Nós versus nós: identidades em confronto no contexto de pós-independência leste-timorense

June 7, 2017 | Autor: Alexandre Marques | Categoria: Discourse Analysis, Reference, Argumentation, East Timor, Xanana Gusmao
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Nós versus nós: identidades em confronto no contexto de pós-independência leste-timorense Alexandre Marques Silva (USP) [email protected] Resumo: A fim de observar como a questão identitária é retomada e problematizada no discurso pronunciado por Xanana Gusmão 23 dias após a independência de Timor-Leste, este trabalho propõe-se a analisar, entre as estratégias discursivas, os elementos linguísticos, em especial os processos de referenciação, utilizados por Gusmão nas menções ao seu auditório, a si mesmo e aos “outros”, considerados, nesse contexto, os “inimigos” da nação. Entende-se que esses procedimentos retóricos-argumentativos visam à valorização das teses postuladas pelo orador – ocupante de um lugar socialmente legitimado, o de Presidente da República, e ao enfraquecimento dos discursos de oposição. Nesse sentido, a indefinição nas referências aos “outros” torna-se ambivalente: por um lado, evidenciam que, em busca da paz, não convém nomear os “inimigos”, sob o risco de causar mais instabilidade político-social, e, por outro, abre-se a possibilidade de que qualquer um que se oponha ao regime seja enquadrado no rol dos “inimigos da nação”. O referencial teórico para a análise do corpus apoia-se nos trabalhos desenvolvidos por Bhabha (2007), Hall (2006), Landowski (2002), Brito e Martins (2004), Charaudeau (2008), Perelman e Tyteca (1958), Mondada e Dubois (2003). Palavras-chave: identidade; argumentação; estratégias discursivas; discurso político; Timor-Leste.

1. Introdução Este trabalho constitui uma parte inicial de minha pesquisa no âmbito do doutorado, na qual proponho a investigação das relações identitárias em Timor-Leste1 em dois momentos distintos: durante o período de invasão indonésia e o que se segue a ela, o de pós-independência. Desse modo, objetiva-se verificar a construção discursiva do “outro-inimigo” no discurso de 23 dias após a posse2 de Xanana Gusmão, por meio das estratégias discursivas empreendidas por ele e as quais também contribuem para a edificação de um projeto, ainda que, naquele momento, incipiente, de identidade nacional. Após a independência, surgiu a necessidade de se buscarem estratégias que fossem capazes de unir a população devastada material e emocionalmente pela guerra em torno de um paradigma identitário comum, o que, como se pôde observar no discurso analisado, não tem sido uma tarefa fácil, pois ainda há dissidências internas que clamam por uma representatividade legítima junto às instâncias de poder.

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É importante salientar desde já que, quando se trata de pesquisas sobre Timor-Leste, nem sempre há coerência entre os dados, ao se compararem fontes distintas. Isso se deve ao fato de que, durante os últimos anos do regime indonésio, destruiu-se uma parte significativa de registros e documentos pessoais, principalmente após o referendo favorável à independência do país, momento no qual mais da metade dos edifícios e residências foram incendiados. Sendo assim, muitos dos números apresentados em relação ao país constituem, de fato, projeções estatísticas. 2 O referido discurso encontra-se disponível no livro Timor Lives! Speeches of freedom and independence, o qual está apresentado de forma completa como fonte, ao final deste trabalho.

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Para tratar das questões identitárias, buscamos alicerce nos trabalhos desenvolvidos no contexto dos Cultural Studies, porque se coadunam à proposta interdisciplinar na qual se pauta o desenvolvimento deste trabalho e por apresentarem compatibilidade epistemológica com o referencial teórico relativo aos estudos do discurso nos quais as análises encontram suporte. No que se refere à análise das estratégias discursivas e da argumentação, filiamo-nos aos trabalhos de Mondada e Dubois (2003), que trataram da construção dos objetos do discurso por meio do processo de referenciação; e no de Perelman & Olbrechets-Tyteca, que, por meio de um trabalho de revitalização da retórica clássica, trouxeram novas perspectivas para os estudos da argumentação, ao proporem uma distinção do conjunto de técnicas empregadas em um discurso por um orador para conquistar a adesão do auditório. Iniciaremos nosso processo analítico por meio da contextualização histórico-geográfica de TimorLeste, em seguida, trataremos das questões identitárias e de sua relação com o discurso; do processo de construção discursiva do outro por meio do processo de referenciação; da análise das estratégias discursivas utilizadas por Xanana Gusmão que se articulam à (tentativa de) construção da identidade nacional e, por fim, nas conclusões finais, retomaremos o objetivo central deste trabalho.

