem do Fadista, ainda polida à luz das políticas culturais do Estado Novo, às personagens de origem popular. A grande maioria dos quadros de Revista e do carácter base do povo português que nas personagens se evidenciam bebem muito dos vários debates em torno do «povo português», a sua «psicologia étnica» e «identidade» que rapidamente transitaram da academia para o imaginário

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Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos popular. Mas a imagem do povo reivindicada pela Revista não se prende com apenas uma abstracção, mas este é concebido como uma comunidade “unida por laços que não se resumem à submissão a um único soberano, nem à pertença a uma única religião ou a um mesmo estrato social” (Thiesse, 2000: 70), ou seja, na Revista a imagem do povo corresponde a uma ideia de nação, porque enquanto “o Povo é uma abstracção, a nação é viva” (Ibidem). A Revista tende a exibir Portugal como um indivíduo colectivo, tal como os antropólogos portugueses do século XIX. Assim, com vista a uma essencialização do “povo” português, a Revista faz-se valer, tanto das contribuições animadoras e óptimistas de Teófilo Braga, como de uma imagem negativizada da cultura popular portuguesa evidenciada por Adolfo Coelho e Rocha Peixoto, do saudosismo levantado por Pascoaes, ou do carácter expansivo e contraditório enumerado por Jorge Dias (Leal, 2000). Produz, deste modo, uma visão unificada de todas essas perspectivas que, evidentemente, se materializa na figura do Zé Povinho, reinventada no contexto do Teatro de Revista. A Figura do Zé Povinho surgiu graças a uma caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro na Lanterna Mágica em 1875, tendo-se rapidamente assumido enquanto um símbolo da personalidade base do povo português. Tornou-se assim um símbolo totémico que foi sendo reproduzido por vários cartoonistas durante a monarquia constitucional, a I República e o Estado Novo, sendo que a certa altura refugiou-se na Revista, perdurando até aos dias de hoje. Descrevenos Medina a figura do Zé Povinho: “Ainda que nos custe aceitar como nosso retrato verídico essa imagem deprimente e incomodamente labrega que nos espreita do fundo do nosso espelho coletivo, aquele rosto bronco de pascácio rural, de campónio mal vestido, barba rala, colete e chapéu preto de rústico, calças de fazenda ruim, mãos nos bolsos, riso alvar, espécie de resignado Sancho Pança sem um cavaleiro da Triste Figura que o quixotize e lhe comunique um ideal superior” (Medina, 2012: 66). A Figura do Zé Povinho era essencialmente uma figura rural, que só perde a sua ruralidade em 1981 quando deixa de representar o sector primário como sector dominante da actividade económica (Medina, 2012). Na Revista o Zé deixa de ser o homem rústico que vem à cidade criticar a esfera do poder, para se tornar uma figura característica dos cenários lisboetas, embora se mantenham traços de uma ruralidade no seu físico e indumentária. É comum nos quadros de rua se sobrepor a figura do Zé Povinho à do sem-abrigo, nestes contextos muitas vezes o Zé Povinho perde a sua indumentária rural que lhe é tão característica para assumir o traje do Zé-ninguém, sendo que neste caso a sua figura só é reivindicada a nível psicológico. Veja-se um excerto do quadro do Zé Povinho em trajes de mendigo na “Grande Revista à Portuguesa” que subiu à cena no Teatro Politeama entre Junho de 2013 e Abril de 2014: 14

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos Nova Lisboa: Mas não te enerves querido Zé, tu és sereno… Zé: Até ver! Velha Lisboa: Paciente… Zé: Até um dia! Nova Lisboa: Brando… Zé: Até querer! Velha Lisboa: Inofensivo… Zé: Eu até os comia! (Excerto da rábula “Zé Povinho”, acto I)

