NOSTALGIA E AMOR NA ESTÉTICA ALEMÃ

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

NOSTALGIA E AMOR NA ESTÉTICA ALEMÃ

SAMON NOYAMA

RIO DE JANEIRO MAIO DE 2014

NOSTALGIA E AMOR NA ESTÉTICA ALEMÃ

SAMON NOYAMA

RIO DE JANEIRO MAIO DE 2014

NOSTALGIA E AMOR NA ESTÉTICA ALEMÃ

SAMON NOYAMA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia (PPGF), do Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas

da

Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Dr. Rafael Haddock-Lobo

Rio de Janeiro Maio de 2014

NOSTALGIA E AMOR NA ESTÉTICA ALEMÃ

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia (PPGF), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Filosofia.

SAMON NOYAMA Orientador: Dr. Rafael Haddock-Lobo

BANCA AVALIADORA

________________________________________________ Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo (presidente)

_________________________________________________ Profa. Dra. Rosa Maria Dias

_________________________________________________ Profa. Dra. Rosana Suarez

_________________________________________________ Prof. Dr. Olímpio Pimenta

_________________________________________________ Prof. Dr. Vladimir Menezes Vieira

Rio de Janeiro Maio de 2014

AGRADECIMENTOS

Os agradecimentos tendem a parecer insuficientes se comparados ao peso da participação de todos aqueles que, de perto ou de longe, momentaneamente ou durante todo o processo, com intensidade ou leveza, contribuíram para que este trabalho pudesse chegar à sua última etapa. Farei o agradecimento nominal àqueles que estiveram sempre presentes, e a todos os demais o faço de maneira geral. Portanto, agradeço imensamente: Ao meu orientador Rafael Haddock-Lobo, primeiramente por ter significado uma resistência ao que representava minha maior dúvida e desconfiança quanto às possibilidades de se fazer filosofia (na academia) sem os vícios prejudiciais com os quais convivi na minha primeira passagem pelo IFCS. Meu ânimo e disposição para enfrentar o doutoramento certamente teriam sido invisíveis sem esse feliz acontecimento. Além disso, pelas aulas, conversas, orientações e por permitir que eu fizesse o meu caminho, com todas as imprecisões e ansiedades que só eu poderia fazer. Qualquer crescimento como investigador que porventura eu tenha adquirido, desde o início do doutorado até agora, está diretamente relacionado com a orientação que recebi; Ao meu orientador em Barcelona, enquanto fiz o período sanduíche, Raúl, e sua esposa Herta. A experiência acadêmica não poderia ter sido mais gratificante, e a convivência mais agradável. Sua experiência e generosidade foram importantíssimas para me dar ânimo e segurança, além de ter permitido um alinhamento definitivo da distribuição do trabalho como um todo. Os longos debates com Raul, além de enriquecerem minha cultura filosófica, foram fundamentais para fazer da estada em Barcelona inesquecível; A Renata, minha companheira, pelas lutas diárias, pelo carinho e dedicação, pela compreensão e apoio nos momentos mais difíceis, pela leitura e discussão sobre o texto, e por me fazer feliz a cada dia; Aos meus pais, Marilene e Minoru, pela formação, exemplo e incentivo, e pelo amor incondicional. Agradeço também a todos os familiares, que são muitos; Aos meus alunos e orientandos do curso de Filosofia da UNESPAR, por que souberam entender as minhas ausências, instigar meu desenvolvimento e dividir comigo seus problemas filosóficos. As jornadas de trabalho docente em momento algum deixaram de ser momentos de prazer e de aprendizado para mim; A Luciano, grande amigo, com quem desde o mestrado pude contar nas horas mais difíceis, seja para a leitura ou discussão do texto, seja para compartilhar qualquer outro assunto importante;

Aos colegas de trabalho Armindo, Charles, Cláudio, Everton Grein, Thiago, Giselle, Michele, Caio, Rafael, Valderlei, Sandra, Everton Estevam pela amizade e pela companhia nas terras geladas do sul; Não poderia deixar de agradecer ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ e às pessoas que fazem este programa acontecer, desde as suas atividades mais simples e burocráticas até os mais complexos elementos que o completam. Desde o começo minha proposta foi bem acolhida e todas as vezes que precisei da contribuição de alguém fui prontamente atendido. Sonia e Dina, vocês foram imprescindíveis para encurtar as distâncias que me separam do IFCS nesses últimos anos. Agradeço, por fim, ao Cnpq e à Capes. Ao primeiro por ter sido contemplado com bolsa de doutorado no primeiro ano do curso, antes de ter sido nomeado professor da UNESPAR, e ao segundo, por ter permitido fazer o doutorado sanduíche em Barcelona, na Espanha, entre 2011 e 2012.

A Luísa, por todos os nascimentos promovidos, e por ter dado mais sentido à vida do que eu poderia imaginar.

Com todas as suas contradições morais e seus males físicos, a liberdade é, para as nobres almas, um espetáculo infinitamente mais interessante do que o bem-estar e a ordem sem liberdade, onde as ovelhas seguem pacientes o pastor e a vontade autodominadora se rebaixa a uma serviçal peça de relógio. Isto faz dos homens apenas um engenhoso produto e um feliz cidadão da natureza; a liberdade fá-lo cidadão e codominador de um sistema mais elevado, onde é muito mais honroso ocupar o último lugar do que, na ordem física, chefiar as fileiras. Schiller, “Acerca do sublime”.

Vida e vivência – Se observamos como alguns indivíduos sabem lidar com suas vivências – suas insignificantes vivências diárias –, de modo a elas se tornarem uma terra arável que produz três vezes por ano; enquanto outros – muitos outros! – são impelidos através das ondas dos destinos mais agitados, das multifárias correntes de tempos e povos, e no entanto continuam leves, sempre em cima, com cortiça: então ficamos tentados a dividir a humanidade numa minoria (“minimaria”) que sabe transformar o pouco em muito e numa maioria que sabe transformar muito em pouco; sim, deparamos com esses bruxos ao avesso, que, em vez de criar o mundo a partir do nada, criam o nada a partir do mundo. Nietzsche, Humano demasiado humano.

RESUMO

O presente trabalho é uma tentativa de estabelecer um vínculo entre a nostalgia grega, notadamente um movimento que floresceu na Alemanha da segunda metade do século XVIII, e o amor, enquanto tema da filosofia em que Nietzsche que sintetiza, de certa forma, o pensamento-afirmação da vida, um dos elementos mais interessantes de sua filosofia. Para realizar essa travessia, partimos das contribuições fundamentais de Winckelmann, Lessing e Kant, sem as quais Schiller, enquanto filósofo e dramaturgo, não teria deixado sua importante reflexão das teorias sobre o trágico e a beleza, que culminam com o projeto de uma educação estética na modernidade. Mas, ainda que tenha oferecido este notável projeto, ele mesmo se mostrou reticente em relação aos rumos que o homem e a humanidade estavam tomando no final do século das luzes. Sua desconfiança é resultado de suas reflexões antropológicas, a partir das quais enxergamos vínculos com a interpretação que Nietzsche fez da cultura ocidental, motivo de sua admiração e ódio ao longo das últimas décadas. Esperamos, com este trabalho, mostrar que o exercício crítico inerente à atividade filosófica foi fundamental para a retomada dos gregos, para a proposta de uma educação estética e também para o estabelecimento da filosofia enquanto movimento imprescindível para o homem, sobretudo quando se aproxima da arte e da política.

Palavras-chave: Nostalgia; amor; educação estética; modernidade; Schiller; Nietzsche.

ABSTRACT

This work is an attempt to establish a relation between the Greek nostalgia, an important philosophical movement that flourished in Germany during the second half of the eighteenth century, and love, the theme through which Nietzsche synthesizes the thought of life affirmation, one of the most interesting elements of his philosophy. To walk this journey, we start from the fundamental contributions of Winckelmann, Lessing and Kant, without which Schiller, as a philosopher and playwright, wouldn´t have left his so much important meditations of the theories of the tragic and beauty that culminate in the project of an aesthetical education in modern times. But, even though offering this notable project, Schiller himself showed some reticence towards the course that men and humanity were taking by the end of that century. This reticence comes from his anthropological meditations, in which we here establish links with the interpretation Nietzsche gives us of the occidental culture, reason of all the admiration and hate this philosopher has been receiving in the last decades. We hope to show with this work that the practice of critique which is inherent to philosophical activity was essential to the resumption of the Greek, for the proposition of an aesthetical education and for the establishment of philosophy as an indispensable movement for men, especially when it comes to art and politics.

Keywords: Nostalgia; love; aesthetical education; modernity; Schiller; Nietzsche.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

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2 CAPÍTULO 1 “HÁ UMA MELANCOLIA QUE ACOMPANHA TODO ENTUSIASMO”.

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2.1 Sobre a nostalgia

14

2.2 A influência da “Grécia de Winckelmann”

20

2.3 A teoria de Winckelmann sobre a arte grega

23

2.4 Os limites da modernidade entre dois poemas de Schiller

29

2.5 O caso Hölderlin

42

3 CAPÍTULO 2 XVIII: O SÉCULO QUE NÃO TERMINOU.

47

3.1 A modernidade e o surgimento da cultura alemã

47

3.2 Schiller e a influência de Lessing

52

3.3 Sobre o Laocoonte

66

4 CAPÍTULO 3 “NÃO NOS FALTA TANTA LUZ QUANTO CALOR, TANTA CULTURA FILOSÓFICA QUANTO ESTÉTICA”.

71

4.1 Schiller e a Revolução Francesa

75

4.2 O problema da escrita: prelúdio para a educação estética.

82

4.3 A beleza e a liberdade

93

4.4 As cartas sobre a educação estética do homem

109

4.5 Poesia ingênua e sentimental

122

4.6 Três metamorfoses

131

5 CAPÍTULO 4

“QUERO SER, ALGUM DIA, APENAS ALGUÉM QUE DIZ

SIM!”.

134

5.1 Nietzsche e os gregos

141

5.2 Schiller e Nietzsche

152

5.3 Nietzsche e a cultura moderna

159

5.4 Nietzsche e Platão

168

5.5 Por um pensamento-afirmação da vida

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

183

7 REFERÊNCIAS

193

1 INTRODUÇÃO

- Desci ontem ao aterro do Flamengo, na companhia de dois homens donos dos mais nobres sentimentos, e eis que, surpresos, na verdade estupefatos, deparamo-nos com a seguinte cena: um homem, cuja nudez, ainda que combinasse com o calor exasperante que toma nossa cidade nessa época do ano, contrastava assustadoramente com a maneira como estamos acostumados a nos portar em praça pública. Posso continuar a descrever a cena ou o momento é inapropriado? - Continue, por favor. O assunto parece ser de extrema urgência. - Aquele homem estava acorrentado junto a um poste, e havia sinais de violência em seu corpo que, sem dúvida, tinham sido praticados por terceiros. Um pedaço de sua orelha estava arrancado e muitas marcas de espancamento denunciavam as terríveis condições de maus tratos as quais ele foi submetido. A princípio, dava a impressão de que se tratava de um lugar onde o Estado não se faz presente e que fica delegado aos cidadãos comuns legislar, julgar e executar em todas e quaisquer ocasiões. Imagine você a minha situação! O que um homem de nossa época, confiante na necessidade de o Estado representar os nossos direitos e anseios, sensível aos menores traços de desigualdade e violência, como eu, poderia pensar? - Que horror! Eu chego a duvidar que tenha condições de recriar em minha imaginação uma situação como esta que acaba de descrever. - Receio que esteja inclusive ocultando outros detalhes, visto que meus olhos embaçaram e minha visão certamente ficou prejudicada em função da emoção que me foi provocada. Mas, se não me falha a memória, tratava-se de uma das situações mais indignas da vida humana, algo que há muito não se espera para homens de nossa formação. Nós, certamente, só tivemos acesso a coisas dessa natureza das leituras que fizemos sobre outros povos e épocas bem distantes. Isso me lembrou imediatamente daqueles homens que costumavam discutir sobre a justiça. Você, por acaso, seria capaz de reproduzir a maneira e com que termos eles falavam sobre a justiça? - Gentil homem, se não me engano, eles costumavam ignorar aquilo que viam cotidianamente para poder trata desse e de outros assuntos semelhantes com isenção, pois acreditavam que a neutralidade era um ingrediente fundamental para alcançar a melhor posição sobre a questão.

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- Apresentaste tão bem e em tão poucas palavras que por pouco não me escapa uma dúvida! Essa neutralidade, amigo, não a compreendi muito bem. Se os homens se espantavam com as coisas que apareciam para eles, como poderia justamente esquecêlas para melhor vê-las? Ou falta algo que não pude perceber na estratégia, ou o que eles tentavam fazer era no mínimo contraditório. Se você ainda tiver tempo para isso, pois sei que anda muito ocupado com seus afazeres e homens como nós não costumamos mais dedicar parte de seu tempo para especulações, poderia me dizer como aqueles homens não caíam em nenhum desses extremos? - Agora que o amigo me estimulou a memória, não apenas desejo dedicar mais tempo para esse debate, como tenho mais claras em minhas lembranças aquelas práticas. Se não me engano, eles julgavam que o hábito de ver coisas e situações semelhantes todos os dias poderia torná-las naturais, a ponto de fazê-los confundir o que era mesmo da natureza e o que era resultado das ações humanas. A neutralidade, então, servia para garantir que não se misturasse coisas de grandezas e naturezas distintas. Isso facilitava o julgamento e tornava o processo menos suscetível ao erro. - Ah sim, certamente é uma excelente ideia. Aliás, é admirável que naquela época homens já tivessem a preocupação de eliminar o erro dos julgamentos. Mas desconfio que, por exemplo, se eu visse uma situação semelhante a essa que acabei de descrever outra vez, e se tivesse a má sorte de tornar a vê-la uma terceira vez, seria incapaz de diminuir meu assombro. E se, porventura, eu pudesse voltar no tempo e passar alguns dias junto daqueles homens, e se todos esses dias me submetesse a visualizar cenas de violência e degradação, ainda assim, duvido que meus olhos se modificassem a ponto de embotar meus sentimentos. E você, o que pensa a respeito: é possível imaginar um retrocesso nesse sentido ou tens a impressão de que aquilo que ganhamos não se perde, isto é, que os valores adquiridos e a capacidade de se sensibilizar permanece inalterada após muitas experiências negativas? - Confesso que até você me apresentar esta história eu depositava toda a confiança de que os séculos de desenvolvimento e progresso poderiam até sofrer algumas derrotas, mas jamais retroceder a uma condição tão precária e selvagem como essa. Não saberia sequer mensurar o tamanho de nosso desafio, pois cada vez que constatamos a complexidade de nossa condição humana, mais nítido fica o quão frágil são nossas convicções e o quão virtuais são nossas vitórias. - Pois bem, então, continuemos.

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O ano de 2014 começou no Brasil não menos violento que 2013, e que, por sua vez, também não foi menos brutal que os anos anteriores. No caso do nosso país, sabemos que há 50 anos eclodiu um dos movimentos mais aviltantes de nossa história recente: o golpe militar e a ditadura que se instalou por pesadas e intermináveis duas décadas. Passados esses anos, a sensação e o discurso não nos deixam mentir: acreditamos, de fato, que o pior já passou e que hoje gozamos da liberdade individual e de uma conjuntura política e social inimagináveis para aquela geração. Mas mesmo nas primaveras, nem tudo são flores. O alto grau de liberdade individual e a impressão de desfrutar de um poder infinito cobram seus preços, que além de impagáveis, não oferecem para todos os cidadãos as mesmas condições. O discurso do Estado democrático de direito e da garantia e respeito das liberdades individuais são atropelados pela busca incessante de uma vida plena de privilégios para poucos e restrições para muitos. Na última década, não apenas no Brasil, as contradições têm aparecido com mais veemência. Ao passo que as manifestações em favor do reconhecimento de direitos de parcelas da população que não se enquadravam nas classes de outrora se intensificam, a força reacionária dos conservadorismos contra ataca. E, do ponto de vista filosófico, o debate se perde em meio ao alagado de opiniões individuais e de um festival de senso comum e preconceitos chancelados pela chamada liberdade de expressão, que muitas vezes se confunde com o direito de dizer qualquer coisa sobre qualquer assunto, legitimados pelo anseio de comunicar uma opinião pessoal aos quatro cantos. Nesse caso, por mais que para o exercício cotidiano do pensamento filosófico essa liberdade de expressão pudesse trazer mais benefícios que prejuízos, fica a impressão de que expressar um opinião qualquer a todo momento é mais importante do que estar apto e conduzir um debate que contribua para o aprofundamento da reflexão, cujas bases são o diálogo e a investigação que rejeita as primeiras impressões e as interpretações imediatas. A ideia de trazer à tona uma provocação sobre a liberdade foi a maneira que encontramos para nos aproximarmos de dois pensadores que foram marcados por esse tema. Pois, mesmo se tratando de uma tese temática, Schiller e Nietzsche falam mais 5

alto e com mais frequência do que os demais autores. Mais do que isso: foram as leituras e o contato com suas obras que nos colocaram neste caminho e que encorajaram este desafio. Mesmo correndo risco de parecer ingenuidade de nossa parte, gostaríamos de frisar duas questões que entendemos serem oportunas para fazer chegar ao leitor um pouco do incômodo e do problema que nos tocaram nos últimos anos. A primeira questão gira em torno da relação simbiótica entre a filosofia e a liberdade, especialmente se observarmos com mais atenção não a história da filosofia e suas mais importantes doutrinas, e sim, o que há de genuíno e espontâneo no exercício do pensamento reflexivo que explica a natureza inesgotável e os limites longínquos da filosofia. Pois a liberdade é objeto de investigação da filosofia, mas também é seu horizonte desejável. O exercício do pensamento é habita na linha tênue que separa a liberdade do filosofar e todas as amarras e limitações cognitivas, linguísticas e materiais que configuram a vida humana. A segunda questão reside na relação entre a filosofia e a vida. Desde que o pensamento filosófico apresentou suas primeiras reflexões ao mundo, os seus adversários e detratores encontram conforto para suas críticas na delicada e instável relação entre a filosofia e a vida. Realmente não chega a ser absurdo reivindicar que a filosofia se distancia da realidade e da vida cotidiana quando toma para si o privilégio de exilar-se na esfera da pura contemplação, como se fosse possível deixá-la isenta dos impostos e das cobranças da vida. Esse espaço privilegiado, tal como as condições normais de temperatura e pressão que determinam o espaço ideal para a experiência científica, contribui decisivamente para a oferta de argumentos que desqualificam o pensamento em virtude dessa morada no além. Na verdade, é preciso reconhecer que tal isolamento conferiu à filosofia seriedade e competência necessárias para aquelas pretensões. O que pode ser questionado é o prejuízo acumulado por ter, concomitantemente, reprimido o potencial de reflexão e pensamento que poderia ter ganhado vida se a não tivéssemos segregado tanto a vida material e as experiências dos viventes do pensamento filosófico. Além disso, parte considerável do desenvolvimento dessa cultura filosófica recai sobre a apologia da separação entre corpo e alma, entre matéria e pensamento, muito recorrente na história da filosofia, sem a qual a grande maioria dos pensadores não teria vindo à tona. Isso quer dizer que o nosso modo de vida e nossa visão de mundo são resultado dessas escolhas, e que juntamente com os benefícios vieram os prejuízos. Se Walter Benjamin tem razão em afirmar que a história é sempre contada pelos 6

vencedores e, portanto, é a história dos vitoriosos, e apenas uma versão possível, não há problema algum em admitir que há uma filosofia majoritária e controladora do discurso sobre sua própria história; mas, em contrapartida, abre-se espaço para falar da outra história. Para esta batalha Schiller e Nietzsche se apresentaram com notável dignidade. Talvez Schiller tenha sido marcado muito mais pela questão da liberdade, pois desde a época em que era aluno de medicina já se deixa perturbar com os sinais de opressão e a necessidade de questionar as arbitrariedades do poder, questão essa que não perdeu importância posteriormente nem em suas reflexões filosóficas tampouco nas obras dramáticas. O abismo entre a vida e a filosofia já se afigura como um tema nietzschiano. Aliás, trata-se de um tema que tem relação umbilical com as críticas que ele destina à história da filosofia e à cultura ocidental, cujas raízes – ou pelo menos uma delas – está no imbróglio do choque das três religiões, especialmente da judaico-cristã. O distanciamento, entendido até como uma espécie de pureza, faz parte de uma concepção de mundo que colabora com a radicalização dos privilégios através de um discurso aparentemente democrático. Estabelece uma lógica das diferenças essenciais, que no mundo e na natureza, talvez não existam. Uma lógica que é perversa, que protege e conserva os poderes, os dogmas, os preconceitos e, ao fim e ao cabo, perpetua uma visão de mundo elitista, que essencializa o que jamais poderia ser tomado como essencial. Por isso esses dois pensadores foram tão importantes para o desenvolvimento desse trabalho. Em certa medida, em algum momento anterior a este trabalho, ambos nos atraíram e conduziram para suas leituras muito por conta da maneira como estabeleceram suas filosofias e pela forma com que defenderam suas posições. E, ao enfrentar seus textos, percebemos que a linha tênue que separa tais obras das categorias muitas vezes impostas com alguma irresponsabilidade, os famigerados idealismos, ceticismos e afins, pode ser útil para a simplificação e a compreensão superficial do pensamento, mas tornam-se perversos ao contribuir para o empobrecimento da reflexão filosófica e o imediatismo das conclusões apressadas. O desafio de assegurar a legitimidade do pensamento, sua consistência e profundidade, sem negligenciar a necessária troca e o intenso diálogo que enriquecem a filosofia, foram traços marcantes de Schiller e Nietzsche que nos estimularam a buscar neste trabalho as aproximações

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entre suas filosofias na construção de dois elementos centrais da estética alemã do século XVIII e XIX: a nostalgia e o amor fati.

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Embora o contexto destas reflexões seja a chamada "estética alemã", o leitor poderá observar de imediato que nós não percorremos todas as contribuições relativas a este contexto, pois, sem dúvida, seria necessário um esforço e um trabalho consideravelmente muito maiores do que o nosso. Por isso, não é somente a ausência de muitos autores que se percebe, e sim, o fato de não nos aprofundarmos no tratamento de uma das questões mais debatidas deste período: as teorias sobre o belo. Reconhecido como um dos temas mais problemáticos da estética moderna, o juízo sobre o belo tornou-se tão logo objeto de investigação de quase todos os filósofos que se dedicaram à esta área. Nós partimos da ideia de que, mesmo admitindo que as reflexões estéticas de Schiller são, em parte, amparadas nas de Kant, não seria urgente nesse momento recuperar toda a discussão sobre o problema do belo, ampliando ainda mais o leque de pensadores, pois teríamos, certamente, que enfrentar Burke, Schelling e Hegel, por exemplo. E, ainda que tal esforço pudesse significar um quê a mais de erudição e enriquecer o trabalho, talvez ele desviasse a discussão como um todo, que, por decisão nossa, está traçado no sentido de privilegiar as noções de nostalgia e amor. É importante frisar que nos referimos a nostalgia e amor não como conceitos, e que essa escolha está diretamente ligada duplamente ao trabalho que se segue. Primeiro, no que diz respeito ao conteúdo do trabalho, porque ele não versará sobre a definição categórica desses termos, tampouco evidenciando uma preocupação em encontrar a melhor maneira de situar cada um deles na história da filosofia e no pensamento de um filósofo. E segundo, no que diz respeito à forma do texto, pois a condução tanto da investigação quanto da escrita não foram pensadas para prestar contas às indagações conceituais propriamente ditas, e sim, na possibilidade de alinhavar uma discussão na qual as noções de nostalgia e amor se mostram imprescindíveis. O eixo central da tese é a relação entre as noções de nostalgia e amor na estética alemã, do período que se estende do final do século XVIII até o século XIX, embora se concentre fundamentalmente em dois autores: Schiller e Nietzsche. O trabalho se assenta no fato de que a Grécia ocupa um lugar único na filosofia do século XVIII, tendo se tornado modelo, a fim de ser imitado e contestado, para a maioria dos 8

intelectuais alemães que se debruçaram sobre os temas da estética e da filosofia da arte, bem como sobre o problema da formação cultural da humanidade. Ao longo desse período, esse tema da formação esteve presente com muita intensidade no debate sobre a arte e a política, muitas vezes legitimando a aproximação entre essas duas esferas. Em geral, podemos dizer que até a eclosão do Renascimento a Antiguidade não tinha muita importância para as reflexões intelectuais e para as criações artísticas, exceto as referências seculares aos mestres Platão e Aristóteles, cuja influência na cultura ocidental acabou se tornando muito difícil de contabilizar. A partir do final do século XIV até a primeira metade do século XVI, fatia do tempo que associamos ao renascimento cultural que teve início em solo italiano, na região florentina, houve uma redescoberta e uma atribuição de valor às referências culturais da Antiguidade, fato que se consolidou nas últimas etapas da passagem do período medieval para o moderno, nas últimas décadas do século XVIII. A retomada dos gregos, em particular, provocou um efeito estrondoso nas artes e das ciências. Especialmente na filosofia podemos dizer que se tratou de um segundo nascimento, haja vista, sobretudo, as comparações cabíveis entre o surgimento da filosofia a partir do final do século V anterior a era cristã. Enquanto saiam as traduções dos diálogos de Platão por Schleiermacher e as de clássicos de Sófocles e Eurípides, os intelectuais alemães enfrentavam uma empreitada radicalmente oposta: criar e estabelecer uma cultura propriamente germânica, com a qual fosse possível digerir e compreender o passado majestoso, mas sem abrir mão de representar aquilo que poderia ser chamado de genuinamente alemão. Um dos homens mais importantes nesse projeto é Winckelmann. Conhecido como o primeiro historiador da arte e autor de duas obras cujo tema é a arte da Antiguidade, com especial atenção para o auge da cultura grega, ele acaba exercendo um papel fundamental e que contribuiu demais para a visão que a geração seguinte criou sobre a Grécia antiga. A idealização da Grécia como modelo a ser imitado marcou profundamente a geração que procurou compreender, traduzir e refazer obras como Ifigênia e Édipo. Mas, não obstante fosse necessário tomá-los como modelo, também seria impossível reestabelecer aquela época e toda a conjuntura favorável ao surgimento de espíritos tão especiais. Portanto, Winckelmann acaba idealização efetivamente a Grécia, pois ela se torna um espaço e um tempo inatingíveis. É daí, exatamente, que enxergamos nascer o sentimento de nostalgia em relação à Grécia, que teve ainda como figura incontestável o poeta Hölderlin. 9

Os quatro textos aqui presentes são resultado do esforço de tentar compreender um fenômeno que costuma incomodar qualquer iniciante nos estudos filosóficos: o retorno insistente aos gregos. Esse incômodo se justifica na medida em que a famosíssima afirmação de Alfred North Whitehead faz todo sentido para alguns desses iniciantes, mas não se impõe da mesma maneira para tantos outros, pois, ao dizer que a maior característica da filosofia europeia consiste em ser uma série de notas de rodapé de Platão, ele afirmou outras duas coisas polêmicas: primeiro, que Platão já haveria então esgotado todos os problemas filosóficos, sendo ele, nesse caso, absolutamente genial; ou segundo, que a filosofia europeia era incapaz de pensar qualquer questão para além do que fez Platão, sendo ela, nesse caso, duramente suspeita quanto à sua competência e qualidade. Sem a obrigação de colocar ponto final à polêmica, optamos por buscar entender os motivos que levaram, de uma forma ou de outra, a um profundo respeito e admiração pelos gregos, e neste caso, especialmente, à arte e à cultura gregas do século V a.C. Contudo, os desdobramentos dessa poderosa herança da filosofia grega foram profundamente marcados pela maneira como a história da filosofia acabou se relacionando com tal legado. Os intelectuais alemães da segunda metade do século XVIII tiveram um entusiasmo de dupla origem: a primeira vinda da admiração e do empenho em conhecer e assimilar a cultura e o pensamento da Grécia antiga; e a segunda nascida de sua própria condição histórica e política, pois com o crescente interesse em transformar a cultura e o povo alemão eu uma nação de destaque no cenário europeu a admiração pelos gregos acabou se transformando em um combustível para a realização deste projeto. Este projeto, por sua vez, é alimentado por um desejo de mudar radicalmente a situação da cultura germânica da época e, de certa forma, em posicioná-la no centro das ações deste projeto, para o qual ela teria uma contribuição singular. Para alguns filósofos e poetas desta geração, essa mudança radical deveria ser capitaneada por uma formação cultural que se diferenciasse da tradição anterior pela valorização dos elementos próprios da cultura e da história germânicas e também de seu tempo presente. E alguns desses homens compartilhavam de uma ideia talvez até mais importante do que isso: a certeza de que essa mudança só seria possível se a arte pudesse ocupar um lugar de maior força e importância na formação cultural do seu povo. Era preciso reeducar os homens, através de um processo que privilegiaria o cuidado com a sensibilidade e os sentidos, dando maior importância para a imaginação, valorizando os 10

sonhos e reduzindo a repressão e o poder hierárquico tão comum para uma sociedade estabelecida pela lógica feudal. Afinal, era preciso defender a autonomia dos homens e dos povos, legitimando o desejo de liberdade que marcou o século XVIII. Foi necessário fazer uma série de escolhas durante o desenvolvimento deste trabalho, que culminaram com a decisão por privilegiar um tema e não a contribuição de um autor. Como já é sabido, o tema eleito foi a transição da nostalgia para o amor fati no contexto da estética alemã, para o qual nos valemos de dois autores como base: Schiller e Nietzsche. Contudo, ao longo do desenvolvimento do trabalho, percebemos que eles não seriam apenas uma base, mas que seria possível encontrar alguns indícios capazes de minimizar a diferença cronológica e, ao mesmo tempo, mostrar que em alguma medida Schiller iniciou algumas reflexões que mais tarde seriam próprias do pensamento de Nietzsche, algo que este mesmo chega a reconhecer nominalmente. Friedrich Schiller teve uma vida curta, porém, extremamente produtiva. Teve um comportamento incomum para poetas de sua geração, pois buscou na filosofia os elementos que precisou para melhorar seu desempenho e, até certo ponto, tornar seu trabalho de dramaturgo legitimado por ideias tomadas da filosofia. Além disso, foi um homem extremamente sensível às mudanças e questões mais relevantes de sua época, o que também teve participação em suas criações. Com relação à visão que construiu sobre a Grécia, foi decisiva a leitura que fez de autores como Winckelmann, Lessing e Goethe, este último sendo inclusive um amigo que muito contribuiu nas suas grandes obras teatrais. Por isso, entendemos que seria imprescindível observar e compreender os pormenores desta sua formação. A divisão do trabalho não obedece a uma ordem determinada anteriormente, e sim, a uma distribuição que pareceu mais adequada durante o desenvolvimento final do texto. São quatro capítulos que atendem a diferentes demandas da pesquisa, mas que se alinham na medida em que faz sentido falar de uma continuidade entre o sentimento de nostalgia, erguido no contexto do helenismo na Alemanha, e o amor fati, uma forma de encarar a vida defendida por Nietzsche criada também em função do olhar para a Antiguidade. Há uma suspeita inicial de que a invenção do sentimento nostálgico é parte fundadora da visão de mundo construída ao longo do pensamento de Nietzsche, mas que, sem dúvida, é comprometida com a sua interpretação da cultura grega antiga e também com a seu posicionamento em relação à modernidade e à cultura ocidental. Em “Há uma melancolia que acompanha todo entusiasmo”, primeiro capítulo, discutimos o surgimento desse sentimento delicado e complexo que parece ter 11

contagiado a humanidade de forma definitiva, pois desde a nostalgia pelos gregos, tornamos o hábito de desejar voltar para uma época ou um lugar melhores. Essa ideia de que aquele tempo se transformou em um desejo impossível de ser satisfeito é defendida por Winckelmann e, depois dele, impregnou na mentalidade da época de tal maneira que foi preciso um motivo de tamanho e força semelhante para evitar que essa nostalgia se transformasse em uma depressão profunda: superar a Idade Média, dar contornos cada vez mais bem delimitados à modernidade, aos “novos” valores europeus, que nos colocariam a uma distância para com nossos antecessores inimaginável. O segundo capítulo traz uma discussão mais abrangente, no sentido de tentar compreender alguns dos valores mais significativos para a cultura moderna ocidental. Trata-se de uma parte extremamente importante para estabelecer o vínculo entre a nostalgia e o amor fati, pois pretendemos argumentar em favor de uma transição entre eles bastante dependente da maneira como a humanidade direcionou o desenvolvimento do que entendemos por modernidade. Sem essa reflexão, provavelmente se tornaria mais difícil defender a ideia de que o amor fati é um sentimento resultante da caminhada que se inicia com a relação nostálgica para com o passado antigo. De certa forma, acreditamos que neste capítulo estejam dispostas as bases necessárias para entendermos também outra ideia que defendemos no trabalho, a saber: a de que Schiller apresenta ainda de forma tímida e embrionária algumas teses defendidas com veemência por Nietzsche, e, entre elas, destacamos a ideia de que aparecem já na perspectiva de Schiller a desconfiança no homem moderno e a celebração de um novo homem, marcas indeléveis do pensamento nietzschiano. De todos os capítulos, o terceiro talvez seja o mais preso à necessidade de se discutir pontualmente a obra de um filósofo. Figura ímpar do século XVIII, Schiller compartilha do sentimento nostálgico em relação à Grécia, aproximando-se de autores como Winckelmann e Goethe. Mas, ao mesmo tempo, ele também se afasta destes homens ao dirigir-se a uma tarefa heroica e improvável: elaborar e defender um projeto de educação estética que pretende criar as bases e fomentar a experiência necessária para guiar a humanidade rumo a um horizonte radicalmente diferente do de sua época. Para isso, ele parte da filosofia, que considera já ter entregado ao homem suas reflexões mais importantes, mas procura através da dramaturgia começar sua revolução. Ao homem iluminado faltam, ainda, as mais belas obras de arte. Contudo, mesmo reticente em relação à sua geração e seguro de que outro tipo de homem precisaria surgir, Schiller apresentou mais indícios de entusiasmo do que 12

desânimo em relação ao futuro. Toda sua crítica pesada para com a modernidade ainda estava assentada na expectativa de que o alto desenvolvimento do espírito filosófico havia alcançado um estágio admirável e que lhe restava urgentemente trabalhar a sua sensibilidade e sua capacidade de tornar reais, isto é, práticos, seus postulados teóricos. Isso significa dizer que todo seu pessimismo não era suficiente para sepultar sua esperança e, portanto, seus apontamentos críticos ainda pareciam ter a pretensão de efetuar uma correção ou um encaminhamento mais adequado ao projeto de homem e de sociedade modernos. O quarto e último capítulo é sobre Nietzsche. Seu trabalho inicial, ainda circunscrito à filologia, nos provocou no sentido de observar os limites de sua relação com a Grécia. Sua filologia não foi recusada pela academia à toa: o caráter extemporâneo de suas investigações sobre os gregos, além de se distanciar indiscutivelmente do padrão investigativo da filologia acadêmica de sua época, também trouxe uma nova forma de enxergar a modernidade. Por mais que Nietzsche tenha exaltado os gregos e que esse gesto o aproxime de uma tendência a sentir a ausência daquela visão de mundo, caindo diante de uma nostalgia insolúvel, seu posicionamento em relação à modernidade chama ainda mais atenção. O reconhecimento de uma coletânea de vícios levou o filósofo a ocupar o espaço de grande crítico da cultura ocidental, já que muitas vezes deu certa visibilidade à sua figura incomum, mas enfraqueceu e desqualificou seu pensamento. A nossa intenção é de debater a possibilidade de se pensar em uma ligação direta entre a nostalgia e o amor fati aproximando, ao mesmo tempo, as reflexões estéticas de Schiller e Nietzsche.

