Nos subterrâneos da aventura: a caracterização de personages femininas em A narrativa de A. Gordon Pym, de E. A. Poe, e A ilha do tesouro, de R. L. Stevenson

June 5, 2017 | Autor: Letícia Malloy | Categoria: Daniel Defoe, Edgar Allan Poe, Robert Louis Stevenson, Robinson Crusoe
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ISSN: 2238-0787

Universidade de Caxias do Sul Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Humanas e da Educação Programa de Pós-Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade Programa de Doutorado em Letras – Associação Ampla UCS/UniRitter

ANAIS DO VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL E XVI SEMINÁRIO NACIONAL MULHER E LITERATURA Mulheres de Letras – do Oitocentismo à Contemporaneidade: Transformações e Perspectivas Homenageadas: escritoras do Partenon Literário

Organização dos Anais Dr. André Tessaro Pelinser – UCS Dr. João Claudio Arendt – UCS Me. Bruno Misturini – UCS Ma. Karen Gomes da Rocha – UCS Larissa Rizzon da Silva – UCS

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Universidade de Caxias do Sul UCS - BICE - Processamento Técnico S471c

Seminário Internacional Mulher e Literatura (7. : 2015 : Caxias do Sul, RS). Anais do VII Seminário Internacional e XVI Seminário Nacional Mulher e Literatura / org. André Tessaro Pelinser ... [et al.]. – Caxias do Sul, RS : Educs, 2016. 1359 p.: il.; ... cm. Mulheres de Letras – do Oitocentismo à contemporaneidade : transformações e perspectivas. Homenageadas: escritoras do Partenon Literário. ISSN: 2238-0787 1. Mulheres na literatura - Congressos. I. Título. II. Pelinser, André Tessaro. III. Seminário Nacional Mulher e Literatura (16. : 2015 : Caxias do Sul). CDU. 2.ed. : 82-055.2(062.552) Índice para o catálogo sistemático:

1. Mulheres na literatura - Congressos Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária Carolina Meirelles Meroni – CRB 10/ 2187

82-055.2(062.552)

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Coordernação do Evento Dra. Cecil Jeanine Albert Zinani – PPGLET/UCS Dra. Salete Rosa Pezzi dos Santos – PPGLET/UCS

Comissão Organizadora Local Dra. Cecil Jeanine Albert Zinani - UCS Dra. Cristina Loff Knapp - UCS Dra. Elsa Mônica Bonito Basso - UCS Dr. João Claudio Arendt - UCS Ma. Niura Maria Fontana - UCS Dra. Salete Rosa Pezzi dos Santos - UCS

Comissão Organizadora Nacional Dra. Ana Gabriela Macedo - Minho (Portugal) Dra. Ana Luísa Amaral - Universidade do Porto (Portugal) Dra. Claudia Amengual - Uruguai Dra. Claudia de Lima Costa - UFSC Dra. Conceição Flores - UnP Dra. Constância Lima Duarte - UFMG Dra. Cristina Maria Teixeira Stevens - UnB Dra. Ivia Iracema Duarte - UFBA Dra. Liane Schneider - UFPB Dra. Nancy Rita Ferreira Vieira - UFBA Dra. Rita Terezinha Schmidt - UFRGS Dra. Rosana Cássia Kamita - UFSC Dra. Susana Borneo Funck - UFSC Dra. Zahidé Lupinacci Muzart - UFSC

Comissão de Executiva Ana Júlia Poletto Ana Paula Ody Batista André Tessaro Pelinser Angélica Vinhatti Gonçalves Ferla Bruno Misturini

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ISSN: 2238-0787 Caren Fernanda Haack Daniela Pioner Daniele Marcon Diego Conto Lunelli Felipe Teixeira Zobaran Gilberto Broilo Neto Juliana Rossa Karen Gomes da Rocha Larissa Rizzon da Silva Lisiane Ott Schulz Marciele Borchert Mariana Duarte Odair José Silva dos Santos Patrícia Peroni Paula Sperb Roberto Rossi Menegotto Rossana Rossigali Sheila da Rocha Tandra Pramio

Realização Programa de Pós-Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade (UCS) Programa de Doutorado em Letras - Associação Ampla UCS/UniRitter Curso de Graduação em Letras (UCS)

