NOSSA RESISTÊNCIA NÃO É O SILÊNCIO: MÚSICA, FEMINISMO E LUTA POR DIREITOS A PARTIR DO RIOT GRRRL

May 22, 2017 | Autor: Amanda Muniz | Categoria: Law and Literature, Direito, Rock Music, Direito e Literatura, Law and the Arts
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I CONGRESSO DE DIREITO DAS MULHERES

NOSSA RESISTÊNCIA NÃO É O SILÊNCIO: MÚSICA, FEMINISMO E LUTA POR DIREITOS A PARTIR DO RIOT GRRRL Amanda Muniz Oliveira53

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo verificar se e como o movimento (também) artístico, riot grrrl, contribui para a conscientização de determinados públicos sobre o direito das mulheres. Partindo do pressuposto de que algumas produções artísticas-midiáticas são capazes de informar as pessoas de seus direitos bem como permitir a circulação de certos discursos, procuraremos demonstrar como os direitos das mulheres são abordados neste meio. Palavras-chave: riot grrrl, punk feminista, direito, arte. Abstract: The present work aims to verify if and how the (also) artistic movement, riot grrrl, contributes to the awareness of certain publics about women's rights. Assuming that some artistic-media productions are capable of informing people of their rights as well as allowing the circulation of certain discourses, we will try to demonstrate how women's rights are approached in this environment. Keywords: riot grrrl, feminist punk, law, art.

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Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharela em Direito pelas Faculdades Santo Agostinho (FADISA) - MG. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conhecer Direito - NECODI - UFSC. Atualmente dedica-se à pesquisas interdisciplinares na área de Direito e Arte, com ênfase em Direito e Literatura e Direito e Rock. Possui experiência com pesquisas referente a artes, mídias e estudos culturais.

1. INTRODUÇÃO

Em um dos shows da banda Kaos Klitoriano, disponibilizado no YouTube 54, é possível ver as integrantes discursando sobre um polêmico assunto: o aborto. Além de abordarem a realidade de diversas mulheres mortas em clínicas clandestinas, o destino das crianças abandonadas também é uma questão levantada; os comentários são recebidos com gritos e aplausos e na sequência a banda inicia a canção Direito ao Aborto. A abordagem de um tema tão controverso em um espaço aberto a um público predominantemente jovem, pautado na música e também na diversão, ilustra e exemplifica a ação do chamado movimento riot grrrl, que por meio do punk rock busca trazer à tona diversas pautas feministas. Neste sentido, o presente trabalho busca compreender se e como este movimento pode auxiliar na luta por direitos das mulheres. Inicialmente, é preciso lembrar que o Direito não possui respostas para todos os problemas. Tem-se por exemplo a realidade das mulheres grávidas vítimas de estupro em São José - SC, que enfrentaram uma série de obstáculos para que um Direito positivado no Código Penal de 1940 pudesse finalmente ser usufruído por essas mulheres a partir de 201355. Se a mera letra da lei não é capaz de solucionar e modificar questões relativas aos direitos das mulheres, é preciso então que busquemos elementos externos ao Direito, visando compreender algumas nuances que escapam ao preto e branco dos códigos e legislações. Desta forma, compreende-se que as artes e as produções midiáticas caminham lado a lado com Direito em dois pontos principais: o primeiro deles, é relativo a disseminação de determinado conhecimento. Algumas produções artísticas-midiáticas são capazes de informar as pessoas de seus direitos, como a simples leitura de um código jamais faria. O segundo, refere-se à circulação de discursos. A arte/mídias podem 54 55

Disponível em: . Acesso em 09 dez. 2016. Para mais informações, checar: . Acesso em 09 dez. 2016.

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ser utilizadas para dar voz a problemas, angústias, situações peculiares, de um jeito tal que uma conversa apressada entre juiz e advogado das partes (que por si só já é um intermediário, um tradutor dos problemas de outras pessoas) jamais transmitiria. São essas, portanto, as principais questões que motivaram a produção de um artigo sobre um movimento também artístico peculiar e extremamente importante para a luta em prol dos direitos das mulheres: o movimento riot grrrl. A própria expressão riot grrrl (com três letras r) já denota certa agressividade, subvertendo uma palavra relativa ao feminino dito como frágil. Frequentemente traduzido como “motim de garotas”, o riot grrrl se inicia nos anos 90, mas tem suas bases no punk rock. O movimento punk surge nos anos 70, tendo como característica principal a simplicidade musical (três ou quatro acordes), a sonoridade rápida e agressiva, e letras que abordam questões do cotidiano, problemas sociais, anarquismo, dentre outros. Marcado por um visual agressivo e a filosofia do faça você mesmo, o interesse maior seria a crítica dos padrões estabelecidos e não propriamente a música. As mulheres também sentiam essa necessidade de usar a música como forma de fazer cair por terra suas mordaças, mas teriam de enfrentar além do preconceito para com o “diferente”, o preconceito de gênero – inclusive dentro da cena underground. O blog Moda de Subculturas56 resgata a banda britânica de punk, X-Ray Spex, formada em 1976, que tinha por vocalista Poly Styrene e desde aquela época já dizia “Some people think little girls should be seen and not heard / But i think / Oh Bondage Up Yours!”57. Um elemento crucial, porém, estava ausente dessa geração dos anos 70: o feminismo. Nas décadas de 60 e 70, a chamada segunda onda do feminismo estava em voga: a urgência seria a alteração e desenvolvimento de novas instituições voltadas a combater 56

