Nós os franceses mais quisemos ver toda a sua cabeça: dois relatos e uma embaixada a Pequim (Pacheco de Sampaio, 1753)

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Nós os franceses mais quisemos ver toda a sua cabeça: dois relatos e uma embaixada a Pequim (Pacheco de Sampaio, 1753)

António Vilhena de Carvalho

A 29 de Maio de 1753, Jean-Denis Attiret, irmão da Companhia de Jesus da missão francesa de Pequim, pinta, a pedido do imperador Qianlong, o retrato de Francisco Xavier de Assis Pacheco de Sampaio, o embaixador que D. José I enviara um ano antes à corte de Pequim.

É o Embaixador mesmo, terá exclamado o imperador quando ainda ao longe vê o quadro pela primeira vez. Apreciando-o, tê-lo-á mandado pôr em cima do Trono onde se assenta na Sala da Casa Europeia. O retrato pintado por Attiret já não permanece por cima do trono da sala da casa europeia. Perdeu-se na voragem dos tempos, quem sabe se às mãos de outros europeus – muitos deles franceses, como Attiret – que cerca de cem anos depois hãode saquear e destruir irremediavelmente o Yuanming Yuan, a residência de eleição do imperador. Posta de lado, por agora, a novidade de haver um imperador da China interessado em deixar um testemunho visual da passagem de um enviado europeu pela sua corte, este episódio revela ainda a circunstância curiosa de as duas únicas fontes impressas sobre a embaixada de Pacheco de Sampaio, não coincidi-

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rem no modo como o tratam: a Relação de Neuvialle, publicada em Lisboa em momento em que o embaixador, embora a caminho, está ainda longe do reino, é o texto que agora nos permite reconstituir esta pequena estória e saber que afinal Attiret pintou não um, mas três retratos seus; o relatório que o próprio retratado fará sobre o desenrolar da sua missão, que embora circunstanciado e não isento de atenção ao detalhe, omite, sem razão aparente, o inesperado desejo do imperador, deixando apenas o vago registo de lhe ter sido simplesmente feita uma nova e mais particular demonstração de afeto. O propósito deste texto é o de proceder a uma leitura comparada de ambas as fontes, pondo-as em diálogo, vislumbrando outros aspetos escondidos por detrás do retrato do embaixador suscetíveis de revelar em que medida as diferentes origem e posição dos seus autores, o seu díspar conhecimento sobre a China, a intenção que cada um põe no seu testemunho, enforma o modo como desenvolverão os seus relatos; mas mesmo havendo tanto a separá-los, procurar-se-á indagar se haverá, ainda assim, uma conjugação circunstancial de interesses que os leve a interpretar da mesma forma o que

foi vivido por um e observado à distância pelo outro. A primeira das fontes é da mão de um padre da Companhia de Jesus, nascido em França, com responsabilidades dirigentes na missão francesa da China, residente na altura em Macau, sendo redigida em forma epistolar e dirigida a um interlocutor da mesma ordem, que se imagina aguardar com expetativa as notícias que vêm de longe. A segunda das fontes é um documento oficial, escrito por um português inesperadamente encarregado de uma missão espinhosa, que põe todo o seu empenho em demonstrar àqueles para quem escreve, de que modo correspondeu às instruções que lhe haviam dado, fazendo porventura justiça à honra e à dignidade do seu rei. O protagonismo nestas páginas vai ser dado, já o dissemos, aos homens por detrás de dois textos: Jean Sylvain de Neuvialle e Francisco Xavier Assis Pacheco de Sampaio. Pacheco de Sampaio nasceu em Benavente, no seio de uma das famílias ilustres da terra, filho de um bacharel com pretensões literárias, amigo e confidente de Ribeiro Sanches, que em algumas das suas cartas perguntava pelo Francisco. Não se tendo

Nós os franceses ... apurado a data certa em que nasceu, sabe-se contudo que morreu novo, a 19 de Junho de 1767. Estudou na Universidade de Coimbra e iniciou a sua carreira pública de magistrado como ouvidor em Beja, tendo passado em seguida por outras comarcas do Algarve e do Alentejo. É em Beja que de novo se encontrará, como provedor da comarca, quando nas vésperas da partida para a China, é nomeado conselheiro do Conselho Ultramarino. Regressado a Lisboa em 1755, a poucos dias do terramoto que assolou a cidade, continuará a desempenhar funções no Conselho Ultramarino até à data da sua morte. Desconhecem-se as razões que terão levado D. José I a confiar-lhe a embaixada ao imperador Qianlong, não tendo ele experiência que o recomende de modo especial para tal missão e conhecendo daquele império, na melhor das hipóteses, o que dele poderia saber por intermédio da informação na altura acessível a um homem europeu letrado e curioso. Sabe-se porém que não é a primeira escolha do rei e do seu ministro, só a morte do preferido colocando Pacheco de Sampaio a bordo da nau Europa que a 23 de Fevereiro de 1752 larga de Lisboa em direção à China. Neuvialle é um pouco mais velho que Pacheco de Sampaio e o seu percurso até ao momento em que as vidas de ambos se cruzam, é em quase tudo o oposto do daquele. Nascido em Angoulême a 1 de fevereiro de 1696, ingressou na Companhia de Jesus em 26 de setembro de 1711. Chegou à China, para integrar a missão francesa da Companhia, em agosto de 1729, mas desconhece-se o seu percurso até ao ano de 1740, altura em que inicia atividade missionária nas províncias da China. Da sua pena conhecemos alguns episódios da conturbada vida

Retrato do imperador Qianlong por Jean-Denis Attiret (1702-1768), Musée Guimet, Paris.

