NOS CAMINHOS DO TERREIRO DE MINA DEUS ESTEJA CONTIGO: Experiência Religiosa em um Terreiro Amazônico (Ananindeua-PA)

Share Embed


Descrição do Produto

NOS CAMINHOS DO TERREIRO DE MINA DEUS ESTEJA CONTIGO: Experiência Religiosa em um Terreiro Amazônico (Ananindeua-PA)1 Autor – Hermes de Sousa Veras (PPGA-UFPA) Coautor – Agenor Sarraf Pacheco (PPGA-UFPA) Resumo: Neste ensaio apresento uma etnografia inicial da casa religiosa de matriz africana “Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo”, localizada na cidade de Ananindeua, município pertencente à região metropolitana de Belém. Fundado em 1988 e associado à Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Pará (FEUCABEP), o Terreiro de Mina é zelado pelo sacerdote Álvaro Pizarro, paulista residente no município há 30 anos. Apresento dados sobre o bairro onde o terreiro se instala, suas atividades públicas religiosa e a história de vida do líder religioso, nesse momento, sempre relacionada com a fundação e manutenção do terreiro. De acordo com a literatura antropológica específica ao tema, a história das casas de matriz africana no Pará se confundem com a de seus fundadores, pois não é comum que exista a continuidade da casa após a morte de seu líder. Orientado nessa perspectiva buscamos compreender como as trajetórias do terreiro e seu fundador se conectam e de que modo a experiência anterior do líder nas religiões de matriz africana na região Sudeste se complementou e transformou com o contato com o Tambor de Mina paraense e seus mais variados experimentos afroindígenas. Portanto, o texto se estruturará da seguinte forma: o bairro, o terreiro, o sacerdote. Palavras-Chave: Religiões de Matriz Africana na Amazônia, Mina-Nagô, Antropologia da Religião. Introdução Essa comunicação faz parte da dissertação de mestrado que estou desenvolvendo em Antropologia pela Universidade Federal do Pará, orientado pelo professor Dr. Agenor Sarraf Pacheco, coautor desse texto. Os dados apresentados aqui foram construídos a partir de pesquisa de campo no Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo. Inicialmente, durante quase todo o ano de 2013, frequentei os ritos públicos, conversei com o sacerdote sobre minha intenção de fazer a

1

Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

1

pesquisa, fiz o “jogo dos búzios”2 com ele, enfim, tentei fazer o que Dona Mazé e Thay3 faziam normalmente. Desde quando vim de Fortaleza-CE para Belém-PA com o objetivo de cursar o Mestrado em Antropologia, fiquei hospedado na casa dessas duas mulheres, mãe e filha respectivamente. A partir delas conheci o terreiro e pude compreender de que forma ele fazia parte do dia-a-dia dessas duas católicas que frequentavam e frequentam, de forma não tão assídua, o Mina Deus Esteja Contigo. A partir das duas, estreitei os laços com Álvaro Pizarro e intensifiquei a pesquisa de campo no atual ano de 2014. Indo a todos os rituais públicos que foram possíveis de frequentar, visitando o terreiro nas vésperas da festa de seu aniversário, podendo observar e participar dos seus preparativos e visitando o “zelador de orixá” para termos conversas etnográficas gravadas. Até o momento foram três dessas conversas: uma em fevereiro e três em maio. Aqui trabalharei quase totalmente apenas a conversa de fevereiro. Esses encontros são obtidos com muita dificuldade, pois o tempo do sacerdote é imprensado por constantes visitas de clientes aflitos, amigos e pessoas que necessitam do espaço do terreiro para fazerem suas obrigações, seja para “Caboclos”, “Encantados” e “Orixás”, seja para o “Anjo da Guarda”. Acrescidos a esses ocorridos, temos o fato de Seu Álvaro, por conta da idade, necessitar ir ao médico quase toda semana, além de um impedimento sobrenatural. Em nossa última conversa etnográfica Seu Álvaro revelou não ter consultado ainda “Maria Padilha”, sua principal “Entidade”, a respeito da pesquisa realizada no terreiro. Isso seria uma explicação para as dificuldades encontradas na hora das entrevistas e nos desencontros constantes, pois para tudo que faz consulta sua “Entidade” antes. O Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo foi listado pela pesquisa Alimento: Direito Sagrado4, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). O empreendimento pesquisou 1089 terreiros na região metropolitana de Belém5. Também foi pesquisado pelo projeto Cartografia social dos afrorreligiosos em Belém do Pará (2012).

2

Todos as palavras entre aspas são categorias nativas, com exceção das citações diretas. Todos os nomes que aparecem nessa comunicação são fictícios, com exceção de Álvaro Pizarro. 4 A Pesquisa Socioeconômica e Cultural de Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiros – Alimento: Direito Sagrado está disponível em 5 Região metropolitana ou Grande Belém, são os municípios de Ananindeua, Marituba, Benevides, Santa Bárbara e a própria Belém. 3