Temos ainda um Zé Povinho fatalista, resignado, apático, que leva pancada, mas que reclama para si uma espécie de dor amnésica, acabando por não cumprir as regras através da ronha e da trapaça. Mas, em consequência da aceitação desta «triste figura» enquanto símbolo totémico, é também visível uma certa rejeição generalizada por esta figura por parte das audiências. Isto, como representante de um modo de ser português iletrado e tacanho, deslocado fora do seu tempo e lugar que nunca ousa “transcender esse pesadelo monótono chamado História” (Medina, 2012: 77). Embora a figura do Zé Povinho seja perfeitamente aceite enquanto uma representação, não o é do mesmo modo quanto uma essencialização, daí que o olhar sobre a figura do Zé Povinho se possa de certo modo comparar ao olhar sobre a figura do “primitivo”, desse outro exótico que tão perto aparenta estar tão longe e que incita à sua desmitificação ou mera exibição cruelmente consentida. Pelo que não é verossímil aceitar o turista, como sugerido por Boorstin, enquanto um estúpido cultural atraído pelo inautêntico, por experiências artificiais e pseudo-eventos (Dann e Parrinello, 2009), mas antes dentro de uma categoria de pós-turista, portanto, um turista que em vez de estar interessado em encontrar a autenticidade e os bastidores, procura antes, tal como proposto por Graburn, desfrutar da experiência como ela é (Graburn, 1995). Mas é certo que a figura do Zé Povinho reúne uma série de contradições, pois vemo-lo, segundo Medina, como um “homem crédulo e incrédulo, submisso e revoltado, humilde e orgulhoso, abúlico e voluntarioso, indiferente e compassivo, egoísta e dadivoso, azedo e bonacheirão” (Medina, 2012: 71). Pauta-se por ser um retrato do Português com muitos defeitos, com o seu atraso económico-social, “a inércia duma vida produtiva feita de frustrações e revoluções industriais falhadas, uma certa menoridade cultural e cívica, um ser duplamente diminuído no seu irónico (ou carinhoso) rebaixamento onomástico” (Medina, 2012: 74). Isto tudo à boa imagem do povo português proposta por Teófilo Braga, à imagem do seu carácter marcado por um «excessivo orgulho», um «génio imitativo», fatalista, com queda para a aventura, um explorador «amoroso», triste, que embate na nostalgia, mas também, como evidenciado por Adolfo Coelho e Rocha Peixoto, alguém com um forte «espírito de hesitação», pessimista, com

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Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos uma «incapacidade progressiva para o trabalho», a placidez da preguiça e a «penúria mental». Todas estas características vêem-se envoltas no manto do saudosismo proposto por Pascoaes e patenteiam as contradições reivindicadas por Jorge Dias (Leal, 2000). Posto isto, salienta-se a ambiguidade inerente o próprio produto Revista porque, se por um lado, se produz uma visão unificada e essencializada do povo português, assente num passado de um grupo étnico, enquanto entidade estável que partilha os traços ancestrais de uma união de sangue, história ou território (Raposo, 2004); por outro, enfatizam-se as assimetrias internas no que diz respeito à classe, estatuto, género, entre outras. Mas estas outras categorias que, supostamente, poderiam ser contraditórias a essa visão unificada do povo português, na realidade reflectem a identidade nacional como um mosaico complexo, mas que na sua diversidade e complexidade se unifica.

Lisboa é linda! A imagética bairrista de uma cidade popular… Os personagens de Revista aparecem sempre enquadrados em cenários dos bairros de Lisboa, que tentam resgatar uma certa ideia de cidade popular, bairrista e pitoresca, mais uma vez um exotismo digno de turística atracção. O Teatro de Revista apropria-se de uma representação da cidade segundo o imaginário popular de modo a privilegiar a sua dimensão cultural e simbólica. Assim irei tentar explicitar como se dá a turistificação/mercantilização desta imagética da rua e do bairro nos cenários de Revista que procuram representar a cidade através do imaginário popular. Como refere Cordeiro, os bairros populares de Lisboa derivaram de um processo de construção cultural do popular urbano, processo este que data do séc. XX. Este processo estabeleceu uma associação e cruzamento entre imagens e significados de determinados bairros, certas actividades profissionais associadas a estes, determinadas performances festivas e lúdicas (como os bailes, os arraiais ou jogos) e sonoridades específicas (como o Fado ou a Marcha). A junção de todos estes elementos “contribuíram para a criação de uma visão do mundo peculiar, parte integrante de um certo imaginário urbano, revelador de uma cidade popular e histórica” (Cordeiro, 2003/04: 186). O recurso à história também aparece como um factor de legitimação da acção, bem como de coesão social, de tal modo que “a peculiaridade das tradições inventadas reside no facto de a sua ligação com esse passado ser amplamente artificial” (Hobsbawm, 1983: 54). Posto isto, o Teatro de Revista tem contribuído para a construção da ideia romântica de uma certa cidade «popular», «bairrista» e «pitoresca» ao reunir num mesmo palco uma 16