Disponível em: . Acesso em 09 dez. 2016. 57 Disponível em: . A frase foi traduzida no blog Moda de Subculras da seguinte forma: “Algumas pessoas pensam que garotinhas devem ser vistas e não ouvidas / Oh submissão, vá tomar no cu!”.

a subordinação da mulher. Conforme Flávia Leite (2015), estes anseios foram respondidos com a ideia de uma pletora de direitos inexequíveis: concessões formais foram cedidas sob a forma de “direitos das minorias”, que por um lado amortecem os conflitos e transmitem a ideia de uma inclusão, mas por outro são inexequíveis e uniformizadores. É neste contexto que podemos situar o movimento riot: pertencente a terceira onda do feminismo, essas garotas compreendem que a categoria mulheres ao mesmo tempo que inclui, gera exclusão, pois padroniza. As demandas de mulheres lésbicas e negras, por exemplo, são diferentes das demandas de mulheres brancas e heterossexuais. Por isso há uma desconfiança em relação ao feminismo institucional, que clama por essa homogeneização de mulheres, e sob a atitude do faça você mesma (herança punk), essas mulheres passam a se organizar, debater e problematizar as questões vivenciadas por cada uma. Desta forma, o este trabalho será dividido em três partes: inicialmente, será abordada a origem do riot grrrl nos EUA; em seguida, trataremos da chegada deste movimento ao Brasil e por fim, apresentaremos a análise de alguns materiais produzidos pelo movimento, como fanzines, festivais e músicas.

2. GIRLS TO THE FRONT: A ORIGEM AMERICANA DO RIOT GRRL

Um dos nomes mais importantes quando o assunto é riot grrrl, é o de Kathleen Hanna. Além de se interessar por estudos feministas e de participar de grupos femininos voltados a assistência de vítimas de violência sexual, Kathleen frequentava a cena punk de Olympia, EUA. Estudante de fotografia na Faculdade Evergreen, soube que uma amiga com quem dividia o dormitório havia sofrido uma tentativa de estupro.

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Em resposta, Kathleen organiza um desfile de moda na biblioteca da faculdade sendo que cada vestimenta portava frases que narravam o ocorrido58. Após conhecer o fanzine 59 Jigsaw, de Tobi Vail, Kathleen se reúne com Kathi Willcox, Vail e Billy Carren e formam uma das mais conhecidas bandas riot: Bikini Kill. Além de suas canções sobre emancipação feminina, direitos das mulheres e feminismo, a postura da banda merece ser lembrada com um exemplo. No ambiente underground, é extremamente comum que as pessoas mais próximas ao palco sejam homens, principalmente em razão da roda punk (dança a base de socos e pontapés) e do mosh (pular na plateia), atitudes que intimidam e mantem as garotas afastadas. A banda Bikini Kill subverteu essa lógica, exigindo em seus shows que as garotas viessem para a frente e os homens mantivessem-se ao fundo do palco – atitude feita também como medida protetiva, em razão das ameaças e violências sofridas pelas integrantes, por parte de um público (ainda) machista. Todavia, é importante destacar que o riot grrrl não se esgota na música. Os fanzines constituem um elemento importante dentro do movimento, especialmente em razão de seu caráter plural e circular. Como afirma a pesquisadora Michele Camargo (2010, p. 21) “elementos, como ausência de censura, baixo custo de produção e autonomia, foram cruciais para a escolha do fanzine como um dos principais meios de expressão das ideias e da música dos punks.” Os fanzines riot eram fabricados de garotas para garotas, abordando assuntos diversos e disponíveis para as jovens meninas frequentadoras da cena.

Figura 01 - Volume 03 do fanzine de Tobi Vail, que chamou a atenção de Kathleen Hanna.