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2 CAPÍTULO 1 “HÁ UMA MELANCOLIA QUE ACOMPANHA TODO ENTUSIASMO” 1

2.1 Sobre a nostalgia

Foi Johannes Hofer, jovem acadêmico de medicina da Basiléia, que em 1688 cunhou o termo Nostalgie, ou Heimweh, ao analisar a condição dos militares suíços que permaneciam distantes de sua terra natal.2 A patologia, também conhecida como homesickness, significaria uma dor ou sofrimento incontroláveis que um militar sofreria por manterem-se por longos e nada agradáveis períodos longe daquilo que lhe era conhecido, das suas relações, enfim, do seu ambiente original. O termo nostalgia derivaria, provavelmente, da junção dos termos nostos, (retorno, regresso) e algos (dor, aflição), na tentativa de nomear aquele sentimento marcado pela ausência de casa, morada, origem. E como não se trata de uma única pátria e tampouco de uma origem em especial, podemos admitir, então, que seja uma espécie de dor universal, como se fosse a viagem ímpar de Ulisses no seu retorno a Ítaca: uma viagem de volta que mais se aproxima de uma travessia, de uma ida ao encontro de si mesmo, um improvável amálgama entre a geografia e a existência humana. Eduardo Lourenço, em Mitologia da saudade, reivindica para os portugueses, e quem sabe um rastro disso para as culturas dos países lusófonos, um apreço especial para esse sentimento, e revela como a substituição do termo “nostalgia” por “saudade” pode dar contornos muito interessantes para compararmos as identidades dos povos do norte da Europa e dos mais próximos ao Mediterrâneo. Diz ele: “A nostalgia fixa-se num passado determinado, num lugar, num momento, objetos de desejo fora do nosso alcance, mas ainda real ou imaginariamente recuperável.” (LOURENÇO, 1999,13). Segundo ele, os portugueses seriam capazes de sentirem-se estrangeiros mesmo estando em terra lusitana, visto que a saudade seria uma nostalgia hiperbólica, não livre da tristeza, mas capaz de sentir orgulho desta ausência crônica e incorrigível. Lourenço,

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SHAFTESBURY, A. A. C. Carta sobre el entusiasmo. Introducción, traducción y notas de Agustín Andreu. Barcelona: Critica, 1997, p. 102. 2 O trabalho, intitulado “Dissertatio medica De Nostalgia oder Heimwehe”, aparece hoje como principal referência em compêndios de medicina como a primeira tentativa de definição deste sentimento, como consta, por exemplo, no Bulletin of The Institute of the History of Medicine.

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incansável estudioso da identidade portuguesa em sua literatura e poesia, talvez tenha observado bem os versos de Álvaro de Campos, em “Tabacaria”: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer se nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” (p.9); ou mesmo o começo de “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia” (p.170). Segundo a interpretação de Lourenço, a grande potência da saudade é a criação. A capacidade de inventar, criar mundos, almejar algo distante como se fosse tangível ao afirmar que com a saudade não resolvemos a perda temporal e tampouco geográfica. Quer dizer: a nostalgia não nos abre espaço para recuperar o que se foi, mas para inventar aquilo que supostamente não gozamos mais. Além disso, essa invenção, que via de regra traz consigo o gosto amargo com ares de arrependimento, tende a levar-nos com mais força para a melancolia do que para a felicidade, pois mesmo quando lembramos saudosos resta ainda a marca de um desejar possuir sabidamente impossível. Na seguinte passagem vemos como Lourenço anota essa característica marcante e faz uma provocação a respeito dos afetos que recebemos:

A nostalgia, sofrimento por conta de um bem perdido que era constitutivamente nosso, desvenda-se e revela-se como um sentimento essencialmente negativo, espécie de luto que o tempo desvanece sem o deixar esquecer. Há alguma possibilidade de contornar esse luto desde dentro e não de fora, transfigurando-o em nostalgia, por assim dizer, feliz? (LOURENÇO, 1999, 33).

É nesse sentido que se pode dizer que a nostalgia é universal. Ela é algo além do desejo de eternidade, um passo além da quimera: ela é o próprio sentimento de ter vivido eternidades. Por isso, os alemães do século XVIII podem ter experimentado as vicissitudes dessa saudade na sua relação complexa e inspiradora com a Grécia antiga, um dos motivos responsáveis pela efervescência artística e filosófica da segunda metade do século XVIII até a passagem para o XIX. Se, no começo, a visão sobre os gregos se mostrou demasiadamente idealizada, podemos averiguar se essa relação não recebeu contornos mais intrigantes e menos ingênuos algumas décadas depois, justamente naquilo que queremos identificar como sendo uma transfiguração desse sentido nostálgico em amor, profundamente marcada pelos acontecimentos finais do século XVIII e pela intensa e conturbada relação de Friedrich Schiller com os gregos e alemães, desde a poesia à filosofia. 15

O ano de 2005 foi marcado pelas festividades e publicações que celebraram a vida de Friedrich Schiller. Os duzentos anos de sua precoce morte justificavam a exaltação de um homem que, apesar de ter vivido apenas quarenta anos, intensos e sofridos, nos brindou com uma obra que se estende da história à poesia, passando pela filosofia da história, da arte, e pela dramaturgia. É tarefa das mais difíceis concluir se Schiller foi mais influenciado por seu tempo ou se exerceu mais influência nos anos que se seguiram após a sua morte. Esta tarefa se torna árdua porque, como autêntico representante dos Dichter und Denker (poetas e pensadores), Schiller foi profundamente marcado pelos eventos históricos de seu tempo, pelos poetas com quem conviveu e pelos filósofos que leu. Em outras palavras, tanto a Revolução Francesa e a amizade e intenso período de mútua colaboração artística durante o Classicismo de Weimar com Goethe quanto a leitura atenta das obras de Kant foram pontos decisivos para a formação e para a obra deixada por Schiller. Faz sentido que para a formação de um homem que até poucos anos atrás ainda tinha seus versos decorados por estudantes de escolas alemãs, a lista de encontros marcantes e decisivos seja proporcionalmente extensa. Isso quer dizer que elencar os nomes e obras que influenciaram o pensamento de Schiller se tornaria um trabalho à parte. Apesar disso, qualquer trabalho que pretenda examinar suas contribuições não pode se furtar ao fato de que ele absorveu com muita lucidez e acuidade as lições que teve. Nos anos de formação na Karlsschule, período em que experimentou talvez pela primeira vez o exercício de uma autoridade desastrosa através da figura de Karl Eugen, foi aluno também de Jacob Friedrich Abel. Se as atitudes de seu diretor plantaram desde jovem uma sensibilidade para entender o jogo das hierarquias e do despotismo, as recomendações de Abel foram riquíssimas para seu espírito. Este convívio foi muito importante para Schiller. Abel, que era admirador do empirismo inglês de Locke e Hume e ávido leitor de Rousseau e do jovem Herder, semeou nele o interesse pela filosofia. Em 14 de dezembro de 1776 ele deu uma conferência sobre o gênio na qual falou de Shaftesbury, Shakespeare e Goethe. A imagem do gênio como oposição às hierarquias e à tradição, e, sobretudo, como despertar da consciência para uma nova forma de ver o mundo foi crucial para as pretensões entusiasmadas de Schiller. Apesar do recente interesse pela filosofia, ele não abandonou a poesia, mas concentrou suas leituras em obras que, sendo poesia ou filosofia, pudessem desenvolver seu conhecimento sobre a natureza humana. Desde este

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momento, portanto, inclinou-se para a filosofia, poesia e tudo mais que o ajudasse a entender profundamente o universo incalculável de possibilidades que é o homem. A vida que levou nesta escola foi capaz de inspirar, apesar da juventude, Os Bandidos, sua obra de adesão aos valores defendidos pelos poetas do Sturm und Drang. Nessa época, lamentou que a poesia não fosse admirada como parte da formação dos jovens naquela escola, que prezava mais pela obediência às vontades e direções do duque, que não hesitava em punir os alunos que dedicassem seu tempo também à literatura.3 Logo, a fuga daquele ambiente, para longe dos domínios do Sr. Eugen, foi capaz de proporcioná-lo experiências ainda mais inspiradoras. A liberdade que tanto ansiava durante os anos de internato e a punição aplicada4 por Karl Eugen, e o despotismo tornaram-se tema transversal em sua obra, presente tanto nas personagens de suas obras dramáticas quanto na sua investigação acerca da teoria kantiana. A segunda metade do século XVIII foi um dos períodos mais importantes para a configuração que o mundo ocidental iria adquirir nos séculos seguintes, e poucos personagens dessa época foram tão catalisadores dessas transformações como Schiller, que conseguiu absorver muitas influências diferentes e, ao mesmo tempo, seguir seu próprio caminho. Além disso, se no contexto europeu a Revolução Francesa se destaca como marco histórico da ascensão da burguesia ao poder e como ruptura em relação às antigas formas de governo; no contexto alemão a revolução teve um caráter bastante diferente. Enquanto na França a revolução eclodiu determinada pelas ações do homem, na Alemanha foi intelectualmente que a revolução se fez presente. Essa diferença não deve servir como critério de qualificação para nenhum dos casos, apenas para acentuar que, se uns se deparavam com uma mudança radical nas relações humanas, nas estruturas e na divisão das hierarquias sociais, enfim, em toda a sua amplitude política; os outros seriam capazes de se assustar com a ruptura com o 3

As informações biográficas de Schiller, via de regra, foram encontradas essencialmente em duas obras: Schiller o la invención del idealismo alemán, de Rüdiger Safranski, e Les lumières française en Allemagne: Le cas Schiller, de Sylvain Fort. Para esta passagem, SAFRANSKI, p. 106-107. 4 Como punição por seu comportamento da Academia, atravessando noites de leitura e insistindo em escrever nos horários em que deveria estudar medicina, Schiller precisou entregar três monografias para que obtivesse o título de médico na academia. Em 1779 entregou a primeira, intitulada Filosofia da fisiologia, que foi reprovada por Klein, Reuss e Consbruch, com a justificativa de que além de ser muito prolixo, Schiller pretendia ser teórico demais. No ano seguinte entregou um tratado em latim De discrimine febrium inflammatorium et putridarum (Sobre a diferença entre as febres por inflamação e por putrefação), que também foi reprovada. Somente a terceira tese, entregue semanas depois da segunda, foi aprovada. Esta, intitulada Ensaio sobre a conexão da natureza animal do homem com a espiritual, revelava um Schiller ainda mais distante da prática médica e próximo das reflexões filosóficoantropológicas. Estranhamente, foi aceita pela banca examinadora. Ver: SAFRANSKI, Rüdiger. Schiller o la invención del idealismo alemán. Traducción de Raúl Gabás. Barcelona: Tusquets, 2006.

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modo de pensar, de interpretar a vida humana e com a sua capacidade de promover uma cultura nova. A ideia da Alemanha como uma grande nação cultural, e não política, foi muito defendida entres os poetas da época, sobretudo os românticos. Novalis chega a escrever, em 1798, que enquanto os franceses estavam ocupados com guerras, especulação e partidos políticos, os alemães dispunham de tempo para apenas pensar em sua formação cultural, segundo ele, “superior”. No final do século XVIII, não seria ainda possível imaginar que esse adjetivo “superior” seria tão amargo para a história alemã no século XX. Nem mesmo o mais cético dos intelectuais daquela época poderia supor que o entusiasmo radical em sua própria cultura, inclusive com a obsessão pelo “eu” fichteano, poderia ser lembrado com tanta negatividade como ocorreu no século passado. A cultura superior alemã do século XVIII, por mais apolínea, idealista e grandiloquente que fosse, não passara de uma euforia e de um delírio romântico, muito longe de uma cultura da barbárie, extremamente violenta e preconceituosa com esta do início do século XX. Apenas a título de exemplo, é reincidente o caso com a política externa que os Estados Unidos vem adotando nos últimos cinquenta anos. Assim como a grande potência das Américas, os alemães daquela época também se imaginaram portadores da liberdade, capazes de elaborar um projeto cultural de nação exemplar que pudesse esclarecer os demais povos ainda carentes de liberdade. Vale a ressalva: no caso alemão não ultrapassa a menção a uma nação cultural, de uma valorização do que é próprio sem que isso exigisse uma desvalorização do outro. Prova disso, é a reação de Schiller com as notícias recém-chegadas da revolução. Assim como os seus contemporâneos, ele manteve, para fazer jus a uma expressão popular, um olho no peixe e outro no gato. Atentos às novidades vindas de Paris, os intelectuais alemães rapidamente manifestaram seu apoio e comoção com o evento de 1789, imaginando a repercussão dos acontecimentos por toda Alemanha. Schiller tomou uma atitude que marcaria seu habitual posicionamento diante de eventos históricos e das suas principais influências: elegeu o que deveria tomar como princípio e que por isso mereceria especial atenção, e separou nitidamente daquilo que considerava um arroubo apaixonado e desmedido. A maneira como as paixões se manifestam nos homens e são capazes de torná-los cegos e intolerantes desde então chamou à sua atenção, tanto que ele mesmo chegou a reconhecer, analisando Os bandidos, que

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deveria ter construído suas personagens com mais ‘decência e moderação’5. No caso da Revolução Francesa, isso significou repúdio à forma violenta que determinou a tomada do poder e suas subsequentes manifestações sangrentas sem, contudo, continuar com o interesse em defender a liberdade como valor de mais alto grau para a humanidade. Ao contrário: o uso da força bruta pelos revolucionários se transformaria em um motivo a mais para lutar pela liberdade e pela moderação das paixões violentas. Essa postura, que pode parecer tímida ou covarde, acompanhou Schiller ao longo de sua vida e, de certa forma, acentuou-se como marca do seu “radicalismo”. Assim procedeu com relação às ideias de Winckelmann, de Lessing, de Kant, à sua amizade e profunda admiração a Goethe, com quem, apesar de fundar o Classicismo de Weimar, manteve suas diferenças sempre muito bem marcadas. Por um lado, Goethe permaneceu um autêntico idólatra da Antiguidade grega, enquanto Schiller, mesmo reconhecendo que esse período possa ter sido a última vez em que o ideal de arte e as obras produzidas coexistiram, opta por seguir acreditando que reencontrar o ideal da arte é uma tarefa que deve ser meta dos autores modernos. Segundo Pedro Süssekind, em “Helenismo e Classicismo na Estética alemã” 6, Schiller reconhece que o próprio Goethe teria realizado essa árdua tarefa, pois “na comparação da Ifigênia de Eurípides com a de Goethe, por exemplo, num ensaio crítico que ficou incompleto, o escritor defende a superioridade da versão alemã, o que seria impensável para um classicista tradicional”. Não bastasse ter vivido numa época de intensos acontecimentos históricos e de uma produção filosófica e literária imensa, a trajetória intelectual de Schiller dificulta aqueles que tentam definir seu trabalho e resolver a complexa teia de referências através de classificações emblemáticas. Além disso, por mais que se possa salientar o quão indigesto pode ser usar pesos e medidas iguais para textos filosóficos e literários, no caso de autores como Schiller, abrir mão dessa empresa seria correr o risco de poder estabelecer relações que são imprescindíveis para compreensão de sua obra, de modo que as reflexões filosóficas são tão importantes para as obras teatrais como estas são dignas de reconhecimento de como ele pode engendrar reflexão teórica e criação artística numa mesma obra. Por isso, na medida do possível e nos limites de nossas

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Ver: BEISER, Frederick. Schiller as philosopher. Oxford: OUP, 2005, p. 90-91. SÜSSEKIND, Pedro. Helenismo e Classicismo na Estética alemã. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005, p.201. 6

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capacidades, acompanharemos as diferentes referências encaminhando a análise de nossa empreitada. Se, por um lado, tratar dessa época exige dar conta de muitas obras, autores, classificações e de um vocabulário quase técnico, por outro lado, a vantagem é que se tem uma oferta suficientemente farta de informações e interpretações. A fim de não limitar o trabalho a elencar todas as referências, mas ciente da importância de não negligenciar certas coisas, optamos por selecionar os pontos que podem juntar o quebracabeça do pensamento de Schiller. Por isso, para não corremos o risco de realizar um trabalho inócuo ou que pouco contribua para a discussão, ou então de não dar conta de elencar todos os fatos e elementos importantes para que não se deixe escapar cada vírgula que possa dizer “algo mais”, a primeira parte deste trabalho não tem o propósito de trazer uma novidade para o tema. Trata-se, pois, dos elementos específicos deste panorama que tem parte decisiva nas questões que pretendemos desenvolver ao longo desta pesquisa. Faremos as referências necessárias e indicaremos fontes importantes sobre os pormenores e detalhes quando for conveniente ou necessário, e abrimos mão de salgar um prato que está mais do que temperado. Já caiu na vala comum comparar este século germânico como um período em que a produção cultural europeia alcançou o patamar tão aclamado como o dos séculos V e IV da antiguidade grega. Dada a importância que carregam os termos Helenismo e Classicismo, há excelentes trabalhos7 a este respeito, que reúnem as linhas mais importantes para definir o que produziu a chamada época de Goethe (Goethezeit).

2.2 A influência da “Grécia de Winckelmann”

Na época que se segue, o classicismo de Winckelmann há de fracassar teoricamente pelo fato e que nega uma peculiaridade à modernidade pelas mesmas causas pelas quais não só as aprova nos gregos, mas inclusive os elogia.8 Peter Szondi

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Ver as obras de Anatol Rosenfeld Classicismo e Romantismo, ambas editadas pela Perspectiva; a História social de la literatura y del arte, de Arnold Hauser, volume II; além da já referida tese de doutorado de Pedro Süssekind, Helenismo e Classicismo na Estética alemã. 8 SZONDI, P. Poética y filosofia de la historia I. Traducción de Francisco Lisi. Madrid: Visor, 1992. p.24

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As considerações mais relevantes que esclarecem a maneira como Friedrich Schiller absorveu as ideias de Winckelmann dizem respeito a duas questões: primeiro, sobre o que representa a “Grécia de Winckelmann”, e segundo, não menos importante e com uma ligação com o primeiro, sobre o projeto para a criação de uma cultura genuína alemã. Nesse sentido, faz-se necessário compreender quais são as principais ideias deste autor que Schiller adotou, bem como se configura o seu afastamento parcial em relação a essa herança. Afinal, quem incorporou este projeto foi Goethe, e não seria exagero algum dizer que a visão que Schiller tem desta época é construída a partir da Grécia de Goethe. Ainda assim, algumas diferenças cruciais permanecem (como o que diz respeito à objetividade e subjetividade na criação artística e o papel da natureza para o artista) embora não impeçam o riquíssimo período de mútua colaboração entre Goethe e Schiller que são, sem dúvida, os nomes mais importantes e celebrados na literatura alemã de todos os tempos. As duas primeiras obras de Goethe que ganharam cedo a fama foram Götz von Berlichingen, de 1773, e Os sofrimentos do jovem Werther, publicado um ano mais tarde. Comparativamente bem mais jovem, e ainda admirador extasiado de Goethe, Schiller compõe Os bandidos, em 1781. Esta primeira obra de Schiller, escrita quando ele ainda era aluno na Karlsschule, apresenta uma temática central da geração do Sturm und Drang: o amor paterno e o ódio entre irmãos, na obra, Karl e Franz Moor. Este movimento, também conhecido como pré-romantismo, apesar de não ter aproximação com o Romantismo, ficou caracterizado pela negligência às regras do fazer artístico, pela rebeldia, e por uma representação extremamente utópica desta temática. Afinal, na realidade, esses grupos de baderneiros que de fato circulavam saqueando e depredando, cometendo uma série de crimes nas pequenas cidades do sul da Alemanha, receberam, por assim dizer, um elogio pelo tom romântico na peça. Um olhar mais atento sobre a obra poética de Schiller permite observar que, apesar da influência de Winckelmann, ele não faz de sua obra um espelho dessas ideias. Ao contrário, são poucos os momentos em que encontramos um Schiller “grego”. Isso ocorre em alguns momentos de seus ensaios filosóficos, em dois ou três poemas e em uma obra dramática. Esse distanciamento, na verdade, pode ser bem compreendido se observarmos que desde Herder há uma crítica importante a um elemento fundamental da teoria winckelmmaniana: nela, a obra de arte bela corresponde à imitação da beleza da natureza, e por isso, evidencia-se aqui a negligência à racionalidade. Herder observa que há então uma defesa do sentimento contra a racionalidade presente na estética através 21

das formas e dos modelos de criação, e que se trata de um processo que parte do sentimento e encontra apenas sentimento. Em Poética y filosofia de la historia, Peter Szondi assinala com precisão essa questão: “só a partir do sentimento e para o sentimento, a regra estética da antiguidade clássica foi clara” (SZONDI,1992, 34). O detalhe se dá na importância que a consciência histórica ocupa no pensamento de Herder, o que o faz entender o classicismo de Winckelmann justamente como uma nostalgia, pois aquela natureza bela aparece como um paraíso, algo perdido historicamente, e que não pode ser repetido nem alcançado. Permanece o fundamento natural da arte, mas a filosofia da história impede aquela transcendência histórica necessária para que a nostalgia da Grécia não seja metafórica. Schiller certamente absorve isso, pois fica observável em sua produção o quão insolúvel se apresenta a contradição entre buscar a antiguidade perdida e remeter-se necessariamente ao tempo presente, à modernidade. Já em relação à filosofia, ele se apresenta muito mais envolvido com o debate em torno das questões lançadas por Kant do que com a recepção da Poética de Aristóteles. Já com relação aos poemas, particularmente “Os deuses da Grécia” e “Os artistas” surgem com a temática grega. Em “O ideal e a vida” alguns rompantes merecem esse crédito. Por fim, no teatro, apenas A noiva de Messina, uma de suas últimas peças, guarda alguma semelhança com tragédias gregas. Sua temática é essencialmente moderna, mas a forma como Schiller introduz intencionalmente o coro na peça remonta os tempos de Sófocles, que rendeu uma polêmica com os intelectuais da época, sobretudo os românticos, da qual trataremos mais adiante. Portanto, a expressão “A Grécia de Winckelmann” jamais poderia ter o mesmo sucesso se empenhada ao autor de Os bandidos, pois certamente soaria como um exagero. Schiller não chega a demonstrar o mesmo entusiasmo pela Antiguidade grega que Winckelmann e Goethe, pois está profundamente mergulhado nas questões modernas. Schiller aprende a sonhar com os gregos, deles também capta a força dos ideais, mas busca a sua realização na sua época, com seus conteúdos e limitações.

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2.3 A teoria de Winckelmann sobre a arte grega

No prólogo da sua História da arte da Antiguidade, Winckelmann faz uma observação muito importante para entendermos em que medida sua obra se posiciona em relação às demais histórias da arte e, com isso, o que a sua História pode trazer de diferente. Ele afirma que seu trabalho não é o de reunir informações de artistas e obras e fazer uma mera narrativa dos períodos experimentados pela arte na Antiguidade; e explica, ainda, que toma a palavra história no sentido mais amplo do que ela tem na língua grega e que, dessa forma, o que ele pretende é oferecer um texto teórico, um compêndio sistematizado da arte daquela época, ao invés de mera narrativa. Essa ideia de sistema parece de fato ser o seu grande diferencial metodológico, pois visa ensinar a origem, o desenvolvimento, a transformação e a decadência da arte, assim como os diferentes estilos dos povos, das épocas e dos artistas, e demonstrar na medida do possível o ensinamento através das obras da Antiguidade que se conservou. (WINCKELMANN, 2011, p.5)

Os avanços nas pesquisas arqueológicas e o desenvolvimento de métodos mais rigorosos acerca da datação de obras antigas revelaram uma série de imprecisões e de equívocos nas suas observações. Mesmo assim, os principais elementos de sua contribuição permanecem na visão que a modernidade construiu sobre a arte da antiguidade grega e, consequentemente, sobre o mundo grego como um todo. Por isso, já nos acostumamos a considerar Winckelmann o grande responsável por estabelecer uma história da arte propriamente dita, sobretudo através das Reflexões sobre a imitação das obras de arte gregas na pintura e na escultura e da sua já mencionada História da arte da Antiguidade. O primeiro movimento do autor das Reflexões é privilegiar um determinado período das produções artísticas gregas, a saber, os séculos V e IV a.C., a fim de delimitar o auge da produção artística da Antiguidade. Isto é, o período mais brilhante da história da arte coincide com o período em que os gregos parecem ter vivido sua plenitude intelectual, cultural, política e, como se costuma dizer, período em que gozaram das melhores condições possíveis para a realização da obra de arte verdadeiramente bela, em suma, uma época como jamais voltamos a presenciar. Ao narrar a disponibilidade dos corpos atléticos, desnudos, em pleno exercício, ele 23

complementa que a presença dos intelectuais fechava o entorno precioso: “O sábio e o artista estavam ali: Sócrates a instruir a Cármides, a Autólico, a Lísis; Fídias a enriquecer sua arte com essas belas criaturas”. (WINCKELMANN, 2008, p.82) “Seguia eu da Academia diretamente para o Liceu pelo caminho que, do lado de fora, corre ao longo da Muralha.” 9 (PLATÃO, 1995, p.35) Assim começa Lisis, um dos diálogos de Platão que Winckelmann cita logo adiante nas Reflexões. Sócrates caminhava em direção ao Liceu quando foi convidado por Hipótales, filho de Hierônimo, a acompanhá-lo e aos demais que estavam juntos para uma palestra de Mico, o qual Sócrates julga ser um sofista de talento. “É precisamente ali que costumamos passar o tempo”, diz Hipótales, “nós e muitos outros belos jovens”. É a partir de passagens como essa que o autor se vale para reforçar o que estava ali diante dos olhos dos artistas gregos, para que eles pudessem imitar as formas mais próximas da perfeição que a natureza já nos ofereceu. Ora, isto quer dizer que ele não estava cego diante dos seus modelos, pois tinha ciência dos pormenores dos acontecimentos históricos e da importância da relação entre a produção artística e as condições das experiências vividas pela humanidade. Portanto, já sabemos que houve um período específico para o surgimento da arte ideal, com condições históricas, intelectuais, políticas e climáticas para sua inteira realização. Contudo, apesar de saber que tais condições vão muito além de vantagens e habilidades específicas, pois na verdade constituem um todo ideal propício para o surgimento das mais belas produções de todos os tempos, Winckelmann inicia suas Reflexões afirmando que o bom gosto, tema específico da modernidade, diga-se de passagem, começou a ser formado abaixo do céu grego. A insistência no elogio aos gregos está vinculada também à sua polêmica com Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), arquiteto, escultor e pintor italiano, um dos nomes mais importantes do Barroco, que recomendava aos seus alunos que imitassem a beleza da natureza, mas não a natureza grega, e sim, a que estava ali, disponível ao alcance das mãos. Winckelmann refuta essa pedagogia de Bernini problematizando um conceito que até hoje é central para a discussão da estética e da filosofia da arte: a imitação. A frase que transformou esta obra num verdadeiro manifesto e que encheu de entusiasmo toda uma geração versa exatamente sobre essa questão: “Nosso único

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caminho para sermos grandes, mais ainda, para sermos, se possível, inimitáveis, é a imitação dos antigos”. (WINCKELMANN, 2008, p.78) Em primeiro lugar, é preciso diferenciar imitação de cópia. De uma maneira bem simples e direta, podemos dizer que a cópia é uma captação imediata da realidade, de um objeto que se vê, enquanto a imitação é uma utilização de uma mesma forma, isto é, imitar um modo de fazer, portanto, sem que seja necessário observar diretamente a natureza. O argumento de Winckelmann é simples e não se trata de nenhuma grande teoria revolucionária, pois os modernos não tinham uma natureza em sua melhor forma para copiar, e, portanto, só seria possível produzir uma obra próxima da perfeição imitando aqueles que tiveram a perfeição como modelo: os gregos. Com isso, ele frustra as expectativas modernas de produzir uma bela arte ao mesmo tempo em que mostra um ceticismo definitivo em relação à natureza física dos seus contemporâneos. Parece até um pouco de sarcasmo quando ele diz que até as vestimentas dos modernos é desfavorável à beleza, porque além de não permitir que o contorno se torne visível deforma o corpo e seus movimentos. Em segundo lugar, segue-se que a imitação é a única forma de alcançar o ideal. Quer dizer, o ideal da arte que é produzir algo próximo de sua perfeição, jamais poderia ser alcançado por uma cópia da realidade, por melhor que ela fosse. A perfeição, e aqui Winckelmann fundamentalmente platônico, é uma ideia e enquanto tal, não pode ser vista ou tocada. Encerra-se a crítica a Bernini, considerando a impossibilidade, do seu ponto de vista, de produzir uma imitação da perfeição. Ter disponíveis conceitos universais para imitação dos antigos: se isso pudesse ser feito através da imitação da natureza, como queria Bernini, os modernos não teriam à sua disposição belos exemplares e toda uma conjuntura que permitisse copiar a natureza em toda sua exuberância, como era a dos gregos. Por isso, cabe aos modernos copiar os conceitos universais para poder dar a mesma qualidade que tem as obras gregas. Resta apenas compreender, então, como é possível essa imitação da perfeição. Antes, porém, um breve comentário. Winckelmann associa beleza suprema e perfeição com unidade e simplicidade, tanto nas Reflexões quanto na História. Mas é interessante notar como na segunda obra a justificativa dessa associação, na tentativa de explicar a causa da beleza, passa por uma formulação do conceito de Deus. Enquanto na primeira obra ele se limita a dizer que quem oferece a beleza sensível ao artista é a natureza, e isso toca o seu aspecto humano, e quem propicia a beleza ideal são os rasgos sublimes, por sua vez, o aspecto 25

divino; na História, ele escreve que “a beleza suprema reside em Deus” (WINCKELMANN, 2008, p.78) 10, e a perfeição do conceito de beleza humana atinge a perfeição na medida em que concorda com o conceito de Deus, pois ele é “nosso conceito de unidade e indivisibilidade”, fundamental para separar o conceito da matéria. Por isso, segue ele, o “conceito de beleza é como um espírito arrancado da matéria mediante o fogo que trata de engendrar à imagem da primeira criatura racional projetada pela mente dessa divindade”. A necessidade de argumentar e sustentar melhor os seus argumentos levou o autor à concepção de beleza que está na filosofia de Platão. Não há nisso problema algum, mas explica porque muitos autores vão considerar as Reflexões uma obra mais inspiradora do que a História, pois talvez o preciosismo acadêmico tenha reduzido o vigor criativo e poético desta última. Para chegar à perfeição, que pode ser entendida também como unidade, através da imitação do belo da natureza, seria necessário ter à disposição uma natureza realmente bela. Nesse caso, a simples imitação da natureza garantiria o acesso à perfeição, porque se trata de uma natureza que é bela. Porém, na modernidade, como, no entender de Winckelmann, a natureza disposta não correspondia ao ideal de beleza, essa tarefa torna-se impossível. Copiar a natureza, por mais habilidoso que seja o artista, é copiar a imperfeição. Portanto, os gregos poderiam se permitir fazer cópias da natureza e ainda assim produzir uma obra de arte bela. Mas este não é o caminho mais fácil, porque depende necessariamente de uma mediação que é feita pela observação da natureza. Para tornar-se efetivamente perfeita, para atingir o ideal de beleza, o artista deveria não copiar a beleza da natureza, mas encontrar o que há de universal na natureza. A observação cotidiana da beleza fez com que os gregos chegassem a uma noção universal do belo, que se tornou então a meta de toda produção artística. Na seguinte passagem das Reflexões, ele sintetiza a ideia: Se o artista toma pé neste fundamento, permitindo que a regra grega da beleza conduza suas mãos e sua sensibilidade, se encontra então o caminho que com segurança lhe conduzirá a imitação da natureza. Os conceitos da Antiguidade de totalidade e de perfeição na natureza lhe farão mais nítida e perceptível nossa natureza dividida: o descobrimento da sua beleza saberá ligá-lo com o belo perfeito, e com a ajuda das formas mais sublimes que constantemente estão presentes para ele converter-se-á a uma regra para ele mesmo. (2008, p.87)

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A referência da paginação segue para as citações subsequentes.