2. Uma brevíssima contextualização histórica (século XX) Embora reconheçamos que a história anterior ao século XX seja de suma importância para o processo de construção da identitária de Timor-Leste, em função de nossos objetivos específicos e dos limites impostos a este trabalho, realizaremos um recorte a partir da década de 1970, período que marca o início do processo de independência de Portugal e de anexação à Indonésia. Após a derrocada do regime fascista em 1974, o novo governo democrático português encorajou a independência de suas possessões ultramarinas. Desse modo, os eventos políticos ocorridos nesse ano em Portugal, em especial a Revolução dos Cravos, permitiu que, em Timor-Leste, emergissem reivindicações pela independência. Naquele momento havia na ilha três partidos políticos disputando pelo poder, dois deles favoráveis à total emancipação leste-timorense – ASDT (Associação Social Democrata Timorense) e UDT (União Democrática Timorense) e um, que defendia uma integração com a Indonésia, APODETI (Associação Popular Democrática de Timor-Leste Independente). Em 1975, enquanto Portugal e Indonésia negociavam o destino de Timor-Leste, a UDT forjou um golpe de Estado e tomou a capital Díli. Nesse mesmo ano, a FRETELIN (Frente de Timor-Leste Independente) proclamou de forma unilateral a independência do país, no entanto, após nove dias do

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ocorrido, houve a invasão do território por tropas indonésias. Essa ação implicou a ruptura diplomática entre Portugal e Indonésia, o que prejudicou substancialmente as relações entre Timor-Leste e Portugal. Assim, durante 24 anos, Timor-Leste foi convertido em uma pobre e maltratada província da Indonésia. O período de colonialismo português foi encerrado, todavia iniciou-se o período de neocolonialismo indonésio. Esses dois modelos de colonialismo, apesar de ambos serem centrados no domínio do outro e, consequentemente, de se revelarem pouco interessados na efetiva promoção do bem-estar social e no desenvolvimento da população local, parecem, no entanto, diferenciar-se, principalmente, nas práticas de aculturação que adotaram. Com efeito, portugueses e indonésios tiveram diferentes posturas de respeito ou tolerância em relação às tradições e valores culturais do povo colonizado: o “modelo português,” teria sido, eventualmente, mais flexível e compreensivo, ou tão somente mais passivo, enquanto o indonésio teria sido mais rígido e dominador, portanto, mais ativamente orientado para o aniquilamento da cultura local. Durante a invasão indonésia foram realizados inúmeros assassinatos em massa: 60.000 timorenses foram mortos apenas na primeira quinzena do mês de dezembro de 1975. Com a tomada da porção leste da ilha de Timor, o governo ditatorial indonésio objetivava torná-la a 27ª colônia da Indonésia. A atitude devastadora e autoritária das tropas indonésias causou a revolta dos habites locais, que passaram a apoiar organizações clandestinas de resistências, entre as quais se destacou a Falintil (Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste), a qual assumiu um caráter de resistência nacional sob o comando de Xanana Gusmão, que se tornaria o primeiro presidente após o estabelecimento da República. A Falintil, utilizando a língua portuguesa como forma de comunicação e resistência, atuou dentro e fora de Timor-Leste. No início da década de 1990, o regime de opressão em curso atingiu um de seus momentos mais violentos, o episódio conhecido com o Massacre de Santa Cruz. A partir da divulgação mundial das imagens do massacre pelo jornalista inglês Max Stahl, houve a mobilização da opinião pública para a crítica situação por que passava Timor-Leste. Em 1996, a outorga do Prêmio Nobel da Paz a José Ramos Horta e ao Bispo Dom Carlos Ximenes Belo, engajados na causa da libertação do povo timorense do jugo indonésio, também contribuiu de forma significativa para a divulgação dos problemas vividos em Timor e cuja consequência mais importante naquele momento foi a organização pela ONU (Organização das Nações Unidas), de um plebiscito que daria à população a possibilidade de escolher entre a independência ou a anexação à Indonésia. Sendo assim, em agosto de 1990, uma maioria expressiva dos eleitores (cerca de três quartos) que foram às urnas votaram pela independência do país. Com o recrudescimento do terror perpetrado pelo

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governo indonésio após o resultado do referendo, a administração do território passou provisoriamente às Nações Unidas. Entre os anos de 1999 e 2002 houve reações bastante violentas por parte dos aliados ideologicamente à Indonésia e somente em 20 de maio de 2002, após um longo processo de luta pela autonomia, Timor-Leste foi reconhecido internacionalmente como nação independente, com direito a eleger seus dirigentes e a escrever sua própria Constituição. Instaurou-se, então, a República Democrática de Timor-Leste (RDTL), cujo primeiro presidente eleito foi Xanana Gusmão.

3. Mapa de Timor-Leste O país está localizado no sudoeste asiático e conta, segundo dados oficiais (TIMOR-LESTE, 2015)3, com cerca de 15 línguas autóctones, além do tétum e do português, que ocupam o status de línguas oficiais, asseguradas pela Carta Magna do país, e do inglês e do indonésio (também conhecido por bahasa indonésio), considerados línguas de trabalho. Timor-Leste está situado na Ilha de Timor. Cerca de 2/3 desta ilha são ocupados por esse país, sendo o restante do espaço pertencente à República da Indonésia. A superfície do país totaliza 15.007 Km2. Figura 1. Mapa Político de Timor-Leste

(Disponível em: http://www.mapas-asia.com/timor-leste.htm. Acesso em 16 ago. 2014).

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Dados disponíveis na página oficial do Governo de Timor-Leste: . Acesso em 18 mar. 2015.