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Informações presentes no documentário The punk singer, dirigido por Sini Anderson. Conforme O’Hara (2005, p. 186-187): “Fanzine = Literalmente, significa uma “revista de fã”. Pequenas publicações, feitas de modo artesanal e criadas por fãs de alguma banda, estilo musical ou até mesmo de outras artes, como quadrinhos, cinema, etc. Do seu surgimento, nos anos 70, até os tempos atuais, desenvolveram-se a ponto de termos fanzines com a mesma qualidade editorial e gráfica de revistas encontradas em bancas de jornal.” 59

Fonte: . Acesso em 09 de dezembro de 2016.

Figura 02 – Segunda edição do fanzine Bikini Kill, da banda homônima.

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Fonte: . Acesso em 09 de dez. 2016.

Além dos fanzines, era comum a ocorrência de reuniões e encontros, nos quais temas como violência sexual, aborto, lesbianismo e defesa pessoal eram abordados; estes encontros serão abordados no terceiro tópico deste artigo. Ademais, para compreender a recepção do riot no Brasil e enfim abordar a cena brasileira, precisamos ter em mente os seguintes pontos: 1) O movimento riot americano era descrente no chamado feminismo academicista, que na visão delas categorizava as mulheres em um rótulo60; 2) Não havia apenas uma vertente feminista bem delimitada neste movimento, sendo presente um feminismo polifônico. O que prevalecia era o esforço pela união das garotas. Haviam, por exemplo, grupos acusados de separatistas por prezar espaços exclusivamente femininos, e grupos que pelo contrário aceitavam os garotos interessados, desde que estes não fossem encarados como protagonistas (tivessem local de fala secundário)61. Não se tratava de uma cena sexista reversa, mas de uma cena voltada ao protagonismo feminino; 3) As riots não viam a imprensa e a grande mídia com bons olhos, especialmente porque estes meios as construíam como loucas, rebeldes sem causa. A mídia americana, por exemplo, veiculou a falsa notícia de que Kathleen Hanna havia se tornado feminista porque o seu pai a teria violentado quando criança, como abordado do documentário The Punk Singer. Todavia, apesar dessa desconfiança para com a mídia, é a imprensa que trará os ventos do riot grrl ao cenário nacional, assunto do próximo tópico.

3. O RIOT GRRRL NO BRASIL

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Para mais informações, checar: LEITE, Flávia Lucchesi de Carvalho. Riot Grrrl: capturas e metamorfoses de uma máquina de guerra. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC, 2015. 61 Para mais informações, checar: CAMARGO, Michelle. Lugares, pessoas e palavras: O estilo das minas do rock na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Campinas, Unicamp, 2010.

Conforme Leite (2015), a revista Melody Marker no ano de 1995 trará uma reportagem sobre a cena americana, o que despertará a atenção das irmãs Elisa e Isabela Gargiulo, fundadoras da banda Dominatrix em São Paulo, considerada uma das mais importantes bandas de riot nacional.A falta de espaço na cena underground tentou ser amenizada pela banda, que começou a tocar junto de outras cenas punks. Mas é preciso lembrar que o machismo não é exclusivo do mainstream: Leite (2015) afirma que as garotas sofriam com as críticas masculinas oriundas dessas cenas. Era comum reclamarem dos protestos e manifestos lidos durante os shows, pois tratavase de um questionamento aos próprios indivíduos. Conforme Leite (2015, p. 135):

as riots daqui também enfrentavam uma reação muito violenta dos machinhos da cena punk-hardcore em sua maioria [...]. Ao mesmo tempo que não encontravam respaldo na cena, apanhavam de nazistas skinheads. Por serem garotas, punks e por terem uma conduta sexual inadequada elas apanhavam em casa, na escola, no bar, na rua, na cena.

Além da banda Dominatrix em São Paulo, outras bandas punks não identificadas como riots também traziam importantes questões sobre o ser mulher na cena e na sociedade, como Cosmogonia (SP), Kaos Klitoriano (Brasília – DF) e Menstruação Anárquica (SP). Um bom exemplo é a banda Bulimia, de Brasília – DF, que adquiriu notoriedade com a canção Punk rock não é só pro seu namorado:

O que te impede de lutar? / O que te impede de falar? / Pare de se esconder / Você não é pior que ninguém / Punk Rock não é só pro seu namorado /Punk Rock não é só pro seu namorado / Você sempre quis tocar / Você sempre quis andar de skate / Você que sempre quis, quis, quis / Você não é um enfeite / Punk Rock não é só pro seu namorado / Punk Rock não é só pro seu namorado / Faça o que tiver vontade / Mostre o que você pensa / Tenha a sua personalidade / Não se esconda atrás de um homem / Punk Rock não é só pro seu namorado / Punk Rock não é só pro seu namorado