2

Portanto, apresento aqui um breve comentário a respeito dos experimentos religiosos de matriz africana no Pará e dados etnográficos a respeito do bairro, do terreiro e seu sacerdote. Breve comentário a respeito das religiões de matriz africana no Pará Edison Carneiro (1977 [1948]) divide o Brasil em áreas de cultos, distribuindo os tipos de religião de matriz africana para cada área. Denominou a Amazônia como “área C”. Sua principal característica seria a prevalência da pajelança e de outras religiões indígenas existentes quando os negros por aqui foram transplantados. Portanto, as religiões de matriz africana no Pará seriam uma adaptação dos cultos realizados no Maranhão, pois os escravos vinham desse estado e seu modelo era obrigado a “curvarse” diante das religiões de matriz ameríndias (1977:30-31). A percepção de Carneiro foi duramente questionada por intelectuais que já vinham se debruçando para escavar e desmistificar a tese de uma Amazônia essencialmente indígena. Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino (1967) iniciaram uma linhagem de estudos de Antropologia das manifestações religiosas africanas no Pará. Chamaram a religião de batuque e mostraram a influência do Tambor de Mina do Maranhão na constituição desses experimentos religiosos. Anaíza Vergolino (2003) posteriormente apontou as particularidades da Mina no Pará, chamada de mina paraense, ou Mina Nagô. Foram seguidos por Taíssa Tavernard de Luca (2010, 2013), João Simão Cardoso (2011) e João Colares da Mota Neto (2008). Estrangeiros também passaram por aqui para reabilitar o batuque como religião de também matriz africana. Seth Leacock (1964) escreveu sobre a mediunidade e as bebidas cerimoniais, além de ter elaborado uma monografia a respeito do batuque em conjunto com sua esposa Ruth Leacock (1972). Yoshiaki Furuya estudou a Mina Nagô, religião que ele chamou de sincrética, uma encruzilhada entre O Tambor de Mina maranhense, o Candomblé, a Umbanda e a “Amazonização” - ou seja, as singularidades locais (Furuya 1986, 1994; Luca 2010:51). O Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo se conforta bem nessa definição. Além de ser citada nos cânticos, o próprio sacerdote do terreiro é exemplo das interfecundações que aconteceram entre essas diversas experimentações religiosas. Ora se identificando como Umbanda, Mina, Mina Nagô, ora simplesmente como “macumba”, “centro”, “terreiro”, possuindo uma mancha semântica de classificação bastante vasta.

3

O bairro Floresta Park – grafado a partir daqui de Floresta – é um bairro de “ocupação”, localizado no município de Ananindeua, às margens da rodovia BR 316. Para quem vem de Belém sua aproximação pode ser feita à altura do quilômetro 8 da rodovia. Sua contemplação concreta também é possível, se o visitante desejar, pelo atravessamento do bairro Icuí-Guajará. Embora o nome do bairro seja Floresta Park os moradores às vezes chamam de Floresta6 apenas a parte mais distante e antiga do bairro. É comum também o termo “baixada”. Entretanto isso não impede que os moradores lancem mão do termo Floresta, ou Floresta Park para definir o bairro por completo. É nessa região mais afastada da rodovia que se iniciou a ocupação. Seu Álvaro desenhou a imagem do bairro assim, em uma conversa: E de qualquer jeito ele [se referindo a um senhor que trabalhava no “Floresta”, no final da década de 80 ou no início dos anos 90] estava todo dia no meio desse loteamento pra arrancar os tronco das árvores. Ainda não estavam feitas as ruas, era um loteamento bastante virgem, não haviam derrubado as grande árvores.7

Entretanto, estou hospedado no Loteamento Carlos Lamarca, na residência de Dona Mazé e Thay. Moradoras do bairro há pelo menos 12 anos, contam como a região se transformou nesses últimos tempos. Pertencente a um proprietário que não fazia uso do terreno, aos poucos as pessoas foram se apossando do território, construindo suas moradias, estabelecendo seus pontos comercias, levantando igrejas evangélicas, erguendo a humilde Paróquia São Pedro, o centro comunitário, entre outras construções. Ou seja, no mesmo bairro temos o “Floresta”, onde está localizado o terreiro, parte mais antiga de ocupação e o Loteamento Carlos Lamarca, “ocupação” mais recente. As vias principais do bairro são Rua dos Ipês e Rua Pau D’Arco, perpendiculares à rodovia, atravessam todo o Floresta. Como secundárias, e paralelas a BR 316, podemos encontrar diversas travessas como a Cedro e Piquiá. Ainda como rua menor, existe a Rua São Pedro (onde estou residindo), paralela à dos Ipês, que acaba ao ser interrompida por uma casa, para do outro lado da residência continuar com o nome de Rua das Castanheiras. 6

Quando essa palavra estiver entre aspas está se referindo à parte mais antiga do bairro, como uma classificação nativa e não como abreviatura do bairro inteiro. 7 Conversa gravada com Álvaro Pizarro, em 15 de fevereiro de 2014, realizada no seu antigo terreiro, local onde ainda faz atendimento para o jogo de búzios.

4

O fluxo mais comum é de pedestres: pessoas (muitas crianças), cachorros e gatos. Há bastante tráfego de motocicletas, bicicletas e automóveis. Constantemente as artérias são esmagadas pelo peso de caminhões e carretas, pois há muitos depósitos comerciais e industriais em toda região. O peso desses veículos é apontado como responsável pelos constantes buracos a romperem o asfalto. Não sei informar qual é a área do bairro, mas é relativamente pequena. Apesar de seu tamanho, a população em meio a muitas privações conseguiu conquistar alguns direitos. Não existe ainda regulamentação dos imóveis construídos, embora haja alguns serviços da Prefeitura de Ananindeua, como: a escola municipal 8, o asfaltamento de alguns trechos do bairro, um posto de saúde – este não fica no Floresta, entretanto, um servidor visita-o toda semana para marcar consultas aos moradores enfermos, já estive, inclusive, nessa lista de consulta e utilização desse atendimento médico. Também há os principais serviços privatizados: a energia elétrica, fornecida pela Celpa – Centrais Elétricas do Pará S.A e a linha de ônibus Ananindeua-Ver-o-Peso (Floresta Park), vulgo “florestinha”. Os moradores enfatizam que tudo foi conseguido através de muitas dificuldades. O asfaltamento das vias principais só foi possível depois que fecharam a BR 316 em forma de protesto. Esses moradores já haviam fechado antes a mesma rodovia para garantir o terreno ocupado, por conta das constantes ameaças de despejo. Dona Mazé ajudou na manifestação, contribuindo com a feijoada que seria consumida depois do protesto. O comércio na região é esgarçado. Como complemento – ou única fonte – de renda familiar, muitos moradores possuem suas “vendinhas”, espécie de estabelecimento comercial, alguns se confundem com a própria residência ou ficam em um compartimento da mesma. Nesses lugares pode-se encontrar vasta lista de produtos aleatórios, mas no geral são alimentos industrializados, enlatados e gelados. É muito comum uma casa que venda apenas farinha, uns dos principais alimentos consumidos. Outro produto largamente produzido pelos populares, e que encontramos em diversas casas vendendo em uma mesma rua, é o “chopp”, nome dado para o picolé artesanal embalado em sacolinha de plástico. Espalhados pelos bairros também existem pequenas lanchonetes, pizzarias, peixaria, padarias, cabelereiros, barbeiros, dentre outros. Os bares são

8

Há pouco fiquei sabendo que a maioria dos estudantes matriculados nessa escola não são do bairro. Essa escola é considerada modelo por causa da qualidade e incentivo à educação ambiental.