que levou numa região de montanhas, quase inacessíveis e perdidas no interior do país, aí sujeito não apenas às perseguições que na época se abateram sem clemência sobre os missionários europeus, mas também ao inesperado confronto com um tigre que, nas suas palavras, se préparait à me dévorer, só a intercessão de S. Francisco Xavier lhe permitindo passar incólume. A mesma sorte não tiveram, porém, trinta “infiéis” devorados dias depois pela mesma besta, provavelmente desconhecedores do poder protetor do Santo. Sobrevivente de

tamanhos perigos, refugia-se em Macau, local onde assumirá, embora com a saúde arruinada, as funções de superior geral da missão francesa em 1747, sem sabermos se por mérito próprio ou antes, como revela um seu companheiro, em virtude de la perte qu’elle vient de faire dans la même année de plusieurs de ses meilleurs sujets. Manter-se-á de qualquer modo como superior, num primeiro período, até 1752, ocupando de novo idênticas funções entre os anos de 1758 e 1762. Pacheco de Sampaio, que com ele lida pela primeira vez em 1752, dele dirá ser

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nas letras sínicas o mais perito dos que assistem em Macau, por esse motivo utilizando os seus préstimos em altura em que mantém diálogo aceso com as autoridades de Cantão. A ironia do destino se encarregará mais tarde de fazer com que a mão que promove e sustém Pacheco de Sampaio em importante cargo no Conselho Ultramarino, seja a mesma que arranca pela força Neuvialle a Macau, com o propósito de o atirar ao cárcere, onde contudo não chegará porque a morte o encontra no mar, em 30 de abril de 1764. Os anos que antecedem o envio de Pacheco de Sampaio como embaixador à corte de Qianlong, são anos de perigo. A atividade missionária na China vê-se fortemente condicionada, e Macau vive momentos de algum dramatismo que fazem lembrar, ressalvadas as devidas proporções, os conturbados anos da década de 60 do século anterior que viram a cidade chegar à beira da extinção. As esperanças depositadas na ascensão ao trono de um novo imperador, suscetível de reverter a proibição de missionação decretada por Yongzheng, estão já completamente desvanecidas. As perseguições aos missionários levadas a cabo um pouco por todo o império em 1746, deixam as províncias praticamente desguarnecidas de missionários: sete deles serão mais tarde mortos, e o grosso dos restantes procura refúgio, Neuvialle incluído, na cidade de Macau. Só Pequim resiste, com os jesuítas a marcar aí forte presença, mas por razões que pouco têm a ver com a religião. Qianlong serve-se deles na exata medida em que estes têm algo para oferecerlhe como pintores, matemáticos, arquitetos ou músicos. Pouco lhe im-

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porta que rezem, nas horas que lhes deixa livres, no Colégio de S. José ou em Beitang, ou que Attiret se ocupe a pintar o Anjo da Guarda quando não pinta retratos a seu pedido. Não é como pastores de almas que os quer à sua disposição, não é nessa qualidade que os vê quando pede a Castiglione o risco dos palácios europeus do Yuanming Yuan ou a Benoît a conceção do mecanismo que faz correr a água nas suas fontes. A Companhia de Jesus terá disso a prova amarga quando usa Castiglione, com toda a probabilidade o europeu que mais priva com o imperador, lançando-o a seus pés para interceder pela atividade missionária reprimida nas províncias. O único resultado conseguido, felizmente passageiro, é o de provocar a ira do imperador, que nesse estado de espírito volta as costas a Castiglione, deixando-o sem resposta, mas também já sem falsas esperanças. Qianlong está por conseguinte pouco disposto a abandonar as políticas defensivas dos seus antecessores, que olhavam para o proselitismo católico como uma brecha na integridade cultural confuciana e que viam nas conversões populares ocorridas em algumas províncias, uma ameaça estrangeira e um perigo sério à estabilidade social. É provável que seja mais cosmopolita do que eles foram, mais curioso em relação ao mundo que se desenvolve para lá do seu império; é até demonstrável que nos anos seguintes à passagem de Pacheco de Sampaio pela sua corte, tenha tido propensão a ser mais brando e mais clemente com os europeus do que os mandarins que estão longe de Pequim. Ainda assim, a imagem de uma China totalmente aberta à evangelização é e será, no reinado de Qianlong, uma irrealizável utopia. Macau, por seu turno, vê recrudescer, na década de 40, uma atitude

de forte hostilidade por parte das autoridades de Cantão, que vão procurando manietar a margem de manobra dos estrangeiros que aqui se acantonam. Proíbem a prática da religião católica à população chinesa residente, determinam e levam a cabo o encerramento da Igreja de N. S.ª do Amparo, onde alegadamente seriam instruídos na fé católica os chineses de Macau, e exigem a colocação de duas estelas de pedra em local público, onde seriam inscritas as cláusulas resumindo o essencial das restrições ao poder de jurisdição e à prática religiosa que impendem sobre o território. O cerco que é feito a Macau não é de molde a manter os ânimos serenos. As divergências são grandes entre moradores, membros do Senado, religiosos e autoridades civis, e não há unanimidade no modo de responder à tempestade que se avizinha, variando entre o extremo de a tudo ceder, e o oposto de invocar à outrance a dignidade ofendida. O último dia da década, 31 de Dezembro de 1749, verá as principais figuras da cidade reunidas para decidir o que fazer em virtude da perseguição das Chinas a esta Cidade. A decisão final, contra a qual votará o próprio Governador, é a de que o Senhor Bispo se vá desta Cidade, que o Bispo de Macau viaje para Lisboa, ainda que de Lisboa não tenha vindo autorização para tanto, e aí procure demonstrar ao reino que algo em favor de Macau deve ser feito. D. Frei Hilário de Santa Rosa penará pelos meandros da corte de Lisboa. Sem acesso ao rei, que não lhe abre a porta para uma audiência, procurará convencer o Conselho Ultramarino da necessidade de uma resposta pela força à afronta dos mandarins e, não sendo esta possível, que então se abra mão de Macau a favor de quem seja capaz de a praticar. Sem os meios que façam reverter a ousadia de Cantão, uma