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Assim, apesar de chegar ao Brasil e influenciar toda uma cena de garotas punks por aqui, infere-se que o riot se reconfigura e se readapta as realidades particulares de cada grupo, se transformando. Uma das grandes críticas feitas ao riot grrrl, por exemplo, é o fato de ser um movimento branco, de classe-média alta, oriundo dos EUA (por vezes, seria necessário o domínio do inglês). A pesquisa de Michele Camargo (2010, p. 70) , realizada em SP, mostrou que a cena paulista era composta em sua maioria por garotas com acesso à internet, provenientes de famílias de classe média, que ocupam cargos de profissionais liberais e que são brancas o que é visto com desconfiança pelas próprias meninas com quem conversei; ‘eu acho que a problemática do riot é que é uma coisa muito branquela’(entrevista com Emilia, 2007).

Apesar de influenciadas pelo movimento riot grrrl, as meninas entrevistadas pela pesquisadora rejeitam este título, sendo utilizado então o termo minas do rock para identifica-las. É possível observar ainda que outros gêneros musicais passaram a dividir espaço com o punk rock dentro dos encontros riots: o rap e o hip hop cantado por mulheres vem ganhando espaço dentro da cena, como demonstra a pesquisadora Flávia Leite (20150, p. 141), que destaca a entrada do hip hop feminista nos eventos riots como resposta a braquitude da cena:

O riot grrrl é um movimento feminista dentro da cena punk, mas nunca excluímos mulheres de lugar nenhum. O objetivo, no fim, é um só. É fazer com que as mulheres tenham voz no ambiente em que elas existem. O importante é a união (Entrevista com Michelle Britto, em 2015. Michelle Britto é uma das primeiras a agitar uma cena riot em Salvador e frequentadora assídua da cena da São Paulo em 2015). Tem uma semelhança, né? Você sentir o sexismo na plateia, nas bandas... elas têm essa experiência também. Eu acho que pode ter o mesmo grito,

obviamente, num lugar de fala diferente (Entrevista com Elisa Gargiulo, vocalista da banda Dominatrix, em 2015). Elas notam que “o hip hop também reproduz misoginia e o discurso heterossexual” (Entrevista com Veridiana Fozatto, fundadora e exbaixista da banda Anti-Corpos em 2015)

Independentemente da nomenclatura (especialmente porque para ser riot basta o engajamento, ou seja, não há um manual de regras), essas bandas serão responsáveis por levantar questionamentos e atingir um público jovem. Leite (2015, p. 136), por exemplo, transcreve por exemplo o depoimento de Patrícia Saltara: Eu encontrei o Riot Grrrl após assistir o primeiro show de bandas nacionais com garotas tocando, como Dog School e o Dominatrix. Antes, já ouvia bandas com garotas tocando, como Sonic Youth, L7, Babes in Toyland, Smashing Pumpkins, Hole, mas me liguei mesmo do que era Riot Grrrl depois de ver bandas daqui ao vivo. O Riot Grrrl me ensinou o que é feminismo. Eu era nova e já tinha uma postura feminista na vida, ao mesmo tempo sofria muito com o machismo e suas imposições, mas não havia pesquisado a fundo sobre o movimento e confesso que tinha até um certo preconceito com o nome, que sumiu rapidamente a partir do momento que fui me envolvendo na cena feminista punk.

E Camargo (2015, p. 69, 71) transcreve o depoimento de várias entrevistadas, que salientam a importância do riot grrrl e do punk feminista em geral: Eu acho principalmente que, quando você tem 12 anos, 13 anos, 14, sei lá, depende da cabeça de qualquer um, às vezes você tem um pouco de vergonha de comentar certas coisas, entende? Com mãe, com irmã, sei lá... e acha que através de música, entendeu, você consegue se identificar, através das letras, principalmente. Então eu acho, que essas meninas, guitarristas, essas gurias das bandas que tem uma posição ativista dentro da cena, colocam coisas nas letras que fazem com que as meninas mais novas se identifiquem. Não só as mais novas, é claro, mas eu digo como, abrir a visão, pras meninas terem uma visão melhor, entendeu? Por que quantas já sofreram agressão? E não tem vergonha? Eu tenho... por experiência própria e por outras meninas. Claro que não é só isso, entendeu? Algumas juntam na questão de