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É por isso que a pedagogia de Bernini seria um caminho demasiadamente longo, e que imitar a maneira grega seria, além de um caminho mais curto, certamente garantido pela universalidade do belo. Além disso, entender a diferença entre imitação e cópia pode ser a chave para destacar a importância de Winckelmann dentro do contexto do Classicismo. À primeira vista, este movimento literário apresenta a seguinte contradição: os modernos tem nos antigos sua grande inspiração, o modelo a ser imitado. Contudo, sua outra marca inequívoca é a premissa de não fazer cópias, e sim, criar suas próprias obras, de acordo com os acontecimentos históricos e parâmetros de seu tempo. Antes de Winckelmann não havia um tratamento diferenciado para as diferentes obras de arte gregas, o que significa dizer que esta era um termo genérico, que abrangia tudo o que tinha sido produzido desde os tempos de Péricles até Adriano. Há uma segunda frase nas Reflexões que permite perceber com mais nitidez porque Winckelmann foi tão decisivo para o Classicismo: “A característica universal que outorga a primazia das obras mestras dos gregos é, ao fim e ao cabo, uma nobre simplicidade e uma calma grandeza, tanto na posição como na expressão”. (2008, p.92) A compreensão dessa frase, bem como da nobre simplicidade e da calma grandeza, só é possível através do exemplo paradigmático do autor: o conjunto de esculturas intitulado Laocoonte. Um sacerdote troiano pagão e seus dois filhos, os três envolvidos por uma serpente cujo domínio pare implacável e o fim próximo uma questão de pouco tempo. Um dos filhos, aparentemente já liquidado, o segundo ainda resistindo à força brutal da serpente, e o pai, constatando a iminência da morte, levemente boquiaberto. A peça se tornou o ponto de partida da reflexão de muitos teóricos, e o detalhe da boca e da expressão facial tornaram-se alvo das principais divergências. A análise de Winckelmann se baseia numa crítica à interpretação de Virgílio, na Eneida, ao passo que a obra de Lessing que leva o mesmo nome da escultura recupera ambas as posições para, mais uma vez, parir outro ponto de vista. Herder e Goethe também reconheceram a importância e a riqueza de reflexões que ela poderia gerar, e além deles, Schiller também fez um comentário sobre a peça nas Cartas de um viajante dinamarquês, em 1793, na qual ele concorda com o autor das Reflexões ao julgar que a forma agradável, apesar do sofrimento, significa o triunfo da beleza sobre o horror.

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Polêmicas à parte11, vejamos o que diz Winckelmann: “Laocoonte foi para os artistas da antiga Roma precisamente o que é para nós: a regra de Polícleto, uma regra perfeita da arte” (2008, p.78). A “regra de Polícleto”12 é uma forma de exprimir toda a proporção de cada parte do corpo humano que teve como obra exemplar o Laocoonte, e se ele já havia afirmado que primeiro os escultores estabeleceram as proporções do corpo humano e, posteriormente, a pintura se apropriou desse padrão, podemos concluir que se trata de uma obra que foi modelo não apenas para os demais escultores, mas também para todos os artistas. É nesse sentido que surge a crítica a Virgílio 13, que teria descaracterizado a expressão do rosto do sacerdote ao interpretar o seu suspiro diante da morte inevitável como um grito amedrontador. A escultura, que segundo Winckelmann, expressa um suspiro, deveria ser modelo para a poesia, que jamais poderia ter exagerado na expressão de sofrimento, fazendo a face do sacerdote revelar um desespero desproporcional para quem estaria, na verdade, afirmando o sofrimento com um semblante mais agradável e menos desfigurado. Muito ao contrário, a escultura mostra a grandeza da alma apesar de todo o sofrimento, e essa grandeza só pode ser transmitida por uma expressão agradável, justificando sua calma grandeza. Isto é, a grandeza da alma do sacerdote é tão grande que lhe permite externamente resistir às paixões e dores internas, marcadas pela iminente morte dos filhos e pelo fim incontornável. Nas Reflexões, ele escreve: Quanto mais tranquila é a postura do corpo, tanto mais adequada resulta para expressar o verdadeiro caráter da alma: em todas as posições que se partem em excesso do estado de tranquilidade, a alma não se encontra no estado que lhe é próprio, senão em um estado violento e forçado. A alma se torna mais reconhecível e mais característica nas paixões intensas, mas é grande e nobre no estado de unidade, no estado de tranquilidade. (2008, p.93)

Podemos concluir que, segundo Winckelmann, o Laocoonte cantado por Virgílio não seria fiel ao nobre caráter que tanto lhe representa. Através de uma ausência de perfeição estética – o exagero com o grito de Laocoonte – o poeta teria maculado a

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Na sua Arte poética, Horácio cunhou a seguinte frase: ut pictura poesis, “a pintura como a poesia é”, sugerindo que ambas as artes obedeciam às mesmas regras. 12 Polícleto de Argos (aproximadamente 460 a.C. e 420-410 a.C.) foi um dos mais importantes escultores da Grécia antiga. Autor de Doríforo, escultura considerada ideal de beleza masculina, ficou muito famoso inclusive na Roma antiga por conta de um escrito intitulado Cânone, no qual trata das regras de proporção do corpo humano. Winckelmann se baseia nele na sua Historia, especialmente na segunda parte. 13 Ver: SUSSEKIND, Pedro. “O grito de Laocoonte”. Revista Itaca: Rio de Janeiro, volume 12, 2009, p. 19-39.

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figura do sacerdote e revelado seu caráter aquém do merecido. No livro II da Eneida, assim ele narra o sofrimento do sacerdote e seus dois filhos:

Fulmíneos olhos, com vibradas línguas, / Vinham lambendo as sibilantes bocas. / Tubo exangue se espalha. O par medonho / Marchando a Laocoon, primeiro os corpos / Dos dois filhinhos seus abrange e enreda, / Morde-os e come as descosidas carnes: / E ao pai que armado ocorre, ei-las saltando, Atam-no em largas; e enroscadas / Duas vezes à cintura, ao colo duas, / O enlaçam todo os escamosos dorsos, / E por cima os pescoços lhe sobejam. De baba e atro veneno untada a faixa, /Ele em trincar os nós co’as mãos forceja. / E de horrendo bramido aturde os ares: /Qual muge a rês ferida ao fugir d’ara, / Da cerviz sacudindo o golpe incerto / Vãose os dragões serpeando ao santuário, / E aos pés da seva deusa, enovelados, / Sob a égide rotunda ambos se asilam. (2005, p.62-63)

Veremos mais tarde que essa disputa pela representação do caráter da personagem ganha outra perspectiva na interpretação de Lessing. Não deixa de ficar claro, porém, o vínculo entre ética e estética na teoria de Winckelmann. Finalmente, o que caracteriza a sua influência em Schiller e que, de certa forma, pretendemos apontar neste momento, pode ser resumido em dois elementos: primeiro, a ideia de que os gregos alcançaram o ápice da produção artística de toda a história da humanidade, pois suas obras eram ao mesmo tempo a máxima expressão da beleza e da perfeição, e fielmente irmanadas com seu desenvolvimento político, intelectual e cultural. Segundo, porque esse ponto culminante representa a totalidade de uma nação, de um povo, e por isso deve ser o espelho para toda cultura que pretenda alcançar tal dimensão. Afinal, é nesse sentido a sua pretensão em sistematizar a Grécia e sua influência sobre a cultura ocidental. Por último, vale ressaltar que, além das condições geografias, climáticas e naturais que permitiram a intimidade dos gregos com a beleza, a liberdade do povo grego é outro aspecto fundamental para a plenitude dessa experiência única da história. Liberdade esta que configurou a relação dos gregos com a natureza, a religiosidade, o desenvolvimento da polis, da arte e da filosofia. Liberdade esta que vai nortear toda a trajetória de Schiller enquanto homem, poeta e filósofo.

2.4 Os limites da modernidade entre dois poemas de Schiller O ensaio “Hölderlin e os gregos”, de Philippe Lacoue-Labarthe, antes de tratar efetivamente de seu tema central, aborda brevemente a recepção entre os alemães da questão da imitação, e como não poderia deixar de ser, posiciona alguns teóricos tanto 29

em relação às mudanças políticas europeias quanto na querela entre os antigos e os modernos. Ao fazê-lo, o autor deixa escapar também sua concepção de modernidade, para a qual guarda um lugar especial para Schiller. Diz ele:

Ninguém ignora mais que essa programação teórica do Moderno (mas o Moderno, desde então, será sempre também teórico) que, até Nietzsche e depois dele governará a Alemanha (e não somente ela), foi esboçada pela primeira vez nos escritos estéticos de Schiller. De resto, Hegel professando por sua vez a estética, não deixará de apontar Schiller como tendo sido o primeiro a dar um passo além de Kant e a ter reivindicado, “antes mesmo que a filosofia tenha reconhecido sua necessidade”, o acabamento especulativo da verdade. (2000, 212)

Em primeiro lugar, mesmo que se admita isso a partir dos escritos estéticos de Schiller, é possível identificar, ainda antes de sua profícua e curta carreira de filósofo, indícios de que seu olhar para o homem de seu tempo e para as principais características da modernidade já aparecem de maneira contundente em seus poemas. Posteriormente, a continuidade da leitura deste ensaio nos mostra a visão que o autor tem da perspectiva de Hölderlin e sua relação com os gregos, da qual podemos sucintamente dizer que apresenta tanto a Grécia como em si mesma não existente, mas também a modernidade como uma metáfora sem correlato ontológico. Essa dupla metáfora, grega e moderna, dá contornos extremamente interessantes a este problema que se inicia com Schiller e tem em Hölderlin um de seus capítulos mais complexos. Retomemos a questão inicial. Por mais que Schiller também nutrisse profunda admiração pelos antigos, assim como Winckelmann e Goethe, e por mais que tenha dedicado muitos versos em homenagem à cultura grega, sua relação com a modernidade parecia ultrapassar qualquer elemento de outro tempo, evidenciando o quão peculiar e definitiva é a influência da conjuntura moderna em suas reflexões. É por esse motivo que podemos avaliar em seus textos não apenas as questões estéticas ou filosóficas, mas também uma concepção do que é o moderno, isto é, um diagnóstico e uma reflexão crítica dos fatores e características que constituem a modernidade nascente. É importante fazer referência a duas ou três dívidas, pois nos encorajaram a buscar nestes poemas de Schiller o que chamamos aqui de limites da modernidade. Primeiro, a Martín Zubiría, tradutor dos poemas de Schiller para o castelhano, que em seu admirável trabalho nos brindou com a seguinte afirmação:

A produção poética de Schiller parece obedecer em seu conjunto (...) a uma só máxima: aquela que reclama ‘uma profunda participação do pensamento’, de sorte que o material de seus poemas ‘involuntariamente e de si mesmo

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ampliava sua individualidade até converter-se no todo de uma ideia (2009,11).

Com ele, portanto, decidimos privilegiar o benefício de incluir a obra poética como referência para pensar a questão do homem moderno e, conscientemente, não deixar que a dificuldade de trabalhar conjuntamente poesia e filosofia se transformasse num obstáculo intransponível. Outra dívida: uma observação quase minimalista de Salvador Mas no seu livro intitulado Hölderlin y los griegos. No capítulo “Clásicos y románticos” ele nos alerta que o olhar de Schiller sobre a Grécia tem uma característica ímpar: “(...) em Schiller, e agora estou pensando particularmente em “Os deuses da Grécia”, o que se vê e se toca não é o grego, senão sua lembrança: o horror ante os deuses que se foram e o lamento pelo que foi morto irremissivelmente”. (MAS, 1999,18) Trata-se, pois, de uma lembrança forte o suficiente para fazer Schiller imaginar que, se não é mais possível voltar aos gregos efetivamente, porque aquilo está morto, talvez seja viável na prática encontrar um novo Eliseu, inspirado na metáfora “Grécia”. É nesse sentido que Schiller, mesmo compartilhando da Grécia de Winckelmann e Goethe, acaba traindo sua própria herança. Apesar do êxito de público com sua primeira obra, Os bandidos (1781), viver somente como autor de teatro permanecia um desafio. Não somente para Schiller, mas para a maioria dos poetas da época, à exceção de Goethe. Para ter certa tranquilidade, encontravam cargos da corte ou trabalhavam como preceptores. Considerando esta peculiaridade, não é de se admirar que o questionamento de seu pai acerca da escolha por uma atividade, digamos, arriscada e com poucas garantias financeiras, surgia com alguma frequência nos momentos de dificuldade, que não eram poucos. O conflito gerado pelo abandono da carreira médica ainda ecoava em seus pensamentos quando, atormentado pelas consequências de sua própria decisão, Schiller compõe o poema “Os deuses da Grécia”

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. Se o valor da arte se mostrava uma questão, a resposta é um

emblemático lamento pela beleza perdida da Antiguidade grega e um brado em favor da potência da arte; em suma, uma clara alusão à visão de Winckelmann sobre a Grécia.

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A primeira versão deste poema aparece na primavera de 1788, publicado no Teutschen Merkur. Segundo Martín Zubiría, o poema é um marco na passagem da juventude para o estilo clássico do poeta. A segunda versão do poema, de 1800, deixa claro que “voltar à Grécia” é, em verdade, uma possibilidade, através da poesia, reencontrar o reino da beleza. Além disso, o poema, que está cheio de referências à mitologia grega, foi recebido como um brado contra a concepção cristã do mundo. Ver: SCHILLER, F. Seis poemas “filosóficos” y cuatro textos sobre la dramaturgia y la tragedia. Introducción y comentarios de Martín Zubiría. València: MuVim, 2005.

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A leitura do poema revela surpresas ainda mais instigantes do ponto de vista de uma autocrítica e, de certa forma, de um exame de consciência. Afinal, questionar o valor da arte, aparentemente, poderia ser apenas uma curiosidade acerca de uma questão da estética. Porém, no caso de Schiller, esse questionamento envolve também uma pergunta pela sua própria decisão em abandonar uma vida sem grandes emoções, mas estável, enquanto médico militar, para viver da pena. Por se tratar de uma decisão pensada, seria necessário descobrir, enfim, quais os valores estavam engendrados e em quê, efetivamente, ele depositava todas as suas fichas. Uma provável crise de valores, não apenas com arte, mas também religião e política, poderia transformar seu exame crítico de si mesmo em uma avaliação da situação em que se encontrava a Europa da época, e nesses termos, ele compartilha da visão pessimista de Winckelmann com um pequeno desvio interessado: se para o autor das Reflexões trata-se de uma decadência estética na modernidade, isto é, das formas, do corpo, dos gestos e até da maneira de se vestir, para Schiller ela expandiu essa depreciação para o plano cultural, isto é, a decadência reside nos valores que determinam as ações políticas do homem moderno. Dificilmente Schiller apostaria suas fichas se pensasse como Adorno, que ao descrever o longo processo histórico de fragmentação do saber e suas derivações nas demais esferas da vida humana, em “O ensaio como forma”, escreve com um ceticismo afiado, que: “Com a objetivação do mundo, resultado da progressiva desmitologização, a ciência e a arte se separaram; é impossível restabelecer com um golpe de mágica uma consciência para a qual intuição e conceito, imagem e signo, constituam uma unidade” (ADORNO, 2003, 20). Ao contrário, ele teria que nutrir muitas expectativas no que diz respeito ao papel da arte na formação cultural da humanidade para ter como meta justamente isso que Adorno diz ser “impossível de restabelecer”, pelo menos através da arte, já que teoricamente, a antinomia entre a poesia ingênua e sentimental apresentada no ensaio homônimo marcaria sua posição em relação à querela entre antigos e modernos. O pessimismo do filósofo frankfurtiano provavelmente se justifique em virtude da sua experiência história e política, até porque viveu numa época muito pouco parecida com a de Schiller. Afinal, por mais desconfiado que este fosse em relação aos desdobramentos das deliberações de sua época, não havia garantias de que os séculos seguintes guardariam uma cenário tão violento e bárbaro, cujo sacrifício da racionalidade seria capaz de deixar qualquer um boquiaberto. A habilidade de Schiller com as palavras lhe permitiu estabelecer uma postura equilibrada, visto que ele procura não dar ênfase à possibilidade real de restabelecer 32

aquelas relações, mas, ao mesmo tempo, busca-a incessantemente enquanto ideal. É condição inapelável, portanto, que se construa na modernidade uma relação estética com o mundo, marca de uma cultura cujos elementos soberanos eram a música, a dança, a poesia, enfim, a arte em geral, que permitiam experimentação cotidiana da beleza. Mas não apenas isso, pois essa relação estética só poderia ser reconhecida concomitantemente com seu valor ético, e, por isso se vinculam no cerne do desenvolvimento das suas reflexões estéticas a ideia de formação de um público habituado ao exercício de contemplação de obras de arte e o aperfeiçoamento da própria obra, que seria a alavanca de desenvolvimento do espírito do homem. Trata-se, assim, de uma ética transmutada em estética, e de uma estética cuja essência se dá no plano ético. É, sobretudo nesse sentido, que se reconhece o teor das cartas de A educação estética do homem, de 1794. Em segundo plano, mas não menos importante, o ensaio Poesia ingênua e sentimental, escrito entre 1796 e 1796, poderia também mostrar como Schiller pensa a modernidade através da comparação entre os dois modos de fazer poesia, o antigo e o moderno. Com efeito, a análise da modernidade a partir dos textos mencionados foi levada a cabo com extrema habilidade por Pedro Süssekind no artigo “Schiller e o desafio de pensar a modernidade”

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. Voltemos, porém, às questões que

chamam a atenção na leitura de dois poemas de Schiller: “Os deuses da Grécia” e “Os artistas”, de 1789. Nos primeiros versos da primeira estrofe de “Os deuses da Grécia”, poema de dezesseis estrofes com oito versos decassílabos, ele diz: “Quando o mundo belo regia ainda / e fazia a alegria, sem sombra de esforço / ditosas estirpes guiavam ainda / seres do país das fábulas belas” (2009, 55). A nostalgia aparece através deste tom de lamento pela perda do mundo em que governavam os deuses gregos, unidos aos homens pelos mais belos laços; unidade entre o humano e divino que, embora seja fortemente marcada nas obras de Goethe e Hölderlin, a modernidade parece não estar interessada em resgatar. Além de enaltecer a Grécia, suas muitas figuras mitológicas, a multiplicidade de divindades e a exuberância da sua natureza, Schiller menciona o isolamento metafísico de deus e reclama a sua presença, como podemos ver na décima segunda estrofe:

Onde, mundo belo, te encontras? Retorne,/ da natureza, doce época florida / Ah, só em seu reino feito de cantos / Vive toda a vida sua pasmosa marca / Se 15

Ver: SÜSSEKIND, P.; VIEIRA, V. Educação estética. Rio de Janeiro: NAU: EDUR, 2011.

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afoga em tristeza os ermos campos / Nenhum ser divino à minha vista aparece / Ah! Daquele quadro palpitante de vida / Somente a sombra ficou.”( 2009, 61).

Percebe-se, ainda, um tom melancólico pela “sombra que ficou”. Veremos, adiante, como esta sombra lá lugar a uma paisagem mais iluminada a partir de “Os artistas”. Há chances de o verso “nenhum ser divino à minha vista aparece” ter sido o motivo da polêmica em relação à concepção cristã do mundo, em função da insinuação de poder ter deus ao alcance dos olhos e que, em resumo, sustenta o politeísmo como uma religião estética. O pano de fundo dessa questão é um tema tão extenso quanto complexo, que remete à ideia de deus como natureza, ou deus sive natura, defendida por Spinoza. Essa posição panteísta, de que tudo que está na natureza é deus, entra em conflito com a tese da unidade divina. Apesar da complexidade do tema, a conta é simples: Schiller mostra certa simpatia pela concepção de Spinoza, que fora por perseguido por acusação de ateísmo, e, num passo mais largo, pela perspectiva grega de totalidade entre homens e deuses. Tal interesse não para por aqui, e retorna como motivo em A missão de Moisés, uma aula publicada cuja tese central é de que o deus da doutrina secreta dos egípcios guarda uma semelhança com o deus de Spinoza, e que a missão de Moisés teria sido a de ensinar essa doutrina aos hebreus. São generosas as aproximações que podemos fazer entre algumas reflexões de Schiller e Nietzsche, e procuraremos identificar pontos anteriores aos tratados por Vladimir Vieira em seu artigo “A Grécia como modelo para o pensamento estético alemão: Schiller e Nietzsche” 16, já que neste caso a abordagem é feita entre A educação estética do homem e O nascimento da tragédia. Salvo a mais famosa confissão deste elo, feita pelo próprio Nietzsche no sétimo parágrafo de seu primeiro livro, a inquietação diante da condução da cultura moderna pode ser considerado um ponto em comum. E se com estas páginas pretendemos mostrar como Schiller deixava à mostra esta inquietação diante daquilo no que a modernidade se transformaria, acentuando um tom crítico, talvez seja um gesto de cortesia lembrar que, além das metáforas tomadas do vocabulário médico, tão comuns para ambos, o ímpeto deste diagnóstico filoantropológico revela aqui suas entranhas.

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VIEIRA, V. “A Grécia como modelo para o pensamento estético alemão: Schiller e Nietzsche”, em Educação estética. Rio de Janeiro: NAU: EDUR, 2011.

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Do ponto de vista da religião, o elogio ao politeísmo pagão dos gregos e a aproximação entre a história do Cristianismo e o desenvolvimento da racionalidade científica são dois temas que também vão aparecer na filosofia de Nietzsche. Coincidem também, entre ambos, as propriedades ressaltadas no deus cristão: a angústia, a rivalidade, a negação da sensibilidade, a vingança. São elementos que nos levam a pensar que sua perspectiva era de fato bastante crítica, como quem alerta para as consequências de uma cultura que se acostumou a cultivar uma série de valores associados às vantagens e benefícios individualistas, que convergem com um modelo de visão de mundo cada vez mais utilitarista e pragmático, como se as representações divinas estivessem à serviço de interesses exclusivos. E, coincidências à parte, a constituição da cultura cristã permite esses vínculos de uma forma muito impactante e prejudicial, sobretudo se se considera, com Schiller, que o desenvolvimento cultural e a formação do homem devessem acompanhar um enobrecimento e uma humanização desses valores, numa perspectiva que, similar à dos gregos antigos, projetasse uma humanidade plena. Em poucas palavras, isso significaria privilegiar valores ligados à tolerância e harmonia entre os homens, semear a amizade e não a discórdia, estimar a beleza e a liberdade e não a violência e o sofrimento. É nesse sentido que o encontro entre a cultura da razão científica e a cultura cristã provocou uma precariedade das relações, uma impulsividade e um instinto feroz que justifica o uso da violência e, na falta de uma palavra menos repetitiva, encaminhou a cultura moderna para a decadência. Falar em decadência poderia causar certa estranheza, pois estamos tratando de uma época muito especial, na qual a humanidade pareceu dar um grande salto, porque, em geral, admite-se que a revolução burguesa na França apresentou-nos um novo mundo, exigindo uma nova organização e compreensão da política. Aliás, não apenas a revolução de 1789, mas também a industrial na Inglaterra contribuiu para as profundas mudanças que estavam por vir. É notória a importância que alguns termos como burguesia, classe social, liberdade, industrial, crise e capital passam a adquirir nesta nova conjuntura. Em A era das revoluções, Eric Hobsbawm é contundente quando afirma que: imaginar o mundo moderno sem estas palavras (isto é, sem as coisas e conceitos a que dão nomes) é medir a profundidade da revolução que eclodiu entre 1789 e 1848, e que constitui a maior transformação da história humana desde os tempos remotos quando o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado. (1977,17)

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Embora estivesse entusiasmado com os ideais iluministas e com a expectativa de uma mudança sem precedentes, Schiller tardou a manifestar-se eufórico com a revolução, e a ela não dedicou nenhuma ode. Pouco tempo depois, mostrou-se em total desacordo com os caminhos tomados pelos revolucionários, especialmente após a execução de Luis XVI. Por outro lado, Nietzsche, na esteira da visão grega de mundo, acompanhou os desdobramentos mais avançados do final do século XVIII. Dessa forma, Schiller teria antecipado ali uma ideia que se tornou, mais tarde, uma das maiores forças da filosofia de Nietzsche: a tese de que o monoteísmo cristão tem um vínculo muito estreito com a racionalidade abstrata da modernidade e que abrir mão de uma vastidão de divindades para reunir todas as qualidades em um deus só não apenas fez com que esse deus tivesse que desaparecer fisicamente, mas que ganhasse contornos de uma abstração das mais complexas. É nesse sentido que lemos a celebração do politeísmo como religião estética dos gregos, na oitava estrofe de “Os deuses da Grécia”, Schiller descreve a alegria e o gozo dos rituais dionisíacos, que ficariam definitivamente famosos em O nascimento da tragédia de Nietzsche: As que o tirso agitam gritando Evoé / e o carro soberbo que tiram panteras ao grande portador anunciavam do gozo / brincando na frente vão Sátiro e Fauno / saltam em torno furiosas mênades / suas danças celebravam o vinho do deus / e as bochechas rubras do taberneiro / animadas com fervor convidam. (2009, 59).

A experiência da vida humana está mais próxima dos limites impostos pela natureza do homem do que pelas qualidades inigualáveis das divindades. Se os gregos se permitiam agregar homem e deus num mesmo espaço, pois, se concordamos com Nietzsche, a origem das tragédias gregas está nos rituais em homenagem a Dioniso, que são essencialmente de caráter religioso, reforça-se a compreensão de quem entre eles não havia uma separação entre humano e divino. Se na modernidade essa separação é indiscutível, a razão disso só pode estar ligada à maneira como a cultura ocidental desenvolveu sua relação com as divindades. Ora, se entre nós ocidentais, o que rege como princípio básico das religiões cristãs é a separação irresoluta, e mais, a supervalorização do divino em detrimento de uma desqualificação do humano, pois a nós modernos não cabe o sonho de juntar a deus num evento pleno de música, de dança e de alegria, mas apenas contemplar a sua grandiosidade e admitir a eloquência de nossa insignificância, quer dizer que a aproximação entre a razão científica e o monoteísmo é justificável até com certa facilidade. 36

No caso de Schiller, isso serve de argumento para abandonar o tom nostálgico de “Os deuses da Grécia” e depositar as esperanças numa nova possibilidade para a humanidade, como percebemos em “Os artistas”. O poema marca uma importante transição no pensamento de Schiller, que passa decididamente a acreditar que o caminho para a formação cultural da humanidade é a arte, através de uma educação estética. Essa postura fica nítida logo nos primeiros versos ao descrever o homem superando a barbárie: “abertos teus sentidos, com plenitude de espírito, cheio de gravidade boa, em trabalhada calma, o mais maduro filho do tempo, livre pela razão, pelas leis robusto, pela benevolência grande e pelos tesouros rico” (SCHILLER, 2009, 65). A confiança nos valores modernos contrasta com a nostalgia de “Os deuses da Grécia”. Através dela se pode trazer uma dupla contribuição nesse contexto, pois é possível enxergar ali tanto uma resposta ao lamento do poema anterior, pois há uma convocação para que a modernidade supere suas limitações pela dimensão estética, quanto uma negação incisiva para o ceticismo posterior de Adorno. No primeiro caso, é justamente por isso que o fomento de uma cultura estética e o cultivo dela através de uma educação para os sentidos é a única forma de êxito da humanidade. Parece não haver dúvidas de que essa ideia é central em toda a produção de Schiller, e que só recebe um tratamento mais consistente e bem acabado, anos mais tarde com as suas Cartas. Não é à toa que Nietzsche elogia a brava luta de Schiller, na rasteira de Winckelmann e Goethe, em prol de uma cultura estética alemã. No segundo caso, podemos relacioná-lo como a posição do filósofo frankfurtiano. Adorno refere-se, nitidamente, a um processo intrínseco à formação da cultura ocidental, com ênfase em duas etapas, a saber, uma ainda na filosofia grega, e outra na gênese da filosofia moderna. Pensemos na provocação de Safranski: “Não poderia ser que a liberdade conduza primeiro à alienação e ao isolamento, mas que, posteriormente, em um nível superior seja possível uma nova unidade livre?” (2011, 286). Trata-se de uma pergunta retórica, porque ele sabe que Schiller desenvolve essa ideia em sua obra mais respeitada, pelo menos na filosofia, que são as cartas sobre a educação estética do homem. Em poucas palavras, a saída está explícita no título: a formação só poderá criar condições de possibilidade de resgatar aquele tempo perdido se soubermos desenvolver as potencialidades estéticas dos indivíduos no nosso próprio tempo. A proposta de uma educação estética, que fica evidente em nas cartas remetidas ao príncipe, parece ter sido gestada durante todo o seu trabalho enquanto dramaturgo e 37

poeta, ainda que se reconheça a importância crucial da leitura da filosofia kantiana. O incômodo diante das plateias pouco exigentes; a falta de interesse e compromisso de alguns atores com quem trabalhou; a mediocridade de figuras responsáveis por financiar ou permitir a montagem e apresentação de peças teatrais, enfim, para falar em termos mais comuns, a ausência de uma massa crítica capaz de elevar a potência e a importância da arte para a sociedade da época. Em “Os artistas”, há uma passagem que revela a preocupação e também o quanto Schiller deposita de esperança na arte enquanto atividade transformadora do homem: O mundo, transformado pela indústria, o coração do homem, movido por novos impulsos, que em ardidas lutas se exercitam, ampliam o círculo de vossa criação. O homem que progride, agradecido, a arte que alça consigo num voo sublime e surgem novos mundos de beleza da natureza enriquecida. (2009, 83).