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ISSN: 2238-0787 SIMPÓSIO TEMÁTICO 13 Personagens femininas na voz de seus narradores

NOS SUBTERRÂNEOS DA AVENTURA: A CARACTERIZAÇÃO DE PERSONAGENS FEMININAS EM A NARRATIVA DE A. GORDON PYM, DE E. A. POE, E A ILHA DO TESOURO, DE R. L. STEVENSON Letícia Malloy (UFMG / FAPEMIG) A partir do século XVI, o percurso de extensas rotas marítimas iniciadas no continente europeu impulsionou a escrita sobre espaços e alteridades até então desconhecidas. De registros epistolares a anotações de naturalistas que, já nos séculos XVIII e XIX, redigiram pormenores de suas expedições científicas e conferiram vigor à literatura de viagem, a escrita sobre o desbravamento de territórios possui, como titulares, personagens históricas masculinas. Entre essa faceta das escritas de caráter histórico-documental e a escrita criativa, ainda que preservada a compreensão sobre a autonomia do texto literário, verificam-se relações de porosidade. Nessa linha de raciocínio, a travessia dos mares e a exploração de espaços distintos consistem em fatores que, perfilados ao despontar do protestantismo e do individualismo, participam da fundação do gênero romanesco. É o que ressalta Ian Watt em A ascensão do romance (2010, p. 63 e seg.) ao examinar, dentre outros textos literários, o Robinson Crusoé de Daniel Defoe, publicado em 1719. Após a narrativa das peripécias de Crusoé, verifica-se a composição de romances de aventuras como A Narrativa de A. Gordon Pym, de Edgar Allan Poe, publicado em 1838, e A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson, publicado em 1883. Nos dois romances, observa-se a apresentação opaca de personagens femininas, citadas pontualmente por narradores masculinos. À reflexão ora proposta, interessa lançar luz às passagens daqueles romances em que se evidencia a interdição do protagonismo feminino nos domínios da aventura. Para isso, examina-se, no primeiro texto, a imagem das mulheres que morrem em um navio possivelmente holandês e não logram completar a travessia almejada (POE, 2010, p. 124); em face do segundo texto, reflete-se sobre a “mulher santa” e a “mulher de cor” ou “mulher velha” (STEVENSON, 2011, pp. 59-60; 83; 109). Estas, fixadas no território inglês e postas silenciosamente à espera de homens, habitam não mais que os subterrâneos da narrativa e somente são lembradas à medida que mostram alguma utilidade à ação dos aventureiros. Em ambas as obras, engendram-se processos rememorativos que, embora ofereçam modulações capazes de atenuar o efeito de autenticidade da matéria narrada, efeito este proposto décadas antes por Daniel Defoe em 521