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conceito mesmo, que querem conhecer. Outras, por experiência própria gostam de se identificar com bandas que falam de coisas que atingem, sei lá, o seu corpo, seu coração, entendeu?” (Entrevista com Camila, 2008). Depois que conheci o rock feminino minha vida mudou. Olha que frase profunda, né, meu, é verdade. É mudou, então, né meu, depois que comecei a ouvir banda de mina minha cabeça abriu, me assumi sapatão, comecei a questionar tudo no mundo e foi incrível (Entrevista com Heloísa, 2008). Eu acho que afeta, eu poderia ser outra pessoa. Afeta, se eu vejo uma situação que eu possa interferir eu interfiro. Ou mesmo na rua se um cara fala uma merda eu respondo (Entrevista com Érica, 2008). Eu podia ser como eu era e foda-se. Desde sei lá, preconceito, um abuso tipo no metro, no ônibus, eu não tinha que ficar de cabeça baixa, porque era uma coisa possível de acontecer. Eu era muito reprimida, muito quieta, na questão de tudo assim sabe, de conversar direito, hoje eu analiso e vejo: uma coisa não comentava e acabava acontecendo sabe, então completamente, bem nesta questão de empoderar mesmo (Entrevista com Paula, 2008).

Portanto, pode-se afirmar que o riot ou o rock de mina converge e dialoga com o Direito ao conscientizar jovens garotas sobre seus direitos individuais e, ao mesmo tempo, critica, denuncia e problematiza ações da sociedade e do Estado para com as mulheres. Criado um espaço seguro de garotas para garotas, temas como violência sexual, violência moral, simbólica, psicológica, aborto, sexualidade e tanto mais considerados polêmicos para serem abordados em certos espaços, há a possibilidade de conscientização e de postura crítica. Afinal, como exigir direitos sem sequer conhecelos? Como denunciar uma opressão, sem sequer saber que dela sou vítima? Neste sentido, passa-se a terceira parte deste trabalho, na qual é possível vislumbrar alguns dos discursos que circulam pelo movimento, especialmente relativos aos direitos das mulheres.

3. PRODUÇÕES DO RIOT GRRRL

Dentre os diversos materiais produzidos pelo movimento riot grrrl e mesmo pelas minas do rock no cenário nacional, podemos destacar os fanzines, encontros e eventos, e as próprias músicas.

3.1. Os Fanzines

Os fanzines foram populares antes da disseminação da internet nos anos 90, mas ainda hoje é possível encontrar quem produza este tipo de material, geralmente disponibilizando também sua versão online. O acervo Arquivo riot grrrl brasil 62 disponibiliza alguns zines, dentre os quais selecinou-se alguns para demonstrar como a questão do direito das mulheres é abordada neste espaço. O Zine Estridente, por exemplo, é produzido por Jéssica Valeriano, de Uberaba – MG, que desde os quatorze possui envolvimento com a cena, chegando a tocar em uma banda e posteriormente a fazer rap. Formada em sociologia e filosofia, passou a confeccionar zines artesanais em 2012.

Figura 03 – Trecho do Fanzine Estridente.

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Disponível em: < https://arquivoriotgrrrlbrasil.wordpress.com/category/zines/>. Acesso em 09. Dez. 2016.

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Fonte: < http://cultiveresistencia.org/arquivoriotgrrrl/estridente_01.pdf>. Acesso em 09 dez. 2016.

A figura 03 ilustra a questão da violência de gênero, tipificada penalmente. A autora procura esclarecer quando o assédio cometido pode ser, juridicamente, considerado estupro numa tentativa de disseminar um conhecimento tão importante e, por vezes, tão negligenciado por raízes culturais, como por exemplo, a suposta impossibilidade do marido estuprar a mulher sob o pretexto do dever conjugal. É preciso ressaltar que a autora comete um equívoco, pois no Código Penal brasileiro essa conduta está elencada no artigo 213 e não no artigo 231 o que, todavia, não diminui o intuito informativo da publicação. Outro zine selecionado é o Cinisca, editado por Laiza Ferreira e Rafaela Fontoura de Ananindeua/Belém-PA. O zine nasceu em 2011 e é feito somente por mulheres. A inspiração veio das bandas riot grrrl e da força da atleta espartana que venceu a corrida de carruagem de quatro cavalos chamada Cinisca. Na primeira edição, trazem uma reportagem sobre ações ocorridas em SP. Manifestantes colaram cartazes no Comedians, teatro de Rafinha Bastos, comediante que teria sido misógino e racista em suas performances.

Figura 04 – Zine Cinisca

Fonte: < http://www.mediafire.com/?oaovreauau89gsc#1.pdf>. Acesso em 09 dez. 2016.