Sabemos que Schiller costumava ler muito enquanto escrevia, seja à procura mesmo de referências importantes como nos seus textos de história, ou para consultar fontes mais detalhadas dos mitos gregos, ou simplesmente para alimentar sua imaginação. Se for verdade que, enquanto escrevia “Os deuses da Grécia”, ele estava entretido com a leitura da Carta sobre o entusiasmo, de Shaftesbury, autor que conheceu ainda na época da Karlsschule através de Abel (e assim como muitos colegas aprendeu a admirar) certamente o fim da primeira seção deve ter sido muito importante para alimentar suas pretensões. Este livro, escrito em 1707 e publicado pela primeira vez anonimamente, trata do tema da tolerância política em relação à religião. O autor se preocupa numa perspectiva de uma fundamentação antropológica da tolerância, para a qual recupera o conceito de entusiasmo, que foi uma inspiração não apenas para Schiller, mas para todos os poetas do Sturm und Drang. Nesse sentido, Shaftesbury admite que incentivar o entusiasmo é uma prática vital para o desenvolvimento político e cultural de um povo, mas alerta que esse tipo de sentimento pode desencadear comportamentos extremos como o fanatismo religioso, que, por sua vez, pode transformar-se num delicado problema político. Não podemos esquecer que o mundo contemporâneo o tem como um de seus temas mais discutidos pelos líderes políticos e corpos diplomáticos, visto que, dada a incapacidade política de se chegar a ações que inaugurem uma tolerância religiosa e étnica num nível global, condizente com o caráter racional e humanístico de que tanto se orgulha a humanidade. De fato, causa certo constrangimento que, há trezentos anos, 38

Shaftesbury já indicava, de forma bem humorada e distinta, o tamanho deste problema do ponto de vista de uma política ilustrada. Segundo ele, o entusiasmo deve sim ser incentivado, mas também se deve fomentar sua educação autônoma. No final da segunda seção, depois de um breve comentário sobre as divergências e preferências políticas, filosóficas e religiosas entre os gregos antigos, mesmo reconhecendo os séquitos bem demarcados, ele qualifica como “maravilhosa a harmonia e proporção que surgiu de todos esses contrários” (SHAFTESBURY, 1997, 106). Reconhecendo a importância da diferença e exigindo para isso uma educação do entusiasmo, o autor inicia uma alegoria refinada e irônica, na qual sugere que seria interessante que existisse um tribunal inquisidor para a licença poética e que se reprimisse a fantasia, o humor e essa “suprema e extravagante paixão” que é o amor. A consequência dessas arbitrariedades seria o surgimento de uma nova Grécia, onde toda a sorte de gerações poderia se entusiasmar com versos em homenagem ao amor. “A verdade é que, com esse recurso teríamos uma boa ocasião para recordar toda a linhagem de deuses pagãos e inflamar nossa fria ilha do norte com tantos altares dedicados a Venus e Apolo” (SHAFTESBURY, 1997, 109), assim ele encerra a seção e, certamente, contribuiu para as pretensões que Schiller alimenta, com o entusiasmo que lhe é peculiar, em seguir sua procura por alternativa à formação cultural vindoura. Dito isto, a adesão parcial ao projeto de Winckelmann se justifica pela intenção de Schiller em contribuir para o seu tempo presente, não apenas exaltando a grandeza dos antepassados, mas buscando encontrar uma forma para inserir na cultura alemã o que ela mesma poderia ter de grandioso. A estratégia baseada na possibilidade do ressurgimento de uma nova relação, harmônica, entre homens e deuses (não deuses efetivamente, mas o que as figuras divinas representam para os indivíduos e, em geral, para a humanidade) recebe um tratamento interessante nos dramas de Schiller. Em seu livro La quiebra de la razón ilustrada, José Villacañas introduz uma ideia que estreita os laços das peças escritas por Schiller nos anos que antecederam a Revolução Francesa e a repercussão deste evento nas suas reflexões. Em Os bandidos, por exemplo, chama a atenção o radicalismo da personalidade dos irmãos Karl e Franz Moor. Trata-se de uma utilização de certas características da natureza humana, como o idealismo, no caso de Karl, e o materialismo, no caso de Franz, levadas ao extremo. À época, Schiller imaginava estar de fato testando traços de personalidade em ações que não condiziam com a realidade, de onde vem a sua visão romantizada em relação aos bandos de delinquentes que fizeram fama e amedrontaram povoados na mesma época. 39

O que ele não esperava, e essa é a tese de Villacañas, é que a história viria a oferecer um espetáculo equivalente, só que real. A eclosão da revolução burguesa em Paris revelou que a natureza humana é capaz de degenerar-se sozinha, sem que uma concatenação de eventos estabelecidos pela licença de um poeta crie essa possibilidade. Heróis convertem-se em vilões, e resta pouco branco da bandeira para tanto sangue derramado. Evidente que o interesse antropológico de Schiller cresce à medida que amplia o universo a ser estudado, e que, depois dessa experiência e da leitura de Kant, os heróis de Schiller serão capazes de construir por si próprios o seu destino, sem a interferência ou a contribuição da família, da política ou de uma eventual circunstância. No começo deste trabalho chamamos a atenção para o fato de Schiller ser um grande catalisador de seu tempo, e convêm agora pontuar alguns deles. Na esfera estética a primeira grande referência de Schiller é a Grécia, e, portanto, seu débito é com Winckelmann. Herder, por sua vez, figura como o homem que deu a esta geração o patriotismo de que precisavam os alemães para erguer sua cultura, mesmo que, posteriormente, boa parte desses espíritos tenha buscado muito mais uma universalidade do que uma nacionalidade, como é o caso de Kant. A relação entre ele e Schiller foi um divisor de águas para o poeta, pois além de enfrentar a especulação filosófica por um de seus mais raros expoentes, foi em função desde contato que ele produziu uma teoria estética e deu autonomia aos seus maiores personagens. Kant também se beneficiou deste encontro, porque Schiller de certa forma responsável pela divulgação de sua terceira crítica, democratizando o acesso à liberdade teleológica kantiana através de seus personagens, como Maria Stuart; e debatendo suas observações sobre o belo e o sublime com comentários esclarecedores. Herder e Kant são, além disso, as duas fontes com quem ele vai dialogar em sua filosofia da história. Por último e não menos importante, a influência de Lessing se faz presente nas tragédias e nas reflexões sobre a estética, na maneira de conceber alguns personagens e na sua concepção de sujeito burguês. Se para os gregos do século V a. C. as condições políticas, históricas, climáticas, enfim, toda a conjuntura da época privilegiou a maneira como eles estabeleceram sua relação com a natureza e dentro da polis, Schiller tampouco poderia se queixar do manancial de referências que dispôs. A diferença notável, ao que parece, deve-se ao fato de que os gregos celebraram o equilíbrio harmônico entre as esferas intelectuais, artísticas e políticas, enquanto Schiller teve que encarar uma dissonância radical.

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Não obstante, o poeta que realiza na prática os ideais de Winckelmann é Goethe. Schiller se direciona com afinco para a modernidade e poucos são seus trabalhos sobre a Antiguidade. Ao lado dos poemas citados, que são, efetivamente, relevantes para compreender a totalidade de sua obra, há ainda outros menos aclamados, algumas traduções incompletas de tragédias gregas, e a recuperação do coro em A noiva de Messina, que lhe rendeu uma polêmica justamente por conta da presença grega. Além disso, não encontramos com frequência em sua obra a tematização da Grécia. Ele permanece ligado a Winckelmann por concordar que a Antiguidade grega teve uma relação fundamentalmente estética com a realidade, e que isso pode ser enxergado como um caminho para a cultura moderna, que poderia, inclusive, superá-la. Um exemplo bastante conhecido disso é o desprendimento de Schiller em considerar a Ifigênia de Goethe superior à de Eurípides.17 Os elementos vitais para os gregos eram a música, a dança e a poesia, o que quer dizer, portanto, que para aquele povo não houve sequer a dúvida do papel da arte para a humanidade nem tampouco uma diminuição do seu valor diante do materialismo de um mundo excessivamente prático. O que acontece é que, na modernidade, houve essa conversão e sua consequente inversão dos valores, renegando à arte um papel secundário, quando não supérfluo, e à beleza uma condição subordinada aos interesses das mais variadas ordens, motivados ou por decisões calculadas ou pela incapacidade do homem de submeter seus desejos à razão. Enfim, talvez seja importante levar em conta a proposta de Safranski de que Schiller interpreta a modernidade como uma fase de transição. Essa ideia está atrelada à aposta na possibilidade de, através da liberdade, a humanidade alcançar uma “unidade livre”, à semelhança do que se passou no auge da cultura grega. Diz ele, nestes versos quase ao final de “Os artistas”: “A dignidade do homem em vossas mãos foi colocada, Guarde-a! Funde-se com eles! Com eles há de levantar-se! Da poesia a sagrada magia serve a um sábio plano do universo, silenciosa conduz até o oceano da grande harmonia!” (SCHILLER, 2009, 95) Está nítida aí, mais uma vez, a maneira como Schiller entende a imitação dos antigos. Essa passagem para uma unidade livre não começa na razão, com se esperaria do ponto de vista de um Schiller mais kantiano, e sim, com o cultivo do sentido estético. Com isso, podemos constatar que a influência de Winckelmann é decisiva para toda a obra de Schiller. Se ela não se faz presente

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Sobre esta polêmica, ver: SÜSSEKIND, P. (2005) Helenismo e Classicismo na estética alemã. Tese de Doutorado. UFRJ.

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enquanto conteúdo, ou se não está tão nítida em sua forma como acontece em Goethe, o mesmo não podemos dizer no que tange a concepção de uma visão de mundo estética. Em seu ensaio “Introdução à leitura de Winckelmann”, Gerd Bornheim termina com uma frase que faz jus ao princípio da nobre simplicidade e calma grandeza, e que, se por um lado, não determina analiticamente o que é exatamente essa “Grécia de Winckelmann”, por outro insinua o quão poético é este capítulo da Alemanha do século XVIII: “Com Winckelmann, aprendemos a amar a Grécia” (BORNHEIM, 1998, 109). Esse amor à Grécia, ainda que tenha uma variedade grande em sua forma, é sem dúvida um dos elementos mais marcantes dos séculos XVIII e XIX, e, sobretudo entre os alemães, é um traço fundamental de sua filosofia. Nesse sentido, Schiller e Nietzsche são tocados por essa maneira de enxergar os gregos, e da qual Hölderlin se tornou herdeiro incontestável. Essa passagem de Anatol Rosenfeld em Letras germânicas deixa claro o significado desta afirmação: “Nenhum outro poeta viveu o mito com tamanha paixão e verdade; era esse o ar que, heleno redivivo, respirava.” (1993, p.45).

2.5 O caso Hölderlin

Talvez seja preciso dizer outra coisa a respeito desta herança, caracterizada de modo peculiar por uma continuidade e uma ruptura de proporções grandiosas: se, por um lado, há um distanciamento em relação à maneira de pensar a criação artística, abandonando a imitação dos antigos, e, consequentemente, quebrando o vínculo com o classicismo; por outro lado, os gregos permanecem sendo clássicos. Mais uma vez Rosenfeld não nos deixa mentir, quando dá contornos ainda mais interessantes a esta herança:

A imagem da Grécia antiga, tal como concebida e desenvolvida pelo classicismo alemão, principalmente por Lessing, Winckelmann, Goethe e Schiller (esses últimos na sua fase de maturidade), alcançou em Hölderlin sua expressão máxima e, em certa medida, sua superação. (ROSENFELD, 1993, 44)

Esse perfume helênico que tomou os ares alemães da época foi marcado por uma perspectiva (ou seria uma expectativa?) de harmonia, plenitude e unidade entre homem e natureza, entre o humano e o divino. Mesmo nesta atmosfera rousseauniana, Schiller cede ao adultério e se entrega a outro amor: de fato, o que sentia pela Grécia sofre uma 42

retração quando começa sua relação visceral com a modernidade, época marcada pelo desaparecimento dos deuses, por contradições político-ideológicas, e por complexos e intrigantes conflitos de interesses que vem à baila com a nascente classe burguesa e seus atributos. O interesse crescente pela conjuntura de sua época afasta Schiller deste tom nostálgico, e Hölderlin, por outros motivos, tampouco se conforta na paradigmática Grécia como modelo a ser imitado, isto é, da impressão que nos deixara Winckelmann. Contudo, enquanto o primeiro deposita alguma expectativa na modernidade, nos grandes valores que erigiram a cultura moderna, enfim, sustenta a crença ainda numa sociedade igualitária e trabalha nos limites a colocação do problema enquanto par contraditório, o segundo evita, na medida do possível, ficar preso às contradições por julgá-las petrificadoras demais. Por isso ele consegue enxergar modernos e antigos não como categorias isoladas no tempo e no espaço, e sim, passíveis de um amálgama que eliminaria

as

barreiras

e

fariam

ambos

refletirem

um

no

outro,

agindo

concomitantemente. Tudo indica que esse motivo talvez faça dele seja o maior herdeiro dessa linha tênue que delimita esta visão singular da Grécia. Admitamos que compreender a postura de Hölderlin neste caso exigiria, como se diz, outro trabalho, que precisaria inclusive dar conta dos seus primeiros textos até o impasse na conclusão do seu Empédocles, que marcaria uma ruptura significativa na sua atividade. Além disso, o que interessa a nossa empreitada aqui é uma atenção especial às questões que envolvem o problema “Schiller”, e dada a relevância que alguns pensadores exerceram sobre ele, Hölderlin, assim como tantos outros nomes importantes da filosofia, da literatura e da história vem à tona muitas vezes. Não seria justo incluí-lo no cerne da Querela entre os antigos e os modernos, assim como também seria ingenuidade imaginar que ele está totalmente fora deste debate tão polêmico. Se a querela envolve, fundamentalmente, a decisão por imitar ou não os gregos, seu lugar parece, a princípio, uma diáspora. E, mais uma vez, insistimos na relação entre os dois poetas, observada fartamente nas biografias de Schiller e, em geral, em algumas introduções das obras de Hölderlin18. Soa estranho, entretanto, que nessas referências nos acostumemos a encontrar uma admiração muito forte de Hölderlin por Schiller, mas não o contrário, e, ainda, por alguma razão alheia, que as

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Podemos observar, tanto na introdução do Hipérion quanto na de A morte de Empédocles, nas edições brasileiras, que o afastamento de Schiller em relação ao seu afetuoso admirador é tratado de forma unânime como um trauma na vida do poeta.

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referências à influência que Winckelmann possam ter exercido sobre o autor do Hipérion sejam escassas. Se compararmos a maneira como as principais ideias de Winckelmann seguem surtindo efeito na passagem do século XVIII para o XIX, não parece exagero afirmar de fato que Hölderlin transforma-se em seu herdeiro mais fiel, quiçá, inclusive, como quem leva a visão winckelmanniana da Grécia às suas derradeiras possibilidades. As primeiras frases de seu trabalho de licenciatura já indicavam o que estava porvir:

Grécia é, indiscutivelmente, a pátria das belas artes. Por isso, o nascimento e o desenvolvimento da arte no seio de um povo tão evoluído tornam-se tão atrativos. (...) Também o filósofo, o historiador político e o psicólogo encontram na arte grega matéria de reflexão. Porque, o que chama a atenção desde o princípio, é a influência que a arte exerce sobre o espírito nacional dos gregos. (PAU, 2008, 56)

Em Hölderlin, Antonio Pau menciona que ele escolheu como um dos temas de seu trabalho de licenciatura a história da arte grega, no qual citou, entre outros autores, Winckelmann, Köppe e Le Fèvre. Nenhum deles pode ir até a Grécia, e talvez essa impossibilidade de pisar o solo grego tenha facilitado ou restringido o olhar um tanto quanto idealizado do mundo helênico. A posição de Antonio Pau é explícita: “Essa circunstância contribuía decisivamente para a idealização do país e de sua cultura. Em Hölderlin a idealização da Grécia chegou ao seu mais alto grau” (PAU, 2008, 55). Ela não é um território, mas uma pátria sem chão. A Grécia de Hölderlin é o exagero de uma metáfora, e seu amor por ela é incomensurável. Sobre a natureza desse sentimento implacável, ele mesmo afirma: “A Grécia foi meu primeiro amor e creio poder afirmar que será o último” (HÖLDERLIN, 2008, 36). Suas raízes e sua identidade estão muito mais próximas da miséria, da precariedade cultural e da mentalidade tacanha dos feudos e ducados alemães do que da fértil e admirável terra helênica. Portanto, trata-se de uma relação provocada muito mais pela ausência do que pela presença do espírito grego. Outra interpretação que nos chama atenção é a de Manuel Barrios, em Narrar el abismo, pois aponta para a obra de Hölderlin como um esgotamento do Classicismo, em uma alusão à empreitada de Winckelmann, Goethe e, até mesmo, do próprio Schiller, especialmente em relação aos romances de formação (Bildungsroman). Talvez não seja necessário enveredar profundamente por essa hipótese, mas pelo menos salientar que há, nessa contenda, uma questão que traz à tona a reflexão sobre um importante elemento do processo de formação, e que pode ser encontrado tanto no fim inconcluso de seu Hipérion, em contraposição aos demais romances de formação, quanto, anos 44

mais tarde, nas suas Observações sobre Édipo e Antígona: o método. Isso delimita a maneira como Hölderlin se distancia dos valores e da maneira de criar do Classicismo, como ele mesmo deixa falar na última carta de Hipérion a Belarmino: “As dissonâncias do mundo são como a discórdia dos amantes. A reconciliação está latente na disputa e tudo o que se separou volta a se encontrar” (HÖLDERLIN, 2003,166). Mas, a despeito das diferenças, não parece ser apenas no campo da poesia que Schiller se tornou uma referência importante para a formação e leitura de Hölderlin, se julgarmos, sobretudo, que o jovem poeta manifestou interesse profundo pelas suas reflexões em Graça e dignidade, e, como ele, reconheceu seu empenho em dedicar-se à leitura intensa de duas referências que foram determinantes para Schiller: os gregos e Kant. Parece, de fato, que há uma questão comum que une os dois a Lessing: a iminência de produzir uma tragédia na modernidade. No caso de Schiller, diferente de Goethe e Winckelmann, suas reflexões estéticas e os dramas posteriores à Intriga e amor deixam bem claro que sua visada é direcionada à modernidade; com a mesma intensidade, é decisiva a postura de Lessing como defensor de uma nova interpretação da Poética de Aristóteles, em confronto direto com a interpretação normativa dos franceses e, por fim, os argumentos pelos quais recebemos a interpretação heideggeriana de Hölderlin, no sentido de uma poesia e de um pensamento extemporâneo, para os quais ainda não há leitores. Em outras palavras: Hölderlin amou o impossível, e fez dele sua grande utopia; fosse esse impossível o solo grego, o amor de Diotima ou a solução dos emaranhados antagonismos que estruturaram as bases férteis do Idealismo alemão, ele ocupa agora um lugar privilegiado se quisermos compreender as ligações entre Schiller e Nietzsche. Afinal, se houve alguma dúvida quanto ao peso da nostalgia em relação à Grécia desde as primeiras afirmações de Winckelmann, Hölderlin não deixa dúvidas sobre o efeito que o distanciamento pátrio, esse sentir-se longe ou sem chão originário, teve na cultura moderna. Para ele, é somente a partir dessa ausência indiscutível e irresoluta que se pode pensar o surgimento de algo próprio, objeto desejado obsessivamente pelos alemães do seu tempo e que descreve tão bem a natureza do homem moderno. As palavras de Márcia Cavalcante, na introdução das Reflexões de Hölderlin, revelam a grandiosidade desta perspectiva: O moderno ou hespérico, esse homem em ocaso, não é o que perdeu alguma coisa, mas o que se dá conta de que a destinação humana funda-se num ser-desabrigado. Tudo o que o homem ganha e perde, conquista e desfaz, forma e deforma só

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acontece na medida em que o homem jamais está em parte alguma. Um homem é sempre peregrino. (CAVALCANTE em HÖLDERLIN, 1994, 16)

Por uma questão de honestidade com os possíveis leitores, convém admitir que seria necessário mais uma centena de páginas para exaurir as questões relativas à influência da Grécia antiga na Europa desta época. Se destacarmos o campo da estética, que é nosso maior interesse, talvez seja possível pontuar os elementos que analisamos que se apresentam como imprescindíveis para a continuidade deste trabalho. O fio condutor da investigação foi o conceito de nostalgia, para o qual a contribuição de Winckelmann é decisiva no cenário intelectual alemão. A partir da apologia da arte grega, ele estabelece um ideal de obra de arte que se estabelece como um paradigma que vai ocupar as mentes mais brilhantes da época, desde Herder até Schiller.

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3 CAPÍTULO 2 XVIII: O SÉCULO QUE NÃO TERMINOU.

Nada é mais enganoso do que leis universais para nossos sentimentos19. Lessing

3.1 A modernidade e o surgimento da cultura alemã

Em O fim da idade moderna, Romano Guardini apresenta de forma contundente e, é preciso dizer, através de um nítido ceticismo em relação à visão de mundo do homem europeu, as principais mudanças sobre as concepções de homem e de mundo que ocorreram com a passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Comprometido com as ideias de Pascal, Guardini é categórico ao afirmar que os modernos não foram capazes de identificar suas principais características e reconhecer a si mesmo, o que resultou em uma autoconsciência precária. Ele também refuta as visões idealista e existencialista, e convicto, escreve: “o facto mais significativo é que a cultura da Idade Moderna - ciência, filosofia, pedagogia, sociologia, literatura – viu erradamente o homem; não apenas em pormenores, mas no seu princípio e no seu conjunto. O homem não é o ser que o materialismo e o positivismo nos mostram” (2000, 67) Neste ensaio não poderia faltar uma definição do termo “modernidade”, a fim de garantir ao leitor o devido acompanhamento da discussão tendo como referência segura os limites do que entendemos aqui através deste termo. Mas, se se tratasse de uma tese que pretende dar conta de exigências tradicionais, tais como ser clara, objetiva e encetada por limites que não oscilam e sustentam a tese sempre na mesma direção, esta exigência seria uma lei, e, enquanto tal, deveria ser atendida. No entanto, nosso trabalho precisa abrir mão deste rigor severo porque não pode abrir mão de ser honesto com seus leitores. Por isso, gostaríamos de não precisar o termo modernidade nem como sendo oriundo da filosofia cartesiana, tampouco como da filosofia kantiana. Seria difícil demais, para não dizer impossível, separar as conquistas do intelecto das realizações políticas, assim como seria injusto determinar a modernidade somente pelo viés do pensamento, ou somente através de um notável acontecimento histórico.

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LESSING, G. E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. Introdução, tradução e notas de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.111.

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No artigo intitulado “O porvir de Nietzsche”, Carneiro Leão chama a atenção de que o fim do milênio (o texto é de dezembro de 2000), não pode ser considerado apenas uma questão de data, e sim, de historicidade. E afirma que o fim deste milênio é o fim de uma determinada articulação histórica, a da civilização ocidental-europeia, que “criou certa percepção da vida e desenvolveu uma maneira de construir as relações entre as pessoas e elaborar os usos e aplicação das coisas. Trata-se da percepção racional e da maneira controlada de sentir a vida, relacionar as pessoas e produzir ferramentas”. (2000, 75). Gostaríamos, realmente, que as características aqui apontadas norteassem o leitor, mesmo que por caminhos pouco iluminados ou cujo chão seja mais movediço do que de costume. Os limites aqui indicados certamente são uma forma de restrição, mas tem potencial para expandir os horizontes mais do que encurtá-los, o que já é formidável. É possível imaginar que a modernidade construiu uma relação nostálgica com a antiguidade grega, afirmando a possibilidade de, pelo menos através do pensamento, projetar tal estado de coisas que se define pela maneira como nós entendemos ou queremos entender como os gregos sentiam e manifestavam as paixões. Por si só, esse olhar nostálgico entrega pelo menos duas coisas: primeiro, que mesmo admirado e encantado com esse espírito grego, ele é, para nós, impossível. Inatingível, um lugar perdido, que só pode estar presente em memória-metáfora ou ser esquecido. Segundo, em certa medida resultado do primeiro, que nós desejamos muito mais conhecer e entender esse espírito do que propriamente vivê-lo, ou sê-lo. “Nós”, não quer dizer que não tenha existido exceções: Hölderlin, por exemplo, foi exilado e marginalizado por querer demais esse espírito: pensar então que seria possível voltar a ele foi identificado como uma patologia, uma anormalidade, um desvio, um excesso. O que cabe na compreensão moderna desse fenômeno não é a vida, mas um tipo de relação com a vida. O entendimento e a razão contaminaram suficientemente a modernidade para substituir a paixão pelo amor. Um amor distante, é verdade, um amor-longe, com margem de segurança para garantir a seriedade, a higiene e o controle sobre a vida humana que a modernidade, às vezes explicitamente, às vezes em silêncio, sempre desejou. Muitos são os elementos que caracterizam nossa entrada histórica na modernidade. Em geral, é comum admitirmos que, do ponto de vista social, a ascensão da burguesia ao poder é um dos mais significativos desse processo, cujos reflexos vão desde a economia até os costumes. Do ponto de vista da estética e da filosofia da arte, esse mesmo elemento também surge como “novidade” ou mudança se pensarmos no 48

núcleo constitutivo do enredo das peças de teatro da recém-chegada modernidade. No contexto da cultura alemã nascente, foi Lessing que nos apresentou pela primeira vez. Em 1755, ele publicou Miss Sara Sampson, considerada como a primeira tragédia burguesa alemã, cuja maior novidade foi a substituição das personagens que compõem a intriga: ao invés de tratar da monarquia, o autor se opõe às regras tradicionais e põe em cena uma expoente família burguesa. A peça estreou em Frankfurt no mesmo ano, e foi posteriormente traduzida para o francês e encenada em Paris. A boa recepção em ambas as cidades foi provavelmente um passo importante para a carreira de Lessing como dramaturgo, que o consolidou como uma importantíssima contribuição tanto para a teoria estética quanto para o trabalho teatral de Schiller. Neste aspecto, não seria exagero dizer que a influência de Lessing é tão presente quanto a de Winckelmann. Se, com este último, ele aprendeu a jamais abandonar o valor da arte para a humanidade e a pretensão de, através da beleza, ver a humanidade triunfar diante do horror e das limitações de um mundo cada vez mais marcado por um utilitarismo baixo; com o primeiro ele incorporou a aspiração pelo desenvolvimento da cultura alemã através de uma formação ilustrada. A julgar pela profundidade com que Schiller absorve tanto a interpretação da Grécia feita por Winckelmann quanto as contribuições críticas de Lessing que propiciaram, de certa forma, o surgimento do teatro alemão, talvez seja impossível identificar qual das influências é mais forte na sua trajetória. Por sorte, tal julgamento pode ser de importância nula. Se for possível enxergar esse processo e traduzi-lo em palavras, já nos daremos por satisfeitos. O último texto de Lessing, A educação do gênero humano, apesar ter aparecido mais de uma década depois de Laocoonte e da Dramaturgia de Hamburgo, pode ser uma boa referência para começar a investigar essa influência. Em 1780, ele publica sua versão completa, somando 47 parágrafos aos 53 já publicados anteriormente, em 1777. Esse

texto

tem

uma temática

essencialmente

religiosa,

porque

associa

o

desenvolvimento da teologia a três diferentes estágios do gênero humano, numa tese que, entre outras coisas, coloca o judaísmo como a infância e o cristianismo como a juventude da humanidade. Tudo indica que, no fundo, ele defendia era o caráter de revelação do Antigo Testamento e a necessidade de se reler o Novo Testamento. Segundo Andreu Rodrigo, “a questão é outra: a do progresso da humanidade, do aperfeiçoamento dos motivos da conduta humana em todos os campos de sua

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atividade”.

20

É nesse sentido que o primeiro parágrafo da obra é, por assim dizer, uma

síntese das ideias ali desenvolvidas: “A educação é para o indivíduo o que a revelação é para todo o gênero humano” (LESSING, 2008, 25). Em outro texto, bem mais conhecido, Lessing acrescenta ainda mais esta questão tão enraizada na cultura ocidental ao trazer a discussão da relação entre razão e religião para a impossibilidade de identificar dentre as três religiões predominantes, qual delas teria o privilégio de ser a verdadeira. É em Natan, o sábio, obra de 1779, que Lessing argumenta de forma extremamente habilidosa sobre a impossibilidade de julgar uma religião como sendo verdadeira em detrimento de outra, defendendo a insuficiência das verdades históricas como parâmetro judicial. Voltaremos a esta peça mais adiante. No tocante ao conteúdo, para a geração Goethe e Schiller, e também para Schelling, Hegel e Novalis, ficou a lição de que distinguir ciência e religião não resolveria problema algum, muito menos buscar estabelecer qual religião seria a verdadeira, porque o epicentro da questão residiria, todavia, na possibilidade no progresso moral da humanidade e, consequentemente, em discutir as bases fundamentais sob as quais se poderia fazê-lo. Porém, ao observarmos as características formais de Natan, o sábio, nos colocamos diante de um espírito eminentemente inovador também para a prática literária. Vejamos o que nos diz Mário Videira, autor do artigo “Filosofia e Literatura no Iluminismo alemão: a questão da tolerância religiosa no Nathan der Weise, de Lessing”: Quanto ao gênero, Lessing classifica essa obra como “ein dramatisches Gedicht” (um poema dramático). Essa designação de gênero aponta para a impossibilidade de se referir à peça segundo as nomenclaturas usuais: Nathan não se deixa classificar inteiramente nem como uma comédia, nem como uma tragédia, embora contenha elementos de ambas. Quanto às suas características formais, a peça chama a atenção por estar escrita em versos brancos, bastante empregados por Shakespeare, e que Lessing introduz no teatro alemão. Além disso, ele emprega frequentemente a alternância das falas de personagens diferentes no interior do mesmo verso, tornando mais intensa a dinâmica da peça. Também o uso das pausas é usado de maneira a enfatizar a hesitação e a reflexão das personagens. (VIDEIRA, 2011, 58).

Esses apontamentos reforçam a ideia de que, de fato, ele foi uma figura de extrema importância para o desenvolvimento posterior da filosofia e da cultura alemãs, e, com efeito, uma fonte de inspiração para a pretensão de Schiller em levar à cabo seu

20

Ver comentário e nota da edição das obras completas de Lessing, em: Escritos filosóficos y teológicos. Madrid: Editora Nacional, 1982, p.595.

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projeto de uma educação estética. Essa inspiração é relativamente duradoura, já que em 1801ele faz uma adaptação de Nathan, o sábio, em Weimar. Contudo, apesar deste indício, essa influência ganha contornos mais complexos21. Uma das grandes dificuldades em examiná-la se mostra a partir do triplo eixo em que ela se desenvolve, agregando a estética, a política e a filosofia. Primeiro, sobre a relação entre a tragédia e a burguesia, tomando como núcleo central a ascensão política desta classe e o desenvolvimento da dramaturgia como possibilidade de ser o veículo de suas principais ideias. Segundo, sobre a relação entre a tragédia e o Idealismo, tomando Schiller como exemplo: podemos ter êxito em apontar a caráter kantiano de sua Maria Stuart, mas cientes de que este tipo de vínculo não se estende para toda sua obra, pois ele mantém uma concepção de trágico que impossibilita esse acordo de forma extensiva. Por fim, sobre a relação entre a burguesia e o Idealismo. Por mais que do ponto de vista teórico seja possível encontrar tal aproximação, na realização das ações práticas os interesses políticos eminentes entram em conflito com as mais elevadas abstrações, proporcionando um abismo na esfera da práxis. Mas, antes de aproximarmo-nos da questão, convém uma pequena história sobre a admiração por parte de Schiller. Temendo que seu contrato de dramaturgo fixo do teatro de Mannheim não fosse renovado, ele ofereceu a seu superior, Karl Von Dalberg, outro entusiasta da força do espírito ilustrado de um projeto para “melhorar” a humanidade, uma solução ousada: dar continuidade ao trabalho que Lessing começara em Hamburgo, sugerindo uma Dramaturgia de Mannheim, em referência à outra. Considerando as pretensões de Dalberg, certamente pensava em transformar a cidade no centro cultural efervescente da Alemanha e, em seguida, utilizar o teatro para enobrecer os espíritos alemães com sua própria cultura nascente. Segundo Safranski, este período é marcado por alguns elementos intrigantes que explicam as relações entre política, religião e a arte. Primeiro, havia uma intriga política de fundo religioso. Os círculos católicos da corte de Munique tentavam impor algumas restrições à maçonaria, a atitudes entendidas como anticlericais e, por extensão, mostravam uma forte resistência às ideias iluministas, atividades revolucionárias e possivelmente relacionadas com o Sturm und Drang. Evidente que este cenário não o favorecia e que seu contrato tinha 21

José Villacañas, em Tragedia y teodicea de la historia, analisa de que forma essas tensões se engendram na formação do sujeito burguês. A temática ultrapassa as nossas pretensões aqui, mas não deixa de ser um excelente apoio para compreender esse contexto. Como não pretendemos esgotar essas questões, centremo-nos no que tange a teoria estética.

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pouquíssimas chances de ser renovado, até porque, de fato, além de queixas por parte dos atores do teatro suas peças não tinham proporcionado um êxito capaz de segurar sua posição. E, por fim, Schiller imaginava em breve apresentar ali seu Don Carlos, com muita expectativa de que a peça pudesse resgatar sua confiança e provar que seu retumbante sucesso não era mera promessa, mas o projeto não foi adiante e ele sequer conseguiu terminar a obra.

3.2 Schiller e a influência de Lessing

Retomemos, brevemente, a importância de Lessing. Apontemos pelo menos duas de suas decisivas interferências: primeiro, a crítica à leitura normativa que os franceses fizeram na Poética de Aristóteles, ressaltando que não destacar o efeito da tragédia pode ter sido suficiente para impedir que os franceses conseguissem ter êxito (em sua opinião, pelo menos) nas suas tragédias fora da corte de Paris. Esse primeiro ponto fica evidente na sua obra Dramaturgia de Hamburgo, uma coletânea de críticas teatrais escritas a partir de 1787. Segundo, as suas modificações, tanto em relação ao conteúdo quanto à forma, que foram fundamentais para que outros autores, como Schiller, pudessem imaginar e construir uma literatura genuinamente alemã, tendo como principal referência não outras obras apenas, mas também, o primeiro trabalho crítico de teatro da modernidade. A esse respeito, lembremos a posição de Madamme de Staël, em D’Alemagne, ao se referir à literatura alemã do século XVIII como tendo um duplo nascimento, porque obra e crítica teriam surgido conjuntamente. É no capítulo “Lessing et Winckelmann”, onde ela explica a influência winckelmaniana na cultura alemã, que aparece a caracterização do esforço de Lessing como crítico do teatro francês e entusiasta de Shakespeare como principal referência para ao autores alemães. É nesse contexto conturbado, de contestação ao seu trabalho e de intrigas políticas que Schiller escreve o texto “Que efeito pode produzir realmente um bom teatro?”, mais tarde publicado como “O teatro considerado como instituição moral”. Ainda sem ter ciência da negativa de Dalberg e de seu eminente desemprego, Schiller se apresenta junto à Deutsche Gesellschaft, na esperança de que ali, defendendo o teatro como uma força política e cultural de grande potência, ele teria o apoio dos membros da sociedade, um grupo de burgueses favoráveis às ideias ilustradas. É notável certa 52

ingenuidade política de Schiller, sobretudo no que diz respeito ao tratamento interpessoal, às intrigas que podem inclinar as decisões de figuras políticas, enfim, sua inexperiência nesse campo ardiloso e detalhista, suscetível a gestos e ofertas, recomendações e apadrinhamentos. São dois argumentos que falam em favor dessa ingenuidade política de Schiller. O mais simples se refere ao exagero do conteúdo e da forma do texto que defendia seu posto junto ao teatro de Mannheim, e o segundo trata do processo criativo de Don Carlos, que entre muitas interrupções, durou cerca de quatro anos, entre 1783 a 1787. Em relação ao conteúdo, o texto oscila entre uma postura demasiadamente entusiasmada em relação à força e capacidade de interferência do teatro da vida humana e passagens nas quais o autor parece revelar momentos marcantes de sua biografia. A essa marca autobiográfica, seria interessante observar uma frase de tom e conteúdo bastante incomum, onde ele diz: “Se tentássemos empreender a avaliação da comédia e da tragédia pela medida do efeito alcançado, a experiência talvez desse primazia à primeira.” (SCHILLER, 1992,38) É no mínimo curioso para um autor que se destacou e muito por suas obras trágicas, e que dedicou grande parte de suas reflexões filosóficas aos assuntos pertinentes à tragédia, considerar, justo numa exposição sobre o valor moral do teatro, a comédia superior em seu efeito. A questão pode ter vindo à tona porque ele estava ressentido do desentendimento com os atores do teatro, que apresentaram algumas cenas de O homem negro, uma peça de Gotter. A personagem principal, Flickwort, um poeta insignificante e arruinado, é apresentado como uma sátira de Schiller, já que Iffland, que o representou, compôs a caracterizou a personagem imitando o seu jeito de falar e de andar. O objetivo era não apenas criticá-lo, mas também

derrubá-lo

de

seu

posto.