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos representação da cidade, uma memória associada a esta, um povo que nela habita e um conjunto de comportamentos culturais e temas que supostamente seriam específicos de Lisboa, considerando assim estes elementos como típicos. Nos quadros de Revista esta cidade popular apresenta-se como o elemento unificador de “um povo urbano, diverso e espartilhado” (Cordeiro, 2003/04: 191), completamente estereotipado em torno de uma determinada actividade de rua, como referia Rodrigues, são “as vendedeiras, floristas, varinas, carroceiros, marujos, magalas, sopeiras, polícias, telefonistas, ardinas, vendedores de lotaria, condutores da Carris, chulos, prostitutas, maricas”, mas também os personagens burgueses que quando aparecem “raramente se afirmavam como simpáticos” (Rodrigues, 2007: 35). Assim, através da Revista e da sua encenação das vivências numa Lisboa popular, é possível verificar “a construção de identidades culturais em vários planos, relacionais e simbólicos, através de uma selecção e actualização diferenciada de certos atributos, escolhidos de um modo criativo entre várias possibilidades (Cordeiro, 2003/04: 197), que dão origem às figuras “típicas” que tomam lugar nos quadros de rua e de bairro. Bruno Gomes analisava esta construção de Lisboa, enquanto uma cidade de Bairros, nos discursos turísticos. Referia-nos que o que não falta em Lisboa são uma panóplia de guias turísticos que nos conduzem pelos pontos mais atractivos da cidade, “ensinando-nos o que ver e como ver” (Gomes, 2011). Pode-se dizer que aquilo que a Revista faz é exactamente isso, ensina ao turista cultural o que se deve ver em Lisboa e como vê-lo. Através dos cenários da Revista, é possível por um lado, observar os pitorescos bairros históricos, como Alfama, Bairro Alto, Mouraria, as origens históricas da cidade, o desmaiado amarelo de um antigo elétrico a percorrer a Baixa ou Belém, os “íngremes labirintos de ruas estreitas, becos e travessas, as janelas decoradas com a roupa que seca ao sol, as vistas sobre a cidade e o rio” (Gomes, 2011), mas também as marcas de uma identidade portuguesa, tida hegemonicamente como Lisboeta, onde se enfatizam o Fado, as identificações pitorescas e os modos de vida tracionais associados aos bairros, enquanto se excluem outros elementos considerados sem interesse. Geralmente o bairro tende-se a confundir com a rua. Mas se rua aparece nos guias turísticos, “despida de vivências, despida da carga das relações sociais, das solidariedades e dos conflitos vicinais” (Gomes, 2011), na Revista estes são enfatizados. Se a rua dos guias turísticos é um mero canal onde o turista se move (Gomes, 2011), na Revista esta é cristalizada servindo de palco a convívios e sociabilidades formais e informais, a conflitos sociais, exclusões e marginalidades, diferenciações de género, de classe, de etnia, etc. Ainda vigoram nestes cenários 17