Um zine mais antigo, denominado Um outro olhar é citado por Camargo (2010, p. 38): Somos contra qualquer tipo de repressão: a mais comum entre as mulheres é a opressão familiar, que limita de mulher aos papéis de esposa e mãe; lutamos por uma série de coisas: legalização do aborto, contracepção gratuita, igualdade entre os sexos e raças, mesmo salários para as mesmas profissões, defesa e informações das mulheres sobre seus direitos. Vislumbra-se, novamente, o intuito de informar e de conscientizar as mulheres sobre os seus direitos e necessidades. Questões polêmicas como o aborto e opressão familiar estão listados na pauta do zine, o que permite interpretar que tais questões eram veiculadas e mesmo discutidas entre autoras e leitoras.

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Por fim, merece destaque o fanzine americano Free to fight. Esse fanzine, seguindo a linha do faça você mesma, é dedicado a questão da autodefesa feminina. As garotas se preparavam da melhor forma possível para lidar com a insegurança de suas vivências pois, conforme Leite (2015, p.123), “sabiam que Estado nenhum, polícia nenhuma as impediria, por exemplo, de serem espancadas pelo pai” ou namorado, ou marido, ou irmão. Leite (2015, p.116) explica a origem do fanzine: A banda Team Dresch foi uma das pioneiras em divulgar as táticas de autodefesa. Foi o revide das garotas após uma das integrantes da banda, Judy Bleyle ter sido surrada pelo dono de um clube onde haviam tocado. Bleyle e o dono da casa discutiram porque ele havia parado sua picape em lugar que dificultava que Bleyle levasse os equipamentos usados no show para o carro da banda. Enquanto Bleyle estava de costas, voltando para o clube, foi surpreendida por um soco na lateral da cabeça. O golpe foi forte e lhe abriu supercilho, deixando-a sem reação, levando-as a buscar essas táticas que poderiam capacitá-las para o revide. A partir daí passaram a ensinar as táticas aprendidas nos intervalos de seus shows, no fanzine Free To Fight e no projeto de mesmo nome que consiste em um cd com músicas de bandas riots, áudios explicativos de defesa pessoal e um encarte com ilustrações.

Figura 05 – Zine Free to Fight

Fonte: < https://pt.scribd.com/doc/253529899/Free-to-Fight >. Acesso em 09 dez. 2016.

Neste sentido, a preocupação em ensinar às mulheres essas táticas vincula-se diretamente a falta de confiança na proteção institucional, bem como a possibilidade de se efetivar uma defesa legítima contra possíveis agressões. Para

Camargo (2010), os zines

aqui

estudados

abrem

um

espaço

de

expressão para mulheres jovens num momento em que o feminismo, tanto em suas expressões mais teóricas quanto ativistas, ainda não abordava questões ligadas às mulheres jovens.

3.2. A Cena (eventos e encontros).

Como mencionado, o início da cena no Brasil foi marcado por muita discriminação, o que levou as garotas a se organizarem e criarem seus próprios festivais, nos quais apenas bandas femininas poderiam se apresentar. É importante relembrar que a música era um dos elementos: a troca de fanzines, as conversas e alianças estabelecidas completavam a cena.

Assim, existem inúmeros eventos e festivais espalhados pelo Brasil, mas um dos festivais mais importantes neste sentido é o Ladyfest. Trata-se de um festival com temáticas feministas realizado anualmente, em que há discussões, música, troca de zines, oficinas e mostra de vídeos. Conforme Leite (2015, p. 53-54): foi criado no ano de 1999 por Allison Wolfe, Corin Tucker e Sharon Cheslow com o intuito de responder ao “estado da música, todos esses festivais de música de macho que são tão corporativos e mainstream. A galera paga 50 dólares para entrar em um festival estúpido onde dizem para as garotas tirarem a camiseta”. A primeira edição aconteceu em Olympia, em agosto de 2000, e estipulou um formato para o festival: era composto por uma programação que contava com shows, oficinas, discussões, e mostra de artes visuais e filmes, organizados em mais de

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um dia de evento. Sem patentearem copyright, o objetivo era propiciar que outras garotas organizassem Ladyfests em suas cidades (desde então versões do Ladyfest acontecem em diferentes lugares do planeta (México, Alemanha Austrália, Suíça) e inclusive no Brasil).