Provavelmente,

ofendido,

entristecido

e

desestabilizado ao reconhecer de forma sarcástica e desqualificada a si mesmo, Schiller acabou admitindo nos pormenores do texto o quanto esse episódio lhe foi caro. Afinal, ele fora vítima das armas de uma arte que se acostumou a usar com os fins que acreditava ser muito eficientes e sentiu na própria pele que também a comédia poderia ter no seu “efeito cômico” um artifício poderoso diante do espectador. Um episódio marginal e de menor relevância, que não foi suficiente para diminuir a importância do teatro no pensamento e naquilo que ele julgava ser o melhor para a cultura da humanidade, em especial para uma formação cultural ainda embrionária na Europa. O exagero no entusiasmo de Schiller em relação à capacidade do teatro em efetivar-se como maior instrumento de formação do caráter humano transparece quando 53

ele trata com negligência as vicissitudes inerentes às particularidades de cada obra. Ainda na conferência, uma embriaguez shakespeariana brota quando ele faz referência a Franz Moor, atribuindo um caráter de universalidade da personagem dada a sua natureza extremamente humana, com pompa e circunstância de um Hamlet; mas sem a mesma força e respaldo na história da literatura – há que se reconhecer. A negligência de Schiller se refere a um fato que está nítido nas criticas que Lessing faz ao teatro alemão da época: ele pode ter de fato o poder de transformar a vida do povo, mas da forma como ele vinha sendo realizado, não chegaria perto de atingir todo esse potencial descrito na conferência. Seria necessário e urgente, portanto, reconhecer os equívocos cometidos e encontrar as referências necessárias para dar fundamento e legitimidade para o “futuro” teatro alemão. De certa forma Schiller tinha consciência disso, mesmo que não tenha demonstrado a clareza e a dedicação de Lessing, até porque ele mesmo buscava incessantemente que sua obra tivesse um efeito potente nos espectadores, e que o teatro se tornasse efetivamente uma potência no processo de formação do homem. Ele sempre foi um autor preocupado como poucos com a reação do público e o cumprimento da premissa aristotélica. Contudo, no calor dos acontecimentos, pesou a mão a favor dos benefícios do teatro para a humanidade, mas sem avaliar em que circunstâncias e de que forma conseguir tal êxito. Isso tudo faz da conferência, no fundo, um texto carregado de otimismo e de metáforas alusivas à força do teatro, e dando alguma importância às questões de caráter moral, relativo aos costumes, que não são exatamente preocupações frequentes na sua obra. Por isso entendemos que esse texto promete mais do que entrega, sobretudo para aqueles que pretenderem sacar dessa conferência uma visão geral do pensamento de Schiller, pois a preocupação moral descrita nele está mais para um arremedo circunstancial do que para uma característica que vai ser levada adiante nas suas demais contribuições. Mesmo assim, no início da conferência, inspirado por uma observação de Sulzer acerca da origem do teatro, Schiller afirma que: “Exaurido pelas altas fadigas do espírito, esgotado pelos enfadonhos e, sobejas vezes, opressivos quefazeres da profissão e trazendo saturados os sentidos, o homem deve ter percebido em seu ser um vazio que se opunha ao perene impulso de ação”. (SCHILLER, 1991,33). Esta afirmação o aproxima da perspectiva de Lessing na Dramaturgia de Hamburgo, não somente no sentido de admitir em que estágio estava a cultura alemã da época, mas também em relação à valorização da ação na dramaturgia. Na 46ª parte, entendendo a unidade da ação como regra geral, da qual derivavam as demais unidades, 54

as de tempo e lugar, ele critica duramente os franceses por ignorar a importância central da unidade da ação. Como consequência direta, as peças francesas acostumaram-se a utilizar gratuitamente a unidade de lugar e de tempo, deixando-as vazias de sentido e com status meramente alegórico. Essa perda de sentido e potência ocorreu porque os franceses também renunciaram ao uso do coro, que nas tragédias gregas, eram responsáveis pela condução das ações e também permitia saltos temporais e mudança de lugares. Além disso, ele diz que o teatro pode garantir a plena autonomia da arte, sem deixar ao esquecimento sua função pedagógica, e, muito por conta disso, sua relação com a moral e com a política. Além disso, é o teatro que permite ao homem o seu mais nobre e vital sentimento, que é sentir-se um ser humano. É assim que ele termina o texto: “(...) e no seu peito há agora apenas lugar para um sentimento: o de sentir-se um ser humano.” (SCHILLER, 1991, 47). O vazio do homem é o mesmo vazio da cultura. Esse nítido interesse antropológico merece uma análise mais atenta, que faremos mais adiante. A formulação mais famosa desse efeito Lessing parece ser mesmo a observação de Madame de Staël, em D’Alemagne, ao se referir à literatura alemã do século XVIII como tendo um duplo nascimento, porque a obra teria surgido em conjunto com a crítica. Ela afirma, ao analisar a importância de Lessing e Winckelmann, que a excentricidade da dramaturgia alemã recente reside no fato de que, enquanto trabalhava arduamente em seus textos críticos, em especial sobre a comédia e tragédia francesas, Lessing também dava os primeiros passos da nova literatura germânica. Essa ideia de duplo nascimento poderia ser emprestada também para a filosofia. Evidente que a filosofia alemã não surgiu com Kant, mas o caráter crítico de sua obra abriu as portas para uma forma de filosofar que jamais deixou de olhar para si mesma, de fazer uma autocrítica atenta aos problemas “internos”. O exame crítico da filosofia kantiana exige um rigor levado tão à serio que justificaria dizer que não foi apenas o conteúdo das três críticas que abalou o mundo da filosofia, mas também, com elas, o privilégio da pergunta diante das respostas. É nesse sentido que empregamos a noção de duplo nascimento à filosofia kantiana. Schiller não vai abandonar a possibilidade de encontrar os momentos delicados em que a história da humanidade triunfa, mas também as suas escolhas que a direcionam para uma catástrofe. O que ocorreu com os revolucionários franceses não foi a origem, mas um episódio emblemático de uma cultura moderna que já dava sinais do 55

caminho que havia escolhido traçar e que talvez não fosse possível retroceder. Recorremos à sexta carta, de A educação estética do homem, para mostrar a sua postura crítica diante da modernidade. “Que indivíduo moderno apresentar-se-ia para lutar, homem a homem, contra um ateniense pelo prêmio da humanidade?” (SCHILLER, 2002, 36) Emerge, nesse momento, o problema da fragmentação dos saberes como determinante para o exercício da atividade humana, devidamente desqualificada, sobretudo na esfera política, a partir das mudanças estruturais do Estado Moderno. Schiller ainda afirmaria, na sequência da mesma carta, que apesar desta desvantagem nítida e voraz, com a objetivação do mundo e a fragmentação dos saberes, duas características originárias do que se tornou a cultura moderna, não haveria outro caminho que não o do progresso, pois mesmo com as perdas irreparáveis, “inexiste outra maneira de a espécie progredir” (SCHILLER, 2002, 39). É interessante perceber que não há julgamento unilateral ou acusação irrevogável: apesar da crítica e da insatisfação com a condição do homem moderno, Schiller encara esse processo histórico como a única alternativa para o desenvolvimento da humanidade, a ponto de dizer que se os gregos tivessem desejado ultrapassar o limite a que chegaram, eles mesmos teriam que abrir mão de uma visão da realidade enquanto totalidade, e, consequentemente, abrir mão de pluralidade de deuses, da relação harmônica entre o humano e o divino, e decidir pelo desenvolvimento do estado em detrimento do indivíduo. Quando examinamos o contexto histórico e cultural em que se insere a contribuição de Lessing, é importante lembrar no pano de fundo há um projeto de uma cultura ilustrada, e com ela, de uma transformação radical do povo, isto é, de centrar na cultura a potência que pode elevar seu caráter e seus hábitos. Para isso, é importante reconhecer seus vícios, sua maneira de pensar e proceder, e pensar numa forma de qualificar esse povo, de modo que ele supere seus vícios e adquira virtudes coerentes como a de um povo ilustrado. ‘Ousa saber!’ é o brado representativo que se tornou lema dos ilustrados através do texto “Resposta à pergunta o que o esclarecimento?”, de Kant. Bem, trata-se de saber o que e como pensar, mas também o que e como fazer, pois essa máxima da liberdade pretende ser reconhecida tanto no âmbito privado quanto na esfera pública. O que fica evidente, nesse sentido, é que o tratamento dado a este esclarecimento reside numa preocupação também de ordem pedagógica, pois se trata de uma ideia já elaborada e devidamente justificada que precisa, para sua sobrevivência, conquistar a adesão do povo.

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Na introdução da edição espanhola de Don Carlos encontramos o detalhamento do que se pode chamar de “povo” nos estados alemães desta época, retratado por Luis Acosta. O diagnóstico é alarmante. O universo desta população está dividido basicamente entre três classes, a nobreza, a burguesia e os camponeses. Porém, e aí vem o susto, cerca de 50% do total da população não faz parte dessas três classes, pois formam um grupo de camponeses economicamente desfavorecidos, portanto, à margem da “sociedade”. Se esses dados estiverem próximos da realidade da época, o que nos acostumamos chamar de utopia, dada a euforia com a chance de ter uma população esclarecida, assemelha-se mais ao quadro de um problema gravíssimo de ordem social. Faz todo o sentido que a ideia de formação do um público esteja atrelada ao exercício funcional da chamada populärphilosophie22. O conflito entre a aristocracia e a burguesia insinua a marca antropológica que acompanhará a composição de Don Carlos, o drama sobre o herdeiro de Felipe II, rei da Espanha, onde a tensão acima referida salienta a ambiguidade da obra, que oscila entre um drama de família e uma tragédia burguesa. Vale lembrar que não foi apenas em Don Carlos que essa influencia da construção da tragédia se fez presente. Mais uma vez, Schiller incorpora a novidade trazida por Lessing, pois sua última peça ainda envolvida com os motivos do Sturm und Drang é Intriga e amor, uma tragédia nitidamente inspirada no casal mais famoso de Shakespeare, e que, seguindo a esteira de Lessing em Miss Sara Sampson, adota a vida burguesa como cenário. Aproximemo-nos da peça. O desafio desta geração herdeira da ousadia de Winckelmann e Herder abriu espaço para grandes empreitadas que, nas décadas seguintes, criaram um sem número de obstáculos e exigências para que suas propostas pudessem ter algum tipo de sucesso. Em especial, fomentar e criar um público espectador de teatro com senso crítico, capaz de fazer comparações e análises que ultrapassassem a esfera comum do público, transformando significativamente seus hábitos e gostos, não era uma tarefa simples. Seria preciso fornecer um instrumental teórico e técnico ao mesmo tempo em que se

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Trata-se de um fenômeno bastante particular das últimas décadas do século XVIII, que recebeu esse nome e teve maior frequência nos estados germânicos. Foram, na sua maioria, textos curtos e com linguagem simplificada, utilizados em jornais e revistas para divulgar para o público comum as ideias que os filósofos costumavam apresentar em seus livros dedicados à restrita comunidade acadêmica. Poderiam ser escritos tanto por jornalistas que pretendessem sintetizar e divulgar as propostas filosóficas, como pelo punho dos próprios filósofos, como Kant, que chegou a publicar alguns textos curtos, elaborados de forma menos complexa, visando um público menos restrito e erudito.

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entregava nos palcos produções gestadas e polidas num grau semelhante. Isso explica, ao menos, tanto o recurso pedagógico da populärphilosophie quanto o esforço de Lessing em fazer chegar ao povo uma visão crítica, um trabalho crítico fundamentado teoricamente e rico em análises. Este trabalho, por sua vez, sugeriu uma aproximação com a sua vida comum, e isso justifica a negação das personagens aristocráticas para o drama burguês. Além disso, evidencia o motivo principal de negar o projeto e a teoria de Winckelmann. Na Grécia, deuses e homens formavam uma unidade, e por isso a função pedagógica do teatro tinha de fato um efeito catártico sobre os valores do povo. Ao contrário, numa realidade onde deuses o homens são extremos opostos, nem os deuses nem tampouco os reis podem comover e educar o povo. O afastamento da Grécia de Winckelmann é uma parte importante, assim como a quebra das regras do teatro clássico francês que mantém a relação distante e pouco enobrecedora entre monarquia e povo. Se a burguesia era, antes de Lessing compor Miss Sara Sampson, tema de comédias, é porque também a história da formação das cortes germânicas contribui para isso de forma decisiva. Se na França e na Inglaterra a burguesia, já emancipada, poderia exercer sua força política e econômica, ao contrário, nos estados alemães, o poder ainda se concentrava na mão das cortes e dos ducados, que evidentemente, não tinham o menor interesse na ascensão da burguesia. O próprio Lessing sentiu o peso dessa diferença. Forçado a deixar Leipzig por conta da falência da companhia de teatro e da cobrança de credores, ruma para uma temporada em Berlim, entre 1748 e 1751, onde não contou com a generosidade do príncipe para assumir o cargo no teatro, muito provavelmente, porque suas ideias, digamos, revolucionárias, não tinham nenhum apreço por parte da corte berlinense. Nesse sentido vemos que a tematização da classe burguesa tinha estreitos laços com uma necessidade de se educar a própria burguesia, por meio de um processo que incentivaria a formação de um público que cultivasse valores ilustrados, avessos ao autoritarismo, controle e hierarquia sociais ainda vigorosos. Coube ao teatro, portanto, enquanto espaço eleito para realizar esse empreendimento, falar para um público, que é o povo. Segundo, que esse mesmo teatro precisa afetar efetivamente o seu público espectador, aquele mesmo povo, cheio de vícios e carente de virtudes. No que diz respeito ao primeiro ponto, a estratégia de Lessing é muito simples: por mais que reis e princesas causem atração no público, a ponto de distrair a sua atenção, eles não afetam o modo de vida do povo, em virtude do abismo que há entre uma vida e outra. Como disse muito bem Villacañas, em La 58

quiebra de la razón ilustrada, “a vida de um rei pode ter mais importância, mas não mais interesse que a de um súdito. Uma obra sobre um rei pode admirar a um súdito, mas não educa-lo”. (VILLACAÑAS, 1994,36) Portanto, há que se substituir o núcleo central da trama e, ao invés de continuar enaltecendo os grandes problemas que envolvem a vida na corte, introduzir no teatro as vicissitudes da vida comum, da iminente família burguesa que começa, na Alemanha, a dar seus primeiros sinais vitais. Ainda na conferência sobre o teatro, Schiller deposita no teatro a expectativa de uma revolução através dos palcos: “Só ao teatro é possível realizar, num grau elevado, essa consonância, porque ele percorre todo o âmbito do conhecimento humano, exaure todas as situações da vida e ilumina, até o fundo, todos os escaninhos do coração; porque ele reúne em si todas as profissões e classes, abrindo o mais largo caminho rumo à razão e ao coração”. (SCHILLER, 1992, 44-45) É relevante trazer à cena outra questão, logo contemplada com a outra arma escolhida por Lessing: a introdução da família burguesa resolve o problema de “falar ao povo”, mas é necessário qualificar essa “fala”, pois ela precisa exercer sua função no todo que é a obra teatral. A identificação do povo com sua vida, ali exposta no palco, precisa ser completa e eficiente, pois o projeto da cultura ilustrada exige de Lessing um suporte que lhe forneça uma teoria capaz de fazer um público se identificar com seus próprios valores, e, ao percebê-los problematizados, refletir sobre sua condição e considerar uma mudança de hábito. Ora, esse suporte teórico é Aristóteles. A segunda questão importante se refere ao status da cultura alemã da época. Lembremos que, ao final do século XVIII, a ousadia da literatura alemã tinha como grande representante o recém-surgido Sturm und Drang. A despeito do talento que depois resultaria no Classicismo alemão com Goethe e Schiller, a visão de Lessing era bastante pessimista. Apesar de compartilharem a inspiração e admiração pelo gênio de Shakespeare, ele não tinha um apreço muito considerável pela juventude desse movimento. Os excessos, as paixões muito exaltadas e a ausência de uma técnica apurada não permitiam que esses trabalhos fossem completos. De fato, em alguns momentos, provocavam a catarse e tinham um efeito arrebatador sobre o público, mas nada que fosse constante e duradouro o suficiente para erguer uma cultura ainda incipiente. Aqui a frase de Madame de Stäel adquire seu sentido mais profundo, pois o que pode sugerir apenas um desencontro cronológico, era, na verdade, uma inexistência de uma cultura sólida capaz de erguer um povo. Quando ela se refere a este surgimento da crítica, está sugerindo que as críticas e comentários elaborados por Lessing na 59

Dramaturgia de Hamburgo são, de certa forma, mais importantes do que o que o espírito alemão teria produzido até aquela época. De fato, foi em 1767, quando Lessing foi convidado a assumir o posto de comentador de teatro em Hamburgo, que surgiram as reflexões que lhe deram essa fama. O problema parece ter, efetivamente, dois eixos: um teórico e um prático, que não devem ser separados entre si. Para Lessing é indiscutível que o modelo francês não se encaixa à realidade e às necessidades e pretensões dos alemães, afinal, as necessidades da burguesia francesa são totalmente incompatíveis com a ainda incipiente e sem referência burguesia alemã. É nesse sentido que a afirmação contundente de Sylvain Fort, em Les lumières française en Allemagne: Le cas Schiller, esclarece esta posição. Ela diz: “A Dramaturgia de Hamburgo não é um panfleto anti-francês, mas um manifesto por outro teatro” (FORT, 2002,73). O rigor das numerosas críticas ao teatro francês estaria, na verdade, justificado pela incapacidade (pelo menos do seu ponto de vista) de êxito dos franceses nas artes dramáticas. Entretanto, vale a pena lembrar que esta incapacidade deve ser imaginada considerando-se a interpretação que Lessing faz da Poética de Aristóteles, cuja divergência em relação às demais se funda principalmente, a respeito da finalidade da arte trágica. Na Dramaturgia, ao comentar o desempenho dos atores, a composição das personagens, a escolha do tema e, finalmente, o efeito que as obras apresentadas no teatro causavam em seus espectadores, Lessing estava produzindo um extenso e denso trabalho crítico da cena teatral alemã. Poderia causar algum estranhamento que, sendo Lessing um conhecido crítico da cultura francesa, sobretudo de Voltaire, Racine e Corneille, dedique tantas páginas desta obra ao teatro clássico vizinho. O problema se justifica porque, não apenas em Hamburgo, e não somente o seu superior, mas em muitas cabeças alemãs ainda havia uma resistência política e ideológica muito grande, o que fomentava uma admiração pela cultura que vinha de Paris. Para ele essa admiração era injustificável. Não apenas pelo sabor de subordinação à outra cultura, mas porque, de acordo com a sua interpretação, não havia motivo para tal admiração. Os argumentos pelos quais ele afirma essa forte crítica se baseiam fundamentalmente em dois outros exemplos: Aristóteles e Shakespeare. Lessing considerou Aristóteles a autoridade máxima sobre a teoria da tragédia. A maioria dos seus argumentos técnicos para criticar o que ele chamou de deformação das regras clássicas, promovida pelos dramaturgos franceses, especialmente Racine e Corneille, são fundamentados numa leitura rigorosa não apenas da Poética, mas 60

também das observações que o filósofo faz em outras obras, como na Ética a Nicomaco, na Retórica e na Metafísica, e que constituem uma interpretação mais cuidadosa da teoria aristotélica. Além de considerar o filósofo grego como autoridade no assunto, ele recorre a Shakespeare como exemplo de um autor que, a despeito do uso das “regras fundamentais”, alcança a finalidade da tragédia com extrema habilidade. Comparando Corneille e Shakespeare, ele diz: “o inglês alcança o objetivo da tragédia praticamente sempre (...) enquanto o francês (...) não alcança quase nunca”. (LESSING, 2007, p.70-1) A referência ao dramaturgo inglês como gênio não é característica de uma preferência pessoal, mas sim, quase uma unanimidade entre os alemães da época. O que caracteriza esta leitura que Lessing faz de Aristóteles é o privilégio do efeito da arte sobre os espectadores, e não as regras da arte, como queria toda a tradição poética de Horácio até os dramaturgos franceses. A crítica ácida se justifica então por uma valorização da ação trágica e não da obediência cega às regras das três unidades, pois se a teoria aristotélica converge para um fim, que é a catarse, tal obediência não corresponde ao sucesso desta finalidade. Na sua Dramaturgia de Hamburgo, trabalho resultante do período em que assumiu a função de comentarista dramatúrgico do recém fundado “teatro nacional”, as observações de Lessing transitam entre a crítica sobre os textos de autores alemães apresentados na casa e quanto à performance dos atores e uma teoria da tragédia que evolui concomitantemente com uma crítica minuciosa à tragédia francesa. Vem à tona também a diferença do papel da burguesia e da força do absolutismo na França e na Alemanha, que se transforma em justificativa para a necessidade de se fazer um teatro com conteúdo e formas alemães, além de explicar a falta de compatibilidade com o modelo francês, isto é, com o público francês e com a história da França. É curiosa a benevolência com a qual ele trata os autores alemães, como por exemplo, na crítica ao Ricardo III de Christian Felix Weisse. A inevitável comparação com o texto homônimo de Shakespeare desqualificaria do início ao fim a versão alemã, mas Lessing suaviza os problemas da peça e faz questão de valorizar o quanto possível, ainda que seja pouco ou quase nada. Se na 73ª parte ele se restringe a exaltar o gênio de Shakespeare e a admitir que talvez seja impossível atingir aquele patamar, as questões mais interessantes aparecem num grupo de cinco partes, entre a 74ª e a 78ª. Trata-se, fundamentalmente, de uma melhor interpretação ou do correto entendimento, no seu julgamento, da teoria da tragédia aristotélica, em especial no que diz respeito à finalidade da arte trágica. 61

Essa interpretação do efeito catártico se remete à ideia que aparece no §6 da Poética de Aristóteles, talvez um dos trechos mais famosos da obra e conhecido amplamente por quem se interessa pela filosofia da arte. Nele, o filósofo define a arte trágica como imitação, assim como toda poesia, mas uma imitação de ações humanas de caráter elevado, o que a distingue radicalmente da comédia, por esta se tratar de uma imitação de caráter baixo. Sua finalidade é produzir a catarse, isto é, a purificação do terror e da piedade, resultado da sua estrutura completa, de certa extensão, além do uso da linguagem ornamentada e da ação de atores, não do uso da narrativa, como na epopeia. Em primeiro lugar surge a questão relativa aos sentimentos provocados pela catarse: lá, onde se lê phobos, Lessing sugere não o terror, mas o medo. A diferença parece uma polêmica meramente filológica, mas tem lá sua explicação: tendo como ponto de partida o seu efeito, terror e medo causariam reações bastante adversas. Ainda que o terror seja uma espécie de medo, apesar do enorme impacto, estabelece uma distância instransponível entre a personagem e o espectador, impossibilitando uma aproximação e o compartir do sentimento. O terror é tão hediondo que, pelo absurdo, afasta a possibilidade de identificação do espectador e, consequentemente, de compartilhar os mesmos sentimentos. A possibilidade de que algo ocorra, e por isso temor ou medo, é mais assustadora e perigosa do que algo aterrorizante, extremamente assustador, mas que é um fato, e não uma possibilidade. Com isso a tragédia perde força, o efeito catártico não se efetiva e a arte trágica não cumpre com sua função dentro da sociedade, como acontecia, pelo menos segundo Aristóteles. Em segundo lugar, a catarse não estaria relacionada com os sentimentos apresentados pelas personagens, como queria Corneille, e sim aos sentimentos provocados no espectador a partir do sofrimento da personagem. Isto é: não o ciúme e a ambição, mas o sentimento provocado pelo ciúme e pela ambição da personagem. Além disso, para suscitar com competência sua finalidade, Lessing afirma que o herói trágico não poderia ser nem um homem totalmente virtuoso nem um completo celerado, sob o risco de diminuir o potencial dos efeitos. Na 74ª parte, ainda analisando o Ricardo III de Weisse, ele evoca Aristóteles para apontar as falhas estruturais da peça homônima à de Shakespeare. Na 75ª parte, ele continua a análise da compreensão do medo e da compaixão, acentuando que só faz sentido ver que o filósofo não fala de terror, mas de medo e compaixão, se entendermos que esses sentimentos só podem se referir a nós mesmos, e não a um medo alheio, ou pelo que poderia suceder a outra 62

pessoa, senão que a nós mesmos. Diferente da interpretação de Corneille, Lessing não vê chances de que esses sentimentos ocorram separadamente, ou um independente do outro, pois o que provoca a nossa compaixão provoca, ao mesmo tempo, o nosso medo. Na 77ª parte aparece de forma suficientemente clara uma posição de Lessing que, mais adiante, será adotada por Schiller. Ele alega que não apenas a tragédia, mas os demais gêneros de poesia, inclusive a comédia, outrora menosprezada por sua natureza vulgar, devem melhorar o homem. Isto não quer dizer que qualquer obra tenha consistência e condições para promover uma revolução moral no homem, tampouco que uma obra tenha o poder para transformar tudo em uma sociedade. Modestamente, apenas que é um traço característico da literatura e o do teatro que a habilidade e a capacidade necessárias para promover alguma modificação do comportamento dos homens, ou seja, seu engajamento natural e sua íntima relação com a moral. Trata-se muito mais de oferecer uma forma de vida mais elevada, com o que Schiller evidentemente concorda, e nem tanto de moralizar ou estabelecer que tipo de comportamento ou opinião os homens devem aderir imediatamente, como que obedecendo a uma obra. Nesse aspecto, admitindo que uma obra de fato possa estimular o homem a uma vida mais elevada, talvez seja interessante mencionar duas ou três questões sobre o Don Carlos. Gostaria de partir de uma tese ousada, mas deveras intrigante, que José Villacañas apresenta em Tragedia y teodicea de la historia, obra na qual aprofunda a análise sobre as obras de Lessing e Schiller numa aproximação das reflexões dos dois autores com o destino do sujeito burguês moderno, sobretudo na conjuntura extraordinária da Revolução Francesa e as décadas seguintes. O autor sugere que Don Carlos seja uma obra ímpar, através da qual Schiller teria encontrado uma maneira de conciliar a necessidade de uma reflexão madura sobre os desdobramentos da Revolução Francesa, de forma antecipada, é bem verdade, e investigar o conjunto de questões mais frágeis da modernidade: a ruptura com um regime antigo e com sua principal característica, isto é, a deflagração do problema do exercício do poder e dos abusos da autoridade; o desabrochar a burguesia e a ambição infinita por saciar os desejos individuais; e, do ponto de vista teórico, a árdua tarefa de conciliar idealismo e revolução, sem deixar que o fanatismo tomasse conta do processo, mas sem inibir o correr das transformações. Para ele, os franceses não tinham o homem adequado para o momento oportuno, mas tão somente as condições necessárias para a eclosão da revolução. Os alemães, 63

certamente, não tinham a ocasião para uma grande mudança na sociedade, mas percebiam surgir na sua classe intelectual valores inestimáveis, capazes de pensar um homem adequado para a revolução. Polêmicas à parte, de fato seria um absurdo dizer que entre 1750 e 1830 a Alemanha não tenha fornecido um manancial de teorias e reflexões indispensáveis não somente para a época, mas para os séculos seguintes. Mas, para Villacañas, Schiller teria antecipado a experiência do fracasso dos ideais, sem mesmo ter avaliado a sua existência. Diz ele: “A revolução, mais do que o sintoma de poder, é sinal inequívoco da impotência geral” (VILLACAÑAS, 1993, 246). Resta a pergunta: Que estrago e a que estágio de inoperância intelectual nos levaria essa frase se fosse pronunciada por um intelectual de destaque e aceitação midiática em meio às ondas de manifestação dos últimos anos? O marques de Posa é uma figura extraordinária, mas que não consegue conciliar sua alma sonhadora com as exigências do mundo real. Seu fracasso acontece por transformar os ideais burgueses e, porque não dizer, modernos, em ideais estritamente humanos. Ele não sonha apenas com um Estado livre, mas com uma revolução cosmopolita. A impossibilidade de levar a cabo seu projeto acabando transformando num fanático. Ao olhar para o mundo contemporâneo não me assustaria perceber que ainda hoje somos assolados por uma generalização dessa mesma natureza, especialmente com essa ditadura da globalização, através da qual amalgamamos nossos valores como se tudo fosse universal e não houvesse um sem número de diferenças no mundo. O Estado absolutista do rei Felipe II, pai de Carlos, ultrapassa a esfera política quando, para garantir a paz entre a Casa de Habsburgo, que controlava o Sacro Imério Romano Germânico, e a Casa de Valois, o reino da França, e fim dos conflitos conhecidos como Guerras Italianas, em 1559. Elizabeth de Valois, noiva de Carlos, casa-se com o rei Felipe II, seu pai. O despotismo do rei atinge tanto a paixão do príncipe quando a ambição política do Marquês de Posa, que deposita todas as suas esperanças na figura de Carlos, planejando sua chegada ao poder. Contudo, o príncipe recua e frustra os planos maquiavélicos de Posa. Ambos, príncipe e Marquês, tem seus ideais oprimidos pelo poder do monarca. A maturidade das reflexões políticas de Schiller nas entrelinhas da peça chama a atenção não apenas por ser uma antecipação da maneira como a Revolução Francesa eclodiu e de seus desdobramentos na vida política parisiense, mas pela desconfiança e certo pessimismo em relação aos valores que estavam sendo ali defendidos. É claro que 64

ele sempre desejou os mais altos valores para a humanidade, e prova disso é seu trabalho como poeta e dramaturgo. A breve incursão na filosofia, com alguma chance, intercedeu mais em seus trabalhos teóricos do que na sua visão de mundo. Desejar para o homem a liberdade e conseguir acreditar que através de arte seja possível fornecer as condições adequadas para que tanto a liberdade quanto os demais valores que constituíam o alicerce da modernidade está longe de ser uma postura pessimista. Contudo, ainda que entusiasmado com as primeiras notícias da revolução, ele teve, entre seus pares, a reação menos acalorada. Parece haver uma preocupação com um equilíbrio muito grande, a ponto de fazê-lo frear parte de seu entusiasmo para evitar uma idealização precoce ou um arrebatamento cego diante das conquistas e das propostas modernas. Portanto, a influência que Schiller recebe de Lessing se concentra majoritariamente através das suas obras dramáticas, da Dramaturgia de Hamburgo e das análises acerca da poesia e da pintura no Laocoonte. Evidente que tanto a composição das personagens burguesas e da teoria que privilegia a ação trágica e o efeito sobre os espectadores são fundamentais para maneira como ele vai desenvolver sua própria teoria da tragédia. Mas o que ultrapassa o legado deixado é também a postura de um homem voltado para a cultura nacional, preocupado com a formação de seu povo e do vínculo inexorável da arte com o seu tempo. A figura de Lessing como homem engajado que pensa o teatro como força inerente ao progresso de uma nação e que luta pela emancipação dos alemães é, de certa forma, exemplar. Por isso, Anatol Rosenfeld diz que a Dramaturgia (...) “é obra de um homem comprometido com determinada política cultural; homem que, através da crítica literária, exercida ainda assim em elevado nível, se tornou pedagogo nacional, contribuindo literalmente para lançar as bases de uma grande literatura nacional num país que ainda sofria as consequências devastadoras da Guerra dos Trinta Anos”. (LESSING, 1964, 17) O tema da formação da cultura alemã aparece para Lessing como, em certa medida, uma oposição à cultura francesa. Através das análises das peças de Corneille e Racine, devidamente registradas na Dramaturgia de Hamburgo, temos acesso à maneira como ele enxerga os valores da cultura burguesa francesa, pois estes estariam muito bem apresentados pelas grandes obras do teatro clássico francês. Vale à pena lembrar que, embora o problema se encontre em todo o teatro francês, as críticas nominais se direcionam majoritariamente a Corneille. O nome de Racine aparece raras vezes na Dramaturgia, quase todas elas atrelado ao de seu maior adversário. 65

Em primeiro lugar, a primeira tentativa de criar um teatro alemão permanente, de Gottsched, é rechaçada por Lessing em função da submissão ao modelo francês. Nem mesmo o mérito de ter buscado estabilizar uma companhia, junto com a atriz Neuber, é reconhecido por Lessing tamanha a sua aversão a tudo que viesse de Paris, à exceção de Diderot. Isso mostra, entre outras coisas, que o ataque aos franceses não era apenas fruto de uma questão nacional, e sim, um problema de forma e conteúdo. No primeiro caso, o privilégio da forma, do cenário e até do estabelecimento em definitivo do estilo declamatório não o convenceram da qualidade das apresentações; no segundo, era notório que o conteúdo do teatro francês simplesmente não se encaixava com os anseios e demandas do ainda tímido espectador alemão. Elencar esses elementos para tentar entender de que forma essa defesa do teatro alemão pode ter influenciado Schiller pode não ser uma tarefa das mais simples, mas pode preencher algumas lacunas deixadas no que diz respeito aos seus interesses sobre a formação da burguesia e da caracterização do sujeito burguês.