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Robinson Crusoé, buscam preservar a autoridade e a credibilidade dos narradores-protagonistas. É de se notar que no caso de A narrativa de A. Gordon Pym o efeito de autenticidade é problematizado por Poe a partir da afirmação, disposta no Prefácio atribuído a Pym, de que as primeiras páginas sobre as aventuras deste haviam sido escritas por um certo “sr. Poe” e publicadas no jornal Southern Literary Messenger (POE, 2010, p. 15). Em seguida, ainda no Prefácio, Arthur Gordon Pym esclarece que o público leitor se recusa a aceitar a natureza ficcional do texto proposta por aquele “sr. Poe”, o que autoriza Pym a alcançar a inferência a seguir: “Disso concluí que os fatos de minha narrativa eram de natureza tal que traziam consigo prova suficiente de sua autenticidade, e que portanto eu tinha pouco a perder no que respeitava à incredulidade popular” (2010, p. 17). Retomando-se Robinson Crusoé, cabe lembrar que neste romance o narrador-protagonista almeja apresentar-se como pleno definidor dos sentidos do texto e adota um tom moralizante em face do leitor, segundo se depreende de passagens como a seguinte: “(...) que isso sirva de reflexão àqueles que, em sua infelicidade, são propensos a perguntar: ‘Existe aflição igual à minha?’ Que eles pensem no quanto é pior o caso de algumas pessoas, e que a sorte deles poderia ser igual, se a Providência Divina julgasse adequado.” (DEFOE, 2004, pp. 205-6) Em A narrativa de Arthur Gordon Pym, a seu turno, sugere-se um jogo em que o leitor passa a participar, consoante anotado no Prefácio, da construção de sentidos do texto, conferindo um selo de autenticidade àquilo que, a princípio, seria tomado por relato ficcional. À autoridade conferida pelo leitor a Pym perfila-se o respaldo conferido a Jim Hawkins, narrador-protagonista de A ilha do tesouro. Suas recordações sobre a aventura experimentada em sua viagem e durante a frenética estadia na ilha contam com a chancela e com o encorajamento de representantes da nobreza e da elite econômica inglesa, como se observa logo ao início do texto: “O Proprietário Rural, Conde Trelawney, o Dr. Livesey e o resto do cavalheiros me pediram para escrever o relato completo da história da Ilha do Tesouro, do seu início até o seu final, não deixando nada de fora, exceto a localização da ilha.” (STEVENSON, 2011, p. 13) Protagonistas masculinos como Arthur Gordon Pym e Jim Hawkins, antecedidos por uma personagem como Robinson Crusoé, fazem uso de um notável tom de oralidade nos manuscritos por meio dos quais divulgam suas peripécias. Por outro lado, na redação de suas vivências, cooperam para o reforço de uma dinâmica de construção da tradição escrita que se dá pelo registro dos atos enunciativos de determinados sujeitos e pelo abafamento de subjetividades às quais não é franqueado o manuseio da pena e do papel. Dentre tais subjetividades abafadas, encontram-se personagens femininas. É oportuno trazer à reflexão, neste ponto, certa assertiva apresentada por Ricardo Piglia em Formas breves (2004), a partir de menção à escritora francesa Simone Weil. Ao citar Weil, Piglia comenta a oposição estabelecida entre tradição escrita, que seria 522

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fundamentalmente masculina, e voz feminina, observando que a manutenção da voz da mulher se dá à margem e a partir de uma postura de perspicaz resistência, representada pela oralidade da narrativa de Sherazade. Na esteira das considerações de Simone Weil, Piglia assevera que “(...) o arquivo da memória se construía no corpo da mulher em oposição à escrita, ligada, desde sua origem, às técnicas do Estado, à comunicação religiosa, aos cálculos agrários. O relato feminino (Sherazade) resiste aos ditames do rei.” (2004, pp. 83-4) As reflexões de Piglia desenvolvidas mediante referência a Simone Weil sublinham as fricções entre tradição escrita e resistência colocada pela subjetividade que não escreve, entre texto disposto ao centro e voz modulada à margem. Entretanto, cumpre observar, no que toca aos romances aqui examinados, que não seria possível identificar passagens de franca oposição ou fricção entre tradição escrita e resistência de vozes femininas. Isso se deve ao fato de que, em ambos os textos, não se atribui a mulheres a elaboração de reflexões, tampouco se lhes franqueia uma participação no entabulamento de diálogos. As passagens em que são citadas servem, notadamente, aos propósitos de legitimar a ação dos narradores-protagonistas e de outras personagens masculinas, bem como ao objetivo de acrescentar matizes à caracterização daquelas personagens. Nesse sentido, a escrita levada a cabo por homens nas obras ora examinadas mal chega a registrar a voz feminina, colocando-se aquém do que verifica Ruth Silviano Brandão em análise de outros textos literários narrados por personagens masculinas. De acordo com Brandão, “[o] temor do homem diante da mulher desejante, com discurso próprio, acaba por calá-la, através de um estranho recurso: registrar a voz feminina via discurso masculino, aí a inscrevendo como se fosse sua própria enunciação.” (2006, p. 32) Com efeito, não há propriamente um registro de vozes femininas nos romances de Poe e Stevenson, o que se distingue do verificado por Ruth Silviano Brandão em face dos textos literários que analisa. Em A narrativa de A. Gordon Pym, verifica-se apenas uma referência à mãe do protagonista, caracterizada como “histérica” (2010, p. 32) em face dos planos de aventura do filho. As outras figuras femininas ali apresentadas, já quando Pym e alguns de seus companheiros de viagem buscam sobreviver em alto mar equilibrando-se sobre as ruínas de uma embarcação à deriva, consistem em mulheres mortas. A imagem destas sobrevém com a aproximação de outro navio, supostamente mercante e holandês, que também vagueia sem comando pelas águas. Mortas, as mulheres se encontram estendidas em meio a outros corpos, vitimados por doença ou envenenamento, e desaparecem no horizonte à medida que o vento faz deslizar, para além do alcance da vista de Pym, o navio de cadáveres amontoados. O aparecimento dos cadáveres femininos na narrativa traz consigo dois indicadores: o primeiro deles reside em que, nos romances analisados, o espaço da travessia, da aventura e do desbravamento é reservado a 523