5

inúmeros, a maioria pequenos. No Floresta tem um maior, possuindo até mesmo seu sistema de “aparelhagem”. O único local de comércio centralizado é a feira, localizada em uma travessa que corta a Rua dos Ipês, muito próximo à BR. Nela se encontra estabelecimentos que vendem frutas, verduras e legumes, frigoríficos, um cabeleireiro, uma bem equipada casa de açaí, um restaurante, um depósito de bebidas e uma “vendinha” onde se encontra produtos eletrônicos de pequeno porte, prendedores de cabelo, brinquedos e outras coisas dessa estipe. Um aspecto interessante da feira e da maioria das outras construções comerciais do bairro é que todos eles fecham as portas, em um intervalo que varia bastante, mas vai mais ou menos da hora do almoço até umas 16 horas, aspecto capaz de revelar as intersecções entre um modo de vida urbano e rural, constituindo-se, por suas práticas culturais, em uma “cidade-floresta” (Pacheco 2006) na região metropolitana de Belém. De construções religiosas, além do terreiro, há dois pequenos barracões de matriz africana – um que não sabemos o nome9 e outro chamado de Aldeia do Caboclo Pena Azul. Há também umas 2 ou 3 Igrejas do Evangelho Quadrangular e outra da Assembleia de Deus. Além de igrejas evangélicas não pertencentes a grandes denominações, essas passam da casa da dezena. Estabelecimento católico tem a Paróquia São Pedro e a igrejinha do Centro Comunitário. Há também um pequeno centro espírita. Provavelmente a maioria dos moradores se considere católicas ou evangélicas. No Círio de Nazaré, grande procissão religiosa do Pará que ocorre em outubro, umas das maiores do mundo, o bairro também se mobiliza, se enfeitando e fazendo suas homenagens. No círio de 2013 foi a única ocasião em que experimentei a caminhada de madrugada pelo bairro, pois quase todo mundo vai a pé para a missa que ocorre por ocasião do Círio na Paróquia de Nossa Senhora das Graças, vizinha à prefeitura de Ananindeua. Fui acompanhando Dona Mazé e Thay. No percurso, em meio à multidão, encontramos a mãe pequena do terreiro. Atualmente alguns moradores aguardam a Copa do Mundo. Pelas ruas já é possível encontrar bandeirinhas juninas verde e amarelas, aproveitando assim para a mesma decoração dois eventos: um futebolístico e as festas de junho.

9

Segundo Dona Mazé e Thay, talvez as atividades desse terreiro já tenha se encerrado pois nunca mais souberam de nenhuma atividade relacionada ao terreiro. Elas dizem que ele existia desde quando chegaram ao bairro. Outro fato interessante é que o pai de santo já foi líder comunitário do bairro.

6

O terreiro Atualmente Seu Álvaro está construindo um novo terreiro, pois vendeu seu terreno onde ficava o antigo. Mesmo com essas mudanças, ainda mora ali, atendendo uma clientela para consultar o jogo de búzios. Porém já faz um tempo que levou as estátuas das “Entidades” para o novo terreiro e os rituais públicos já ocorrem lá. O trânsito entre esses dois locais é muito frequente, pois eles ficam, exatamente, um de frente para o outro. Quando ocorre o “tambor”10 os filhos de santo se vestem para “baiar” ainda na casa antiga. Quase sempre encontramos alguma novidade relacionada à construção do novo barracão. Essa mudança já era bastante comentada quando comecei as visitas etnográficas, já como aluno do Mestrado em Antropologia. As visitas começaram em fevereiro de 2013 e a primeira vez em que vi acontecer algum rito público no novo barracão foi em 22 de agosto. No meio de um ritual de corte11, “Maria Padilha” incorporada em Seu Álvaro, levou todo mundo para o novo terreiro, incensando o espaço recente. Havia um clima de euforia e novidade. A partir daí é onde todas as outras atividades públicas da casa foram feitas. Seu Álvaro enfatizou diversas vezes que muitos políticos já andaram por lá, prometendo o asfaltamento da via – inclusive prefeitos de Ananindeua. Porém, até hoje isso não aconteceu. Ele fala com desprezo sobre o fato, sem esperanças. Essas características vão desenhando uma condição de subalternidade em que o terreiro12 foi submetido, apesar de existir constantemente relacionamento com políticos e “gente da alta”. Seu Álvaro sempre conheceu, em Belém, pessoas importantes. Entretanto, nem sempre isso o livra das perseguições. Uma prática que o deixava bastante receoso era a de cura. Por isso ele não se considera um curador, e sim um rezador, pois assim ressalta que não é ele quem cura (e sim a “Entidade”), também afasta as acusações de

O tambor é a festa pública onde ocorre a gira. É mais uma forma de “dar passagens” às “Entidades”, segundo me disse recentemente Thay. É comumente também chamado de “ritual”. 11 Escutamos, algumas vezes, frequentadores como chamar essa celebração de “corte” ou “ritual de corte”. É quando ocorrem oferendas de frangos, galos e galinhas, geralmente para o “pessoal da rua” do terreiro, que são os Exus, a “Maria Padilha”, a Pomba-Gira 12 Carneiro (1977) mostra que essas religiões são um fenômeno urbano, explicando que perto das fazendas do senhor de engenho não era possível organizar esse tipo de culto. Já na cidade, conquistando algum dinheiro, o negro teria conseguido se organizar, apontando que a maioria das casas de culto se localizam nas capitais ou cidades circunvizinhas, porém em locais afastados. Há diversas razões para isso ter acontecido, como é sabido, houve e ainda há – mesmo que de forma velada – perseguição às religiões de matriz africana no Brasil. As condições muitas vezes, de pobreza em que se encontra os sacerdotes e o povo de santo em geral e a perseguição que poderia sofrer diante suas práticas de cura, por exemplo. Pacheco (2013:481) recupera narrativa de um pai de santo que explica de que forma funcionava as práticas religiosas “antigamente”, no tempo de sua avó, que por causa da perseguição policial, tudo era feito no “mato”. 10