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Administrativamente o país está dividido em 13 distritos que, por sua vez, subdividem-se em 67 subdistritos. Segundo o censo mais recente, de 2010, a população é de 1.066.582 de habitantes. Em cada um dos distritos fala-se uma língua diferente e isso, conforme trataremos com mais ênfase adiante, tem implicações diretas na constituição identitária do povo leste-timorense: “Nas diferenças das línguas faladas [em Timor] é que se mostram a identidade da pessoa na sociedade, ou seja, por elas percebemos que não somos iguais, apesar de compatriotas”. (REIS, 2011, p. 49) O Relatório de Desenvolvimento Humano de Timor-Leste (2001) afirma que somente 5% da população é fluente em português, todavia, as comunicações oficiais privilegiam o uso desse idioma.

4. Identidade(s) leste-timorense(s): um ponto de partida teórico Diante de um panorama histórico, geográfico, linguístico e social tão difuso, falar em identidade(s) em Timor-Leste, significa adentrar um complexo espaço em que convergem e contrastam distintas formas de representação, de estar no mundo e de atuar nesse mesmo mundo. Sendo assim, partimos do entendimento de que identidade é um conceito que apresenta várias perspectivas e possibilidades, dependendo, inclusive, do ponto de vista acerca de considerações em comum. Assim, a dimensão sob a qual abordaremos esse tema se pautará na sua discussão e não em sua(s) definição(ões). Considerando as dificuldades impostas à construção da identidade nas sociedades contemporâneas, Bhabha (1988) aponta para a dificuldade subjacente aos estudos sobre a identidade na pós-modernidade, cujas características são, sobretudo, a não fixidez, o constante movimento, certa fluidez de valores e instituições, antes considerados estáticos. Trata-se de uma proposição que tende a se tornar ainda mais complexa no contexto pós-colonial de comunidades em que, “apesar de histórias comuns de privação e discriminação, o intercâmbio de valores, significados e prioridades pode nem sempre ser colaborativo e dialógico, podendo ser profundamente antagônico, conflituoso e até incomensurável”. (BHABHA, 1998, p. 20) Nesse sentido é importante voltarmos nossa atenção para a sociedade leste-timorense, na qual, grupos etnolinguísticos4, insatisfeitos com os rumos políticos e administrativos do país, como a adoção da língua portuguesa como idioma oficial, por exemplo, reivindicam o direito legítimo de (res)significar sua existência frente às novas subjetividades individuais e coletivas evidenciadas nos espaços forjados no curso do duplo processo de descolonização e no período posterior a cada um deles. Observa-se, assim, a

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Apesar de, em Timor, ser apontada a existência de 31 línguas, dialetos e subdialetos, é difícil chegar a acordo quanto ao seu número e à sua classificação. De acordo com os dados oficiais, conforme já apresentamos neste trabalho, existem 15 línguas no país e, é importante ressaltar, que a unidade linguística não corresponde à unidade étnica.

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emergência de sujeitos resultantes do embate cultural entre polos opostos, em especial: tradição e contemporaneidade, passado e presente. Na mesma direção de Bhabha, Hall (2006) aborda as transformações que o conceito de identidade cultural vem sofrendo em função das mudanças estruturais pelas quais as sociedades vêm passando, principalmente a partir do processo de globalização. Para esse autor, tem havido o afrouxamento dos laços imaginários que ligam o sujeito a determinado território e à cultura nacional ao longo da história. Apesar da força narrativa da nação, por meio do poder cultural, é cada vez mais difícil pensar a nação como um sistema de representação homogêneo, produtor de identidades unificadas. Dessa forma, o significado que atribuímos a algo é determinado pelo uso que fazemos dele, pelas representações que o construíram anteriormente e que o inseriram em um determinado contexto com uma determinada funcionalidade. Ainda em coadunação com a perspectiva de Hall (op. cit.) podemos observar que é o trabalho da representação que nos permite nomear os objetos do mundo; por meio das palavras, da língua, eles se tornam aquilo que se fala sobre eles, convertem-se nos valores atribuídos a eles. Os significados construídos pela representação são historicamente situados, produzidos socialmente e, por isso, gozam de mutabilidade. Para compreender melhor como ocorrem os processos de representação, ou seja, a relação entre, de um lado, a realidade e, de outro, a maneira pela qual esta se torna inteligível, Hall (op. cit.) destaca a relação entre significado e cultura. Desse modo, compartilhar uma cultura implica também compartilhar a mesma forma de construir inteligibilidades para o mundo, por meio da linguagem. Esse compartilhamento de significados, não implica, todavia, que uma cultura seja dotada de significados homogêneos e únicos, ao contrário, as representações produzidas nas práticas culturais são diversas, regem comportamentos e influenciam as ações dos sujeitos. Nesse sentido, então, as culturas nacionais não podem ser pensadas não como sistemas unificados, mas como sistemas constituídos por divisões fundamentadas em diferenças étnicas, sociais ou culturais. No processo de constituição de identidades, entendemos que a língua é um dos principais, senão o mais importante, elemento para o forjamento de uma identidade comum, empreitada que, no caso de Timor-Leste vem sendo levado adiante (de forma bastante controversa, é preciso ressaltar) pela língua portuguesa. Segundo Spolsky (1998), países recém-independentes estão, quase sempre, inclinados a adotar a língua do colonizador, mesmo com toda a carga histórica implicada nessa tomada de posição. No momento em que um grupo busca marcar a diferença, fazer emergir uma nova identidade nacional, é, fundamentalmente, a língua do colonizador é aquela que adquire status de língua nacional. E, não fugindo a essa perspectiva, em Timor-Leste a adoção da língua portuguesa deveu-se a critérios políticos, por um lado, foi a língua utilizada durante o processo de resistência contra o inimigo indonésio e, por outro, era