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heróis masculinos, estando a mulher fadada a não completar trajetos que demandem arrojo ao perigo. O segundo consiste no fato de que aquelas figuras femininas, tendo sido apresentadas em um episódio de desolação experimentado por Pym, cumprem a limitada finalidade de recordar o protagonista de que seu momento de má sorte decorre da imprudência de suas escolhas. As mulheres mortas se tratam, desse modo, de uma sorte de coro que reverbera os apelos da mãe de Pym, tomados anteriormente por histéricos e não registrados sob a forma de enunciados na trama. Embora desapareçam no horizonte, os corpos das mulheres se fazem registrar nas memórias de Arthur Gordon Pym: “Hei de esquecer algum dia o triplo horror daquele espetáculo? Vinte e cinco ou trinta corpos humanos, entre os quais várias mulheres, jaziam espalhados aqui e ali, entre o painel de popa e a cozinha, no último e mais repugnante estado de putrefação.” (POE, 2010, p. 124) Examinando-se A ilha do tesouro, por sua vez, identificam-se duas personagens femininas para além da mãe de Jim Hawkins, que o abençoa em sua empreitada por estar o jovem na companhia tranquilizadora e abastada do conde Trelawney e do médico Livesey. Aquelas duas personagens são desprovidas de nomes, recebendo somente as designações de “mulher santa” e “mulher de cor” ou “mulher velha”. A “mulher santa” se trata da mãe de Ben Gunn, o “Homem da Ilha” (STEVENSON, 2011, p. 109). Este é assim denominado por Jim Hawkins, que alcança a ilha posteriormente, pelo fato de ter sido deixado naquela localidade remota como punição pela participação em um motim levado a cabo em um navio pirata. A figura da mãe de Ben Gunn funciona à maneira de justificativa para a dura estadia do homem na ilha, já que, anos antes, avisara seu filho sobre uma punição que lhe seria enviada pela Providência Divina em virtude de seu mau comportamento na Inglaterra. A lembrança da “mulher santa” vem à superfície, sobretudo, como estratégia discursiva de Ben Gunn, que objetiva convencer Jim Hawkins acerca de sua honestidade e de seu arrependimento pelos maus feitos, logrando, como consequência, deixar o desterro a que fora condenado. Assim como as mulheres mortas, apresentadas no romance de Poe, a “mulher santa” constante do romance de Stevenson se afigura como operador que subsidia o discurso masculino. A partir de referência à “mulher santa”, Ben Gunn busca se apresentar como sujeito digno de confiança e merecedor de redenção: E veja o ponto em que eu cheguei, Jim; e tudo começou com uma brincadeira de jogar moedinhas sobre as benditas sepulturas do cemitério! Foi assim que tudo começou, mas é claro que foi muito mais longe, e minha mãe me avisou e disse o que ia me acontecer, aquela mulher santa! Mas foi a Providência Divina que me colocou aqui. Eu tive tempo de pensar muito, nesta ilha solitária; e agora voltei para a religião. Você não vai me pegar bebendo quantidades de rum; somente o suficiente para encher um dedal, é claro, na primeira oportunidade que eu tiver. (STEVENSON, 2011, p. 109)

Levando-se em conta a óptica adotada por Ruth Silviano Brandão, percebe-se que a personagem feminina passa a se afigurar, em casos como os citados, enquanto “(...) representação e construção, fantasma e 524