7

charlatanismo. Ao comentar como ficou conhecido em Belém, por ter rezado na perna de um senhor que se cortou acidentalmente com um machado (ele trabalhava no “Floresta”, derrubando as grandes árvores da rua em via de construção) conta: Aí começou aquela coisa, eu sou pajé, eu sou curador, eu sou rezador, ou o que é que eu sou? E cada coisa tinha assim um significado, e às vezes, como diz assim não pode existir um curador, porque fazer cura é só, na nossa legislação, né, no Brasil, só quem pode curar é o médico, outras pessoas não pode curar. Então se fugia dessa situação, corria fora dessa situação, que era justamente pra não ser preso, qualquer coisa, porque pegava feio nessa época, não era tão livre como é hoje, né. E esse senhor curou-se [Enfatizando] a perna dele e ele saiu propagando por aí [Rindo] e dessa propagação que ele fez, então me fez muito conhecido, porque vinha muita gente, era como se fosse assim, um santo fazendo milagre.13

O “zelador de orixá”, ao citar a legislação do Brasil e dizer como as práticas de cura eram perseguidas “naquela época”, aponta motivos dessas casas religiosas se localizarem, até hoje, preferencialmente em regiões periféricas. Afinal o que seria mais periférico do que um terreiro localizado na periferia de Ananindeua que, por si, só já é uma periferia de Belém? O terreiro de Mina Deus Esteja Contigo é associado à Federação Espírita Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Pará (FEUCABEP) e tem como endereço a Rua Pau D’Arco, tanto o antigo quando o novo. Foi fundado em 1988 por Seu Álvaro e está localizado na região mais antiga do bairro, o Floresta. A Pau D’Arco possui asfaltamento apenas nas partes que margeiam a BR 316. Em dias de chuva há muitas poças de água, que se misturam com esgotos e lama. Atualmente, de atos religiosos públicos, existem o “tambor” ou “ritual”, no qual acontece a gira e as filhas e filhos de santo “baiam”14, “dão passagem” para as “Entidades” e as celebram, e a mesa branca. O tambor pode ser ordinário, que geralmente acontece dois por mês, nos sábados, ou de festa, para celebrar o dia de alguma “Entidade” mais importante para o terreiro. Nesses, o barracão fica enfeitado com bandeirinhas e fitas e se serve comida: sopas, feijoada com camarão, vatapá, mingau e etc. O tambor dura em torno de duas horas e durante todo o ato há batuque dos atabaques. Dependendo do dia e da disponibilidade de pessoas para tocar, há também

13

Conversa gravada com Álvaro Pizarro, em 15 de fevereiro de 2014, realizada no seu antigo terreiro, local onde ainda atende para jogar búzios. 14 Baiar é “dançar” na gira. Geralmente apenas os filhos e filhas de santo podem baiar. Como gosto muito de assistir ao tambor, constantemente demonstro empolgação. Algumas vezes as filhas e filhos de santo brincaram dizendo que eu estava doido para baiar.

8

cabaças, triângulo, cheque-cheque. Como batedores de tambor oficiais temos Marcelo e seu filho. A roupa ritual varia de acordo com tambor do dia, mas as filhas e filhos sempre estão com os fios de contas a identificar suas “Entidades” regentes e o tempo de iniciação. Junto destas cada filha e filho carregam um terço, específico do terreiro. Esse, conta Seu Álvaro, foi transmitido por uma preta velha que o incorporava. Essa mesma preta velha deu nome ao terreiro Mina Deus Esteja Contigo. Entretanto, S. Álvaro não a recebe mais pois a mesma pediu “para reencarnar, desencarnar, alguma coisa assim”15. A respeito do terço, foi registrado no livro Cartografia social dos afrorreligiosos em Belém do Pará – religiões afro-brasileiras e ameríndias da Amazônia: O rosário que era usado na década de 20 é constituído pela cruz de pau de Angola, as contas são das lágrimas de nossa senhora e cada cor representa as sente linhas vibratórias da Umbanda. 1º Linha de Santo ou de Oxalá: dirigente – Jesus Cristo. Foco: branco ou prateado; 2º Linha de Iemanjá: dirigente – Virgem Maria. Foco – azul; 3º Linha do Oriente: dirigente – São João Batista. Foco – cor de rosa; 4º Linha de Oxóssi: dirigente – São Sebastião; Foco – verde esmeralda ou turmalina; 5º Linha de Xangô: dirigente – São Jerônimo. Foco – vermelho escarlate; 6º Linha de Ogum: dirigente – São Jorge. Foco – vermelho escarlate; 7º Linha Africana ou de São Cipriano: dirigente – São Cipriano. Foco – lilás. (Camila do Valle et al 2012:46)

A abertura é feita sempre com um ponto cantado de Mina Nagô. Na sequência são cantados três pontos para Exu, três para Ogum16, um Pai Nosso, uma Ave Maria, finalizando com a Prece de Cáritas.17 Não necessariamente as orações seguem essa sequência. Quando se sobressaem as personagens católicas pausa-se todos os instrumentos musicais. O “zelador de Orixá” então puxa cânticos curtos referentes a abertura da gira, que podem ser: “Abrindo a nossa gira pedimos com devoção\Ao nosso pai Oxalá para cumprir nossa missão”; “Auê Auê baba vou abrir o meu caicó\Com a licença de Mamãe Oxum eu vou abrir o meu caicó”; dentre outros. Essa variação ocorre por diversos fatores, todas ligadas à dinâmica do ritual. Dependendo das “Entidades” homenageadas no dia, ou do que o sacerdote escuta de seus guias. Esse momento geralmente se encerra em poucos minutos, é quando os pontos cantados trazem imagens ligadas ao mundo dos incensos e defumações. Imagens sonoras 15