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos algumas actividades ligadas à casa que transitam para o domínio da rua. Esta não é apenas um lugar de passagem em contraste com a praça que é um lugar de encontro na vivência dos bairros, mas aparece na Revista como um caminho para um lugar onde ela é o próprio lugar. Assim, a rua não é apenas um “trajecto”, mas é também um “pedaço” (Menezes, 2004: 132), daí a recorrência às personagens que vivem e dormem na rua. Essa imagética da rua cristaliza e dá visibilidade aos personagens considerados “não típicos” e marginalizados da cidade, como os mendigos, as crianças de rua, as prostitutas, os xulos ou os ciganos, permitindo assim redefinir a impressão turística cliché acerca da cidade de Lisboa. Penso que se poderá dizer que a Revista transporta o espectador para uma espécie de realidade meio deturpada de um turismo da miséria encenado dirigido ao intelecto, no sentido em que se incute nestes personagens uma espécie de cultura da pobreza à boa moda de Oscar Lewis (1959). Ou seja, cria-se um estereótipo pitoresco da “personagem pobre”, aqui tipificada, que assenta numa ideia hereditária de cultura da pobreza que não se refere apenas a condições económicas, mas envolve também comportamento e personalidade. Constrói-se um cenário de rua polido e visualmente mais agradável do que a realidade, sendo tudo isto posteriormente mercantilizado e consumido pelo turista cultural como algo «exótico», «autêntico» e «representativo», podendo ser visto por alguns como uma forma de «voyeurismo».

Tudo isto existe, tudo isto é triste… A música viria a ter um papel importante durante a I República, pois numa época marcada pelos ideais de "justiça social", "liberdade" e "revolução", a canção sofreu uma politização procurando representar os ideais do povo ao apresentar metáforas políticas e críticas sociais, como foi o caso da ópera que nesta altura se tornou, segundo Rosen, naturalmente política (Rosen, 2000). Tanto que durante a I República a música viria a ter um “papel importante nas primeiras preocupações de promoção turística”, como se pode ver “pela argumentação apresentada em 1908 para justificar a proposta da Sociedade Propaganda de Portugal (...) de construcção de um grande teatro de Ópera nacional” (Silva, 2010). Mas indo já de seguida ao Estado Novo, apesar deste desabrochar da Revista, e do Fado a esta associado, em grande força, durante o séc. XIX, a sua época áurea surgiria com o Parque Mayer, em 1922, paralelamente ao desenvolvimento da indústria turística e à institucionalização do Turismo em Portugal, tendo sido o seu exponente máximo durante o Estado Novo. O trio «nação/propaganda/ promoção turística» tornou-se bastante evidente durante o Estado Novo, “pela acção energética de António Ferro, o grande mestre da propaganda do

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Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos regime, dinamizador das artes tradicionais enquanto catalisadoras de nacionalismo e, por consequência, do turismo” (Silva, 2010: 1289) que salientava em 1949 que “a arte pode ser uma grande arma de turismo, se for compreendida dentro do país e puder sair de Portugal” (Ibidem), daí que nesta época o Fado se tenha apresentado como um elemento essencial na expressão de uma ideia de nação. Saliente-se, no entanto, que no tempo da I República já tinha havido uma tentativa de criação de uma canção popular (Silva, 2010). E é certo que a cultura popular detém um lugar central nas construcções identitárias da nação, pois na medida em que é reivindicada enquanto herança do povo, serve de alicerce à cultura nacional (Gasparotto, 2014). Segundo Nery a origem do Fado remontaria ao início da segunda metade do séc. XIX ligado à imagem mítica da Severa, uma prostituta e cantadeira. Este restringia-se às tabernas e bordéis localizados nos bairros populares da periferia de Lisboa, sendo que, como salienta Gaspartotto, o Fado pode ser considerado canção popular, quer devido ao facto de ser uma manifestação espontânea, quer à sua origem mítica, associada à figura da Severa (Gasparotto, 2014). Mas, com a entrada em vigor do Estado Novo, o Fado viria ser resgatado dos circuitos boémios e progressivamente institucionalizado, de tal modo que “um certo tipo de «fado afinado», controlado e depurado pelo regime – e a imagética a ela associada – as fadistas, os xailes negros, as guitarras portuguesas – tornam-se progressivamente representativos da tipicidade e do exotismo mediterrânico português” (Silva, 2010: 1290), tendo sido transformados recentemente em patrimônio cultural imaterial e em atrativo turístico. O Fado constitui-se, então, como um símbolo identitário, em muito devido ao destaque que lhe foi sendo oferecido pela indústria cultural, nomeadamente durante o Estado Novo. Mas apesar do Fado ter sido ostentado como emblema nacional durante o Estado Novo, já no séc. XIX brotava em grande glória. Assim, por volta de 1870, o Teatro de Revista descobre as potencialidades do Fado, passando a integrá-lo nos seus quadros musicais. Mas é certo que nesta altura o Fado que brotava dos quadros de Revista era o Fado dos circuitos boémios e não a ideia de Fado institucionalizado e lustrosamente polido como o vemos actualmente. Nos palcos este género musical tradicional sofre algumas transformações nas temáticas e melodias, alvorecendo assim o chamado Fado-canção (Pereira, 2008). Mas é durante o processo de profissionalização imposto pelo ideal nacionalista que o Fado sofre “uma das mais drásticas reconfigurações da sua história” (Ferreira, 2010: 24). O Fado geralmente brota de dois tipos de cenários diferentes, também ele ostentando características distintas. Num primeiro cenário, geralmente associado a quadros cómicos, temos o Fado boémio, geralmente o castiço, sempre associado ao cenário do bairro popular. Quando este se encontra separado de um cenário mantém-se a imagética bairrista no que diz respeito à sua 19