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língua utilizada nas missas da igreja católica, instituição que teve papel fundamental na proteção dos lestetimorenses durante os episódios de violência perpetrados pelo exército indonésio. Em função dessas características, consideramos relevante voltarmos ao trabalho de Hall (op. cit.), no qual ele discute, ainda que em um contexto distinto do leste-timorense, mas perfeitamente adequado a ele, que a cultura nacional constitui-se por uma estrutura de poder cultural, pois: a) a maioria das nações foi sempre composta por diferentes culturas unificadas apenas a partir de um longo e violento processo de dominação; b) as nações são sempre compostas por diferentes classes sociais, diferentes etnias e gêneros; c) sendo anteriormente centros imperiais ou neoimperiais, as nações exerceram seu poder hegemônico, silenciando as demais culturas dos povos colonizados. A partir dessas três premissas fundamentais, depreende-se que a tarefa de forjar identidades nacionais é também legitimada por meio de uma força coercitiva. Observa-se, assim, que no processo de construção das representações identitária estão implicadas, de forma intrínseca, relações de poder. São as representações levadas adiante por um grupo dominante (política e/ou social e/ou economicamente) que se naturalizam no interior das culturas e se constituem como “verdades”. Para Cuche (2002, p. 188): O Estado moderno tende à monoidentificação, seja por reconhecer apenas uma identidade cultural para definir a identidade nacional [...], seja por definir uma identidade de referência, a única verdadeiramente legítima [...]. A ideologia nacionalista é uma ideologia de exclusão das diferenças culturais.

Nesse sentido, verifica-se que a identidade nacional depende desse sistema unificador das representações culturais e necessidade de afirmação de uma identidade nacional vincula-se a uma ideia de preservação e pertencimento. Por meio da representação de significados de uma nação, a identidade nacional sustenta o sentimento de comunidade, de uma memória coletiva. A linguagem, fornecedora de elementos culturais e de representações, como afirma Hall (op. cit.), constitui uma prática significativa, na qual o sentido é produzido e constantemente renovado. A representação é o sistema pelo qual o sentido de uma cultura é articulado. O sentido, nesse caso, é o elemento responsável pela concepção de uma identidade cultural e por uma ideia de pertencimento. Para Gunn (2011, p. 24), por fim, o “problema da identidade” não é somente causado pelo fato de Timor-Leste ter se tornado independente recentemente ou pelo passado complicado, mas também pelas diferentes combinações presentes na sociedade seja em nível linguístico, seja em âmbito religioso. Desse ponto de vista, pode-se dizer que Timor-Leste é, portanto, uma sociedade caracterizada por “múltiplas identidades”.

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5. Quem era e quem é o “outro”: apenas uma questão de referência? O ser humano, a partir de sua necessidade de nomear e referenciar verbalmente as coisas do mundo, desenvolveu formas cada vez mais complexas de subjetivar esse mundo. Em sua tentativa de criar referências que indiquem ações, estados, sentimentos, lugares, estados de espírito, pessoas, acontecimentos, etc., o ser humano estabelece suas convicções e revela o lugar discursivo a partir do qual enuncia o seu discurso. A partir dessas considerações, iniciamos nesta seção a análise dos processos de reconhecimento e de referenciação ao “outro-inimigo”, o qual é materializado no discurso de 23 dias após a posse proferido por Xanana Gusmão, em 12 de junho de 2002. Sob a perspectiva discursiva, define-se a linguagem a partir do uso e de todas as implicações decorrentes dele, o que converge para uma noção de referência que se estabelece no momento da enunciação, já que partimos do pressuposto de que linguagem é ação. Em função disso, a referência passa a ser compreendida como um processo, a referenciação. Desse modo, para tratar dessa dimensão pragmático-discursiva da linguagem, buscamos respaldo no que postulam Mondada e Dubois (2003), para as quais a relação entre realidade/linguagem supõe necessariamente uma estreita relação com a exterioridade, em que o mundo não é decalcado pela linguagem, mas (re)construído por ela a partir da concepção de língua como instrumento de interação e de sujeito como ativo, produtor de sentido. Dessa forma, Mondada e Dubois (op. cit.), apresentam duas orientações de base argumentativa para o tratamento da referenciação: a categorização e a questão linguística interacionista e discursiva. A categorização refere-se à organização dos sistemas cognitivos que estabilizam o mundo. A abordagem da questão linguística interacionista e discursiva relaciona-se aos processos de referenciação, analisados em termos de construção de objetos de discurso e de negociação. Assim, tratar da referenciação exige que se considere não apenas a abordagem linguística, mas também a cognitiva, já que ambas estão estreitamente relacionadas às práticas e aos discursos. A língua, nesse contexto, supera a condição de um conjunto de etiquetas por meio do qual se nomeiam os objetos do mundo, e por meio da ação/intenção humana passa a produzir referentes “através de práticas discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas” (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 17). Ao tratarem do processo de referenciação, as autoras (op. cit. p. 20), destacam que subjaz a ele “[...] uma relação entre o texto e a parte não linguística da prática em que ele é produzido e interpretado”. O que se observa a partir desse aporte é que a abordagem proposta por Mondada e Dubois (op. cit.) implica uma visão dinâmica que considera não apenas o sujeito “encarnado”, mas um sujeito sociocognitivo implicado em uma relação indireta entre os discursos e o mundo. Nas palavras das autoras (op. cit. p. 20)