3.3 Sobre o Laocoonte

Ainda que o grupo escultural Laocoonte tenha sido representativo para tantos pensadores da época, o que se comprova dada a amplitude das reflexões sobre a escultura e também pela diferença entre as interpretações que ela permitiu, de Winckelmann a Lessing, para Schiller ela parece ter uma importância diferente, pois há uma distância razoável entre a leitura que ele faz ainda ligado à visão de Winckelmann, e sua posterior interpretação. Tais diferenças explicam, por exemplo, as reflexões sobre o sublime, a influência de Kant e a crítica aos revolucionários franceses, além das ideias expostas no ensaio Sobre graça e dignidade. A passagem abaixo parece indicar o sentido dessa mudança: Schiller, por sua vez, citou não só a estátua, mas também a narração que Virgílio faz da história de Laocoonte em “Acerca do patético” (1801) como exemplo do sublime, conceito que constitui a base de suas considerações teóricas sobre a tragédia. Desse modo, ele remete diretamente a uma indicação de Lessing, que chegara a identificar um “traço sublime” no grito do sacerdote troiano representado pelo poeta latino. Mas, quando volta ao mesmo exemplo, Schiller se refere a uma concepção diferente do sublime, baseada na filosofia de Kant, fazendo como que uma releitura da referência ao Laocoonte como exemplo para a reflexão estética. (SUSSEKIND, 2005, 58)

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Na sua primeira descrição do Laocoonte, Schiller segue Winckelmann. O fato é que o sacerdote não pode mais encarar o ideal de serenidade classicista, e sim, o ideal de moralidade kantiano. O sofrimento, presente ainda na concepção trágica dos gregos, deixa de ser uma exigência para a existência vigorosa do humano, ou uma condição fisiológica para a obtenção de uma vida plena e feliz como clama o corifeu no final apoteótico e pedagógico do Édipo rei, de Sófocles:

Vede bem, habitantes de Tebas, meus concidadãos! Este é Édipo, decifrador dos enigmas famosos; ele foi um senhor poderoso e por certo o invejastes em seus dias passados de prosperidade invulgar. Em que abismos de imensa desdita ele agora caiu! Sendo assim, até o dia fatal de cerrarmos os olhos não devemos dizer que um mortal foi feliz de verdade antes dele cruzar as fronteiras da vida inconstante sem jamais ter provado o sabor de qualquer sofrimento! (SÓFOCLES, 2009, 97).

A descoberta final de quem é Édipo responde à pergunta que dá início à tragédia. Anunciada por ele, em alto e bom som, a intenção de buscar incessantemente a si mesmo, admitindo, por um lado, desconhecer a si próprio, e por outro, um apetite infinito pela verdade, exibe o sofrimento como condição inexorável para a realização da vida humana. Longe de ser uma palavra definitiva sobre a natureza do sofrimento para a humanidade, esse final provoca e abre espaço para pensarmos quão difícil é refletir sobre a vulnerabilidade do humano, condenado à dor e a perecer. Sofrer, afinal, está mais próximo da fraqueza ou da fortaleza do homem? Já que está à mesma distância do vício e da virtude, seria digno de censura ou de louvor? Dessa forma, ele poderia passar de condição natural da humanidade para um requisito essencialmente racional, pois o sublime atende agora mais a uma condição da razão do que a fatalidade da natureza que não pode ser refutada em momento algum. Abre-se, neste momento, outra possibilidade para pensar o que reverbera do grito do sacerdote troiano, que, mesmo congelado, atravessa o tempo. Quanto se pode ouvir das palavras de Sófocles no grito desmesurado de Laocoonte? Em que medida os dois estão revelando a mesma dor, o mesmo pathos? Enquanto Winckelmann, ao descrever uma escultura, identifica o sofrimento com a graça, Schiller refuta com veemência por considerar que a observação não diferencia graça de dignidade. Quando uma figura representa um movimento gracioso, trata-se somente de uma ação voluntária, realizada de modo agradável; e quando a figura mostra a resistência ao sofrimento, trata-se de uma postura de dignidade; firmeza em lugar da 67

leveza. O sacerdote agora não se rende à natureza brutal do sofrimento humano, mas subjuga e supera os limites da sensibilidade pela razão soberana, como se o ideal moral kantiano estivesse escondido de forma obscura tanto na escultura quanto no pensamento dos classicistas, e que agora poderia ser revelado com a distinção entre graça e dignidade da reflexão de Schiller, corrigindo a imprecisão de Winckelmann. É interessante notar que há certa reincidência no seu comportamento em relação às suas principais influências e heranças tanto no campo teórico quanto prático. Da mesma forma como, mesmo muito próximo, admirando e respeitando com muita contundência a figura e os trabalhos de Goethe, ele nunca deixou de seguir seu próprio caminho, Schiller se comporta em relação a Winckelmann, Lessing e, posteriormente, Kant. Sobre este último, a partir de 1790 começam suas leituras de Kant, cujas reflexões sobre o juízo do gosto, a beleza e o sublime influenciariam muito a sua própria composição. Mas cuidemos, por hora, da herança mais antiga. Frederick Beiser, em Schiller as philosopher, defende a ideia de que, mesmo na fase kantiana, durante a elaboração de Sobre graça e dignidade, em 1793, Schiller retoma as teses de Winckelmann. Diz ele “talvez a mais importante fonte de pesquisa para a o tratamento de Schiller acerca dos termos graça e dignidade em Anmut und Würde seja Winckelmann” (BEISER, 2005, 90). Essa retomada se daria em dois sentidos: primeiro, assumindo a postura do autor, na definição da ideia de graça como uma característica indistinguível do auge arte grega; e segundo, criticando a confusão de ideias que ele teria feito ao confundir ambas numa mesma só. Schiller concorda com a definição de graça como uma qualidade pessoal e voluntária, perceptível através de uma ação humana. Por conseguinte, o conceito é alçado para caracterizar uma representação plástica na medida em que imita uma ação humana. Além disso, em relação à beleza, soma-se o fato de que a graça é adquirida através da educação e da reflexão, enquanto a beleza se configura essencialmente como um atributo físico. Mas a concordância não se mantém quando os termos graça e dignidade vêm à tona. A sua segunda descrição do grupo escultural, presente no artigo “Acerca do patético”, publicado com esse título apenas em 1801, mas elaborado no mesmo período do ensaio Sobre graça e dignidade, em 1793, anuncia a desconfiança que permite uma interpretação, digamos, kantiana, do Laocoonte, quando diz que “enquanto não nos convencerem de que a serenidade da alma não é um efeito da insensibilidade, jamais saberemos se ela é um efeito de sua força moral” (SCHILLER, 1991, p.114). Mais adiante, ao elogiar a atitude dos gregos em desposar dos “encantos da arte” e da 68

“dignidade da sabedoria” sem tornar-se vítima desses elementos, Schiller critica com veemência o teatro francês, por entender que os autores franceses privilegiavam a dignidade diante da humanidade, pois “nem no mais violento sofrimento jamais os reis, as princesas e os heróis de um Corneille e de um Voltaire esquecem a sua categoria, e mil vezes irão antes despir-se de sua humanidade que de sua dignidade. Assemelham-se aos reis e imperadores dos antigos livros de gravuras, que iam deitar-se com a coroa na cabeça” (SCHILLER, 1991, 115). Ainda comparando o espírito grego do moderno, ele diz: Os heróis são tão sensíveis aos sofrimentos todos da humanidade como qualquer pessoa, e o que os faz heróis é justamente o fato de sentirem o sofrimento intensa e intimamente, sem que este os subjugue. Amam a vida tão ardorosamente quanto nós outros, mas esse sentimento não os domina a ponto de não poderem sacrificá-la quando o exigem os deveres da honra e da humanidade. (1991, 116)

Salvos seus contemporâneos de espírito grego, a crítica aos franceses se estende amplamente à cultura moderna, para a qual, aproximando-se da filosofia de Kant, deseja não menos do que a liberdade frente à servidão. Podemos dizer, então, que mesmo após a leitura da Crítica da Faculdade do Juízo de Kant, em 1791, que mudaria radicalmente a interpretação que Schiller tem da tragédia e que ficou registrada em seus ensaios ao longo de quase uma década de investigação filosófica e, digamos, longe dos palcos, de alguma forma a herança de Winckelmann e Goethe ainda se fez presente. Um exemplo contundente dessa mistura de influências são as suas Cartas sobre a educação estética do homem. Ao mesmo tempo em que mostram um Schiller que abraça algumas teses fundamentais do projeto kantiano, deixam escapar ainda as influências dos anos que antecederam a esta nova fase. Na sexta carta, onde é recorrente a comparação entre antigos e modernos num esforço de discutir o limite dos avanços da humanidade e aparece certa defesa da fragmentação como caminho necessário, ele se refere aos gregos com profunda admiração: “A glória da formação e do refinamento, que fazemos valer, com direito, contra qualquer outra mera natureza, não pode nos servir contra a natureza grega, que desposou todos os encantos da arte e toda a dignidade da sabedoria sem tornar-se, como a nossa, vítima dos mesmos.” (SCHILLER, 2002, 35) Já que esse conjunto de cartas pode ser considerado sua obra prima no campo filosófico, não corrermos risco algum em afirmar que na plenitude destas reflexões se encontra a fusão de suas influências do Classicismo de Winckelmann e Goethe, bem como de Kant. 69

Winckelmann foi o fomentador da ideia de superação do espírito grego pelos alemães, e sua frase mais emblemática fez dessa ideologia o maior paradigma para a modernidade na Alemanha. A síntese de todo esse processo pode ser assim formulada: no momento em que os gregos apareciam aos olhares dos alemães como os maiores e melhores artistas e homens de todos os tempos, como ápice da humanidade, eles foram tomados como modelos de civilização e cultura. Trata-se de um momento de entusiasmo em relação aos ideais alemães, que promoveu uma busca incessante por um caminho através do qual os modernos pudessem transportar para o seu tempo o espírito helênico. Porém, de fato, isso só aconteceria com uma superação dos gregos pelos alemães e a contribuição da filosofia crítica de Kant foi o marco decisivo para esse movimento. Pois, somente refletindo criticamente – portanto, segundo bases racionais – sobre aquilo que o espírito grego produziu intuitivamente, os alemães conseguiriam elevar seu espírito diante da história da cultura ocidental e produzir arte de forma consciente, menos intuitiva e ingênua, cada vez mais aperfeiçoada. Surge então a necessidade de uma fusão entre reflexão crítica, isto é, filosofia, e criação artística, isto é, poesia. E coube a Schiller realizar o esforço de conduzir esse processo na passagem do século XVIII para o século XIX, desafio que ele mesmo reconheceu ser uma tarefa infinita. Como os grandes debates e as maiores polêmicas no campo da estética guardaram íntima relação com os embates em outros campos da filosofia e da ciência, além de muitas vezes se referiem a questões fundamentalmente ligadas à teologia, este campo de batalha teórica que se tornou o século XVIII trouxe à superfície nuances não apenas interessantes do ponto de vista de alguém curioso, mas também potencialmente relevantes para entendermos os caminhos tortuosos e os desvios porque passou o pensamento deste período. Contribuições relevantes para a filosofia do século seguinte, como a de Nietzsche, reforçam essa ideia de que a exposição desses laços foi muito fértil para o pensamento do século XX.

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4 CAPÍTULO 3 “NÃO NOS FALTA TANTA LUZ QUANTO CALOR, TANTA CULTURA FILOSÓFICA QUANTO ESTÉTICA”23

È muito comum observar que o olhar nostálgico sobre uma época, uma obra ou mesmo um lugar, tem uma potencial enorme para se consolidar como uma experiência negativa, pois cultivar o hábito de exaltar o passado pode provocar uma espécie de vida pautada apenas na memória, sem reflexão, questionamento ou vontade de se dedicar para e no tempo presente. Em geral, quanto mais distante for o passado e mais dispersa for a documentação ou o conjunto material de recordações daquela época, duas consequências polêmicas se formam: primeiro, o que houver de resíduo na memória se torna mais forte e legitimado, e , portanto, difícil de contestar; segundo, a ausência de elementos que auxiliem a reconstruir determinada história pode deslegitimá-la ou desqualificá-la como testemunho de seu tempo. Para que a experiência negativa se constitua, basta que tal sentimento provoque uma espécie de congelamento das práticas, inibindo um artista ou filósofo a se expor e submeter sua obra ao julgamento, sobretudo àquele que se assenta na supervalorização da Antiguidade, por exemplo. No caso de Schiller, o amor incondicional que ele demonstra sentir pelo humano e pela sua condição ímpar, revelaria ainda resquícios de uma lógica cristã, mesmo que seus efeitos maiores sejam desvinculados dessa forma de ver o mundo. Seu dilema, até certo ponto incômodo, está circunscrito no cenário que aponta para um Estado laico. Por isso, seria absurdo negar que a história da humanidade deve boa parte de suas conquistas à razão, melhor dizendo, que o uso da razão promoveu um sem número de benefícios, vantagens, aprendizado e que contribuiu de forma definitiva nos rumos tomados por nós. Sobretudo no ocidente, a razão é vista na maioria das vezes como a grande responsável pelo nosso desenvolvimento, bem como é de comum acordo que a razão instrumentalizada acostumou-nos a corrigir e evitar nossos problemas que tem origem na nossa natureza, a prevenir nossas enfermidades e a administrar e planejar o nosso futuro. No entanto, reconhecer tudo isso não significa fechar os olhos para o lado predatório da interferência da racionalidade na vida do homem. Schiller parece estar atento a isso, pois admite que, no que toca o nosso desenvolvimento intelectual, não há 23

Afirmação de Schiller em carta ao príncipe de 13 de julho de 1793, em SCHILLER, Friedrich. Cultura estética e liberdade. Organização e tradução de Ricardo Barbosa. São Paulo: Hedra, 2009, p.79-80.

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dúvidas de que o progresso foi enorme e que, se dependesse exclusivamente disso, a modernidade não enfrentaria os desafios que se apresentaram especialmente a partir do final do século XVIII. O conjunto da obra de Schiller nos leva a pensar que ele imagina ser possível recuperar o desenvolvimento de nossa sensibilidade, do nosso corpo e de nossos afetos, deixados à margem paulatinamente a cada século no mundo ocidental. Conceber um projeto de educação estética pareceu, na sua época, uma empreitada urgente, necessária e imprescindível para o futuro da humanidade. “Espero convencer-vos de que esta matéria é menos estranha à necessidade que ao gosto de nosso tempo, e mostrarei que para resolver na experiência o problema político é necessário caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade.” (SCHILLER, 2002, p.22). É com essas palavras, com igual segurança e confiança na legitimidade de seu desafio e na qualidade de suas ofertas que Schiller se aproxima do fim da segunda carta de A educação estética do homem, apontando para sua convicção no que diz respeito à relação entre a estética e a política, ou, em termos mais genéricos, entre a arte e a vida. É sabido que a aproximação entre educação e estética não é propriamente uma novidade promovida pelo homem moderno. Se entendermos a primeira como o resultado do interesse do homem pelo conhecimento e pela nossa insistente cultura de investigação científica, e a segunda, não restrita à denominação de Baumgarten enquanto ciência das sensações, mas em sua íntima relação com as incontáveis produções literárias, plásticas, sonoras e cênicas, teremos facilitado o movimento de encontrar ao longo da história da cultura ocidental alguns momentos emblemáticos de intensa aproximação entre a educação e a estética. E, ainda que seja uma ardilosa e temerária tarefa querer selecionar os momentos mais importantes desse encontro, considerando a trajetória que queremos imprimir nestas reflexões é imprescindível considerar que o primeiro momento é a Grécia antiga, do século V a.C., e o segundo momento é a Europa da segunda metade do século XVIII. Assim, tendo destacado esses dois períodos, justifica-se, por um lado, a preocupação em entender a relação entre a cultura grega e a moderna, capitaneada pelo Helenismo, e, por outro, questionar em que medida as novidades trazidas pelo homem moderno constituíram um distanciamento real dessas épocas, abrindo espaço para o surgimento de uma cultura diferente daquela. É nesse contexto que queremos falar de uma educação estética, forjada com base nos anseios modernos. A proposta de educar o corpo e ao mesmo tempo desenvolver as faculdades cognitivas, imaginando que esse seja um ideal de formação plena que pode 72

dar conta de todas as potencialidades do homem, evidentemente, não é nova. Ao que parece, os rumos da cultura ocidental nos levaram a um desprestígio da sensibilidade e dos sentidos, em detrimento de uma valorização sistemática e autoconfiante da razão, colocando o conhecimento no centro da vida humana. E não apenas o conhecimento, mas um determinado tipo de conhecimento que privilegia os procedimentos racionais e desqualifica a experimentação e os sentidos do processo cognitivo elevado. Portanto, é a partir da metade do século XVIII, quando se intensifica o debate em torno da concorrência da razão e da sensibilidade dentro das perspectivas de teoria do conhecimento na Europa, que cresce também o interesse por reavaliar o papel e a importância dos sentidos e da experiência para a formação do homem. O trabalho iniciado com Winckelmann ganha contornos mais elaborados e exibe uma configuração agora levemente mais complexa, tanto pela necessidade de se discutir os fundamentos para se defender outro papel para a arte na formação do homem, quanto pelo ingresso de outros pensadores nesta empreitada. Tal ingresso transformou-se num importante capítulo da filosofia alemã, em especial na estética. De Kant a Hegel, os alemães produziram uma quantidade significativa de obras consistentes e que trouxeram uma gama muito ampla de questões, que, tratadas com demasiada profundidade e competência, acabaram por exigir uma geração de intérpretes e comentadores, interessados em discutir, entender e divulgar essa grande contribuição. Sim, seus comentários a respeito da estética kantiana são elucidativos e relevantes para quem pretenda navegar por uma obra difícil como a Crítica da Faculdade do Juízo, que além de comentários esclarecedores, exige um fôlego incomum. Do mesmo modo, seu esforço por não resistir ao peso que os eventos históricos e a conjuntura política tem sobre o pensamento de uma época, de certa forma, o aproximam das convicções de Hegel. E não é só isso, pois o próprio Hegel não abre mão de reconhecer a importância de Schiller, quando na Estética, se refere a ele como alguém que se antecipou a pelo menos duas questões muito relevantes para a época: o impasse entre a sensibilidade e a racionalidade como legado da filosofia kantiana e a necessidade de se pensar em totalidade e conciliação. Este último, em especial, nos chama atenção também para uma possível aproximação com o movimento defendido por Nietzsche em seu primeiro grande texto, O nascimento da tragédia, de 1872.

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Enfim, embora seja razoável e haja argumentos suficientes 24 para colocar Schiller como um personagem importante da transição entre esses dois nomes consagrados pela história da filosofia, concordamos com a ideia de que há divergências suficientes para considerá-lo a partir de sua obra, e não como uma passagem, um mediador entre duas filosofias. Afinal, não é apenas Schiller que enfrentou a má sorte de pertencer a uma geração cujos limites vão desde a filosofia de Kant à de Hegel, e também Novalis se viu nesta situação. Além disso, há outra questão que nos move nesta direção: é notório que o texto filosófico traz junto de si certa complexidade, e que esta, somada às relações teóricas das mais variadas naturezas, em geral, deixa a leitura de uma obra filosófica árdua e lenta. Portanto, quando ocorre de entrar em contato com um texto de filosofia fluido, que consiga marcar o leitor não apenas pela complexidade e pelo rigor dos apontamentos, mas sim, pelo encantamento e atração, salta aos olhos e pode causar certo estranhamento. É imprescindível dizer que isso em nada tira a qualidade e o valor de um texto, pois, caso fosse, teríamos que argumentar contra a exuberância de filósofos como Platão e Montaigne, por exemplo. O encantamento no arranjo das palavras e na construção de um texto é tão importante para uma cultura que, muitas vezes influenciados por eles, exaltamos e cultuamos nossos grandes escritores e nos resignamos e nos tornamos amargos quando o passar das décadas não nos oferece outro gênio da pena. Afinal, quanto se ressentem espanhóis depois de Cervantes e portugueses depois de Camões e Pessoa? “O mérito de um texto bem escrito é, sobretudo, ético: liberta o leitor” (KEHL, apud FREUD, 2011, 9). Essa afirmação extremamente feliz da psicanalista atinge o centro do problema: ainda que a escrita de um texto possa ser enquadrada como uma questão de estilo, o que não concordamos, ou como questão estética ligada aos gêneros literários, o que tampouco esgota a discussão, seu mérito alcança ainda uma terceira margem, a saber, a ética. Admitindo que essas três vias – a estética, genérica e a ética – não se separam definitivamente, assumimos o compromisso de conduzir a questão maior de nossa reflexão, a educação estética, atentos aos problemas oriundos da confluência dessas três vias. Duas abordagens, não excludentes, nos parecem 24

Anatol Rosenfeld, responsável em certa medida por introduzir pela primeira vez a figura de Schiller no Brasil, em especial, evidentemente, no campo da Estética e da filosofia da arte, é um dos defensores dessa tese da mediação entre as Estéticas de Kant e Hegel. Por outro lado, Márcio Suzuki, responsável pela tradução do ensaio Poesia ingênua e sentimental, se recusa a limitá-lo a este papel. Para maiores detalhes deste assunto, ver o artigo “Atualidade de Schiller”, de Ricardo Terra, em Passagens: estudos sobre a filosofia de Kant no Brasil, publicado em 2003.

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interessantes nesse momento: primeiro, a respeito da reflexão de Schiller sobre a modernidade, e segundo, a análise de uma abordagem marginal da questão da escrita de um texto de caráter filosófico. Aproximemo-nos da primeira questão: elegemos como ponto de partida uma reflexão sobre o Don Carlos, de Schiller. Se quisermos pensar que esta obra guarde alguma relação, ainda que ficcional, com a Revolução Francesa, e isto é possível, uma forma interessante de fazer essa aproximação é a maneira como a interferência do artifício para o sucesso das pretensões, tanto burguesas revolucionárias como a de Posa pelo poder. Os valores legítimos e naturais de liberdade, igualdade e fraternidade não são distribuídos gratuitamente e em acordo com algum ideal de justiça, se é que isso poderia ser questionado. Construir uma sociedade amparada no desejo de realização desses valores de forma natural se mostrou improvável, e o preço a se pagar pela busca desta realização, no fundo, nos devolveu à antinomia natureza e moralidade. A natureza, como pensava Goethe, já não habita num horizonte observável. Por mais nobres que sejam os valores norteadores da cultura moderna burguesa, eles não correspondem à maneira de conduzir politicamente o poder que outrora estava nas mãos do clero e da monarquia, que sustentavam a impressão de que o tempo e a história eram categorias imutáveis. A lucidez de Schiller parece ser a de perceber que o conteúdo da imaginação humana e a sua capacidade de, teoricamente, dar os saltos mais altos para a humanidade, não implica necessariamente que a mesma razão seria capaz de conduzir a mesma humanidade à realização plena de seus ideais. Logo, a contradição entre teoria e prática mostra-se irredutível e irremediável.

4.1 Schiller e a Revolução Francesa

No início dos anos 90, o cineasta polonês Krysztof Kieslowski filmou a célebre trilogia das cores – Bleu, Blanc e Rouge, que em português recebeu, respectivamente, os nomes A liberdade é azul, A igualdade é branca e A fraternidade é vermelha. Sem me prolongar no debate em torno da relação entre os três filmes – de notável sensibilidade e delicadeza – e o acontecimento histórico ao qual seus títulos fazem referência – a Revolução Francesa – reservo-me ao direito de apenas ressaltar uma espécie de lamento que atravessa os filmes e que possa, talvez, ser uma forma de enxergar os vínculos longínquos entres os irrevogáveis acontecimentos do final do século XVIII e o conjunto 75

de valores e o modo se vida deles recorrente que se instaurou na cultura europeia no final do século XX. Pois bem: é no rastro desse lamento de Kieslowski que eu gostaria de apontar algumas observações sobre o viés político da posição de Friedrich Schiller sobre a Revolução Francesa, em especial, a um duplo aspecto: primeiro, à sua reticência em relação à eclosão da revolução e nas suas consequências imediatas para o mundo intelectual europeu; e segundo, para sua declarada defesa de uma educação estética como elemento indispensável para a “verdadeira” revolução. Em julho de 1789, quando ocorreu a “Queda da Bastilha”, um marco inaugural da Revolução Francesa, Friedrich Schiller tinha então 29 anos. É interessante frisar que, não obstante este evento seja uma imagem ímpar do movimento, a noite de 4 de agosto do mesmo ano implica uma mudança mais filosófica, por assim dizer, da Revolução. François Furet, no verbete “Noite de 4 de agosto” do Dicionário crítico da Revolução Francesa, revela a dimensão das decisões tomadas no debate daquela noite de terçafeira: A noite de terça-feira de 4 de agosto de 1789 é a data mais famosa de nossa história parlamentar; marca o momento em que uma ordem jurídica e social moldada pelos séculos, co mposta por uma hierarquia de ordens, de corpos e de comunidades separadas, e definidas por privilégios, de alguma forma desapareceu para dar lugar a um universo social repensado como um conjunto de indivíduos livre e iguais, submetidos cada um à autoridade universal da lei. (1989, 128)

O debate seguiu ainda por quase uma semana com a mesma intensidade, até o dia 11 de agosto, quando finalmente as pedras fundadoras da revolução, sobretudo do ponto de vista jurídico e civil, foram apresentadas. Ainda que faltasse a legitimação e a instituição do poder do povo – algo que, com certo rigor, podemos dizer que ainda está por ser feito – as decisões mais duradouras da França moderna estavam tomadas, afinal, “destruíram completamente a sociedade aristocrática e sua estrutura de dependências e privilégios. Puseram em seu lugar o indivíduo moderno, autônomo e livre em tudo aquilo que a lei não proibia” (FURET; OZOUF, 1989, 133). É verdade que, apesar de ainda ser jovem, já tinha publicado boa parte de sua obra. No teatro, de Os bandidos, seu primeiro texto e que teve uma repercussão grandiosa, até Don Carlos, uma de suas peças mais complexas e que exigiu muito empenho para ser finalizada; além de ao menos três de duas mais famosas poesias: “Os artistas”, “Os deuses da Grécia” e “Ode à alegria”. Contudo, do que se pode considerar como sua produção filosófica, a maioria dos ensaios e cartas ainda estava por vir. Entre os anos de 1793 e 1798, Schiller intensifica suas leituras de filosofia, em especial das 76

obras críticas de Kant25, e escreve suas reflexões sobre estética, cujo ponto culminante é o conjunto de cartas que ele enviou ao príncipe dinamarquês que financiava seu trabalho. Nessas vinte e seis cartas podemos encontrar suas principais ideias na sua forma mais bem elaborada, tanto do ponto de vista do estilo, da escritura, quanto do ponto de vista do conteúdo. Afinal, elas reúnem desde sua admiração pelos gregos até a apologia de uma formação cultural fundamentada na estética, para a qual o desenvolvimento artístico e a qualificação do público seriam etapas imprescindíveis. Era preciso, enfim, criar meios para que o homem pudesse reeducar sua sensibilidade tendo como norte os valores mais elevados que a humanidade foi capaz de pensar. Por isso trouxemos para a conversa o cineasta polonês, entendendo que ele apresenta muito bem esta imagem-questão. Em “Como orientar-se no pensamento”, pequeno texto de 1786, Kant sugere a importância de se discutir os conceitos de fé e razão, apresentando o conceito de fé racional, a fim de garantir o uso de ambas as esferas do pensamento e a legitimidade de cada uma delas em concordância com seus objetos. Não foi a primeira nem última vez que o problema do panteísmo ocupou a mesa dos filósofos, pois os encontros e desencontros entre fé e razão parecem inesgotáveis para a filosofia. É interessante ressaltar o argumento de Kant que defende a legitimidade da razão especulativa de pensar qualquer ideia mesmo que ela não tenha um correlato existente, ou seja, independente de sua realidade concreta, pois a razão teórica, por tender ao conhecimento e ser teleológica, pode e deve muito bem empenhar-se em pensar ideias que possam fundamentar o próprio pensamento, e somente ele. Para Kant, em linhas gerais, esse argumento poderia ser usado para sustentar a legitimidade da Aufklärung, e do Iluminismo, mesmo após a observação da degeneração da Revolução Francesa. Contudo, para Schiller, ainda que isto seja defensável para a razão teórica, algo precisaria ainda ser feito. A incursão de Schiller pela filosofia é assumidamente uma influência de Kant, a ponto de, nas cartas remetidas ao seu mecenas, o príncipe, ele não medir palavras para ressaltar a importância e o quão promissora seria a interferência de terceira crítica de Kant no campo da Estética e da arte, ousando dizer que o filósofo teria fornecido os

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É bem provável que o filósofo que mais influenciou as reflexões de Schiller tenha sido Kant. Além disso, não se trata de uma influência pontual, de modo que possa ser abordada neste trabalho e um ou dois momentos específicos. Por isso, optamos por não pontuar a relação de Schiller com Kant e analisá-la em separado, mas recorrer a ela e mencioná-la em todos os momentos em que isso se fizer necessário.

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fundamentos necessários para se criar uma nova teoria da arte. 26 É relevante a passagem que citamos aqui: “Como de modo algum preciso vos dizer, meu príncipe, em sua crítica da faculdade do juízo estética, já começou a aplicar os princípios da filosofia crítica ao gosto e a preparar os fundamentos para uma nova teoria da arte onde estes não estavam dados.” (SCHILLER, 2009, 56). No ambiente acadêmico é de comum acordo que esta obra de Kant é um divisor de águas tanto no que diz respeito às especulações e teorias estéticas posteriores, quanto no que diz respeito à criação das possibilidades de se pensar a autonomia do artista e da própria obra quando se avalia o processo criativo. Porém, ainda que hoje se possa falar disso com mais segurança, a transformação no processo criativo de Schiller anunciava, por si só, já na virada do século XVIII para o XIX, o quão potente e promissora foi a intervenção de Kant no âmbito da estética. O incansável trabalho de Schiller como pesquisador e sua entrega às atividades literárias sempre foram uma marca de sua atividade enquanto intelectual. Se, para compor seus dramas históricos e as histórias de guerra ele precisou mergulhar nas referências históricas para evitar tropeços e equívocos, nas investigações filosóficas ele manteve o ritmo, a intensidade e a maneira de trabalhar. As preleções de Schiller em Jena, durante o inverno de 1792 e 1793, são resultado de seu interesse e dedicação nas leituras da obra de Kant, e demonstram, ainda, sua intimidade com o posicionamento de alguns filósofos acerca do tema da beleza. A terceira crítica foi seu pontapé inicial, através da qual ele pode acessar os fundamentos epistemológicos da primeira crítica e os postulados práticos da segunda, movimento decisivo para a continuidade de seu projeto filosófico. Mas, antes disso, ele ainda teria outras experiências bastante significativas. Sua trajetória como estudante de medicina na Academia Militar em Stuttgart não foi das mais encantadoras. Karl Eugen, o duque responsável pela formação dos jovens, soube apresentar com muita competência para os estudantes o valor e o peso da autoridade. Leituras foram proibidas. Alguns jovens presos em celas afastadas por mau comportamento, diga-se de passagem, porque dedicavam suas horas vagas à leitura de Klopstock, Goethe e Shakespeare. A mão de ferro não inibiu Schiller de escrever Os bandidos, seu primeiro texto que teve excelente repercussão e que o inseriu espontaneamente entre os precursores do Sturm und Drang, movimento literário que contava também com Goethe e Herder, e que defendia a liberdade, o entusiasmo, as 26

Ver: “O belo como imperativo”, introdução de Márcio Suzuki à edição brasileira de A educação estética do homem, também por ele traduzida, em 2002.