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos ligação com as profissões «típicas» e com o traje «típico», que neste caso se pauta por um abandono da cor preta, mantendo-se apenas a tradição do xaile. É costume neste tipo de cenários uma recorrência à personagem da Severa. Regra geral neste caso os temas dos Fados são índole política, apelando à esperança de um povo oprimido e crença na liberdade, revestidos de uma ironia que realça o azedume. Um outro cenário que também surge no Teatro de Revista é o do Fado institucionalizado durante o Estado Novo, aqui recorre-se muitas vezes a uma reprodução do ambiente das casas de Fado ou a um cenário que evidencie a figura da Guitarra portuguesa, estando quase sempre desencrostado dos cenários dos bairros «típicos» de Lisboa. Afigura-se aqui já não tanto o Fado Castiço, mas o Fado-canção com uma predileção pelo traje negro que ostenta visivelmente o xaile, também este negro como a escuridão da noite, a temporalidade mais recorrente neste tipo de cenário. Aqui os temas dos Fados pautam-se por ser o amor, a saudade, a desgraça, o fatalismo, a tristeza ou a angústia, sendo também muito recorrentes letras alusivas à cidade de Lisboa. Este tipo de cenário apresenta-se quase sempre em apoteose. No caso da Revista, o Fado alimenta-se de uma retórica ligada às noções de «destino» e «saudade». Segundo Gasparotto “a ideia de destino ocupa papel de suma importância no entendimento que os portugueses possuem de si e que o fado, e os fadistas, parecem traduzir” (Gasparotto, 2014: 90). Esta noção de destino associada ao Fado, prende-se com uma ideia de entrelaçamento entre um passado e o futuro, “abordando de forma subliminar o entendimento que um povo possui de si e daquilo que pretende ser” (Gasparotto, 2014). Já, de acordo com Martins de Sousa, foi a retórica ligada ao sentimento de “saudade” que “alimentou a persistência do mito” (Martins de Sousa, 2012: 27), esta ligava-se a uma lenda de que o Fado haveria emergido com os sentimentos de solidão, ausência e saudade que os marinheiros experienciavam, alusivas à tragédia e perda da ida para o mar (Martins de Sousa, 2012). A ideia que ressalta aqui é a de que o Fado pode de algum modo manifestar a alma portuguesa, portanto “o fado parece atingir um conjunto de características que o torna passível de se tornar uma cultura comum”, tornado possível que se afigura enquanto identidade nacional (Gasparotto, 2014: 92). Mas se por um lado, o Fado é considerado a canção nacional, por outro e com a sua patrimonialização, já se começa a contestar na Revista o Fado enquanto representação da portugalidade no seu todo. Critica-se que o Fado não representa os viras minhotos ou as arruadas alentejanas, bem como se começam a integrar outras sonoridades igualmente «tradicionais» na apoteose, como se pôde verificar na «Grande Revista à Portuguesa» (2013/14):