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“Este sujeito constrói o mundo ao curso do cumprimento de suas atividades sociais e o torna estável graças às categorias – notadamente às categorias manifestadas no discurso.”. Observamos, assim, que, no caso de Timor-Leste, durante o período de dominação indonésia o inimigo era explícito e definido e demandava, portanto, um enfrentamento físico, a luta pela justiça, o embate, a guerra. Nesse período, os fatos falavam por si sós. O inimigo, bem como suas ações, pode ser visto, comprovado, possui corporeidade e pode ser apreendido pelos sentidos. Ele é estrangeiro indonésio. Em contrapartida, quando se passa à observação do período pós-independência: o inimigo é implícito e difuso. Demanda, dessa forma, um enfrentamento discursivo-ideológico, não mais (ou não exclusivamente) um embate físico. Existe a manutenção da perspectiva maniqueísta, no entanto, o inimigo agora está colocado em outro patamar, é um “igual” e, por isso, precisa ser destacado dos demais. É construído por meio de relações dialéticas, conforme observaremos nas análises a seguir.

6. Discurso de 23 dias após a posse: palco para o confronto entre identidades A fim de procedermos às análises dos processos de referenciação e das estratégias discursivas em torno das quais se desenvolve o discurso de Xanana Gusmão, faremos uma breve revisão das técnicas empregadas no processo de argumentação de acordo com o que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1999 [1958]) preconizaram. Para esses autores (op. cit., p. 211) as técnicas empregadas no processo de argumentação apresentam-se sob dois aspectos distintos: [...] o aspecto positivo consistirá no estabelecimento de uma solidariedade entre teses que se procuram promover e as teses já admitidas pelo auditório: trata-se de argumentos de ligação. O aspecto negativo visará abalar ou romper a solidariedade constatada ou presumida entre as teses admitidas e as que se opõem às teses do orador; tratar-se-á da ruptura das ligações e dos argumentos de dissociação.

Todavia, reconhecem tratar-se de uma tarefa impossível a formalização das técnicas argumentativas diante da possibilidade de alguns argumentos serem reduzidos a um cálculo de probabilidades, desde que observadas certas convenções. Nesse caso, a questão suscitada refere-se ao modo como poderia ser estabelecido um acordo sobre essas convenções. Dessa forma, esclarecem que: Uma teoria da argumentação não deve nem buscar um método conforme a natureza das coisas, nem encarar o discurso como uma obra que encontra em si própria sua estrutura. Tanto uma como outra dessas concepções complementares separam fundo e forma, esquecem que a argumentação é um todo, destinado a um auditório determinado. Passa-se, assim, de um problema de comunicação a uma ontologia e a uma estética, ao passo que a ordem ontológica e a ordem orgânica são apenas dois desvios de uma ordem

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adaptativa. As exigências da adaptação ao auditório é que devem guiar no estudo da ordem do discurso; essa adaptação atuará, quer diretamente, quer por intermédio das reflexões do ouvinte acerca da ordem. O que ele encara como ordem natural, as analogias que ele percebe, como um organismo ou com uma obra de arte são apenas argumentos entre outros argumentos; o orador deverá levar isso em conta, da mesma forma que todos os fatores suscetíveis de condicionar o auditório. Método e forma poderão assumir, respectivamente, maior ou menor importância conforme se tratar de auditório particular, técnico ou universal. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1999 [1958], p. 399).

De acordo com Silva (2010), a construção de sentido e a eficiência dos argumentos necessitam da existência, ainda que parcialmente, de valores, crenças e referências comuns entre os envolvidos no processo comunicativo. Assim, o poder de persuasão de um argumento tende a ser proporcionalmente equivalente ao grau de afinidade existente entre as ideias apresentadas pelo orador e aquelas em que o auditório acredita, pois, dessa forma, haverá menos assimetrias em relação aos sistemas doxológicos de ambos. Nesse sentido, não se pode desprezar que o ato linguístico, os procedimentos enunciativos, por meio dos quais a argumentação se enuncia, e as palavras se transformam em ação, ou seja, assumem a função “fazer-fazer”. Esses elementos estão fixados em um contexto sócio-histórico determinado e permeado por ideologias, o que pode ser observado nas análises apresentadas a seguir. Somente a título de esclarecimento contextual, apresenta-se o fragmento do discurso de posse5 (pronunciado em 20 de maio de 2002), a partir do qual desenvolveremos as análises do discurso que compõe o nosso corpus. (1) A nossa história vai continuar a ser feita pelo nosso povo, pela dignificação do indivíduo, na tolerância entre grupos e no respeito no seio das comunidades, numa participação coletiva e dinâmica da sociedade. Isto irá constituir a nossa nova filosofia, enquanto timorenses. (grifos nossos) No discurso inaugural do novo regime democrático recém-estabelecido em Timor-Leste, o orador utiliza a 1ª pessoa do plural (um nós inclusivo), por meio do qual cria a ideia de unidade, como uma estratégia de amalgamento, necessária à edificação de, no mínimo, um sentimento inicial de identidade e pertencimento nacional. As dissidências, as discordâncias cedem espaço à participação coletiva sob a égide suprema da identidade – pretensamente universal – leste-timorense. Da perspectiva da referenciação, sem nos atermos às categorias subjacentes a ela, observamos que a utilização do pronome possessivo de primeira pessoa do plural coloca, como corresponsáveis pelas mudanças que se sucederão em Timor-Leste tanto o orador como o auditório, que naquele momento era 5O

referido discurso encontra-se disponível no livro Timor Lives! Speeches of freedom and independence, o qual está apresentado de forma completa como fonte, ao final deste trabalho.