Obtido em conversa informal, 19 de maio de 2014. Essa sequência de pontos para Exu e Ogum é comum entre as casas de matriz africana no Pará, principalmente as identificadas com a Mina Nagô e Umbanda. É chamada de Embarabô. (cf. Luca 2010:211) 17 A Prece de Cáritas é uma oração importante para a Umbanda no Pará. (cf. Camilla do Valle 2012:55) 16

9

como a de Nossa Senhora incensando Jesus Cristo e a de Ogum a correr a gira enquanto os filhos defumam o terreiro são representadas pelos cânticos. S. Álvaro com seu defumador para diante cada filha e filho de santo, enquanto estas com as mãos puxam para si a fumaça. Percorrendo a “guma” o sacerdote incensa todo o barracão. Finalmente passa pela assistência, fazendo o mesmo que fez com as filhas e filhos de santo. Finalmente, em pé em uma das entradas do barracão, S. Álvaro entona as palavras, seguido pelas filhas e filhos: “O que sai o que sai? É o Eló de Exu”. Então arremessa pólvora no defumador, dando um estalido breve de fogo e fumaça, quando ainda entoando as palavras, assistência e gira, rodam em si, passando as mãos pelo corpo no sentido de limpá-lo, arremessando em direção a saída a “energia negativa”. Após esse momento inicial, voltam-se aos pontos cantados para aos Orixás. Oxum e Ogum surgem novamente. Mais uma vez a ênfase vai depender da ““Entidade”” regente do dia. Dentre os pontos cantados, dificilmente este não é evocado: Oxum abalou, abalou... Oxóssi abalou, abalou.... Iemanjá abalou, abalou... Xangô abalou, abalou Iansã abalou, abalou Oxumaré abalou, abalou Obaloaê, abalou, abalou Nanã abalou, abalou Ogum abalou, abalou Oxalá abalou, abalou Oxum abalou, abalou... Não necessariamente se segue essa ordem. Porém, quase sempre se inicia com Oxum e termina com Oxum. Enquanto todos entonam esse cântico puxado inicialmente pelo sacerdote, as filhas e filhos em círculo batem palmas. A cada Orixá citado, quem for regido pela “Entidade” vai ao centro do círculo e se agacha, tocando o chão. Ao nome de Obaloaê todos se abaixam. Ao de Oxum, com a mão direita erguida sobre a cabeça e o dedo indicador erguido, rodam da esquerda para a direita, sem sair do lugar. É quando os pontos cantados se direcionam para o Tambor de Mina e a Mina Nagô. Como: “Meu pai me disse que dançar nagô é bom...”. Nesse momento se iniciam as incorporações. Ocorre a chamada “Virada para Caboclo” onde são cantados pontos sobre boiadeiros, caboclos, marinheiros, índios e encantados, dependendo da regência do dia. Quando surge uma incorporação, frequentemente o primeiro é o sacerdote, sua “Entidade” incorporada puxa seu ponto cantado, se identificando. Já vimos S. Álvaro 10

incorporado com “José Tupinambá”, “Zé Raimundo”, “Marinheiro Ricardino”, “Mariana”, “Herondina”, “Pai Joaquim de Angola”, dentre outros. O “zelador de orixá” pode se incorporar com vários desses em uma mesma gira, geralmente passando pela gira e pela assistência, dando concelhos, fazendo “passes”. Essa parte do ritual é a mais comprida, pegando mais ou menos a metade do tempo da gira. Cada “Entidade” que o sacerdote incorpora e por consequência, as filhas e filhos de santo que possuem o “santo na cabeça” também, possuem sua característica de vestimenta e identificação. Quando espírito de índio a “Entidade” amarra uma faixa branca na testa. Zé Raimundo possui um chapéu de palha, Mariana e Herondina colocam a toalha branca nas costas, envolvendo os membros superiores. O que vi ocorrer sem falta é a, estou chamando assim por enquanto, Virada pra “Maria Padilha”. Uso esse termo para fazer menção ao já conhecido Virada pra Caboclo, quando se para de cantar para os Orixás, Voduns e Gentios para se celebrar aos caboclos. Nessa virada específica para “Maria Padilha” cessa os cânticos para os caboclos e o sacerdote se incorpora com “Maria Padilha”, puxando pontos cantados sobre si. Se sobressaltam também os pontos sobre o “povo da rua” e o Maranhão, principalmente Codó. Constantemente os cânticos e a própria “Entidade” repete “Salve “Maria Padilha” e o Codó do Maranhão”. Logo ao se incorporar em Seu Álvaro, as filhas trazem sua capa e uma champanha, onde toma poucos goles. Da mesma forma que faz incorporado com os caboclos, passando pela assistência e a gira, assim também o faz “Maria Padilha”. Após falar com todos, “Maria Padilha” soube e se iniciam os cânticos de encerramento da gira. “Sai, sai, sai, boa noite meus senhores” e “Fechei a nossa gira com Deus e Nossa Senhora” são formas frequentes de se encerrar a gira. “Maria Padilha” surge sempre na gira, independentemente da regência do dia, por ser a ““Entidade”” principal do terreiro. A sua festa é a única que ocorre sempre no mesmo dia, 21 de abril, independentemente de cair no sábado ou não. Desde quando Seu Álvaro incorporou pela primeira vez com essa “Entidade”, o mesmo conta que jamais toma alguma atitude importante sem consultá-la. Inclusive, quando estávamos em mais uma tentativa de entrevista etnográfica, ao comentar sobre as dificuldades de entrevistalo, pois constantemente éramos interrompidos por algum cliente, Seu Álvaro se lembrou que não a consultou sobre a pesquisa que estou fazendo. Ficando prometido que o faria e que provavelmente teríamos que oferecer alguma obrigação para a mesma.