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Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos “Décimo terceiro mês, ó bisca ó tira, ó bisca ó tira! Subsídio de natal, ó bisca ó vai, ó bisca ó vai! É que nunca mais o vês, ó bisca ó tira, ó bisca ó tira! E o estado social ó bisca ó cai, ó bisca ó cai! Vamos lá cantar que não há pior... A malta toda a roubar, é só folclore, é só folclore!” (Quadro “Maria Portuguesa”, acto I)

De qualquer modo não creio que essa ideologia de que a heterogeneidade do país não deve ser cristalizada em apenas uma sonoridade, esteja suficiente generalizada, diga-se também entendida como lucrativa, para afastar o Fado da Revista enquanto género musical hegemónico representativo de uma portugalidade. Resta saber qual o impacto que a patrimonialização do Cante Alentejano poderá vir a ter sobre a Revista se este se tornar bastante atractivo turisticamente, até porque o Teatro de Revista é um tipo de encenação que está sempre em constante mutação e a resgatar novos elementos culturais ou a reinventá-los.

FALAR VERDADE A MENTIR… O teatro de Revista enquanto uma produto para consumo do turista cultural acarreta também, para além do desenvolvimento económico, a revitalização das identidades culturais e a reinvenção das tradições. E a este nível é possível encontrar na Revista “algumas constantes que dizem respeito ao modo como a memória cultural é construída” (Raposo, 2004), ou seja, o recurso a características particulares que são valorizadas e encrustadas a um processo de tipificação e foclorização para que depois se possa apreciar nestas uma ideia de «autenticidade» e «pureza». Assim, como refere Graburn “authenticity, like tradition itself is not a cross-cultural absolute, out there to be found, but it is culturally constructed by whoever benefits from making such judgments” (Graburn, 1995: 169). A Revista apresenta-se como um palco onde se exibe essa «autenticidade» e «pureza», um lugar do «autêntico» e da «tradição» que é elevado à condição de lugar turístico e fonte de rendimento. Logo a trilogia povo/bairro popular/Fado pode ser vista como uma encenação, na linha de pensamento de MacCannel no sentido da autenticidade encenada. Graburn, citando shakespeare, referia que “o mundo é um palco” e acrescentava que “o palco é uma metáfora comum para se pensar o turismo” (Graburn, 2008: 20). Esta é uma ideia celebremente reivindicada por MacCannel, bebendo da conceptualização de Goffman e da sua teoria mirabolante de que a sociedade moderna se estabelece através de representações culturais da realidade, pelo que já não é suficiente o homem ser entendido como tal, mas este também teria de

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Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos representar essa realidade (MacCannel, 1989). A partir daqui MacCannel irá estabelecer uma diferença entre duas zonas distintas nos locais turísticos: o palco e os bastidores. O palco seria a zona que é exibida para o público, aquela zona artificial a que o turista tem acesso, o pseudo-evento; enquanto os bastidores são fechados ao público e permitem precisamente a ocultação dos processos que poderiam desacreditar estes produtos autênticos que neste caso são gerados pela Revista e pelo próprio turismo, pois sustentar "a firm sense of social reality requires some mystification" (MacCannel, 1989: 93). Acrescenta ainda que esta divisão entre palco e bastidores apoiaria as noções de intimidade e proximidade tidas como importantes para a nossa sociedade e sendo vistas como um núcleo de solidariedade social (MacCannel, 1989). De acordo com MacCannel, os turistas geralmente optam por visitas guiadas por estas permitirem o acesso a zonas fechadas a estranhos. Mas na realidade enquanto isto sucede, há toda uma encenação no processo, pairando sobre ele uma aura de superficialidade, “albeit a superficiality not always perceived as such by the tourist, who is usually forgiving about these matters” (MacCannel, 1989). Portanto, aquilo que está a ser mostrado aos turistas “is not the institutional back stage, as Goffman defined this term. Rather, it is a staged back region, a kind of living museum for which we have no analytical terms” (MacCannel, 1989: 99). O autor acrescentaria que os turistas procuram experiências autênticas em outros tempos e lugares, numa busca pré-moderna pelo sagrado. O único problema desta procura pela autenticidade levantado por MacCannell é que a indústria turística frustou essa busca ao encenar as realidades enquanto atracções turísticas (Dann e Parrinello, 2009). O autor não diz, no entanto, que essa autenticidade não existe, mas sim como referia Graburn "some, like MacCannell , infer that there is or was no original something but that tourists are doomed to fail” (Graburn, 1995). Mas é certo que estas ideias da autenticidade encenada, da invenção das tradições de que o turismo se vale classificam as tradições e a noção de autenticidade numa dicotomia verdadeiro/falso, pressupondo muitas vezes que apenas as comunidades baseadas em tradições antigas são genuínas e autênticas, tanto que no caso da Revista se reivindica uma historicidade e tradicionalidade aos elementos culturais que esta apropria. Segundo Peralta, esta abordagem faz a distinção entre “tradição”, inventada e manipulada pelo estado com vista a um fim, e “costume”, próprio das sociedades tradicionais. Segundo isto, as tradições nacionais apresentadas como ancestrais são um produto recente e por isso não são genuínas, ao contrário dos costumes característicos das sociedades “tradicionais” (Peralta, 2007). A memória histórica e social que é evocada na trilogia povo/cidade popular/Fado passa, então, de um costume próprio da sociedade «tradicional» a uma «ideologia», a fazer parte de um «imaginário». 22