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sintoma de certos textos escritos por autores homens.” (2006, p. 13) É também fantasmática e fugidia, ainda que de modo distinto, a “mulher de cor” ou “mulher velha” presente em A ilha do tesouro. Trata-se da companheira de Long John Silver, pirata que leva um papagaio sobre o ombro (STEVENSON, 2011, p. 70) e que parte em viagem com o conde Trelawney, o médico Livesey e o narrador-protagonista Jim Hawkins sob o disfarce de simples e cordato cozinheiro da embarcação. Enquanto ludibria os companheiros de jornada com o propósito de tomar para si o tesouro enterrado na ilha, Long John Silver deixa a sua mulher, a quem se refere como “mulher velha”, as ordens de guardar os bens que deixara na cidade portuária de Bristol e de esperá-lo em uma localidade secreta, onde seu saldo poderia ser acrescido do cobiçado tesouro. Sem que saiba das artimanhas do pirata, o conde Trelawney, proprietário do navio que ruma à ilha, supõe jocosamente que Silver se dispõe a trabalhar como cozinheiro por ser casado com uma “mulher de cor” (2011, pp. 59-60), fato que o teria levado a preferir arriscar-se no mar a tolerar a companhia da esposa negra em terra firme. Dentre as personagens femininas dispostas nos romances analisados, vale destacar a “mulher de cor” ou “mulher velha”, que se desloca de modo sub-reptício pelo território inglês e se coloca à espera de seu marido. Enquanto este enuncia, esbraveja e peleja pelo tesouro enterrado na ilha, aquela experimenta, nos subterrâneos da narrativa, outra aventura, jamais narrada, que bem ilustra a perspectiva da ensaísta francesa Hélène Cixous. A partir do entendimento de Cixous (1986), citado por Aparecido Donizete Rossi (2015), pode-se afirmar que uma personagem como a “mulher velha” ou “mulher de cor” ali estaria a porfiar outra trama, distinta daquela narrada por Jim Hawkins sob a determinação conde Trelawney e do médico Livesey. Se sua aventura não vem à luz na obra de Stevenson, ao menos abre caminho à eclosão de relatos futuros, em que a mulher toma para si a titularidade da situação de escrita. Nesse sentido, o deslocamento clandestino da “mulher velha” ou “mulher de cor” bem se coaduna com as metáforas utilizadas por Hélène Cixous em menção à vivência de personagens femininas, históricas ou ficcionais. Tais mulheres operam à maneira de “toupeiras” ou podem ser equiparadas a “minas terrestres”. Segundo elucidado por Rossi, as metáforas da toupeira e das minas terrestres empregadas por Cixous em The Newly Born Woman aludem a (...) algo simbólico, por isso mais rico, uma vez que tal animal sobrevive e faz escavações embaixo da terra, embaixo do que é visível. Uma espécie de corrosão. Nesse sentido, a toupeira torna instável, com suas redes de túneis na escuridão, algo que parece sólido (o chão onde se pisa). Suas redes de túneis, aparentemente aleatórias, são seus caminhos, suas inscrições, seu subtexto. O mesmo ocorre com as minas terrestres: escondidas sob a aparente solidez do solo, elas são centros disseminadores de instabilidade, pois tornam o chão onde foram plantadas um local onde é impossível saber o que pode ocorrer ao nele pisar: elas podem ou não explodir. (2015, p. 36, grifos originais)

Em face da reflexão proposta por Cixous a partir das metáforas referidas, é lícito inferir que romances como A narrativa de A. Gordon Pym e A ilha do tesouro promovem, de uma parte, um movimento de 525

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obliteração de personagens femininas, colocadas à sombra da escrita de narradores-protagonistas então habilitados à redação de suas memórias. De outra, projetam aquelas personagens periféricas ao exame de um leitor futuro, que se mostre apto a rastrear suas marcas. Se os textos de Poe e Stevenson aqui analisados não cedem espaço a enunciados proferidos por personagens femininas, acabam ao menos por contribuir para a corrosão futura, ou mesmo para a explosão, das porções de terra aparentemente firmes em que se assenta a tradição escrita de matriz masculina. REFERÊNCIAS BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura. 2. ed. rev. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé. Trad. Domingos Demasi. Rio de Janeiro: Record, 2004. PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. POE, Edgar Allan. A narrativa de A. Gordon Pym. Prefácio F. M. Dostoiévski. Coleção Prosa do Mundo. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2010. ROSSI, Aparecido Donizete. Seria a pena uma metáfora do falo? ou a inquietante presença da mulher na literatura. In: ÍCONE. Revista de Letras. Vol. 1. pp. 20-41. São Luís de Montes Belos: UEG, 2007. Disponível em: Acesso em 16 ago. 2015. STEVENSON, Robert Louis Balfour. A ilha do tesouro. Trad. William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2011. WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Voltar ao SUMÁRIO

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