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composto, além do povo leste-timorense, por autoridades internacionais, representantes de Portugal, dos países de Língua Portuguesa e da Indonésia. Nesse momento, pode-se verificar uma tentativa de construção de um contexto de harmonia, de tolerância entre grupos, numa participação coletiva e dinâmica da sociedade. Portanto, ainda que se trate de uma estratégia de dissimulação, segundo o discurso de Gusmão, o inimigo da nação não estaria (nem poderia estar) dentro dela, no entanto, não é isso que se verifica, no discurso que ele pronunciou 23 dias após a independência, conforme se pode observar no excerto a seguir. (2) Posturas radicais tomadas durante os últimos dois anos e meio de transição ainda estão tendo um efeito negativo sobre a nossa população e não posso aceitar que sejamos responsabilizados por esse problema, pois isso evita que se encontre uma solução para ele. É fundamental promovermos o diálogo. Devemos semear as sementes para uma cultura de reconciliação, caso contrário, tudo vai soar falso, se não promovemos o diálogo para a reconciliação entre grupos ou associações, independentemente da sua natureza. Infelizmente, agora as pessoas exigem de mim que encontre a solução para problemas causados por outros. Devo ainda acrescentar que algumas pessoas estão incitando pequenos grupos contra mim, exigindo investimentos, como se eu fosse o administrador dos fundos prometidos pelos doadores internacionais. Selecionamos um excerto um pouco mais extenso porque ele será o ponto de partida para o desenvolvimento do conjunto de análises que faremos. Após 23 dias de governo, identificam-se as divergências. As contradições internas começam a ganhar relevo. É importante observar o contexto em que os inimigos são apresentados. O orador busca, com vistas ao sucesso da ação argumentativa, referências comuns aos envolvidos no processo comunicativo, por meio do apelo à memória coletiva, uma vez que se ainda de identificam resquícios do período indonésio, contrários à democracia – e ao bem-estar social, por extensão, que se manifestam na ação de “pessoas”. Há, portanto, um jogo de ambiguidade: os problemas da nação são personificados, mas de maneira impessoal, pois, afinal, da perspectiva da referenciação, quem são essas “pessoas”? Escolher não nomear os opositores/inimigos consistiria apenas em uma estratégia discursiva de menosprezo por aqueles que são contrários às ações empreendidas pelo governo? Seria uma tentativa de preservação do ethos, fundamentado na premissa básica de nunca acusar sem provas? Ou, ainda, e o que nos parece mais adequado ao contexto de enunciação, talvez se trate de uma estratégia de preservação da imagem de si, mas não sob o prisma da acusação sem prova, mas, por se tratar de um momento em que as estruturas sociais ainda estão muitos frágeis e os ânimos pouco arrefecidos, em busca da paz, nenhum inimigo seria direta e nominalmente atacado/acusado. Tratar-se-ia, assim, de uma estratégia para assegurar a paz e a harmonia preconizadas no discurso de posse.

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Nesse sentido, independente de qual tenho sido a estratégia subjacente à utilização dos termos (destacados em itálico no excerto (2)) “pessoas” e “algumas pessoas”, este, caracterizado por um duplo movimento de indeterminação, não se pode deixar de observar que são essas pessoas que participam de forma decisiva – e ativa – na construção de um contexto maniqueísta no qual o orador – e todos aqueles que aderem às teses apresentadas por ele – é representado como vítima de ações que visam a fragilizar o governo e a desestabilizar a sociedade leste-timorense. No fragmento a seguir, também, pode-se verificar o recurso à impessoalização do “outro-inimigo”: (3) As pessoas estão concentradas na “ex-FALINTIL”', “no FALINTIL isolado”, na “Associação de exguerrilheiros das FALINTIL”, e “nas novas forças” que, dizem alguns, ainda possuem de armas. No excerto (2), ainda, verifica-se que a utilização da 1ª pessoa do singular (destaques sublinhados em (2)) cumpre a função de destacar o empenho heroico do orador na tentativa de assegurar a coesão social. Diferentemente do que se observou no discurso de posse, há, neste, uma premente necessidade de marcar posição de forma enérgica e explícita. Nesse momento, não há relações de alteridade, mas de embate dialético e ideológico, alocando-se, assim, os sujeitos dois extremos: aqueles que estão ao lado do governo e ou outros, “as pessoas”, que ainda perpetuam os valores do antigo colonizador. A partir dessa taxonomia, mesmo sem dizê-lo, o orador instaura uma arena de embates políticos, sociais e ideológicas que terão implicações significativas no processo de construção da(s) identidade(s) lestetimorense(s). No que concerne aos elementos linguísticos que marcam a 1ª pessoa do plural (destacado em negrito no excerto (2)), verifica-se uma emprego distinto daquele que observamos no discurso de posse. Se, em um primeiro momento, o sentimento de pertença era assegurado pela novidade da independência e as divergências tenham sido suplantadas pelo aflorado sentimento de nacionalismo, no discurso de 23 dias após a independência, o orador utilizou de forma alternada as referências a si mesmo e ao auditório por meio de pronomes e verbos em 1ª pessoa do plural, o que, da perspectiva cognitiva, causa um imbricamento entre orador e audiência, de modo que esta seja incluída como agente e corresponsável das ações que serão realizadas pelo governo, mesmo que, muitas vezes isso não corresponda a um “fazer” de fato, mas a um apoio – talvez incondicional – às atitudes do governo. Em contrapartida, em outras construções como “...sejamos responsabilizados...”, “...devemos semear...” e “...é fundamental promovermos...”, uma análise que considere nuances tênues é capaz, embora não sem riscos, de distinguir em quais delas o orador toma para si exclusivamente a tarefa de realizar o que afirma. Essa, superficial, falta de clareza, que poderia denotar uma falha argumentativa em um contexto diferente do discurso político, constitui uma estratégia recorrente nesse gênero discursivo,