Antropologia e Turismo Mestrado em Antropologia - Cultura Material e Consumos Mas na Revista há de certo modo, ao mesmo tempo, uma tentativa de desmistificar também esta «memória popular», uma vez que como demonstra Peralta, parafraseando Foucault, não é possível a emergência de uma verdade absoluta, há sempre espaço para a resistência e negociação de significados (Peralta, 2007), assim o Teatro de Revista apresenta também uma «contra-memória». Esta permite incluir nessa memória popular que é consumida pelos espectadores, a voz dos que foram silenciados e/ou marginalizados pelos discursos dominantes. Isto significa que o pacote de elementos culturais que são apresentados na Revista, ou a revista como pacote turístico, não podem ser um produto exclusivo de uma manipulação politicoideológica, pois este não corresponde apenas à forma como o colectivo português é representado e vendido, mas também à forma como esse se auto-representa, independentemente de uma instrumentalização que possa existir da memória popular e cultura. Destacava Pereiro o facto de todas as culturas serem “inventadas, recriadas, fabricadas e reconstruídas através de transformações sociais permanentes” (Pereiro, 2009: 117). Por esse motivo todas as culturas são, de certo modo, inautênticas, apesar do turismo as pensar e levar a que sejam consumidas enquanto autênticas. Mas então se todas as culturas são encenadas se calhar não faz muito sentido falar-se em autenticidade, ou então faz. Afinal que é o autêntico e o falsificado? Pode o falsificado também ser autêntico? Se como sugere Yágizi, “o falso se funda em manipulações deliberadas para enganar outrem”, então quando um produto cultural não “dissimula a sua produção”, não pode ser visto enquanto falso (Yágizi, 2009). Assim, os cenários de uma Lisboa popular e bairrista, a imagem estereotipada de um «povo» ou uma determinada canção – o Fado – que se evidenciam nos palcos do Teatro de Revista não foram produzidos com a intenção de enganar os espectadores, como refere Yáizi “se tratando de turismo, o falso e o pseudo dependem unicamente da forma como são apresentados e só disso” (Yágizi, 2009). Posto isto, parece-me que esta questão da autenticidade se pauta por ser uma bela pescadinha de rabo na boca, pois a autenticidade encenada é ela mesma autêntica, ela é legítima ou não de acordo com a sua função e modo como é apresentada. Como salienta Yágizi, ninguém minimamente informado pensará que as reproduções de pinturas ou esculturas que se vendem em butiques por todo o mundo são verdadeiras, mas a verdade é que também não são falsas (Yágizi, 2009), elas são tão autênticas quanto as «originais» porque o “o falso é fraudulento e não uma cópia oferecida como tal” (Yágizi, 2009). Isto faz com que a representação da cultura portuguesa que a Revista reclama seja autêntica na medida em que é apresentada enquanto representação, assim o turista cultural não está a cair na armadilha de um mero pseudoevento ou de uma realidade artificial, mas numa realidade representativa e consciente.

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