No Brasil, já ocorreram oito edições deste festival: em 2004, o tema do festival foi “Conhecimento para a resistência feminista”, em 2005, com o tema “NÃO à violência contra a mulher, NÃO ao silêncio, e SIM nós somos feministas”; 2006 com a pauta “É menino ou menina? – Gênero: o machismo torturando nossa identidade”; em 2007 “Tire sua própria virgindade”, em 2008, o evento não foi realizado, voltando no ano seguinte em uma versão reduzida chamada de Mini-Ladyfest, durando apenas um dia. O tema debatido foi “Perspectivas do feminismo jovem alternativo”; em 2010, aconteceu a quinta edição do Ladyfest Brasil comemorando “10 anos de feminismo jovem radical”, com show da banda Team Dresch (a precursora a abordar a questão da autodefesa após uma integrante ser agredida em um clube, criadora do fanzine Free to Fight); em julho de 2013, aconteceu uma edição do festival com a dupla cubana de hip hop Krudas Cubensis e discotecagem da escritora Clara Averbuck. Percebe-se, assim, a inserção de outros gêneros musicais além do punk rock. Todos estes eventos haviam sido realizados, até então, em São Paulo. Em 2016, porém, ocorreu o primeiro Ladyfest em Fortaleza - CE, contando também com outros gêneros musicais como o reggae. O Ladyfest, dentre outros eventos do gênero, permite a criação de um senso de comunidade entre essas garotas, sendo praticado também segundo a ideologia do faça você mesmo – são eventos que não contam com patrocínio. Para as entrevistadas de Camargo (2010, p. 73-74), o Ladyfest: É a utopia máxima. Desmembrando pra coisas práticas e possíveis, assim, produzir coisas sem precisar dos outros, criar senso de comunidade, né, o Lady fest é isso né, que é o festival riot. Sozinho, sem dinheiro, sem porra nenhuma, faz o negócio acontecer pra mais de

2000 pessoas, disponibilizar coisas de graça, então, fazer isso né, a idéia é essa. A utopia mor é a destruição do patriarcado, aí no dia a dia a gente tenta ter umas doses homeopáticas disso (Entrevista com Emilia, 2008). É juntar a mulherada e fazer os eventos. Eu já fiz vários. Já fiz All Girls I e II e assim, levando as meninas pra tocar nos Sescs da vida, entendeu? Fiz todo um esquema bacana, uma divulgação bacana, equipamento bom, montei também. Montei os mangás, “Lãs senhoritas mangás”. Eu não vou lembrar de todos os festivais, “Viva la woman”... eu montei vários festivais pra exatamente, pra poder chamar a mulherada pra agitar, pra poder tocar num esquema bacana, dentro do melhor possível do local que a gente poderia fazer (Entrevista Camila, 2008).

Durante o Ladyfest, além das apresentações das bandas, há a ocorrência de oficinas onde assuntos como sexualidade, homoafetividade e violência(s) são abordados. Novamente, vislumbra-se a organização de garotas no intuito de debater, disseminar e trocar experiências sobre diversas questões relativas à mulher, especialmente no que se refere a seus direitos. Há, portanto, nesses espaços, uma tentativa dupla de conscientização e de luta for efetivação.

3.3 As músicas Em razão do vasto material de áudio lançado por bandas nacionais, foram selecionados alguns trechos das músicas vociferadas pelas garotas, no intuito de ilustrar o tipo de discurso por elas veiculados na cena. Em 2009, a banda Dominatrix lança a canção Filhas, mães, irmãs, cujo tema principal é a indiferença com a qual a violência contra a mulher ainda é encarada: Um de vocês vai dizer que não viu nada, não ouviu nada. / Um de vocês vai me dizer 'vai devagar, sem acusar'. / A violência se faz, / A indiferença se faz /A intolerância se faz sem testemunha, / Dentro de casa, nas ruas do subúrbio, / Dentro de casamentos e nas delegacias. /

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Não faz mal pensar que não se está só. / Não faz mal pensar que não se está só.

A música narra sobre a violência vivenciada por mulheres e silenciada ou diminuída por seus espectadores. Também denuncia que a violência não está apenas nas ruas, mas nas casas, casamentos e delegacias – espaços nos quais, supostamente, não haveria violência. A banda Kaos Klitoriano possui uma música dedicada às reivindicações sobre a descriminalização do aborto, um assunto ainda encarado como tabu. A banda entoa:

Seu corpo não pertence a nenhum estado / Ou Igreja e sim a você mesma / Não de ouvidos a entidades conservadoras / Que te chamam de devassa e pecadora / Ninguém a não ser você / Sabe o que é melhor para sua vida / Lute pelo seu direito ao aborto! / Seu direito ao aborto! / Lute pelo seu direito ao aborto! / Seu direito ao aborto! / Aborto não é crime / E sim uma necessidade / A proibição gera mais sofrimento / Ninguém vai deixar de abortar por ser proibido / Lute pelo seu direito ao aborto! / Seu direito ao aborto! / Lute pelo seu direito ao aborto! / Seu direito ao aborto!