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Gravura da fachada sul do Xieqiqu (Yuanming Yuan).

embaixada a Pequim, que o Bispo admite apenas como complemento à ação principal, não serve de utilidade alguma antes servirá de ocasião de insultarem os chinas, e cuidarem em nos sujeitar de todo ao seu governo, o que tudo redunda em desprezo da Lei de Deus, da Religião, e também da Nação, e Coroa Portuguesa. Pela mesma altura em que D. Frei Hilário deambula sem sucesso por Lisboa, começa a desenhar-se a perspetiva do envio de uma embaixada a Pequim. As opiniões não são contudo unânimes, e tanto assim é que o Conselho Ultramarino descarta esta possibilidade ainda em novembro de 1750. Os missionários em Pequim haviam no entanto admitido os benefícios do envio de uma embaixada por uma corte europeia quando consultados sobre o

assunto pelo Visitador dos jesuítas, em outubro de 1748. Igual consulta realizada junto dos missionários de Macau em janeiro de 1749, da qual participou Neuvialle, produziu idêntica resposta, embora com a sugestão adicional de ser o Papa a decidir sobre a conveniência do envio de uma embaixada ao imperador da China. É de crer que a intervenção conjugada da rainha-mãe e viúva de D. João V, D. Maria Ana de Áustria, e de Alexandre Metelo de Sousa Meneses, o embaixador que fora enviado ao imperador Yongzheng em 1726, eventualmente mobilizados para a causa dos missionários da China por intercessão dos jesuítas de Pequim, esteja na base da decisão que o rei D. José I toma de fazer partir em direção ao centro do império Pacheco de Sampaio. Ainda que nem todos vejam utilidade na sua missão, é para lá que ele se di-

rige, com a costumada passagem por Macau, cidade onde desembarca a 15 de agosto de 1752. Macau e os seus problemas estarão contudo muito longe das preocupações da corte de Lisboa e totalmente ausentes do espírito com que o embaixador encara, quando chega, a sua missão. A Relação de Neuvialle nada nos refere sobre a estadia de Pacheco de Sampaio em Macau, que decorre de agosto de 1752 até final de dezembro do mesmo ano, uma vez que esta se inicia já com o embaixador a caminho de Pequim. O Relatório de Pacheco de Sampaio dános porém suficiente informação sobre as diligências realizadas na cidade, e que têm como objetivo central assegurar dois propósitos fundamentais: por um lado, tornear as dificuldades que são esperadas da

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parte das autoridades de Cantão, antevendo-se que estas procurarão imiscuir-se no desenrolar da embaixada, exigir conhecer os termos da missiva do rei, indagar sobre os presentes que este envia ao imperador, determinar procedimentos, estabelecer rotas de viagem, prover a despesas, fazer no fundo o que lhes compete para demonstrar aos estrangeiros que aqui se aprestam a vir, que vão entrar num mundo que apenas aceita recebê-los porque vêm atestar a superioridade de quem os recebe; por outro lado, garantir a todo o custo que à embaixada não seja conferida a classificação de “tributária”, ofensiva da dignidade do rei de Portugal e comprometedora de uma relação que se julga ser entre iguais. Os padres de Macau convocados por Pacheco de Sampaio para o auxiliarem a encontrar o melhor meio de vencer estes desafios iniciais, cuja boa resolução é vital para o sucesso da embaixada, para a imagem de Portugal perante os seus pares que observam curiosos à distância, e para a natural sobrevivência política do embaixador, concordam que conseguir dos mandarins de Cantão o que ele pretende é tarefa impossível, restando o recurso direto à corte, ainda que o resultado seja incerto, porque o imperador em dezassete anos de governo ainda não tinha dado a conhecer o verdadeiro caráter do seu génio. Pacheco de Sampaio decide recorrer então aos “oficiais de ligação” de que Portugal e o Padroado dispõem em Pequim, de modo a obter, a partir daí, o que pretende: viajar em direção à capital do império sem grandes entraves em Cantão, com a pública menção de que vem não para prestar tributo, caso em que não dava um passo fora de Macau, mas que chega enviado por um rei

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desejoso de imitar as ações dos seus ascendentes, dando os parabéns – muito atrasados, é bem dizê-lo – pela exaltação de um novo imperador ao trono. A estratégia produzirá os seus efeitos. O Pe. Hallerstein, a quem escrevera a partir de Macau e a quem enviara carta de recomendação da rainha-mãe, consegue comunicar-se com o imperador, na ocasião a caçar tigres na Tartária, que acolhe com agrado a ideia de receber uma embaixada europeia, porventura interrogando-se porque não merecera ainda a deferência que fora feita ao seu pai e ao seu avô. Despacha Hallerstein e um dignitário manchu para Macau com ordens de acompanharem o embaixador na viagem, põe travão às querelas irritantes dos mandarins de Cantão, previne a intervenção potencialmente perturbadora do Tribunal dos Ritos, e tudo dispõe de modo a garantir que a embaixada venha, mesmo contra as praxes e os estilos estabelecidas no império. Pacheco de Sampaio é o primeiro a interrogar-se sobre a razão por detrás de tamanha deferência, dando-nos conta de que todo o sistema do governo da China assenta na infalível observância dos seus estilos, não duvidando a cada passo prescindir das forças da razão, só por conservar a autoridade dos costumes. É a distinta estimação que o imperador faz da embaixada, a resposta que encontra. É ela o veículo que o coloca a caminho de Pequim, que finalmente o força a sair da casa de Macau em que ele e toda a comitiva se encerraram desde o dia em que chegaram à cidade, e que o faz passar imperturbável por Cantão, consciente do susto que lhe pregou e indiferente agora ao ódio com que aborrece aos europeus.