11

A mesa branca foi inserida recentemente, talvez por causa dos problemas de saúde do sacerdote da casa. Apesar da estrutura bem diferente dos dois momentos públicos, eles são semelhantes, pois é a partir deles que os participantes podem entrar em contato com as “Entidades” e pedir conselhos, além de pegarem “passes” de cura. As filhas e filhos de santo sentam-se em uma grande mesa branca, Seu Álvaro na cabeceira. São rezados muitos pai-nossos, Ave Marias e Prece de Cáritas. Seu Álvaro fica inicialmente “sombreado”, diz os nomes dos espíritos que estão presentes, os quais geralmente são: Escrava Anastácia, Camilo Salgado, João Saldanha, Bezerra de Menezes e Severa Romana18, para no decorrer da mesa branca incorpora-se, fazendo diversas orações em cada participante, a dar voltas pela mesa. Até o momento só observei duas mesas brancas. Em primeiro de fevereiro de 2014 participei de uma mesa de forma inusitada. Havia telefonado alguns dias antes a Seu Álvaro para pedir uma entrevista, mas ele disse que eu deveria ir à mesa branca que teria no sábado. Nesse dia estava, mais uma vez, chovendo muito. Saí debaixo da chuva para chegar às 15 horas. A rua Pau D’Arco estava totalmente lamacenta e alagada. Havia poucas pessoas, principalmente por causa da chuva e também porque quase ninguém sabia que teria alguma atividade naquele dia. Nas visitas etnográficas anteriores quase sempre estive acompanhado de Dona Mazé e/ou Thay, mas naquele dia nenhuma das duas estavam em casa e acabei por ir sozinho. Estava preparado para produzir diversas fotografias e registrar etnograficamente a mesa branca. Até que Seu Álvaro, já “sombreado” perguntou meu nome. Depois de responder, fui chamado para sentar ao lado dele. Mostrou-me um trecho para ler, “a reflexão do dia”, disse, quando for requisitado. Esse texto estava em um caderno de xérox encadernado. Também solicitou-me para ler a Oração de São Francisco. Fiz o solicitado e reparei ser o único que não estava de branco e participava da mesa, ao menos estava de bege, uma cor clara.19

18

São personagens do imaginário popular. Bezerra de Menezes foi um importante espírita brasileiro, Escrava Anastácia é uma personagem cultuada em todo o Brasil, Camilo Salgado foi um médico paraense que ganhou status de santidade, recebendo um culto popular na região até hoje. No dia dos finados esse culto é aflorado. Para saber mais sobre, especificamente, o culto a Camilo Salgado ver Costa (2010). Severa Romana foi uma mártir popular. Assassinada, em aproximadamente 1900, por um cearense que lhe investia galanteios, porém sem sucesso. João Saldanha ainda me é uma figura desconhecida. Esses personagens são frequentes nos terreiros em Belém. Edson Diniz, em uma etnografia de 1960, mostra como Camilo Salgado e Severa Romana são reverenciadas por uma mãe de santo (Diniz 1975:8). 19 Sempre vou ao terreiro com roupas de tons claros. Dona Mazé e Thay me alertam para não usar, jamais a cor preta no terreiro, pois Seu Álvaro não gostava da cor, justificando que atrai muita energia negativa.

12

Às 15 horas se iniciaram as orações, Pai Nosso, Ave Maria, Prece de Cáritas, constantemente essas orações eram repetidas. Seu Álvaro incorporado disse os nomes dos espíritos presentes, como Escrava Anastácia e Camilo Salgado, novamente. O sacerdote deu várias voltas ao redor da mesa, lentamente, com o terço na mão, parava em cada pessoa e ficava um tempo se concentrado, passando bons pensamentos e “energias” para os participantes, tanto da mesa quanto frequentadores. Quando esteve próximo de mim, ficou bastante tempo, quase tocando em minha mão. Uma assistente da mesa havia colocado em copinhos de plástico água e deu um para cada pessoa da mesa e frequentadores. Quando esteve perto de mim, a mão do “zelador de orixá” acabou derrubando a água que me era destinada, molhando as orações sobre a mesa. Bastante preocupado prossegui sentado. No final, ainda incorporado em Seu Álvaro, a “Entidade” nos disse que aquele dia era bom para recomeçar, para se iniciar o ano com “energias” renovadas, que quem esteve lá estaria carregado de boas “energias” e que deveria mandar bons pensamentos para os parentes, tanto próximos quanto distantes. A “Entidade” agradeceu a oportunidade de ter podido atuar junto comigo, dizendo que tudo mudaria em minha vida a partir daquele dia. O mais interessante foi quando falou que sempre estávamos acompanhados para ir ao terreiro, mas naquele dia não, estava sozinho. Então finalizou “O senhor não precisa de padrinho, o senhor é o seu próprio padrinho”. O sacerdote Álvaro Pizarro é natural de São Paulo. Veio para Belém em 1982 a convite de Mãe Marajó. Ambos se conheceram em São Paulo. Quando se encontraram “tanto ela se empolgou com a minha mediunidade, quanto eu me empolguei com a mediunidade dela”. No sudeste do país, apesar de frequentar terreiros de alguns pais de santo, não havia feito nenhuma oferenda para suas “Entidades”. Aí foi que ela fez o convite: - Vamos pra Belém, que lá eu preparo o senhor. Então foi o que eu fiz. Hoje ela é falecida, mas tudo que eu sei, tudo que eu aprendi, foi com ela. Foram assim, aproximadamente 8 anos. Apesar de eu já ter uma raiz, uma raiz de lá de São Paulo, que eu já vim pra cá com quase 40 anos, né. Eu já tinha alguns conhecimentos de lá, de outros pais de santo...20

20

Conversa gravada com Álvaro Pizarro, em 15 de fevereiro de 2014, realizada no seu antigo terreiro.