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paixões e o arrebatamento, além de contestar as formas já consagradas de escrita, a rigidez dos gêneros poéticos e a necessidade de dar voz à juventude que se aproximava dos valores burgueses. Nessa espécie de delírio poético, também surgiu o incomparável romance epistolar de Goethe: Os sofrimentos do jovem Werther. Desde cedo acostumado a enfrentar a ira e a arbitrariedade de quem tinha o uso do poder, Schiller permaneceu sempre atento aos riscos do excesso de poder dado a um único homem, bem como aos prejuízos resultantes dos desmandos daqueles que estavam no poder. Com Don Carlos, finalizada em 1788, ele deixa à flor da pele sua posição em relação à ambição pelo poder, às ligações e interferências da política da vida entre os homens, e o lugar das paixões na sua relação com a política. Quando eclode a Revolução Francesa, não era de se espantar que a maioria dos intelectuais e das cortes alemãs fizessem festa. Enquanto árvores foram plantadas e odes entoadas em homenagem aos revolucionários, que abriam as portas para que toda a Europa se empenhasse em, como eles, derrubar o velho regime, separar o Estado da Igreja e dar boas vindas à burguesia nascente para que ocupasse o lugar mais alto no poder da sociedade. Schiller, porém, hesita. Temerário, não se empolga demais e não faz da recente conquista vizinha uma vitória de “todos”. A título de provocação, seria possível até questionar se tal comportamento não seria receio de que as vicissitudes de seu Don Carlos ganhassem as ruas depois que a guilhotina atravessou o pescoço de Luís XVI. O que parece estar fora de dúvida é que, a truculência que marcou os primeiros anos da Revolução, tornou-se prática recorrente durante o período do terror e que, com isso, as grandes ideais representados até hoje pelas cores da bandeira francesa não passassem mesmo de ideais. A mesma atenção que deu ao seu trabalho como dramaturgo, e o mesmo zelo com que procurava não separar, na medida do possível, teoria e prática, dava também ao seu olhar sobre a condição do homem e da vida moderna. Como admirador dos gregos, não se furtou em momento algum a exaltar a dignidade e a nobreza dos valores gregos em comparação com os europeus modernos. E, mais ainda, como homem de seu tempo, exigia que esse mesmo rigor pautasse as atividades do homem do século XVIII, sobretudo esse de “inspiração francesa”. Se os homens não estavam preparados para passar pela experiência e viver a vida de acordo com os seus ideais, por mais nobres que fossem estes, não haveria argumento mais eloquente para defender a necessidade de uma reforma da formação cultural. Talvez em nenhum outro momento tivesse ficado tão nítido que o desenvolvimento intelectual, capitaneado pela ciência e pela filosofia 79

através dos grandes pensadores, não poderia agir sozinho. O homem precisaria ter a seu dispor os sentimentos e os afetos necessários para poder fazer da vida política um amálgama da vida intelectual, isto é, trazer as ideias da esfera da especulação para o campo da ação. Talvez os gregos tenham experimentado uma vida plena e exuberante durante algumas décadas entre os séculos V e IV, e esta parece ser uma hipótese bastante razoável, pois não foram somente os valores de justiça, democracia, felicidade e conhecimento que admiramos deles. Nas artes, em especial na literatura e na escultura, os gregos foram nossa maior inspiração durante um período que parecia não ter fim, e entre os alemães da segunda metade do século XVIII essa influência foi ainda mais forte. O chamado Helenismo foi certamente o movimento que procurou interpretar e extrair dessa Grécia exemplar aquilo que poderia ser digerido por uma cultura que pretendeu, muitos séculos depois, tornar-se tão ímpar como a dos tempos de Platão e Sófocles. E é por isso que, de Goethe a Nietzsche, toda a cultura germânica deste ínterim teve naquele povo sua fonte de inspiração e admiração, seu paradigma de formação cultural. Se foi na filosofia de Platão que encontramos a aproximação das ideias de verdadeiro, justo e belo, abrindo possibilidade para se discutir um amálgama entre o conhecimento, a política e a arte, muito tempo depois, é nas teses ousadas de Winckelmann que vemos os alemães transportarem esta visão de mundo grega, essencialmente platônica, para sua vida. As duas ideias fortes defendidas por Winckelmann indicavam um caminho bem traçado que poderia servir de guia para uma nova cultura, mesmo que todas as críticas à suas hipóteses sobre a história da arte possam ser contestadas hoje em dia. Isto porque, por um lado, ele estabeleceu a Grécia antiga como ponto alto da produção cultural de nossa história; e, por outro lado, ele procurou no modelo grego o exemplo a ser seguido pelos alemães. Contudo, não se tratava de copiar os gregos, mas de tomá-los como modelos para produzir algo de original, genuinamente alemão. A consequência mais interessante das ideias de Winckelmann é que, concordando ou não com ele, os intelectuais alemães que vieram depois se inclinariam por um entre dois caminhos: ou bem sustentavam suas ideias, afirmando a Grécia como modelo e que seria possível fazer arte como eles; ou bem criticavam os fundamentos de suas ideias, admitindo que jamais alguém poderia ser comparável à grandiosidade e genialidade dos gregos, pertencentes a uma ocasião que não poderá se repetir. Afinal, é 80

assim que podemos entender as posições de Goethe e Nietzsche, respectivamente. Além disso, o que resta de um extremo ao outro, é o fato de que a questão central passa a ser a formação cultural da humanidade, com destaque para o papel indispensável da arte neste processo. 27 Parece surgir em caráter de urgência a necessidade de se debater a relação entre filosofia e política, reconhecendo a importância que o desenvolvimento cultural da humanidade tem não apenas para o nosso passado, mas, sobretudo, como nos dias de hoje o nosso desenvolvimento estético e sensitivo ainda caminha a passos lentos se comparado aos avanços da ciência. O perigo dessa discrepância ronda a política contemporânea, pois os argumentos mais levianos ainda servem para legitimar as ações militares e políticas mais covardes e desleais com a humanidade, revelando quanto ainda estamos distantes daqueles ideais em formas de cor. O lamento de Kieslowski parece não ter fim. É a partir da constatação desta contradição (entre teoria e prática), no caso de Schiller, anterior à consumação dos fatos na capital francesa, que a reflexão empreendida pelo autor através das peças transborda os limites reguladores da literatura e ganha espaço na política e na antropologia. Se, por um lado, a ambição característica do Marques de Posa, em Don Carlos, é a metáfora de um sujeito burguês defensor de ideais humanitários que não combinam com seus interesses privados, por outro lado o desfecho trágico da trama antecipa o fracasso político de uma sociedade que pretenda ter êxito defendendo a todo e qualquer custo esses valores modernos. Contudo, talvez seja difícil afirmar que a arte possa reconstruir a realidade. Ou seja, em termos gerais, ela não pode substituir a realidade mesma, como se fosse natureza. Por mais que através dela sejam introduzidos ideais no homem, isto é, que ele possa imaginar e incluir os mais altos valores em seus projetos, não há garantia alguma de que esses ideais se tornem naturais. Poder pensá-los não implica em naturalizá-los, de modo que eles permanecem, sobretudo se impulsionados pela arte, sendo artificiais. Portanto, se os motivos morais não são naturais no homem, eles só podem ser introduzidos mecanicamente, e não organicamente. Parece ser nesse sentido que Schiller 27

Por isso, sem ignorar a importância dos textos de Schiller sobre teoria estética produzidos também nesta época, sobre o belo e o sublime, por exemplo, nos aproximaremos em especial das cartas de A educação estética do homem, cotejando sua dimensão estética e artística e os vínculos políticos que deságuam, sobretudo, em dois aspectos: primeiro no que diz respeito ao papel da arte na formação da humanidade, e segundo, em que medida podemos pensar que as cartas dialogam com os descaminhos porque passa a Revolução Francesa. Na medida em que a teoria estética for imprescindível, não deixaremos de trazê-la para a discussão.

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realiza um movimento aparentemente ambíguo em relação à filosofia de Kant. A filosofia moral não pode ser forjada no homem através da ciência, ainda que nela possa residir um último esforço para a concretização do projeto moderno. Então, quem poderia fazê-lo? Em reposta à pergunta, Schiller lança mão do teatro como último recurso possível para tornar aquela árida (e com grande potencial de rejeição popular) moral kantiana, como podemos observar, por exemplo, em Maria Stuart.

4.2 O problema da escrita: prelúdio para a educação estética.

O descompasso de Schiller em relação ao seu tempo histórico, ou mais objetivamente em relação à maneira como os intelectuais em geral pensavam a respeito do papel da arte para a formação da cultura fica nítido num episódio marcado pela diferença em relação a um de seus pares. A ocorrência que pode ser tomada quase como uma anedota, muito embora não se distancie demais de como as divergências de pensamento e o abismo entre convicções estabelecidas no universo acadêmico ainda hoje ocupam boa parte da economia profissional e das relações pessoais nas universidades. Guardadas as devidas proporções, se todos os embates intelectuais hoje tivessem como medida a disputa28 travada entre Schiller e Fichte, pelo menos os arquivos futuros nos guardariam um acervo admirável de dedicação intelectual e manejo da língua materna. Vejamos, pois, o que podemos aprender com esta pequena digressão sobre o mérito do texto filosófico e sua dimensão ético-estética. Por ocasião da recusa em publicar o artigo de Fichte intitulado “Sobre espírito e letra na filosofia” na revista Die Horen, em 24 de junho de 1795, Schiller escreve uma carta expondo os motivos pelos quais seu artigo fora recusado. As expectativas de publicar um texto que contribuísse com o debate sobre o assunto murcharam após a leitura de um texto ‘duro, rígido e excêntrico’ – adjetivos colocados pelo próprio Schiller – que alega ainda, em seu comentário, não compreender as razões que levaram o amigo a compor o texto, pois sente a “falta de determinação e clareza que lhe são 28

Esse debate entre os dois foi travado, sobretudo, através de uma sequência de cartas durante o ano de 1795. Diante de uma controvérsia que não se resolveu, Schiller preferiu encerrar o assunto, evitando que o desgaste se prolongasse ainda mais, já que ambos não sinalizavam concessão alguma: “Somos duas naturezas totalmente diferentes (...). A única forma de nos associarmos seria adoptar em conjunto a máxima da razão sensata , que ensina que as coisas impossíveis de equiparar mutuamente também não têm de ser colocadas em oposição.” (SCHILLER, 1994, p.159.)

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habitualmente próprias”. O editor da revista entendeu que o artigo de Fichte seria uma réplica às (suas) cartas sobre a educação estética do homem, contestando o estilo epistolar de sua composição, e em resposta à suposta crítica, publicou o artigo “Dos limites necessários do belo particularmente na apresentação de verdades filosóficas”29 (1795), no qual ele inaugura a discussão acerca das implicações filosóficas originadas a partir da forma escolhida para apresentar ideias. A maneira de expor o pensamento configura um problema estritamente filosófico, na medida em que a forma da composição torna-se determinante para a compreensão do texto, a apreensão das ideias apresentadas e, finalmente e não menos importante, o interesse que o prazer da leitura poderia provocar no leitor. É nesse sentido que podemos destacar a chamada educação estética como pertencente a um projeto específico, o saber, o de pensar as necessidades, os limites e a urgência de uma cultura que privilegia a educação das sensibilidades e da imaginação, e que traga a arte uma vez mais para protagonizar a formação cultural da humanidade. A princípio, a discussão se estabelece em termos normativos, no qual chama a atenção para a problemática pretensão à verdade nos modos de exposição de ideias nos modelos

científico,

poético,

e

jornalístico

ou

popular



no

sentido

da

Populärphilosophie. Essa mesma questão, somados outros fatores relacionados ao esforço de filósofos como Reinhold, Fichte e Kant, exibe o seguinte pano de fundo: ao passo que, em meados do século XVIII, a religião já não dispunha mais de todo o prestígio político e ideológico de outros tempos; considerando também o significativo status e credibilidade atribuídos à ciência, com a expectativa de uma valorização ainda maior; e percebendo as investidas dos filósofos germânicos no intuito de elevar a filosofia ao patamar da ciência moderna, podemos considerar que as diferentes contribuições e investigações no campo da filosofia tinham, de fato, a mesma referência ou problema central. Isto é: diante da hegemonia crescente da ciência e de seu reconhecido valor na sociedade, tornou-se um desafio para a filosofia equiparar-se qualitativamente a esta, assumindo como modelo o seu rigor, o caráter sistemático e as suas questões. É a partir desde cenário que entendemos a polêmica entre Schiller e 29

Schiller escreveu dois artigos complementares na mesma época. O primeiro chama-se “Dos limites necessários do belo particularmente na apresentação de verdades filosóficas”, e o segundo “Sobre a utilidade moral dos costumes estéticos”, que posteriormente foram publicados como um só texto, intitulado “Sobre os limites necessários no uso de formas belas”, em Escritos menores em prosa, de 1800. Optamos por citar o primeiro texto quando nos referimos à polêmica de Schiller com Fichte, e também quando tratamos do texto inaugural do tema da escrita na filosofia. Contudo, nas citações diretas do texto, utilizamos a versão posterior, supostamente mais “completa”, pois dela temos uma tradução para a língua portuguesa.

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Fichte como o primeiro momento em que efetivamente a escrita foi pensada a partir da filosofia e legitimou-se como uma questão genuinamente filosófica. Retomemos então a polêmica em questão. Elegemos duas questões fundamentais do artigo de Schiller e pretendemos apresentá-las em seguida. A primeira delas se refere à exclusão dos sentidos como fonte de conhecimento seguro neste processo que procura fundamentalmente a universalidade e a verdade dos enunciados. Disto surge um problema para Schiller na medida em que ele pretende harmonizar as forças sensíveis e espirituais, quais sejam: sentidos e razão, em um fim único e último, moral e ético, necessário e infinito – a formação cultural da humanidade [Bildung]. A segunda questão trata do desafio de elevar a filosofia ao patamar científico. Sobre este desafio sugerimos a seguinte observação importante: Schiller tenta resolver o problema denunciado por Kant da provável impossibilidade da arte produzir ou transmitir conhecimento seguro e verdadeiro, posto que se apresenta a nós em sua dimensão estética e, portanto, mediante juízos reflexivos (subjetivos). A obra de Schiller que provoca mais interesse filosófico em geral, sem dúvida, é o conjunto de vinte e sete cartas escritas por ele destinadas ao príncipe Augustenburg, em forma de agradecimento pela pensão oferecida a ele pelo seu mecenas. O interesse dos filósofos por esta obra é motivado pela fecundidade dos temas abordados pelo autor, bem como pelo fato de Schiller estabelecer através de suas cartas um intenso diálogo com outras filosofias, como a de Kant, e com a frequente referência que faz a Antiguidade grega. Além disso, uma primeira leitura das cartas já nos permite afirmar que Schiller busca algo improvável, uma tarefa que ele mesmo reconhece ser, se não impossível, ao menos infinita: conciliar uma concepção de mundo próxima dos gregos em pleno século XVIII, quer dizer, pensar como os gregos sem compartilhar da sua ingenuidade diante do mundo, mas usufruir da capacidade da razão para diagnosticar seu tempo e escolher para sua vida uma relação com o mundo norteada pela arte. Este último detalhe chama atenção para outra questão que está presente não apenas nesta obra, mas em todo o percurso filosófico de Schiller: a disputa entre a filosofia, a ciência e a arte pelo papel preponderante na formação cultural da humanidade, isto é, pelo fio condutor da Bildung. Sabemos que a ciência de um modo geral ocupou-se por ditar o ritmo da nossa sociedade, e que à arte coube historicamente um papel secundário na formação do homem, processo esse que chegou às vias de fato com a transformação da arte em 84

mercadoria no século XX. Portanto, temos plena consciência de que Schiller não logrou muito sucesso em sua empreitada, e que tantos outros artistas e filósofos que porventura compartilharam da mesma ideia de Schiller tampouco conseguiram realizar o projeto de devolver à arte seu valor na educação da humanidade e seu significado único na cultura. Mas isso não quer dizer que o interesse de Schiller pela filosofia tenha sido em vão, pelo contrário, o simples fato de Fichte ter contestado a posição dele já é para nós o estímulo necessário para continuar nossa investigação. Em 1795, primeiro ano de Fichte em Jena, teve início a querela entre os dois amigos. Seguindo as afirmações de Manuel Ramos e Faustino Oncina, em Filosofía y estética (2007), a primeira colaboração de Fichte na publicação já revelara uma divergência entre os dois que mais tarde marcaria a polêmica acerca da escrita. Este primeiro artigo publicado na Die Horen fora alterado em algumas partes por Schiller, e estas pequenas alterações irritaram o autor a ponto de em um breve comentário, ele ter afirmado que o “impulso estético deveria certamente subordinar-se ao impulso à verdade” (apud ONCINA; RAMOS, 2007, p.16), e não somente, mas que ambos os impulsos referidos deveriam subordinar-se, no homem, ao impulso mais nobre de todos, o ético. Ora, este breve comentário é suficiente para se perceber que a escrita não somente tinha um potencial filosófico, como as suas relações com as questões epistemológicas e éticas não eram meramente superficiais. E, se por um lado a posição fichteana deixa clara a necessidade de uma hierarquia entre essas três dimensões, com privilégio amplo e absoluto da ética; a perspectiva que Schiller começará a desenvolver levanta alguns pontos muito importantes para que a visão de seu agora adversário não seja a única alternativa, visto que ele busca declaradamente uma união da escrita bela com a científica, isto é, a fusão entre beleza e verdade. É a partir desta improvável união que o poeta inicia sua tarefa infinita, exercício que tem com exigência uma passagem determinante pelas contribuições filosóficas. Voltemos, todavia, à polêmica. Já dissemos que o propósito da revista Die Horen engendrava justamente a busca da beleza na escrita e da verdade no conteúdo. Nas palavras de Schiller “se perseguirá fazer da beleza uma intermediária da verdade, e dar à beleza, através da verdade, um fundamento mais duradouro e uma dignidade mais elevada” (apud ONCINA; RAMOS, 2007, p.18). Portanto, era de se esperar que Fichte, enquanto membro do conselho da revista, encaminhasse um texto que atendesse às suas expectativas editoriais. Parece suficientemente nítido, sobretudo pelas palavras de Schiller, que não se trata de uma busca apaixonada e a todo custo pela popularização do 85

saber, mas sim de uma capacidade de intermediar uma relação com o mundo e, por conseguinte, com o saber, que a modernidade se acostumou a ignorar deliberadamente. A rigidez e a seriedade cega de Fichte atropelaram o propósito da revista, pois o filósofo sequer demonstrou alguma disposição em atender às palavras de seu amigo, quando, no “Anúncio de Die Horen”, ele afirma que “na medida em que seja factível, se liberará os resultados da ciência de sua forma escolástica e se tentará fazê-los compreensíveis ao sentido comum em uma envoltura atraente, ou pelo menos sensível” (SCHILLER, 1991, 150). Dessa forma, a polêmica revela algo ainda mais grave: o claro desinteresse em consentir e concordar com o ponto de vista ideológico e, porque não dizer, filosófico de seu amigo editor. Mas, afinal, qual é a origem desta discórdia? Uma possibilidade é que seja a finalidade da escrita e o valor supremo existente por detrás de suas investigações. Fichte deixa claro que há uma primazia da ética diante das demais questões, e que o impulso ético no homem fala mais alto que todos os demais impulsos, e Schiller também submete seu projeto filosófico à formação cultural da humanidade, numa palavra, à Bildung. Mas é possível que esta semelhança seja mesmo aparente, e que na concepção de Fichte haja uma exigência que diferencie radicalmente a sua postura. Ele parece ser bastante intransigente em relação à ideia de estabelecer algum tipo de diálogo, deixando prevalecer as deliberações de uma perspectiva da filosofia objetiva, direta, conclusiva e separada em absoluto dos demais campos do saber, procurando fazer a investigação filosófica uma nova ciência, submetendo sua exposição aos ditames normativos (autoritários?) do raciocínio científico. Esse é um dos pontos mais delicados da questão, pois nos remete diretamente ao problema de definição da própria filosofia. Contudo, para evitar enfrentar este problema de imediato, admitamos que as concepções de filosofia sejam anunciadas, ainda que parcialmente, pela maneira como os filósofos estabelecem seus textos e suas teorias. Dessa forma, o rigor e a recusa ao diálogo revelam uma filosofia fichteana tão distante das expectativas de Schiller a ponto de apresentar-se como uma incompatibilidade irresoluta. Investiguemos, portanto, a partir de que conflito ele parte para argumentar em favor de uma utilização da beleza e justificar o recurso estilístico como mediador condicional para a formação de uma humanidade consciente, plena de sensibilidade e intelecto, satisfeita em seu duplo aspecto. É de forma categórica e elucidativa que Schiller inicia a décima oitava carta em A educação estética do homem: “Pela beleza, o homem sensível é conduzido à forma e 86

ao pensamento; pela beleza, o homem espiritual é reconduzido à matéria e entregue de volta ao mundo sensível” (SCHILLER, 2002, p.91). Com esta afirmação provocativa ele anuncia a tentativa de utilizar a beleza como mediadora ou intermediaria entre o mundo sensível e o intelecto, isto é, entre a experiência e a razão; em última instância: Schiller busca conciliar a filosofia empirista e a racionalista e dar fim ao abismo que separou sensualistas e racionalistas de forma emblemática no século XVIII tendo como instrumento fundamental a beleza, que o próprio Schiller identifica em Sobre graça e dignidade como cidadã de dois mundos, único elemento capaz de atender às exigências antagônicas da razão e da experiência. A tônica da carta é justamente estabelecer em que medidas racionalistas e empiristas acabaram por criar obstáculos intrincados para as questões da Estética, a ponto de engessar o problema e limitá-lo às objeções que cada um dos sistemas imputava ao outro, o que resultou, evidentemente, na impossibilidade de dar continuidade às recentes questões específicas da filosofia da arte. Muito mais preocupado em tratar destas questões do que das de outra natureza, fossem elas lógicas, epistemológicas ou meramente metodológicas, Schiller admitiu a incapacidade dos dois grupos de encontrar efetivamente a beleza. Por um lado os empiristas não conseguiram distinguir as especificidades do conjunto das impressões sensíveis, porque se entregaram completamente a esta reflexão através do sentimento. Por outro, os racionalistas não o fizeram por confiar exclusivamente ao entendimento a função de guia em direção à verdade, e com isso nada puderam ver do todo, pois enxergaram apenas as partes separadas. Em suas palavras: “Os primeiros temem suprimir a beleza dinamicamente, isto é, como força ativa, quando devem separar o que está ligado no sentimento; os outros temem suprimi-la logicamente, isto é, como conceito, quando devem unificar o que está separado no entendimento”. (2002, 92) O argumento principal de Schiller é que a beleza, se utilizada como forma para sensibilizar o homem e despertar nele o interesse para as questões filosóficas e, dessa forma, encaminhá-lo para a reflexão característica da filosofia, isto é, por conceitos, acaba por reunir os dois estados que até então estavam em oposição. Com isso, seria possível suprimir a oposição entre razão e sensibilidade, ou entendimento e sentimento, criando um terceiro estado, responsável por eliminar as divisões e diferenças entre os adversários. De fato, Fichte não demonstrou em momento algum compartilhar com essa ideia de eliminar quaisquer diferenças e unificá-las num único estado, ainda que tenha ofertado uma série de argumentos que o próprio Schiller poderia recorrer para articular 87

sua defesa. Em “Sobre o espírito e letra na filosofia”, além de discorrer sobre a noção de espírito em geral, ele diferencia de forma bem contundente o que entende por espírito da filosofia e o espírito na filosofia, e é justamente nessa passagem, ainda na primeira carta, que ele afirma: O mesmo que acontece com os livros, acontece com outras obras tanto de arte como da natureza. “Uma coisa nos deixa frios e indiferentes, ou inclusive nos repele; outra nos atrai, nos convida para determo-nos em sua contemplação, esquecendo de nós mesmos nela”. (FICHTE, 2007, 105) Sabemos que Schiller indica a capacidade que determinada obra seja de qual natureza for tem de nos tocar e nos atrair, e que a ausência desta mesma capacidade pode provocar o total desinteresse por um dado conteúdo. Na sequencia da passagem citada, Fichte segue argumentando que os “relatos mais ricos” não tem a capacidade de atrair os leitores, justamente por sua profundidade e importância, como se a qualidade e a seriedade do assunto exigissem uma escrita não atraente. Contudo, nesta passagem, ele diz: Está claro que uma obra de primeira classe pode excitar, estimular e fortalecer nossa capacidade mesma de sentir o objeto”; que tal obra nos oferece simplesmente o objeto de nossa ocupação espiritual, se não ao mesmo tempo o talento para nos ocuparmos dele” (...) “esta obra cria simultaneamente o espetáculo e o espectador, como a força vital do universo, comunica com o mesmo sopro movimento e organização a matéria morta, e vida espiritual a matéria organizada. (FICHTE, 2007, 106)

Fichte continua a distinguir as obras de primeira classe e as de segunda, alertando que isso se dá na medida em que a primeira pode “excitar, estimular e fortalecer nossa capacidade de sentir o objeto” (p.106); enquanto a segunda “retém e impede o mesmo sentido que necessitamos para seu gozo” (p.106). No primeiro caso, “nosso entendimento pensa ou nossa imaginação compõe (Dichten; compõe poeticamente) espontaneamente igual ao artista, e isso se faz tal como quer o entendimento e sem que nós o submetamos à imaginação” (FICHTE, 2007, 107). Isto é, há necessariamente uma não intervenção de nossa parte no processo na formação e na ordenação das figuras e nos conceitos que se formam (em nossa mente). A diferença substancial entre essas duas classes de obras reside na força vital interna, na capacidade de se remeter ao sentido interno, o que nos deixa à vontade para supor que este sentido interno seja a razão. Admitindo (e Fichte o faz explicitamente) que tal força seja o espírito, logo concluímos que a ausência ou a presença marcante desse espírito é o que determina que tal obra seja de primeira ou de segunda classe. 88

A partir da maneira como expusemos a questão até aqui, parece razoável afirmar que o elemento condutor da discussão é a dupla via em que se Schiller e Fichte exibem seus argumentos. Para além de um problema normativo, que exigiria fundamentalmente um debate no campo estilístico, o que parece estar por trás disso é uma questão de valor. Queremos dizer com isso que, apesar de utilizarem argumentos semelhantes, a distância parece ser um obstáculo intransponível, e por isso jamais chegariam a um. Todavia, há uma diferença irrevogável pelo fato de que, para Fichte, trata-se fundamentalmente de um problema estilístico de peso negativo e que depõe contra o próprio espírito filosófico; e por isso a participação da sensibilidade só pode ter efeito negativo na construção do discurso filosófico. Ou seja, toda e qualquer contribuição dessa natureza, corre o risco de atribuir ao discurso filosófico um caráter poético, e isto é, por si só, uma afronta aos princípios fundamentais de uma forma tal qual a da filosofia, que pretende ser um universal, verdadeira e definitiva. Por outro lado, Schiller argumenta justamente que esse caráter poético poderia dar à filosofia toda a inserção política da qual ela não desfruta, sem com isso perder a sua dignidade, profundidade e magnitude. Ora, a norma é a superfície do enlace! Julgar esta disputa como algo meramente normativo é o mesmo que se eximir da possibilidade de identificar as questões políticas que ao longo da história permearam e penetraram o pensamento e as contribuições dos mais distintos filósofos. Dizer que se trata de um problema de valor é o mesmo que afirmar uma disputa entre os vínculos políticos e culturais envolvidos no ensejo. Se ao longo da história da filosofia houve diferentes pesos e medidas atribuídos ao pensamento e à defesa em seus argumentos, é de se imaginar que a querela entre as formas de exposição científica e popular também pudesse ter parte no assunto. E como se constituiria esse problema? Além daquela carta-resposta a Fichte, no artigo “Dos limites necessários do belo particularmente na apresentação de verdades filosóficas”30, Schiller volta a fazer uma crítica à forma como Fichte apresentou o texto “Sobre o espírito e letra na filosofia”. O motivo principal desta crítica seria o uso de uma forma e de uma estrutura argumentativa inadequadas, considerando que o conteúdo trataria justamente da questão da forma dos textos filosóficos. Além disso, Schiller menciona que o texto estava muito aquém da capacidade e da qualidade de Fichte como pensador e escritor, se comparado a outros escritos do filósofo de Jena. 30

Daqui em diante, portanto, mencionaremos apenas o artigo “Sobre os limites necessários no uso de formas belas”.

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A crítica a Fichte envolve o desenvolvimento de formas básicas de exposição de um texto, as quais teriam qualidades diferentes em função de suas características intrínsecas. Nesse sentido, Schiller estabelece os motivos pelos quais ele acredita que a filosofia deveria encontrar uma melhor forma para apresentar suas ideias, porque as particularidades do pensamento filosófico exigiam um tipo de escrita diferenciado. Para Schiller, o artigo de Fichte seria um exemplo de como a forma científica pode prejudicar a apresentação das ideias. Seu texto estava demasiadamente denso e rígido, dificultando a leitura e o entendimento das ideias apresentadas justamente pelo rigor da apresentação, resultado de uma preocupação exagerada com o caráter “científico” da forma do texto. No seu artigo, Schiller faz uma comparação entre a forma popular e a forma científica, e a partir dos problemas identificados em cada uma dessas formas ele se propõe a pensar, posteriormente, uma terceira – a forma bela. Esta seria uma alternativa proposta por Schiller como superação dos problemas detectados nas duas outras formas de apresentação. A escrita filosófica dita popular [Populärphilosophie] é um fenômeno bastante particular das últimas décadas do século XVIII, frequente nos estados germânicos. Trata-se de textos curtos e com linguagem simplificada, utilizados em jornais e revistas para divulgar para o público comum as ideias que os filósofos costumavam apresentar em seus livros dedicados à restrita comunidade acadêmica. Poderiam ser escritos tanto por jornalistas que pretendessem sintetizar e divulgar as propostas filosóficas, como pelo punho dos próprios filósofos, como Kant, que chegou a publicar alguns textos curtos, elaborados de forma menos complexa, visando o grande público. A intenção de ampliar o alcance da filosofia, fazendo-a chegar a um público externo à academia parece estar intimamente relacionada com a proposta da época de fazer da formação cultural um processo de emancipação intelectual e de usá-lo como um dos meios de conquista da liberdade individual; em outras palavras: colocar em prática os ideais político-pedagógicos do Esclarecimento. E não é apenas isso, pois para confiar num improvável sucesso dessa proposta, seria condição sine qua non sustentar a importância de discutir e inserir nos programas de formação uma estratégia de educação das sensibilidades. Porém, esta iniciativa encontra muitas barreiras, sobretudo em função da dificuldade de simplificar os problemas e as sugestões de solução da filosofia e de tornar seus conteúdos mais facilmente assimiláveis. As diferenças entre as formas de apresentação, invariavelmente, podem significar uma mudança radical da ideia 90

apresentada, ou interferir negativamente na compreensão dos leitores. Com isso, não seria exagero algum dizer que se trata de um problema não apenas estético, ou estilístico, mas também político e ideológico. A motivação desta atitude tem um vínculo com o projeto de formação cultural, com a ideologia política que predomina no debate filosófico sobre o assunto. No contexto da Aufklärung, a filosofia seria responsável por fomentar o processo de aperfeiçoamento intelectual dos cidadãos comuns, que através da razão estariam habilitados a exercer sua autonomia e construir uma sociedade plena, pelo menos para os padrões e expectativas de um Iluminismo tardio31. Uma investigação sobre o desenvolvimento desta filosofia “popular” que pretendesse averiguar os seus resultados poderia até fornecer algum conteúdo de interesse para uma problematização especificamente política; contudo, não é este o caso aqui. No que concerne à estética, parece suficiente acompanhar a investidura de Schiller acerca dos problemas restritos ao uso deste estilo, sobretudo na tentativa de popularizar teorias e doutrinas filosóficas. A história da filosofia nos mostra que os séculos foram favoráveis à hegemonia do discurso lógico-dedutivo, e que nessa batalha o senso comum não apresentou armas suficientes para equiparar-se à ciência. E ainda, se quisermos pensar a arte como uma atividade que pretenda produzir conhecimento, mesmo ela, com toda a sua sedução e eloquência, não foi competitiva o bastante para disputar o trono com o discurso lógicodedutivo. Tanto para a ciência quanto para a tradição filosófica que se fortaleceu na controvérsia com a sofística, desde Platão, e se propagou a partir de Aristóteles, o conhecimento sempre esteve intimamente ligado à argumentação lógica e subordinado à necessidade da demonstração. A filosofia, já acostumada a contemplar momentos de crise política e ideológica, e a oferecer seus serviços para uma possível solução do problema ou para encontrar uma forma de apaziguar seus efeitos, não pode omitir-se nesta ocasião. Seguindo a tarefa que Schiller desempenhou em suas incursões na filosofia, a maneira como filósofos apresentam suas ideias e teorias pode ser problematizada com o rigor próprio da filosofia e, para tanto, a jovem estética tem muito a contribuir. Sem esquecer a sua dimensão política, mas valorizando a sua importância estética, o conflito entre a forma científica e a popular abre espaço para que Schiller formule a seguinte pergunta: podemos sustentar a hipótese de que a forma de exposição bela é uma síntese entre as

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Ver: BARBOSA, Ricardo. Schiller e a cultura estética. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

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formas científica e popular? No parágrafo nono do texto “Sobre os limites necessários no uso de formas belas”, Schiller afirma: “Não basta expor a verdade apenas em conteúdo; a prova da verdade deve estar simultaneamente contida na forma de exposição. Mas isso não pode significar outra coisa senão que não apenas o conteúdo, mas também a exposição do mesmo, tem de estar de acordo com as leis conceptuais.” (SCHILLER, 1994, 106-7) Se a resposta for positiva, significa que a forma bela seria uma alternativa de apresentação de ideias capaz de aperfeiçoar tais formas de exposição, sem repetir os equívocos intrínsecos das formas científica e popular, conservando algumas qualidades e superando as dificuldades que cada forma apresenta. A síntese implicaria, seguindo esse raciocínio, um progresso em relação a ambas. No que tange às necessidades intrínsecas, a forma científica é sistemática e exige rigor e continuidade para realizar plenamente sua tarefa: apresentar ou demonstrar o universal mediante o particular, encadeando juízos a fim de produzir um conhecimento seguro e preciso, ou como diz Schiller “repousando em conceitos claros e princípios estabelecidos”. Se, antagonicamente, a exposição popular tem como característica inegável um apreço pelos sentimentos (e não ao racional como na científica), e, fatalmente, em função de sua necessidade de dirigir-se a um público menos erudito ou esclarecido, esta forma se rende à condição de fazer com que tal conteúdo seja acessível ao seu público. Com isso, ela perde rigor e sistematicidade se comparada à forma científica, mas ganha em sensibilidade e emoção, e torna-se mais atrativa. Uma ao lado da outra, percebe-se que o excedente na primeira é escassez na segunda, que tem de sobra justamente o que é raro à primeira. Enquanto a exposição cientifica satisfaz o entendimento, a popular satisfaz a imaginação. Conclui-se, pois, que tanto o discurso científico quanto o popular são fortemente delimitados pelo perfil de seus destinatários, ambos em consonância com sua forma de execução. A ciência entre os doutos e esclarecidos, e o popular entre os pouco eruditos e menos intelectualizados. Compreendida esta diferença, entende-se por que, segundo Schiller, a forma de exposição bela exige algo que não pode ser encontrado nas duas outras formas: a aparência de liberdade na sua exposição. Diferente da científica e da popular, a forma bela aparece como livre e isso é sua condição necessária. Não se trata de um rigor que deve satisfazer seu seleto e qualificado público, nem tampouco de condicionar sua forma às limitações de seu interlocutor. A beleza da exposição reside justamente na consideração da sua liberdade apenas enquanto fenômeno, pois ele garante uma 92

suspensão do julgamento ontológico da matéria: parecendo livre, sua aparência é a da beleza; enquanto bela, seu estatuto é a liberdade.