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sobretudo quando se pretende que audiência sinta-se implicada nos processos enunciados. Desse modo Xanana Gusmão chama para si e também para aqueles que estejam em acordo com sua argumentação a responsabilidade por dirimir os conflitos insurgentes. Ademais, na expressão “...ainda estão tendo um efeito negativo sobre a nossa população...”, a referência ao povo leste-timorense como “nossa população” pode denotar, por um lado certa impessoalidade do orador, tem-se a impressão de que a “nossa população” está fora do contexto de enunciação, seria um elemento exterior ao discurso. Por outro lado, pode-se compreender essa construção, sob um enfoque de construção identitária, como uma forma de entender a população com um “bloco”, ou seja, trata-se de uma estratégia de agrupamento da população a partir da noção de identidade nacional criada no pós-conflito. Nesse sentido, a “nossa população” não incluiria aqueles que protestam contra o governo, simplesmente porque eles não se identificariam com o projeto de identidade apresentado e defendido pelo orador, não haveria correspondência referencial. Observamos, dessa forma, que sem explicitar a quem em específico dirigem-se as suas críticas, ou seja, os inimigos da nação, Xanana Gusmão cria um discurso lacunar, seja com o intuito de menosprezar seus adversários políticos, seja para preservar seu ethos, seja como forma de assegurar a harmonia e a paz sociais, que se desenvolve em torno de inferências, e do não dito, por meio de lacunas discursivas que vão sendo preenchidas pelo auditório. Trata-se, portanto, de uma estratégia de “dizer sem dizer”.

7. Considerações finais A construção da identidade nacional em Timor-Leste deve ser entendida à luz de seu histórico político, uma vez que o país tem uma longa história recente de colonialismo, conflito e violação dos direitos humanos. Apesar de o povo leste-timorense, em sua unidade, compartilhar histórias comuns de privação de liberdades individuais, discriminação e, no limite, de genocídio, essas nem sempre podem ser evocadas como argumentos de validade universal. Os trechos analisados no corpo deste trabalho explicitam, do ponto de vista do orador, uma transformação nas relações identitárias: de uma comunidade unida em torno dos anseios desencadeados pela recém-indepêndência, para um contexto de embate em que identidades locais tornam-se antagônicas e explicitam as fragilidades de uma nação que dá os primeiros passos em busca da consolidação de uma identidade que lhe permita equalizar as diferenças e, a partir disso, afirmar-se e ocupar seu lugar no mundo. As identidades, no contexto leste-timorense, vêm sendo reestruturadas e reestabilizadas, sobretudo sob o controle do Estado-Nação, por meio da criação de uma noção da identidade nacional,

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que, mesmo não sendo hegemônica, visa a garantir a coesão social. Nesse sentido, vale, aqui, retomar a perspectiva de Hall (2006) a respeito da linguagem como fornecedora de elementos culturais e de representações e constitutiva de uma prática significativa, na qual o sentido é produzido e constantemente renovado. O sentido, nesse caso, é o elemento responsável pela concepção de uma identidade cultural e por uma ideia de pertencimento. As análises realizadas neste trabalho apontam para a importância do modo como se constituem as expressões referenciais no discurso político, considerando-se a função de orientação argumentativa subjacente

a

elas,

como

se

pôde

observar,

por

exemplo,

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procedimentos

de

impessoalização/indeterminação do inimigo, que revelam uma maneira dentre tantas outras possibilidades de retratar o objeto descrito. Por meio de um procedimento discursivo-referencial de inclusão/exclusão, o orador estabelece em seu discurso um evidente contraste entre um “nós” com o qual se encontra fortemente amalgamado e um “nós” cerimonioso, que se restringe à sua figura de presidente da república, ademais, a presença do outro é discursivamente marcada por processos referenciais de impessoalidade, revelando que a referenciação é uma atividade que consiste na (re)construção de objetos de discurso e, por isso, o mundo comunicado é sempre produto de uma ação discursiva e argumentativamente orientada. Observa-se, por fim, que as estratégias discursivas e os processos de referenciação presentes no discurso de Xanana Gusmão, ao mesmo tempo em que constroem um contexto maniqueísta, difuso e lacunar, permitem, em função dessas mesmas características, a construção dos inimigos da nação e a edificação de uma noção controversa de identidade nacional.