Como mencionado na introdução deste trabalho, na apresentação ao vivo desta música, a banda faz um comentário sobre a situação da proibição do aborto no Brasil, levando este tema tão polêmico a espaços de sociabilidade jovens. Outros temas referem-se a sexualização infantil e ao abuso sexual que ocorre dentro das próprias famílias. Tem-se o exemplo da banda Bulimia, com a música Orgulho do Brasil: Crianças arregaçadas dançando o tchan na TV num programa brega de um ‘dacu’ do SBT / Um velho assiste e baba atiçando sua tara, crianças estupradas desconhecendo o porquê

/ Nós apoiamos a prostituição

infantil! / Nós somos o ‘é o Tchan’ do Brasil!

E a música Lembranças Proibidas, da banda Santa Claus, na qual a personagem da música é assediada pelo seu próprio avô: Você se aproveitou de toda a minha ingenuidade e me ensinou a descobrir certas coisas / Muito antes de todas as minhas amigas, que só foram conhecê-las quando adultas / Se apoiou naquele maldito vício para fazer o que queria comigo / E me convenceu a ficar sempre calada, com suas desculpas totalmente esfarrapadas / Você não precisou usar a sua força, pois conseguiu ganhar a minha confiança / Sem ameaças você foi um grande gênio, mas nunca teve nenhum reconhecimento [...] / foi só pra sua neta querida que você deixou lembranças proibidas

A compositora da canção, de fato, sofreu essa violência quando criança e utilizou a música para expor o assunto. Conforme Leite (2015, p. 144) A canção “Lembranças proibidas” berra a violência brutal, sentida na pele pela autora, em seu pequeno corpo de criança. Foi o que a fez explodir em revolta, “o fato de eu sozinha, criança, ter falado ‘Não!’ para o meu avô, para o meu corpo, foi o maior ativismo da minha vida. Sozinha” (Idem). Por meio de suas músicas e de projetos como o Bendita Zine73, ela buscava fazer mulheres e meninas saírem do lugar de vítima, de sofrimento calado, de suspeitas de estarem pronunciando uma verdade.

Vislumbra-se a tentativa de efetivação de direitos, uma vez que as mulheres são, por meio dessas músicas, encorajadas a expor e compartilhar as violências sofridas, para que o agressor não saia imune e para que os danos sofridos por estas mulheres sejam superados. É uma questão de empoderamento. Assim, seja com os fanzines, com os eventos e encontros, ou com as músicas, o movimento riot grrrl (ou minas do rock), contribui ativamente para a conscientização das mulheres sobre os seus direitos, no intuito de buscar sua real efetivação.

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I CONGRESSO DE DIREITO DAS MULHERES

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Direito, por si só, é incapaz de resolver determinados conflitos – especialmente se se mantem uma incógnita a quem deveria proteger. Neste sentido, manifestações artísticas podem apresentar-se como um instrumento poderoso ao conscientizar determinados públicos sobre determinadas questões e, ao mesmo tempo, veicular exigências e demandas sociais. Neste sentido, o presente artigo procurou demonstrar se e como o movimento riot grrrl auxilia na promoção e efetivação dos direitos das mulheres. A partir de diversos elementos que compõe o movimento, como as músicas, os fanzines e os eventos e encontros, é possível concluir que mais do que entretenimento, o riot grrrl, também chamado de rock de mina, contribui de forma significativa ao conscientizar jovens mulheres sobre questões como aborto, violências e sexualidades. Em espaços como shows, oficinas e revistas, é criada uma espécie de segurança, na qual as mulheres sentem-se mais confortáveis para dividir experiências e buscar auxílios. Diferentemente dos espaços institucionais, há uma troca mais íntima, mais próxima, voltada a um público jovem, que muitas vezes desconhece sua própria situação de vítima – como no caso de estupros, violência psicológica e violência simbólica. Assim, pode-se afirmar que com os três ou quatro acordes do punk rock e de outros gêneros musicais, tem-se um tipo de resistência feminina que nada possui de passiva ou silenciosa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMARGO, Michelle. Lugares, pessoas e palavras: O estilo das minas do rock na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Campinas, Unicamp, 2010.

LEITE, Flávia Lucchesi de Carvalho. Riot Grrrl: capturas e metamorfoses de uma máquina de guerra. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC, 2015. O’HARA, Craig. A filosofia do punk: mais do que barulho.São Paulo: Radical livros, 2005.) The Punk Singer. Direção de Sini Anderson. Produção de Sini Anderson and Tamra Davis. Crowdfunded production, independent production, 2013. DVD.

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