Depois da angústia dos primeiros dias de Macau, o embaixador viaja agora mais descansado. Leva provavelmente nas bandeiras que o acompanham aposta a menção, em carateres chineses, de que vem muito simplesmente felicitar o imperador. Pode além do mais dizer a Lisboa, para que não haja dúvidas do seu sucesso, que há editais afixados em locais públicos que ameaçam rigoroso castigo a todos os que se atrevam a dar-lhe o nome de tributário. Está salva a honra de Portugal, está protegida a dignidade do rei, está salvaguardada a comparação que alguém mal-intencionado queira fazer com os embaixadores que o antecederam. Pacheco de Sampaio não está porém em condições de perceber que a vitória que julga ter obtido é pouco mais do que pura ilusão. Digam o que disserem os editais, sejam quais forem os pequenos desvios ao cerimonial estabelecido, quer o embaixador os conquiste por esforço próprio, quer resultem de mera benesse do imperador, Pacheco de Sampaio tem perante ele muitos séculos de rituais, de perceções sobre o mundo exterior, de sedimentação cultural, que não se apagam pela simples mudança de carateres, mudança provavelmente aceite com a mesma displicência de quem responde a um capricho sem consequências. Não que os Qing sigam à risca as rotinas herdadas de dinastias anteriores. O mundo está em mudança, há ameaças de tipo novo a chegar ao Império, o jogo de aparências envolvendo as embaixadas começa a revelar-se mal adaptado aos estrangeiros que vêm de longe, pouco instruídos face a um sistema hierárquico de relações que provou durante tanto tempo as suas virtualidades. Ainda assim, é como tributários que os embaixadores portugueses são vistos pelo mandarim

Nós os franceses ... que manda afixar o edital em Cantão, pelo camponês que na margem do grande canal vê passar as suas barcas e as suas bandeiras, e pelo funcionário que regista a sua passagem nos livros da corte. É nessa qualidade que Pacheco de Sampaio entrará em Pequim, no dia 1 de Maio de 1753, mesmo que chegue impante da pequena conquista que julga ter obtido uns meses antes. Neuvialle não o vê entrar. Ficou em Macau, onde o víramos auxiliar Pacheco de Sampaio nos trâmites com Cantão. A sua Relação é por isso uma obra de colaboração entre a mão que escreve e os olhos que observaram o que em Pequim se passou. Neuvialle não nos deixa pistas sobre o seu informador. Pode até ser mais de um, com o jesuíta a compilar as informações que lhe chegam por diferentes vias. É sedutora a ideia de que possa ter sido Attiret, o irmão que faz o retrato do embaixador, a mesma mão que o imobiliza colocando-o ao mesmo tempo em movimento em Pequim. Os “padres franceses” são poucos, pelo que a probabilidade joga até a favor desta ideia, e Attiret já provou ter dotes epistolares que estão à altura do seu pincel, bastando para tal prova ler a carta que de Pequim escrevera a Monsieur d’Assaut, seu conterrâneo, descrevendo as belezas do Yuanming Yuan, o jardim imperial que Pacheco de Sampaio tão bem conhecerá. Mas também pode ser português. Neuvialle é fluente nesta língua, escreve nela de modo escorreito e é aliás português o correspondente para quem elabora a sua Relação. A rivalidade que opôs os jesuítas da missão francesa aos “portugueses” vinculados à vice-província da China no momento em que os primeiros aqui chegaram há quase um século atrás, se não está totalmente dissipada, é uma sombra do que foi no passado. Outras riva-

lidades estão porém agora bem presentes, pelo que poderemos jogar com um elevado grau de certeza de que não foi um missionário propagandista o confidente de Neuvialle. Neuvialle vê pois pelos olhos de terceiro, muito do que Pacheco de Sampaio viu também. Mas vê igualmente coisas que este não viu, pela razão simples de não poder o embaixador estar ao mesmo tempo apresentando as credenciais ao imperador, e observar o impacto que a disciplina e a imobilidade de três horas da sua comitiva, que se quedara pela primeira Porta sem permissão para ir mais longe, causa entre os chinas, os quais não se satisfazendo só de ver, e observar, apalpavam as botas e os vestidos, e ainda os jaezes, e ornatos dos cavalos. E ainda que ambos tenham visto o mesmo, há coisas que Neuvialle pode dizer, mas Pacheco de Sampaio não pode. Só Neuvialle nos pode dar conta da boa impressão que o embaixador causa nos padres de Pequim por ocasião do primeiro contato. É ele que nos dirá que logo que chegaram à sua presença conheceram por si mesmos a boa eleição que tinha feito El Rei e a sua cortesia, e afabilidade, prudência, e sagacidade juntas com a sua modéstia, e certo modo que atrai os corações, cativou a todos. Em contrapartida, é Pacheco de Sampaio quem se encontra em melhor posição para contar como na manhã do dia 4 de maio é recebido em audiência marcada propositadamente para o efeito por Qianlong; como faz a entrega em mão da carta do rei de Portugal, introduzindo uma brecha mais na etiqueta exigível aos enviados tributários; o modo como realiza o koutou obrigatório, circunstância de maior distinção nesta cerimónia ; o que diz ao imperador quando este o autoriza a discursar,