13

Mãe Marajó foi muito importante para Seu Álvaro. Conforme ele nos disse, aprendeu tudo com ela, porém especifica o que seria esse tudo: “Estou falando da vida de sacerdote, né?”. Mãe Marajó era “mineira”, nascida em Salvaterra. Conhecia a religião dos encantados e dos “caruanas” e ensinou para Seu Álvaro o poder da oralidade: E ela nunca me deixou escrever nada. Ela falou: - Coisa de caboclo, coisa de “Entidade”, de caruana – ela usava muito esses nomes assim, é, foram aprendidos e só escutado. Que tanto ela falava assim: - Se você escrever essa oração, ela não vai funcionar mais. Tanto é que quando a gente fazia a oraçãozinha, que às vezes ela ensinava, que eu aprendi com ela, as orações, que se eu escrevia pra poder decorar, automaticamente eu tinha que apagar, e a forma de apagar era tacar fogo.

O poder da oralidade na formação de Seu Álvaro emerge de sua rememoração demonstrando como códigos espirituais deveriam ser ensinados somente acionando o poder da voz e da memória. Para essa concepção, a reza e a oração escritas parecem mais uma repetição mecânica (ao ser lida) do que o decorar das palavras, pois à medida em que a palavra entra na “cabeça”, fica marcada no corpo e faz parte do próprio sacerdote. Esse fato indica o porquê de Seu Álvaro ter nos dito uma vez que não gostava do pai nosso como uma reza em que o sujeito apenas repetia o que tinha visto. Como é uma reza largamente difundida, não parece ter poder o suficiente se não for ressignificada pelo indivíduo. Entretanto, esse fato não exclui totalmente a escrita dos processos de aprendizagem e sociabilidade dentro da religião. O sacerdote é um sujeito que gosta muito de ler e, como ele mesmo nos disse e está citado, chegava a anotar o ensinado, apesar de queimar depois. Foi Mãe Marajó quem fez a raspagem de sua cabeça. Essa raspagem não é total, acontecendo apenas no meio, na coroa da cabeça, onde se coloca “os remédios para preparar, para fortificar, para ajudar, para curar o médium”. O sacerdote diz que essa raspagem se chama santê21, e como sua mãe era da Mina Nagô e assim o fez seu ritual de feitura, exatamente daquela forma ele fazia a raspagem de suas filhas e filhos de santo. Nesse ínterim dos ensinamentos, através da Mãe Marajó, Seu Álvaro fundou o terreiro Tambor de Mina Deus Esteja Contigo em 1988. Nos primeiros anos não tinha nenhuma regulamentação burocrática relacionada ao terreiro. Não conhecia a Federação, nem se interessava. Só foi se interessar quando Mãe Marajó faleceu, pois não tinha mais 21

Figueiredo (1983:17) chama esses remédios de amacis. São preparados para as cerimônias de feitura. Mostra que no primeiro dia há um banho com água limpa, de corpo todo, depois a raspagem da cabeça. Depois o banho da cabeça com sangue de animal misturado com champanha, vinho e cerveja, além de essência de benjoim.

14

sua orientação, precisando assim assumir de vez sua vida de sacerdote. Nessa trajetória, entrar no sacerdócio não foi fácil, pois Seu Álvaro não queria aceitar suas “Entidades”. Até que o senhor já citado pelo sacerdote machucou a sua perna com um machado, enquanto trabalhava no loteamento, aparecendo uma “irizipela” em sua perna. Seu Álvaro, incorporado com sua “Entidade”, rezou de manhã, de tarde e de noite, e a doença sumiu. Assim, o senhor espalhou a notícia, deixando Seu Álvaro famoso: [...] aí é onde entra a Federação. Porque a Federação ficou sabendo, eu não tinha registro nenhum, eu não tinha alvará nenhum, não conhecia pai de santo aqui de Belém, só conhecia a Mãe Marajó, né, não conhecia outras, não ia na casa, nunca fui na casa de ninguém, antes disso, conhecer um pai de santo ou assistir um trabalho, para ver como era, eu aqui ainda não tinha assistido. E era muita gente que chegava às vezes de madrugada! [Ênfase] pra ser consultado através das minhas “Entidades”.22

Então em 1992 Seu Álvaro ganhou seu registro junto a Federação. Ele valoriza bastante essa ligação com a Federação, sendo uma forma de proteção, pois como nos disse, era preciso, antigamente, “correr por fora” para não ser preso e a Federação também representava uma forma de reconhecimento do próprio sacerdote perante os seus pares e os frequentadores. Outra pessoa importante na formação sacerdotal de Seu Álvaro é o Pai Ketu. Possuidor de muito conhecimento, tinha uma proximidade no parentesco místico com o sacerdote, pois Seu Álvaro é filho de Oxum com Oxóssi e Pai Ketu é filho de Oxóssi com Oxum. Foi, portanto, Pai Ketu que assentou os Orixás e o “Pessoal da Rua” de Seu Álvaro. Também “me deu muita coisa, que a gente começou a colher folhas, que eles dizem, né. Então ele me deu muito conhecimento pra mim, das bebidas, dos matos que são usados”. Pai Ketu é do Candomblé, influenciando assim o Mina Deus Esteja Contigo com essa experimentação religiosa. Inicialmente o nome do terreiro estava em ketu, havendo a sua tradução depois que Seu Álvaro havia decidido ficar apenas na Mina Nagô e Umbanda. Uns dos aspectos mais interessantes a se destacar aqui é o processo de aprendizagem. Seu Álvaro aprendia com Mãe Marajó e Pai Ketu, mas também com as próprias “Entidades”. Algo a ser explorado, portanto, pois esse contínuo de aprendizagem

22

Conversa gravada com Álvaro Pizarro, em 15 de fevereiro de 2014, realizada no seu antigo terreiro, local onde ainda atende para jogar búzios.

