NÓS, OS ÍNDIOS. E OS NOVOS COLONIZADORES

June 1, 2017 | Autor: Wilson Bentos | Categoria: Social Psychology, Social and Cultural Anthropology
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NÓS, OS ÍNDIOS. E OS NOVOS COLONIZADORES

Nós somos um povo esquisito, os que nascemos a oeste do Rio Paraná. Para começar, enquanto o resto do Brasil ficou do lado português de Tordesilhas, nós ficamos do lado espanhol. Para piorar um pouco as coisas, parte de nós nos tornamos brasileiros recentemente, depois da Guerra do Paraguai, quando o trecho entre os rios Apa e Branco passou a usar a bandeira verde amarela.

Talvez por isso, nossa gente se emocione mais com uma polca paraguaia do que com o hino nacional. Por isso, entendemos o que é locro, puchero, matambre e sopa paraguaia enquanto o resto do Brasil sequer sabe se isso é de comer. Nossos ancestrais não se importavam muito em saber a que país pertenciam porque viveram em um tempo anterior às fronteiras.
E costumam transitar lá e cá, atrás do gado e da erva-mate.

Os primeiros imigrantes vindos do Rio Grande do Sul também não eram estranhos. Eram igualmente "fronterizos", que não vinham diferença entre Uruguai, Argentina e Brasil. Afinal, tudo era pampa e todos eram gauchos. A navegação pelo Rio da Prata e pelo Rio Paraguai nos tornava todos mais próximos da América Espanhola que do Brasil português.

Assim como nossos ancestrais, eles se misturavam aos índios e faziam casamentos entre eles, quase nunca de papel passado. E nós, que viemos depois, crescemos entre terenas, kaiowas e kadiweus bebendo água dos potes que eles fabricavam, sendo cuidados pelas suas mulheres e transitando em suas aldeias. O sangue deles corria em nossas veias miscigenadas.

A arte indígena enfeitava nossas casas e alegrava nossos corações com suas cores vivas, seu grafismo rebuscado e sua utilidade sempre bem-vinda, num tempo anterior aos supermercados e utensílios de plástico.

Como índios, nos acostumamos a receber os povos de outras terras. Nós sabíamos que por aqui havia muito espaço a ser ocupado. Mas os imigrantes do Século XX eram diferentes daqueles do século anterior. Eles arrancaram as árvores tortas do nosso cerrado cheio de contrastes para implantar em nossa terra a monotonia da monocultura.

Eram gaúchos, paranaenses, paulistas, mineiros, muitos ainda com o sotaque carregado de sua ancestralidade alemã e italiana. E, assim como os outros índios receberam pacificamente Pedro Álvares Cabral, nós também os acolhemos com curiosidade, excitados pela perspectiva de progresso que eles pareciam trazer. Mas, repetindo o erro de 1500, nós não percebemos que estes também eram colonizadores.

Nós não notamos que embora eles construíssem aqui as suas casas, jamais considerariam aqui como o seu lar. Eles jamais amariam nossa terra como a amamos. Mas nós não percebemos isso. Com seu espírito de colonizadores, eles extraíram nossas riquezas mas não as deixaram aqui. Seus corações e mentes sempre estiveram voltados para a pátria que deixaram para trás e era para lá que destinavam o produto dos seus ganhos.
Com sua pressa em enriquecer, atropelaram nossos sítios históricos com seus arados mecanizados, desnudando o nosso solo e expondo-o ao sol. Quando a água da chuva chegou e encontrou o solo nu, levou a matéria orgânica para os rios, sufocando os peixes e a vida aquática. Os rios pantaneiros, exuberantes de vida, foram sendo fatiados por milhões de bancos de areia, reduzidos a corregozinhos minguados e rasos.

Incapazes de compreender o tempo cíclico dos nossos índios, eles os rotularam de preguiçosos pois, na sua pressa de fazer dinheiro não tiveram tempo de observar a lua e os suas fases, as estrelas e suas mensagens que sobre o tempo certo de plantar, de colher e de festejar. Os índios foram arrancados de suas raízes e, sem solo para pisar, se penduraram em árvores amarrados pelo pescoço numa série de suicídios que ninguém nunca conseguiu estancar. Outros chafurdaram no álcool e nas drogas, incapazes de viver num mundo regulado pelo tempo da ganância.

E nós, como os índios de 1500, continuamos trocando nosso ouro por espelhinhos e bugigangas sem valor, fascinados pelos colonizadores e por seus truques baratos. Nós ficamos cada vez mais longe de nossas raízes enquanto nossos irmãos aldeados são dizimados pela miséria ou pelo chumbo, ferro e fogo. Nós assistimos tudo embasbacados. E, por achar que nada disso nos afeta, agimos como se nada fosse da nossa conta, sem perceber que, sem raízes, somos como os aguapés que são tangidos pelas correntes, sem nunca saber aonde vão parar.



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