revelando-lhe o único negócio da sua embaixada; como reage o imperador expectante quando chega ao fim o eco português-mandarimmanchu das suas palavras e aquele se capacita então do que lhe foi dito; como lhe responde o imperador e os elogios que na ocasião emprega, que só podiam ter fundamento na sua real beneficência. Pacheco de Sampaio tem razões para sair satisfeito da audiência. Uma importante parte da sua missão está cumprida, e o imperador deulhe indícios suficientes para crer que a sua vinda foi apreciada e que a imagem do seu rei saiu engrandecida. Receberá disso a confirmação no dia seguinte, quando souber ter sido Hallerstein elevado a mandarim de 3.ª classe e, dois dias depois deste, quando o avisam de que o imperador quer vê-lo a si e à sua comitiva por ocasião da sua ida, no dia 8 de maio, ao Templo do Céu, para um sacrifício. O contraste dos cinquenta cavalos de Pacheco de Sampaio com os quatro mil cavalos tártaros do imperador, quando estes se encontram, terá sido grande, se é que é legítimo a alguém pretender comparar-se ao fausto do imperador da China. Mas a Qianlong não importou a diferença de número. A sua curiosidade fá-lo mandar apear o grande-secretário, como conta Neuvialle, e encarregá-lo de saber de cada um dos da comitiva quais eram os seus ofícios, não se isentando desta curiosidade nem ainda os cafres; e relatando-lhe o Conde [grande-secretário] tudo o que eles lhe diziam, recebia com grande riso e aplauso estas respostas. Um novo encontro, já mais formal, será aprazado para dia 11 de maio, desta vez para o Yuanming Yuan, o complexo de jardins e residências nas imediações de Pequim que vem sendo desenvolvido desde Kangxi,

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e que o imperador prefere aos horizontes limitados do palácio imperial. É a ocasião para fazer a troca do mimo de D. José I para o imperador e o deste para o rei de Portugal. É ocasião igualmente para o banquete que Qianlong oferece a Pacheco de Sampaio e à sua comitiva, que é autorizada a circular, de acordo com Neuvialle, com os espadins, com eles entrando em todas as mais ocasiões em que apareceram diante do imperador, privilégio que até agora se não tinha concedido. Ao banquete que terá lugar, segundo a Relação de Neuvialle em barracas ao modo chino, e segundo Pacheco de Sampaio, em tenda de campanha armada, assistem tanto a comitiva portuguesa – na qual se inserem Hallerstein e Castiglione –, como os Padres que servem no Paço. Neuvialle, mais escrupuloso nos atributos religiosos, diz-nos quem são os padres – Benoît e Sichelbarth – e quem são os irmãos – Attiret e Thébault – só depois lembrando, pela ordem natural que porá nas coisas, o padre propagandista Segismundo. Neuvialle e Pacheco de Sampaio tornam a não se entender quanto a que título o padre Félix da Rocha assiste, em primeiro plano, à cerimónia: por intervenção do irmão Castiglione, segundo Neuvialle, comprovando que em Pequim alguns irmãos podem mais do que os padres; pela razão de me assistir em casa como intérprete nas ocasiões em que o Padre Hallerstein estava fora, na versão do embaixador. Mas neste assunto, mesmo à distância, não é de excluir que esteja Neuvialle melhor informado. No banquete que se desenrola perante o imperador, diz Neuvialle que pouco se comeu, porque não obstante haver pratos com muita variedade de comeres e frutas, (…) nestes

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actos gastam os chinas mais o tempo em cerimónias do que em comer. Valeu o facto de antes do banquete cerimonial ter sido a comitiva brindada com jantar de peixe, ementa que Pacheco de Sampaio leva à conta da singular advertência com que o imperador sempre o tratou, pela circunstância de ser sexta-feira. Chamado Pacheco de Sampaio para junto do trono do imperador, este dá-lhe da sua mão um copo de ouro com vinho, dizendo-lhe que bebesse o que pudesse. Bebendo, o embaixador aproveita a oportunidade para dizer a Qianlong que naquela hora acabava de cumprir com todos os negócios que [o] tinham conduzido à sua presença, que entregue a carta e o mimo, só [lhe] restava que Sua Majestade lhe assignasse o dia em que deveria retirar-[se] para Macau. Pacheco de Sampaio está há onze dias em Pequim, mas tem pressa. Cumpriu o que lhe foi pedido, levou ao imperador da China uma carta de um rei longínquo composta por palavras inofensivas, foi cumulado com honras que lhe sopram não terem paralelo, levando-as até à conta de mérito próprio, não pretende envolver-se em empresas arriscadas, não quer provocar pretextos para reverter um cenário que lhe fica bem, e com o qual poderá compor, sem receio de faltar à verdade, um relato favorável. Bastará poisar o copo do qual beb[eu] um pouco e partir. Neuvialle não regista o diálogo, provavelmente por ocorrer distante dos ouvidos do seu informador. Não sabe por isso que Qianlong não lhe determina dia para a partida, pondo esse encargo sobre os ombros de Hallerstein. A comitiva não abandonará o Yuanming Yuan sem antes realizarem um