15

parece estar ligado a uma rede de multiplicidades entre humanos e divindades, possuidoras de agenciamentos e ensinamentos. Nessa aprendizagem muito dinâmica, onde entram humanos e deuses, Seu Álvaro nos traz e ensina uma percepção das transformações que as religiões de matriz africana na Amazônia sofrem e são responsáveis: [...] hoje em dia, talvez pela beleza, pela coisa assim, de fazer uma coisa mais figurada, mais rico, então se transformam as pessoas num Orixá. Aí se veste, todinho eles com os apetrechos, com as ferramentas, tudinho, sai, vestidos de Orixá, mas na Mina que ela deixou, que ela deu para mim, só saia mesmo na toalha [Mãe Marajó]. Só que o ritual foi se mudando né, foi adquirindo outros conhecimentos, foi adquirindo outras coisas através das próprias “Entidades”, e então houve assim uma mudança na feitura, principalmente dentro da minha casa, dentro da casa do santo do qual eu sou zelador, é não tem a raspagem da cabeça toda, é só o santê.

Nessa perspectiva Seu Álvaro mostra como a partir da relação com o meio social envolvente, as dinâmicas culturais e sociabilidades com as “Entidades” há transformações e permanências nos atos de religiosidade do terreiro. Sugere a necessidade de tornar o ritual mais “figurado”, poderíamos dizer teatral, aumentando o número de enfeites e apetrechos, na mesma medida em que se mantém o ritual de feitura do “santê”, no qual há raspagem no meio da cabeça e utilização dos “remédios”. Esse ritual mais “figurado” parece ter ligação com o que Furuya chama de “Umbandização”. Em um primeiro momento o autor opõe dois tipos de Umbanda: “Denominaremos de ‘Umbanda teórica’ quando houver uma ênfase no sistema de dogmas teológicos, e achamos ser conveniente chamar de ‘Umbanda teatral’ aquela que enfatiza o lado da ‘teatralidade e pompa’ dos rituais” (1994:17). É impossível separar esse duplo processo. Na fala de Seu Álvaro ele enfatiza tanto a “aprendizagem” de coisas novas e a necessidade de se ter um ritual mais “figurado”, refletindo o constante diálogo entre esses diversos experimentos religiosos, sendo o próprio sacerdote exemplo da interfecundação entre Umbanda, Mina Nagô e Candomblé ketu. Conclusão Concordo quando Clifford Geertz diz que a religião pode ser uma pedra arremessada ao chão, “mas deve ser uma pedra palpável, e alguém deve lançá-la” (2006:17). Fui interpelado para a trajetória desse arremesso ao acompanhar etnograficamente um terreiro. Essa pesquisa é uma tentativa de apalpar a pedra arremessada. Os ritos públicos, os pontos cantados, a consulta aos búzios e a trajetória de 16

vida do sacerdote são os elementos essenciais que pretendo aprofundar em impregnação, diálogo e análise.

Referências bibliográficas: Camila do Valle et al. 2012. Cartografia social dos afrorreligiosos em Belém do Pará – religiões afro-brasileiras e ameríndias da Amazônia: afirmando identidades na diversidade. Rio de Janeiro, Brasília: Casa 8, IPHAN. 192p. Cardoso, João. 2011. Festival de Iemanjá: uma festa afro-religiosa em Belém do Pará: organização e dinâmica, in Anais XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais – Centro de Estudos Afro-Orientais. Salvador: UFBA. Carneiro, Edison. 1977. Candomblés da Bahia. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 145p. Diniz, Edson. 1975. Um terreiro de umbanda em Belém do Pará. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 17:7-15. Figueiredo, Napoleão. 1976. A presença africana na Amazônia. Afro-Ásia 12:145-160. ____. 1977. A marca do negro, in Amazônia: tempo e gente. pp. 105-20. Belém: Academia Paraense de Letras. ____. Rezadores, pajés & puganças. Belém: Universidade Federal do Pará – Editora BOITEMPO. 96p. ____. 1983. Banhos de cheiro, Ariachés & Amacis. Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore. 48p. Figueiredo, Napoleão & Vergolino, Anaíza. 1967. Alguns elementos novos para o estudo dos batuques de Belém, in Atas do simpósio sobre a biota Amazônica. Vol.2: Antropologia. Editado por Herman Lent. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Pesquisas. Furuya, Yoshiaki. 1986. Entre a “Nagoização” e a “Umbandização” – Uma síntese no culto Mina-Nagô de Belém, Brasil. Tese de Doutorado. University of Tokyo, Tokyo. ____. 1994. Umbandização dos cultos populares na Amazônia: a integração ao Brasil?, in Possessão e Procissão: religiosidade popular no Brasil. Editado por H. Nakamaki e A.P Filho, pp. 11-60. Osaka: National Museum of Ethnology. Geertz, Clifford. 2004. Observando o Islã. Rio de Janeiro: Zahar. 141p. Leacock, Seth. 1964. Cerimonial Drinking in an Afro-Brazilian Cult. American Anthropologist 66:344-354. ____. & Leacock, Ruth. 1972. Spirits of the deep: A Study of an Afro-Brazilian Cult. New York: Doubleday. 17

Luca, Taíssa. 2010. “Tem branco na guma”: A nobreza europeia montou corte na encataria mineira. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará, Belém. ____. O tambor de mina no Pará: histórias de um panteão mestiço, in: Anais IV Congresso da ANPTECRE – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião, pp.1831-1853. São Paulo: ANPTECRE. Mota-Neto, João. 2008. A Educação no Cotidiano do Terreiro: Saberes e Práticas Culturais do Tambor de Mina na Amazônia. Dissertação de Mestrado. Programa de PósGraduação em Educação, Universidade Estadual do Pará, Belém Pacheco, Agenor 2006. À Margem dos “Marajós”: cotidiano, memórias e imagens da “cidade-floresta” Melgaço-Pa. Belém: Paka-Tatu. ____. 2013. Religiosidade afroindígena e natureza na Amazônia. Horizonte 11(30):476508. Vergolino, Anaíza. 1976. O Tambor das Flores: Uma análise da Federação Espírita Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Pará (1965-1975). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. ____. 1987. A semana santa nos terreiros: um estudo do sincretismo religioso em Belém do Pará. Religião e Sociedade 14(3):57-71. ____. Os cultos afro do Pará. 2003, in Coleção contando a história do Pará: diálogos entre antropologia e história. Editado por E. Fontes, p.1-20. Belém: E-Motions.

18

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.