Referências bibliográficas BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Trad. Viviane Ribeiro. 2.ed., Bauru-SP: EDUSC, 2002. GUNN, Geoffrey. Língua e cultura na construção da identidade de Timor-Leste. Revista de Letras e Culturas Lusófonas Camões, Timor Lorosa’e, n.14, Junho-Setembro 2001, p.14-25. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.

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PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996. REIS, Maria Francisca Soares dos. A co-oficialidade da Língua Tétum e da Língua Portuguesa: um desafio para a formação de professores em Timor-Leste. São Paulo: 2011. 170f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. SILVA, Alexandre Marques. A imagem por trás do mito: estratégias discursivas e constituição do ethos no discurso político presidencial. São Paulo, 2010. 189f. Dissertação (Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. SPOLSKY, Bernard. Sociolinguistics. Oxford: Oxford University Press, 1998. TIMOR-LESTE. Relatório de Desenvolvimento Humano. Díli, 2001.

Fonte GUSMÃO, Alexandre Xanana. Timor lives! Speechs of freedom. Australia: Longueville Media, 2005. p. 810.

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Anexos Anexo I – Discurso de 23 dias após a Posse de Xanana Gusmão (fragmento) Díli, Timor-Leste 04 de Junho de 2002 Caros compatriotas, Temos sido independentes e responsáveis pelo nosso destino há 23 dias, todavia é um tanto irônico se sentir no comando do nosso destino, sem um sentimento correspondente de mudança. Podemos pensar que em um curto período de tempo, não há muito a ser dito. No entanto, existem assuntos que, se não forem tratados, agora, poderão tornar-se problemas que afetarão a nossa sociedade. É nossa obrigação resolver o problema fundamental da segurança. Tenho sido questionado por fazer algumas viagens para Wailili para resolver problemas que envolvem violência física e episódios com armas de fogo. As pessoas estão concentradas na “ex-FALINTIL”', “no FALINTIL isolado”, na “Associação de exguerrilheiros das FALINTIL”, e “nas novas forças”que, dizem alguns, ainda possuem de armas. É nesse contexto que peço publicamente a todos os que têm responsabilidade por essas instituições para agir e para garantir que nosso povo possa viver em paz e tranquilidade. Quando surgem problemas, são realizadas reuniões para discuti-los, mas, em seguida, os problemas perdem importância dentro das reuniões. Finalmente, nossa população sofre o efeito da responsabilidade dos indivíduos e até mesmo do aparelho do Estado. Posturas radicais tomadas durante os últimos dois anos e meio de transição ainda estão tendo um efeito negativo sobre a nossa população e não posso aceitar que sejamos responsabilizados por esse problema, pois isso evita que se encontre uma solução para ele. Há necessidade de mais diálogo. Devemos semear as sementes para uma cultura de reconciliação, caso contrário, tudo vai soar falso, se não promovermos o diálogo para a reconciliação entre grupos ou associações, independentemente da sua natureza, mas infelizmente, as pessoas estão agora exigindo de mim que encontre a solução para os problemas causados por outros. Devo ainda acrescentar que algumas pessoas estão incitando pequenos grupos contra mim, exigindo investimentos, como se eu fosse o administrador dos fundos prometidos pelos doadores internacionais ou por aqueles que detêm a responsabilidade para o programa do governo. É verdade que já foi referido anteriormente que eu daria uma atenção especial ao desemprego e à juventude. Eu também tenho me empenhado para promover investimentos nessa área. No entanto, isso não significa que eu tenha programas para empregar pessoas. A implementação de programas é parte do processo de governança, e não uma competência do presidente. Fonte: GUSMÃO, Alexandre Xanana. Timor lives! Speechs of freedom. Australia: Longueville Media, 2005. p. 810.

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Abstract: In order to observe how the identity issue is taken up and problematized in speech Xanana Gusmao 23 days after the independence of East Timor, this paper proposes to examine, between the discursive strategies, linguistic elements, in particular the processes of referencing used by Gusmao in the information to your audience, yourself and the "others" are considered in this context, the "enemies" of the nation. It is understood that these rhetoricalargumentative procedures aimed at enhancement of theses postulated by the speaker - occupant of a socially legitimized place, the President of the Republic, and the weakening of opposition speeches. In this sense, the uncertainty in the references to "other" becomes ambivalent: on the one hand, they show that, in pursuit of peace, we should not name the "enemy", at the risk of causing further political and social instability, and, another opens up the possibility that anyone who opposes the regime is framed in the list of "enemies of the nation". The theoretical framework for corpus analysis builds on the work developed by Bhabha (2007), Hall (2006), Landowski (2002), Brito and Martins (2004), Charaudeau (2008), Perelman and Tyteca (1958), Mondada and Dubois (2003).

Keywords: identity; argumentation; discursive strategies; political speech; Timor-Leste.

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