passeio pelos seus canais e pelos seus jardins, ao longo dos quais de desenrolavam representações, músicas, danças, brigas fingidas e outras mutações semelhantes, sempre em exercício, com Pacheco de Sampaio a observar que o Conde não se satisfazia de me repetir que aquele modo de festejar-me fora todo da eleição do imperador. Passam depois à casa chamada europeia, assim classificada por Neuvialle por ser modernamente reedificada ao modo da Europa. O embaixador é mais explícito, dando aos padres a autoria do desenho, logo acrescentando, em jactância que já começa a maçar, que se havia concluído com a maior pressa, pelo grande empenho que o imperador teve que eu a visse na sua última perfeição. A fachada exterior não o terá impressionado. Diz apenas, de modo algo enigmático, que a naturalidade do arquiteto deve suprir a que falta na do edifício. Já sobre o interior é um pouco mais claro e liberal, contando que se achava a primeira sala ornada de muitas alfaias da Europa, a maior parte impróprias, mas todas estas impropriedades se reduziam a uma boa harmonia com a excelente pintura dos tectos, obra do grande Castiglione e de outros padres que servem no paço. Pacheco de Sampaio foi provavelmente o primeiro europeu entre os não residentes em Pequim a observar a fase inicial da extravagância arquitetónica europeia de Qianlong. A casa europeia, que na realidade recebeu o nome de Xieqiqu, o Palácio das Delícias da Harmonia, terá ficado concluído em 1751, sendo este o palácio que inaugura o conjunto de edifícios de ressonâncias arquitetónicas barrocas – mas que não deixa de incorporar elementos chineses –, que serão erguidos sucessivamente, ao longo de mais de três décadas, em duas largas alame-

Nós os franceses ... das em formato de esquadro, insertas num dos topos do Jardim da Eterna Primavera, a parcela do Yuanming Yuan acrescentada laboriosamente por Qianlong. Na sua conceção participaram Castiglione, Attiret, Ferdinando Moggi – também jesuíta, como aqueles –, auxiliados por Benoît, que assegurou o mecanismo hidráulico das fontes. São estes os tradutores de civilizações que introduzem Qianlong num mundo que lhe suscita curiosidade e atenção. Não se limita a fazer perguntas, como o seu avô, que mandou indagar junto de Van Hoorn sobre a que distância ficava Batávia da Holanda ou se havia tigres e animais perigosos neste país. Qianlong quer mais do que isso, quer postar-se no topo da alameda e imaginar-se em terras distantes, sentir-se um vulgar europeu como gosta de sentir-se um vulgar chinês na pequena cidade chinesa de fantasia que mandou erigir no seu jardim, avec ses rues, ses places, ses temples, ses halles, ses marchés, ses boutiques, ses tribunaux, ses palais, son port, enfim, tout ce qui se trouve en grand dans la capitale de l’Empire s’y trouve en petit (…) [pour] se procurer le plaisir de voir en raccourci tout le fracas d’une grande ville, toutes les fois qu’il le souhaiterait, segundo conta Attiret. É esta sua vontade de projecção para outros espaços, que pode ajudar a compreender a deferência que reserva a um desconhecido magistrado que vem de Benavente. Pacheco de Sampaio ainda se encontrará três vezes mais com o imperador, e sempre no Yuanming Yuan , antes da sua partida de Pequim: a 18 de maio, para um banquete em que foi menor a solenidade ; a 28 de maio, com o propósito de se despedir, de onde sai satisfeito de se ter conseguido esta boa aceitação entre gente que ainda conserva uma viva memória

da sua primeira barbaridade na desconfiança com que trata aos estrangeiros e superioridade que afecta às mais nações do mundo; a 6 de Junho, na antevéspera da partida, depois de o imperador lhe ter pedido para prolongar a sua estadia de modo a poder assistir às festividades da 5.ª lua. Em todas estas ocasiões, Qianlong mima o embaixador com presentes da sua própria mão: um pequeno frasco para o tabaco, um ru yi de jade, uma jarra de porcelana e, num gesto de inesperada amizade – a mais própria alegoria de dois amigos verdadeiros, nas palavras de Neuvialle –, uma caixa de coral contendo um papel dobrado em forma de livro que se compunha de várias letras e pinturas, comprovando os dotes de calígrafo e de pintor do imperador. Pacheco de Sampaio põe o imperador a dizer-lhe que não duvidava dar-me nelas a maior prova de estimação que lhe merecera, sendo que no seu império não podia pessoa alguma possuí-las. Entre banquetes e entrevistas, Pacheco de Sampaio tem tempo para algumas visitas: o observatório astronómico, a torre do sino, os jardins contíguos ao palácio imperial, as igrejas e colégios dos missionários de Pequim, onde por norma janta, convidando-se em cada um destes dias também os padres das outras igrejas. A igreja dos propagandistas fica para os últimos dias. Neuvialle dá disso notícia de modo descuidado, numa linha; Pacheco de Sampaio espraiar-se-á em pormenores que não utilizou com as demais. Impressionou-o sobretudo o génio e o desembaraço do frade agostinho piemontês, Segismundo Meinardi, que quando soube da vinda da embaixada a Pequim, lançou os alicerces de uma nova igreja, capacitando-se que a ocasião lhe facilitava

a licença que não conseguiria se a pedisse. O imperador que por ela passou a caminho do Templo do Céu, terá dito, segundo Pacheco de Sampaio, que o europeu quer mostrar ao embaixador a sua igreja concluída, mas não será fácil que o consiga no breve tempo da sua demora. O dito do imperador terá acicatado o desejo do missionário propagandista de que o embaixador fosse visitar a sua obra. Desse desejo terá dado conta a Hallerstein, advertindo-o do perigo em que se incorreria se o embaixador tratasse aqueles lugares com desigualdade . Pacheco de Sampaio está consciente da oposição que os propagandistas têm às regalias do padroado destas missões, mas não duvidou na ocasião, ainda que conhecedor das reticências de alguns, em ir ver a obra. O mesmo escrúpulo de a todos tratar por igual não terá, todavia, no momento de repartir os cavalos que deixará em Pequim: o melhor deles para Hallerstein, naturalmente, seis aos padres franceses, dois aos propagandistas, e o grosso deles – mas sem sabermos de que modo divididos – para os do Colégio de São José e para o dignitário manchu que o acompanhou na capital. No momento da primeira audiência com o imperador, Pacheco de Sampaio revelou a este qual era o seu negócio. Inócuo, não problemático, susceptível de gerar o clima distendido e amistoso que o embaixador experimentou durante pouco mais de um mês na capital do império. Ele sabe, de qualquer modo, que a razão principal que determinou a sua vinda não foi verbalizada a Qianlong. Ter-lhe-á sido referida ainda em Lisboa, que está ao corrente, em traços gerais, do que se passa na China; ter-lhe-á sido pintada com as cores vivas de quem viveu e vive uma experiência de assédio e per-

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seguição, pelos missionários que foram o seu convívio diário desde o dia em que desembarcou em Macau. Na Relação de Neuvialle, percebese ser este um tema candente. É por ele que sabemos que na tarde do dia da primeira audiência, Hallerstein e Gaubil sustentam com Fuheng, o grande-secretário, e aparentemente por iniciativa deste, uma conversa longa sobre as perseguições dos missionários das províncias, com o dignitário chinês a dar nota de que os responsáveis pelo que se havia passado em Fuzhou tinham sido devidamente punidos, e a garantir-lhes que daqui em diante não sucederia outra perseguição. Pouco mais de uma semana depois, a 13 de maio, desenrola-se nova conversa a que assistem os mesmos protagonistas: aqui falou outra vez o Conde Fu da perseguição de Fókien, e assegurou que o imperador não dava crédito ao que se tinha dito contra os europeus; e os padres aproveitando-se desta ocasião falaram da Santa Lei. Em data que Neuvialle não indica, mas anterior a 18 de maio, Hallerstein havia falado também com o governador de Pequim sobre o destino do missionário franciscano Urbano Schamberger, há vários anos preso e naquele momento em Pequim, comprometendo-se o governador a falar sobre o assunto com o grande-secretário, mas com aquele a ausentar-se entretanto da capital deixando o assunto por resolver. Sobre estas conversas, Pacheco de Sampaio pouco diz, depondo a seu favor o facto de terem sido mantidas fora da sua presença. Ele está, ainda assim, em condições de avaliar a ansiedade provocada pela sua presença e acredita, sem injúria da credulidade, que [lhe] concede Deus a glória de servir de instrumento para

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o bom sucesso das pias intenções de [Sua] Majestade. O imperador reteve-o em Pequim mais tempo do que antecipara, os obséquios com que o cumulou foram muitos, as testemunhas desse pecúlio foram inúmeras, e ele sabe que disso se encarregarão de dar notícia, como fez Neuvialle, a muitos mais. Sente-se por isso obrigado a fazer que os mesmos padres tirassem a consequência à declamação de felicidades com tanto excesso encarecidas. Não lhe perdoarão os padres se não demonstrar que algo fez em prol da sua sorte. Pede a cada um o seu parecer por escrito, como sabe que o fizera Alexandre Metelo, seu antecessor uns anos antes em igual missão, e obtém das respostas recebidas o desengano que já premeditava ao tempo que os pedia, confessando que a experiência própria me deixou bem advertido, que os aplausos com que o imperador se antecipou em esperar-me, foram, sem dúvida, nascidos do insaciável desejo que tinha de não merecer menos que seu pai às nações da Europa, e que o não falar em ponto de religião foi o motivo mais eficaz que ao depois lhe mereceu aquele agrado e distinção com que sempre me atendeu. Feliz Pacheco de Sampaio, ninguém lhe exige que faça o que ele não quer fazer. Num ponto terá Pacheco de Sampaio razão. Tivesse ele seguido em sentido contrário aos pareceres que recolheu, falando a Qianlong nas aflições por que passa a evangelização no seu império, e a embaixada terminaria, provavelmente, no mesmo instante. Talvez o imperador não lhe virasse as costas como fez a Castiglione, que ele terá nas questões de Estado uma contenção que poderá dispensar-se nas relações com aqueles junto de quem priva todos os dias. Mas não haveria certamente ru yi, não haveria caixa com caligrafia,

não haveria nenhuma outra demonstração de afecto. Poderia haver em contrapartida, e são esses os maiores temores dos jesuítas, um recrudescimento das perseguições que sobre eles se abateram. A questão que poderá colocar-se, é qual o grau de consciência que tem Qianlong da agenda escondida, e que não lhe chegou a ser directamente revelada, de que é portador Pacheco de Sampaio. O imperador sabe das perseguições, foi ele que as ordenou, é suposto estar a par do que se passa no mais remoto dos seus domínios. Sabe também quanto elas afectam muitos dos europeus que o rodeiam e, se não for insensível, será capaz de as perceber nos semblantes preocupados de Attiret ou de Castiglione. Conhecerá também as conversas mantidas por Fuheng, o seu grande-secretário, com os padres de Pequim e com o próprio Pacheco de Sampaio durante o tempo que este está em Pequim. Conhece por conseguinte o contexto, conhece os desejos de cada actor, sejam eles confessados ou inconfessados, pode até ter estado com redobrada atenção na primeira audiência em que ouviu da boca de Pacheco de Sampaio o que o traz a Pequim, na expectativa de alguma palavra deslocada, mas não é de crer, como o embaixador parece acreditar, que a distinção com que o [imperador] sempre [o] atendeu tenha sido por assim o imperador como os ministros do seu Conselho não deixar[em] de conhecer que por política se não praticara esta matéria, no fundo, um prémio por ter calado o que todos sabem. Qianlong está contente porque tem na frente, por fim, um enviado que vem da Europa, aquela terra longínqua onde se constroem os palácios

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Qianlong observando os pavões, autor desconhecido, Palace Museum, Beijing.

que pediu a Castiglione para imitar, e quer dar prova do seu contentamento. Mas está também consciente que interpreta um ritual que vem de séculos, sedimentado, codificado, sujeito a regras que os que estão próximos do seu império conhecem e respeitam. Não espera por isso de uma embaixada que esta constitua um veículo para a negociação, como muito amargamente perceberam os holandeses, os primeiros a envolverse na teia do sistema tributário durante a dinastia Qing. O que interessa é manter as aparências, a ilusão de uma superioridade que se oferece a quem assiste ao espectáculo que se desenrola seja no espaço protegido do Yuanming Yuan, seja nas ruas movimentadas de Pequim. Assim, que cada um cumpra o seu papel. Que Qianlong exprima agradecimento e amizade a quem vem

reconhecer o seu poder, que se lhe enterneça até o seu coração; que Pacheco de Sampaio venha, esteja e parta, e que o único traço da sua passagem seja aquele que sai do pincel de Attiret. Pacheco de Sampaio deixa Pequim, com Hallerstein de novo ao seu lado, a 8 de junho de 1753, com a consciência tranquila de quem cumpriu bem a sua missão. Esperam-no ainda as armadilhas que os mandarins de Cantão ardilosamente lhe prepararam para a viagem de regresso, com a cumplicidade de alguns outros em Pequim, levando Hallerstein a confessar incrédulo que todas as experiências lhe não bastavam para viver na China sem enganos. Pacheco de Sampaio invoca uma crise de hemorroidas para se furtar a elas – no meu mal tínhamos o melhor remédio – inaugurando,

com toda a probabilidade, uma inédita habilidade protocolar. Em Macau, terá Te Deum em ação de graças pelo bom sucesso da embaixada, missa cantada na sé e sermão pregado pelo padre Luís Sequeira, no qual soube unir com muita eloquência os louvores de elrei de Portugal, com a circunstância da embaixada, da qual se viam radicadas as esperanças em favor dos portugueses e da Santa Lei. Neuvialle atento, certamente em lugar de acordo com a sua posição. A Lisboa chegará a 31 de agosto de 1755, quem sabe se com o chapéu que está num dos retratos que lhe pintou Attiret. Não o que ficou pendurado na Casa Francesa, porque quanto a esse, como diz Neuvialle, nós os franceses mais quisemos ver toda a sua cabeça.

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Noticia da Viagem que fez do Rio de Lisboa na Nau Europa a 23 de Fevereiro de 1752 até à Praça de Macau, onde chegou a 5 de Agosto o Doutor Francisco Xavier de Assis Pacheco, e Sam Payo Cavaleiro da Ordem de Christo, Ministro do Concelho Ultramarino, e Embaixador Extraordinario de Sua Magestade Fidelissima ao Imperador da China. Dada em huma Carta escrita por huma pessoa da sua cometiva, Lisboa, na Officina de Pedro Ferreira, 1753 Oração funebre em a morte do Senhor Francisco Xavier de Assis Pacheco e Sampayo, Do Conselho de S. Magestade Fidelissima, e do Ultramar: e antes Embaixador Extraordinario à Corte de Pekin, etc. etc. etc., Offerecida a todos os seus Amigos por Francisco de Azevedo Coutinho e Faro, Lisboa, na Officina de Miguel Manescal da Costa, 1767 Relação da jornada que fez ao Imperio da China, e summaria noticia da embaixada que deo na Corte de Pekim em o primeiro de Mayo de 1753, o Senhor Francisco Xavier Assiz Pacheco e Sampayo, Professo na Ordem de Cristo; Conselheiro do Conselho do Ultramar; e do de Sua Magestade Fidelíssima. Escrita a hum Padre da Companhia de Jesus, Assistente em Lisboa, pelo Reverendo Padre Newielhe Francez, da mesma Companhia; Assistente no seu Collegio de Macáo, Lisboa, na Officina dos Herd. de Antonio Pedrozo Galram, 1754 Relatório de Francisco de Assis Pacheco de Sampaio a El-Rei D. José I dando conta dos successos da Embaixada a que fora mandado á Corte de Pequim no anno de 1752, publicado por Judice Biker, Lisboa, Imprensa Nacional, 1879 Bibliografia Alves, Jorge dos Santos “Natureza do Primeiro Ciclo de Diplomacia Luso-Chinesa (séculos XVI a XVIII)”, Um Porto entre dois Impérios: estudos sobre Macau e as relações luso-chinesas, Instituto Português do Oriente, 1999 Azevedo, Álvaro Rodrigues de, Benavente: estudo histórico-descritivo, Lisboa: 1926 Cranmer-Byng, John L. e Wills, Jr, John E., “Trade and Diplomacy with Maritime Europe, 1644-c.1800”, China and Maritime Europe, 1500-1800: Trade, Settlement, Diplomacy and Missions, Cambridge University Press, 2011 Dehergne, Joseph, Répertoire des Jésuites de Chine de 1552 à 1800, Roma: Institutum Historicum, 1973 Fairbank, J.K., e Têng, S.Y., “On the Ch’ing Tributary System”, Harvard Journal of Asiatic Studies, vol. 6, n.º 2, Jun 1941, p. 176-181

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