4.3 A beleza e a liberdade

No mesmo período em que apresentou esta noção de forma bela de exposição na correspondência com seu amigo Körner, Schiller escreveu também o ensaio Sobre graça e dignidade, texto no qual ele trata exclusivamente da teoria da beleza inicialmente apresentada no diálogo. A similitude entre beleza e liberdade funciona como fio condutor para o duplo ofício a que Schiller se propõe, a saber: refletir sobre o estatuto ético e político da condição do homem e buscar produzir uma obra de arte que, através de sua beleza, possa prepará-lo para o exercício efetivo da liberdade. Observemos então os dois casos, começando pela correspondência. Examinaremos o teor de algumas das cartas32 que compõem este diálogo a fim de esclarecer algumas de suas ideias que antes poderiam parecer obscuras, pois nelas encontram-se as influências mais variadas que o ajudaram a formular sua alternativa ao paradigma kantiano dos juízos estéticos. Aliás, ele mesmo anuncia que sua proposta não é somente uma alternativa diante de Kant, mas também em relação a Burke e Baumgarten, quando afirma: “É interessante notar que minha teoria é uma quarta forma possível de explicar o belo. Explica-se o belo objetiva e subjetivamente; e, a rigor, ou de modo subjetivo sensível, ou subjetivo racional, ou objetivo racional, ou, por fim, de modo objetivo sensível.” (SCHILLER, 2002, 42). Segundo Schiller, o equívoco das respectivas teorias teria sido provocado pela substituição da beleza sensível pela ideia de beleza. Todas elas referem-se à beleza tendo como referencial o conceito, e não a beleza mesma, sensível. Por isso a proposta de Schiller se diferencia das demais na medida em que sugere uma teoria que conjugue a beleza mesma, e não primeiramente sua ideia, mas exija um imperativo, tornando-se necessariamente objetiva. Isto é: o belo não é completamente subjetivo, como queria Burke, ao afirmá-lo ao reduzi-lo a somente uma afecção da sensibilidade, isto é, à sua causa física; nem completamente objetivo, como queriam Baumgarten e os demais

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Quando necessário, recorremos aos detalhamentos da explicação da teoria da beleza de Schiller e das referências aos demais autores que ele nos oferece nos Fragmentos das preleções sobre estética. Tradução de Ricardo Barbosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

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herdeiros da escola de Leibniz e Wolff, pretendendo que o critério objetivo do belo seja a perfeição do objeto. A posição kantiana não se restringe aos extremos como as de Burke e Baumgarten, pois admite uma explicação subjetiva racional: a beleza não é produto da perfeição do objeto, nem há uma ideia de beleza que possa ser aplicada a todos os objetos com o mesmo grau de satisfação, isto é, não pode ser objetivo. É contra esta impossibilidade que Schiller encerra a carta a Körner de 25 de janeiro de 1793: “Acho que sua observação pode ter a grande utilidade de separar o lógico do estético, mas no fundo ele me parece perder inteiramente o conceito de beleza. Pois a beleza se mostra no seu supremo esplendor justamente quando supera a natureza lógica do seu objeto, e como pode ela superar onde não há nenhuma resistência?”. (SCHILLER, 2002, 43.) Declaradamente um projeto socrático, a correspondência evidencia o importante papel que Körner exerce na teoria de Schiller: auxiliar o filósofo a formular de maneira mais precisa e clara a sua teoria; como um guia que alerta sobre os possíveis perigos e prováveis conflitos, sem deixar escapar os mínimos detalhes e sem permitir que o desânimo vença a disposição de enfrentar o longo caminho de estabelecer o princípio objetivo do gosto. Aliás, sobre este fecundo diálogo estabelecido com seu amigo músico, um elogio feito por Goethe ao nobre interlocutor facilita o entendimento da dimensão e da importância que este encontro pode ter tido nas reflexões de Schiller. Goethe refere-se a Körner como “gênio da recepção”, antes de confessar: “me regozijo na saúde e força que transbordam do seu espírito (...). Assim se apresenta sua existência para mim, e enquanto me aproprio dela, encontro a minha enriquecida e mais bela”33. Foi durante alguns meses no ano de 1793 que Schiller trocou cartas com o músico Körner, que além de compartilhar a amizade, acabou oferecendo-lhe amparo emocional e se transformando no depositário de projetos ambiciosos do poeta. Ele mesmo segredou seguidas vezes ao amigo que pretendia compor ainda uma obra em forma de diálogo socrático, além de apresentar em primeira mão suas críticas pontuais à estética de Kant. Além disso, a intenção de Schiller em aprofundar ou dar continuidade à investigação sobre a relação entre a obra de arte, o conhecimento e o homem, que aparece nitidamente em A educação estética do homem, também está presente nestas

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Tradução livre do elogio de Goethe a Körner, em carta de 22 de setembro de 1801, encontrada no ensaio biográfico de Schiller, Schiller oder die Erfindung des Deutschen Idealismus elaborada por Rüdiger Safranski (2004). Utilizamos a tradução para o espanhol de Raúl Gabás, Schiller o la invención del idealismo alemán, ed. Tusquets, 2006, p.207.

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correspondências, nas quais percebemos que aprendizado e reflexão crítica se misturam no trabalho de entender, interpretar e incorporar um autor no trabalho de outro. A grandiosidade do pensamento de Kant figurou-se de duas maneiras distintas para Schiller: primeiro, como um desafio de leitura e compreensão, do esforço de um pensamento crítico rigoroso, sistemático e de repercussão incomensurável; segundo e, em consequência disto, um pensamento que deveria ser referência não apenas por seu conteúdo como por sua ousadia investigativa e qualidade intelectual. Em outras palavras: a influência da filosofia de Kant se faz presente na maneira como Schiller encaminha sua investigação acerca dos problemas da estética, propondo-se a levar às últimas consequências – teóricas e práticas – os desafios e os limites estabelecidos pelo singular autor das três obras críticas. O mecanismo de Schiller parece ser o de enfrentar Kant, compreender Kant, para depois, ir além dele. No seu caso, significa desfazer-se do paradigma kantiano em relação aos juízos estéticos e desenvolver uma possibilidade de elaboração nova do mesmo problema. Por fim, incorporar criticamente o resultado desse enfrentamento no seu próprio labor artístico, utilizando as suas reflexões filosóficas no campo da estética para aperfeiçoar sua produção literária. São muitos os motivos e as questões que influenciam Schiller a buscar outro destino para o lugar da arte no contexto da filosofia alemã, e, em particular, algumas questões sugerem que o entusiasmo com o Iluminismo tem peso e medida distintos para Kant e Schiller. Esta posição não é uma unanimidade, mas podemos pensar que, a julgar pela ideia de um projeto sistemático definitivo em Kant, com as três obras críticas, é demasiadamente pragmático para o temperamento de Schiller, que, seja por excesso de entusiasmo ou por nutrir esperanças mais otimistas sobre a humanidade, se debruça sobre a possibilidade real de que cabe ao poeta buscar incansavelmente a possibilidade de representar sensivelmente tanto a beleza quanto o sublime. Para a filosofia kantiana, tudo indica que esta possibilidade era muito remota ou tecnicamente improvável, já que um objeto gerado pelas mãos do homem jamais poderia provocar os sentimentos do belo e do sublime. O que para Kant se apresenta como um fim, analisando todo o percurso de Schiller, podemos dizer que para ele se apresenta como um esplêndido ponto de partida. O fato deste ter feito uso de suas reflexões estéticas para produzir melhor suas obras dramáticas, ou pelo menos para dar-lhe outro caminho e finalidade, sugere que a intenção dele ia além do aprimoramento da técnica, pois ele visava uma

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forma ideal que pudesse interferir no mundo prático, isto é, no mundo. Ele pensa uma continuidade entre teoria e prática; uma fusão entre estética e ética. Contudo, para poder fundir mundos tão distintos e distantes, Schiller teria que se propor a enfrentar pelo menos dois problemas muito importantes, para não dizer fundamentais: para poder unir estética e ética, e sustentar, portanto, que a arte exerce sim um papel determinante na formação cultural da humanidade [Bildung], ele teria de buscar outro caminho para discutir o problema dos juízos estéticos, fruto da apreciação de obras de arte, que não fosse o kantiano. Afinal, Kant representa a impossibilidade da função cognitiva destes juízos e decreta a cisão entre estética e ética. O segundo problema deriva do primeiro: a função cognitiva da arte seria justamente tornar universalmente cognoscíveis os conceitos e ideias propostos no âmbito da ética e da moral, e isto só poderia ser possível se os juízos reflexivos pudessem ser também universais. Desta maneira, a beleza representada no mundo sensível teria uma similitude com as ideias apresentadas apenas racionalmente, isto é, pelo entendimento. É através da possível similitude entre beleza e liberdade que Schiller sustenta os seus argumentos para defender a objetividade dos juízos do gosto e, consequentemente, afirmar o caráter decisivo da arte no processo do conhecimento e, ainda, finalmente, defender sua ideia central e mais importante, a de que a arte pode e deve exercer o papel mais nobre na formação cultural da humanidade. Talvez a sequência de argumentos que Schiller escolhe não seja tão atraente como poderia ser numa explicação cuja orientação fosse via empirismo, isto é, usando como exemplo as próprias obras de arte. Mas, assim como ele mesmo optou por explicar primeiramente para Körner pela via conceitual, seguimos nós o mesmo procedimento. Diz Schiller: “beleza é natureza na conformidade à arte”. 34 Primeiramente, entendemos por natural aquilo que é por si mesmo, isto é, aquilo que não é determinado exteriormente. Por outro lado, arte é justamente aquilo que é feito a partir de regras, ou com o uso de determinadas formas ou procedimentos. Temos, dessa maneira, que beleza é aquilo que é por si mesmo mediante algumas regras; belo é aquilo que é de acordo com suas próprias regras, isto é: há uma necessária autonomia na possibilidade da beleza, assim como ocorre com aquilo que é livre numa ação do homem. Afinal, uma ação é livre quando é autônoma. Por analogia, uma obra de arte só é bela quando é livre.

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Citado por Ricardo Barbosa na introdução de Kallias, ou sobre a beleza, 2002, p.23.

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Por isso, a beleza é cidadã de dois mundos: sua possibilidade conceitual está no mundo da prática (liberdade), mas sua existência real só é possível numa apresentação livre, isto é, no fenômeno. É a apresentação sensível – fenômeno – do suprassensível – ideia. Schiller não se contenta, entretanto, apenas com estas condições. Para que uma apresentação seja de fato livre, ela tem que satisfazer ainda outras exigências. O belo na natureza é muito mais simples que o belo na arte, pois depende exclusivamente da própria natureza, pois o belo na representação, enquanto fenômeno, tem que lidar com uma série de questões. O próprio Schiller repete aqui a posição kantiana: o belo na natureza é uma coisa bela, enquanto a beleza na arte é a bela representação de alguma coisa.35 Em suas cartas a Körner, Schiller nos leva a entender que o projeto kantiano apresentado na segunda crítica é um verdadeiro manancial de questões relevantes tanto para a estética quanto para a moral ou ética. Schiller transporta a questão sobre a liberdade do sujeito para a criação artística, e elabora, dessa forma, sua defesa de uma apresentação sensível do suprassensível; em outras palavras, que a liberdade é causa da possibilidade do belo objetivo. Isto é: só é possível atingir o belo ou a beleza desde que haja uma autodeterminação – liberdade – do e no fenômeno. No que tange o mérito da criação, Schiller ainda nos reserva a diferença radical entre estilo e maneira, que veremos mais adiante como o caminho para decifrar as ideias defendidas por ele. Na busca pelo fundamento objetivo do belo, ele procura estabelecer uma dedução objetiva do juízo do gosto e, assim, conceber uma doutrina elevada à condição de uma ciência filosófica. Para além de Kant, esta nova doutrina não pode prender-se ou limitar-se ao mero ‘jogo subjetivo entre imaginação e entendimento’. Mas, para realizar tal empreendimento, Schiller precisa defender uma ideia de similitude entre a beleza e a verdade; posto que, para tornar-se doutrina filosófica com pretensão de validade universal e fixar-se sob fundamentos eternos, o juízo do gosto deve constituir-se tal qual as regras da razão. Em outras palavras, para que a proposta de Schiller seja plena, faz-se necessário que as leis do juízo do gosto sejam tais quais as leis da razão prática, e não teórica. Dessa forma, usar-se-á a razão no seu modo mais nobre - o prático - pois a razão prática é superior à razão pura porque trata da aplicação das leis da razão pura na

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Kant formula esta ideia no §48 da Crítica da faculdade do juízo, intitulado “Da relação do gênio com o gosto”.

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vida prática. É este processo que podemos entender, em Schiller, como a passagem do subjetivo para o objetivo, como se o belo fosse um imperativo. A busca incessante pela beleza leva Schiller a buscar também o que é a liberdade. Depois de concluir que a beleza, como um sentimento provocado por alguma representação, não pode ser extraída por uma análise do conceito de liberdade e nem mesmo da experiência e, ainda, como parte de sua refutação à Kant, não pode ser resultado de uma síntese a priori; Schiller, em uma carta à Körner de 23 de fevereiro de 1793, comenta: “Demonstrar por indução e pela via psicológica que da conjugação do conceito da liberdade e do fenômeno, da sensibilidade em harmonia com a razão, tem de decorrer um sentimento de prazer igual à complacência que costuma acompanhar a ideia de beleza”. (SCHILLER, 2002, 82.) Se, para Schiller, o fundamento da beleza é a liberdade no fenômeno, é necessário, pois, reconhecer que há no fenômeno uma determinação interior e não exterior. Há, portanto, que se reconhecer uma autodeterminação do fenômeno. O fenômeno é, pois, livre: qualquer interferência exterior violenta sua liberdade. É neste ponto que precisamos retomar a questão entre estilo e maneira, que Schiller aborda no texto “O belo da arte”, enviado a Körner em conjunto com uma carta em 28 de fevereiro de 1793. Para que a determinação seja interior e não exterior e, por conseguinte, haja liberdade no fenômeno, uma maneira de representação da natureza pelo artista que apresente algo que revele traços de sua própria personalidade deve ser evitada. Isto é, a maneira é um modo de criação que revela aspectos característicos do autor que inibem a liberdade da obra. Trata-se de uma incapacidade do autor de esconder suas predileções, referências ou mesmo falta de habilidade manual no processo criativo. Por isso, é necessário para o artista fazer o uso da técnica para levar o reino dos fenômenos à liberdade, e, por conseguinte, à beleza. Em outras palavras: enquanto a liberdade é o fundamento do belo, a técnica é mediação desta liberdade. É através dela que o artista representa a coisa e, pois, sem causar-lhe alguma violência, representa tal coisa como um objeto livre. Esta liberdade é o mesmo que beleza. E beleza é natureza na conformidade à arte. Este argumento é fundamental para a teoria da beleza, pois é a partir dele que entendemos a diferença da posição de Schiller em relação a Kant: mesmo reconhecendo a importância e a genialidade de Homero, e, consequentemente, o triunfo de suas obras, o autor da Crítica da faculdade de juízo estabelece uma distinção efetiva entre as 98

epopeias homéricas e os Princípios da filosofia natural de Newton, no que diz respeito à sua competência pedagógica, sobretudo do ponto de vista cognitivo. No §47 da terceira crítica, ele argumenta que a admiração pelos versos homéricos, independente da qualidade inegável destes, não é suficiente para fazer de um leitor um bom escritor, o que significa dizer que não é possível aprender a escrever como Homero a partir da leitura de suas obras, por mais belas que elas sejam. Porém, enfrentar os Princípios de Newton nos pode promover um desenvolvimento intelectual ou cognitivo pleno, pois a estrutura do raciocínio matemático é dela aprendido sem grandes prejuízos.

Quer dizer: a arte e a poesia, diferentemente da ciência, não

conseguem assegurar o aprendizado do seu conteúdo de forma confiável e homogênea. A ciência é, pois, na perspectiva kantiana, superior à arte na participação do processo cognitivo e, consequentemente, na formação cultural do homem. Ora, é justamente esta sentença que Schiller quer evitar. A técnica é mediadora da beleza na arte, pois pode conduzi-la à universalidade. Se o seu uso fornece condições de possibilidade da liberdade de um fenômeno, reconhece a sua autonomia e, por conseguinte, a sua beleza, torna o belo o tal imperativo tão importante para a sua investigação. Na querela entre ciência, filosofia e arte pela responsabilidade na formação cultural da humanidade [Bildung], o veredicto de Schiller é claro: se for possível, como apresentado, que beleza e liberdade sejam similares, cada uma em seu mundo, podemos, enquanto artistas, permanecer em nossa busca infinita pela liberdade e por uma educação estética da humanidade, reconhecendo o papel da sensibilidade e a responsabilidade da arte na nossa formação cultural. Revela-se, então, uma aspiração helênica, um rigor kantiano, e um sonho sem fim (delírio utópico/projeto utópico), expressos pelo ideal que Schiller define no artigo sobre o uso do coro na tragédia: “A arte tem de alcançar aquilo que ainda não possui. A falta circunstancial de meios não deve limitar a imaginação criadora do poeta. Ele se põe por meta aquilo que há de mais digno, ele aspira um ideal, por mais que a execução artística tenha que se render às circunstâncias.” (2004, 185.) Se foi a partir da leitura da Crítica da faculdade do juízo que Schiller desenvolveu seus escritos sobre estética, foi, conjuntamente, a partir do distanciamento com relação a Kant que ele pôde direcionar a sua investigação para aquilo que era o grande problema filosófico e foco de seu interesse maior: como utilizar a estética ou a arte como uma ferramenta para uma formação mais completa, digna e verdadeira da humanidade? Esse problema pode ser ainda apresentado de outra forma: depois de Kant, 99

a estética deixara de ser apenas uma ciência das sensações, como era definida por Baumgarten, para ser um problema com dimensões filosóficas próprias. Ocorre que ela ainda não tinha se transformado o bastante para ocupar o lugar de uma disciplina vital para a formação ética do homem. Se a proposta de Schiller é formar cidadãos a partir da arte, sobretudo do teatro, a estética deveria ser então a disciplina crítica fundamental para estabelecer os princípios, os valores e as formas daquilo que viria a ser o estandarte político-pedagógico da função da arte no contexto deste projeto ético-estético de Schiller. É possível enxergar nos escritos de Schiller a intenção de estabelecer um projeto de formação da humanidade, tendo como inspiração a tragédia grega e seus efeitos, assim como a de trazer a sua pulsão, harmonizado-a com a legitimidade do caráter da reflexão racional marcante da recente ideologia alemã. Toda essa empreitada sintetiza o desafio de Schiller enquanto filósofo que transporta para suas reflexões o peso da responsabilidade de ser um dos principais dramaturgos de seu tempo e de sua língua, assim como a ousadia quase ingênua de ser um poeta que deixa às suas investigações filosóficas a nobre tarefa de interferir, questionar e transformar a sua obra dramática. Assim pode ser apresentado o ‘elemento Schiller’, polêmico e necessário em iguais medidas para a nossa cultura e humanidade: indispensável, seguindo o julgamento de Thomas Mann. Evidente que se trata de um projeto bastante ambicioso, de dimensões filosóficas amplas e complexas, que exige do seu arquiteto um grande esforço de compreensão e de elaboração, ainda mais se considerarmos a sua fonte filosófica principal. Era preciso dizer não a simples convicções filosóficas e dogmáticas, e evitar o entusiasmo característico do pré-romantismo, quando da passagem do século XVIII para o XIX. Um caminho possível sugere que o espírito livre, esclarecido e capaz de pensar por si mesmo, portanto, independente e autônomo, fosse motor e força bruta do intempestivo e sonhador filósofo. Schiller e seu tempo foram cúmplices de uma geração que cultivou a razão como maior bem da humanidade. Personagem inseparável deste momento histórico, ele sustentou que a arte tinha sim missão e dever políticos – como podemos perceber em suas últimas peças, como Maria Stuart e A noiva de Messina - e que a dimensão estética era a sua via de acesso e de transformação da realidade. Caminho por ele eleito, trilhado com competência e audácia, e que pode ter transformado Schiller num dos pensadores mais influentes deste período.

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A imersão de Schiller na filosofia, apesar de ter durado menos de uma década, pois ele se dedicou ao assunto sobretudo entre 1791 e 1796, não se restringiu apenas a uma temática da filosofia. O grande incentivo foi no campo da estética e o estopim foi a terceira crítica de Kant, que não constitui uma obra exclusivamente sobre estética e filosofia da arte. Schiller também se interessou pela ética, como podemos perceber através das cartas em A educação estética do homem, e outros artigos menores dedicados ao teatro, como “Acerca do uso do coro na tragédia”, escrito como prefácio para A noiva de Messina, em 1803, e “O teatro considerado como instituição moral”, conferência proferida em 1784, publicada com poucas modificações em Escritos menores em prosa, de 1800. Essa força é nítida nas conclusões a que Schiller chega em 1º de março de 1793, quando expõe passo a passo a argumentação que elucida sua teoria e culmina com tal princípio, que pode ser resumido na frase: beleza é liberdade no fenômeno36. Por um lado, apesar disto, não se trata de uma construção que visa exclusivamente a formulação de uma teoria da escrita, já que ele mesmo admite falar da arte em geral neste primeiro momento. Por outro lado, porém, fica nítido que se trata de uma formulação que visa um ideal de obra de arte, e, naturalmente, traz à tona o debate sobre as formas de apresentação de ideias, que significa, em última instância, pensar a escrita como um problema filosófico. Portanto, partimos da análise da arte em geral em direção à definição do que seria o belo na arte. As ideias que agora serão apresentadas encontram-se formuladas por Schiller numa carta de 1º de março de 1793, enviada, na verdade, em anexo com a carta datada de 28 de fevereiro do mesmo ano. Se comparadas arte e natureza, é certo que a principal distinção entre uma e outra reside na própria composição, pois enquanto a arte é produto da criação humana, a natureza é constituída por si mesma, separada do que é humano. Consequentemente, o belo na natureza é efetivamente diferente do belo na arte, pois: “Belo é um produto da natureza se aparece livremente em conformidade à arte. Belo é um produto da arte se apresenta livremente um produto da natureza”. (SCHILLER, 2002, 111). A dedução simples leva à conclusão de que a liberdade é o termo a ser questionado. A definição de “livre” a que Schiller se refere pode ser reproduzida de forma simples: livre é aquilo que é determinado por si mesmo, ou algo que aparece como 36

A argumentação a qual no referimos aparece numa carta a Körner de 1º de março de 1793, “O belo na arte”, in: SCHILLER, Friedrich. Kallias, ou sobre a beleza. Tradução de Ricardo Barbosa. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.110-1; e também no §11 das Preleções, in: SCHILLER, Friedrich. Fragmentos das preleções sobre estética. Tradução de Ricardo Barbosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p.68.

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determinado por si mesmo. Quanto à natureza, ela é algo que existe e se apresenta em sua própria e única realidade. Mas, quanto à arte, cria-se uma dificuldade, porque toda arte é necessariamente representação, e enquanto tal imita uma natureza através de determinada matéria (meio, medium), que se faz passar pelo objeto imitado. Surge, então, um novo paradigma: o belo artístico vai ser sempre uma imitação de uma natureza através de um meio material, e jamais será a própria natureza. Duas condições são aplicadas a este meio que representa a natureza: primeiro, todo meio tem sua própria natureza, como o mármore tem as características específicas de sua constituição natural; assim como um ator carrega consigo no palco aquilo que é próprio da natureza humana; e este raciocínio se estende para tintas de uma aquarela, lápis e papel e demais meios que sejam utilizados em uma representação artística. Segundo, o artista que reproduz a natureza através de um meio também deve ser considerado como uma (outra) natureza própria. Diante de todo este caminho que deve percorrer uma obra de arte que se candidata à beleza, o risco que se corre mais facilmente é o de violentar ao menos um desses princípios elencados por Schiller. Qualquer violência cometida a qualquer um desses princípios inviabiliza a beleza na obra de arte, porque todas essas naturezas têm de ser respeitadas e garantir sua autonomia, isto é, sua autogestão; a capacidade de determinar a si mesmo – sua liberdade. Para uma representação tornar-se bela, ou aparecer bela, é necessário que todas essas etapas sejam cumpridas sem deslizes e que toda liberdade seja respeitada e garantida no processo. Evidente que cada natureza indicada – a do artista, a do meio/material, e a do objeto a ser imitado – age de acordo com sua peculiaridade e leis próprias. Por isto, diz Schiller: “Estão pois aqui três naturezas que lutam umas com as outras. A natureza da coisa a apresentar, a natureza do material da apresentação e a natureza do artista, que deve fazer com que aquelas duas concordem.” (SCHILLER, 2002, 112.) Entretanto, ele concede apenas um tipo de autoridade em todas essas relações, pois julga necessário que a natureza da apresentação vença a natureza do imitado. Quer dizer: abre uma exceção para que a obra de arte suprima a natureza do material, como se ao olhar para uma escultura não se percebesse a natureza do mármore, apenas a sua forma. Há a autoridade da forma do material, apenas de sua forma e nada mais. Por exemplo: o que é corpóreo no mármore não aparece na apresentação da Pietà de Michelangelo; ali está presente apenas como ideia, não como matéria. “Numa obra

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de arte a forma é apenas fenômeno, ou seja, o mármore parece um homem, mas permanece, na efetividade, mármore.” (SCHILLER, 2002, p113.) A seguinte citação resume a consideração de Schiller sobre a única possibilidade de uma obra de arte ser bela, isto é, representar uma natureza de forma bela: Livre seria pois a apresentação se a natureza do medium aparecesse inteiramente aniquilada pela natureza do imitado, se o imitado afirmasse sua personalidade pura também no seu representante, se o representador, através de uma completa renúncia ou, antes, através de uma renegação de sua natureza, parecesse tê-la trocado completamente com o representado – em suma – se nada existisse pelo material e sim tudo pela forma. (2002, 113.)

Mas, afinal, por que nem a forma científica nem a popular podem ser belas? Retomando as questões apresentadas no artigo “Sobre a necessidade do uso de formas belas”, observamos que para ele há um imperativo hipotético regulador que funciona como princípio fundamental da exposição científica e exige o uso do entendimento para determinar os limites da imaginação. Fica evidente aqui a sugestão da aplicação do método cientifico à filosofia; não como uma consequência casual, mas como expressão de desejo de uma “ideologia alemã” em equivaler filosofia e ciência. É possível estabelecer limites para a poesia da mesma forma como os limites da ciência estão sendo frequentemente aplicados à investigação filosófica? Assim pode ser formulada a questão que subsiste à investigação sobre o problema da escrita. Com isso, segundo Schiller, o impulso poético marcante de uma exposição popular como “esforço pela máxima sensibilidade possível na representação e pela máxima liberdade possível na vinculação das mesmas”37 deve ser contornado por uma ação do entendimento e resgatar a função da racionalidade em detrimento à da sensibilidade. Em outras palavras: se pretendemos garantir em um discurso seu acesso direto à verdade de forma universal, temos de determinar esta forma de exposição com rigor científico e isto pressupõe a exclusão da sensibilidade e das emoções como participantes deste processo. Assim, necessariamente, as leis da razão e do entendimento vão determinar a forma de exposição; isto é, tal forma de apresentação de ideias será determinada e não poderá constituir uma liberdade no fenômeno. Decreta-se, na perspectiva de Schiller, a impossibilidade de qualquer forma de exposição científica, nestas condições supracitadas, tornar-se bela.

37

Tradução de Ricardo Barbosa no artigo: “Verdade e beleza: Schiller e o problema da escrita”. In: Revista SEAF. Rio de Janeiro: SEAF/Uapê, 2004, nº4, p.20.

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Contudo, o motivo principal que determina a impossibilidade de uma forma de exposição popular ser bela é o mesmo, embora ela também se contraponha à forma científica. Se uma exposição científica não pode ser bela porque na sua forma há, em lugar de uma autonomia, uma heteronomia, pois o entendimento deve condicionar – fornecendo as regras – sua forma de apresentação; o mesmo acontece na exposição popular. Para atingir com eficiência seu público e satisfazer sua finalidade enquanto tal, a ambas as formas é exigida uma adequação, e esta adequação determina suas apresentações, que são radicalmente distintas, porque uma é a negação da outra. Enquanto a primeira pressupõe um controle da imaginação via o entendimento, a segunda exige justamente o oposto: se pretende representar conceitos abstratos para seu público, a forma popular deve usufruir incessantemente e abusar de recursos poéticos. Aliás, esse é seu maior trunfo para esclarecer aos seus interlocutores os mesmos conceitos e ideias que exigem o rigor e o encadeamento de juízos na exposição científica. Nisso consiste o didatismo da exposição popular. Da mesma maneira que pais e professores recorrem a imagens ilusórias ou fantasiosas para facilitar a compreensão de alguma história pelos seus filhos e alunos. A forma popular é também não livre porque determinada, isto é, não bela porque não age de acordo com suas próprias leis; pois ela é capaz de reproduzir determinadas leis, reformulando aquilo que é capaz de receber, mas não de criar as suas próprias, o que demonstraria uma força formadora intrínseca. É, pois, desta maneira e por essas razões, que nem a exposição científica nem tampouco a forma de apresentação popular, apesar de seu antagonismo, são livres, porque se apresentam como determinadas. Ambas pelo mesmo problema: a necessidade de adequar-se às exigências e limitações de seu público para obter êxito em sua finalidade. A ausência de autonomia em ambos os casos implica a impossibilidade de estar em acordo com suas próprias leis e, consequentemente, de ser bela. Afinal, para ser candidata à beleza com reais chances de obter êxito, a liberdade na forma de exposição é requisito primeiro, necessário e imprescindível. Seja pela necessidade de adequar o discurso a ponto de artificializar ou simplificar demasiadamente o conteúdo, isto é, a exigência da forma popular, seja por estabelecer um parâmetro vocabular e conceitual tão rigoroso que restringe a um grupo ínfimo de intelectuais o acesso a tal conteúdo, isto é, a contrapartida da forma científica. Fica claro que as exigências cumpridas pelas duas formas inviabilizam a união harmônica pretendida pelo autor. Domínio e subordinação são termos que não 104

colaboram com o ideal harmônico, com a autonomia privilegiada, que é condicional para a representação bela e para a afirmação da liberdade. Esta consideração, de tom conclusivo, nos remete às cartas sobre a educação estética do homem. Em 1789 Schiller publica o poema “Os artistas”, que de certa forma pode ser considerado uma antecipação das ideias sobre a beleza que ele defende no ensaio Sobre graça e dignidade, de 1793. É neste ensaio, inclusive, que Schiller apresenta a ideia de graça e a de beleza móvel, que são, de fato, ideias novas para as teorias estéticas da época. E não só para essas teorias, pois é a partir delas que Schiller vai poder argumentar contra Kant, em favor de uma concepção de beleza que se distancia da obra do filósofo, sobretudo por entender de forma radicalmente diferente o que, em geral, chamamos de papel da sensibilidade na formação cultural do homem. Vejamos apenas um exemplo de como podem ser aproximados esses dois textos: é comum a ambos o uso da expressão “bela alma”, que, se olharmos para o pensamento de Schiller como um todo, percebemos que se trata de uma expressão muito importante, pois reúne aí aquele homem pretensamente formado pela cultura que Schiller imaginava como Bildung.No poema ele diz “o que as almas belas belo encontram, perfeito há de ser e insuperável” (2009, 97). Que destino ele espera para o espírito talhado na cultura da beleza? O de ser a alma bela, construída como amálgama tanto da beleza que contempla quanto da beleza que aspira. De forma muito próxima, ele se refere à alma bela no ensaio, que reserva suas primeiras páginas para alguns apontamentos sobre as definições de beleza e graça, mas na sua segunda metade aprofunda as relações entre o aspecto estético dos termos e sua interferência no campo político, se assim podemos entender o interesse dele pela humanidade. Parece bastante enfático este interesse, já que, na passagem abaixo, por exemplo, vemos como o autor articula a noção de beleza, que primeiramente está reservada para as questões artísticas, com o domínio da ética, que recebe a dimensão estética como uma espécie de espelho ideal. Diz ele:

Chama-se uma bela alma aquela em que o sentimento ético finalmente se assegurou de todas as sensações do homem, até o grau em que, sem temor, pode deixar ao afeto a direção da vontade e nunca corre o risco de estar em contradição com as decisões do mesmo. Por isso, numa bela alma, as ações singulares não são propriamente éticas, mas o caráter todo o é. (2008, 42)

Este espelho ideal seria, na verdade, uma aproximação artificial entre a beleza estética e a virtude ética, que se não pode ser garantida por cada indivíduo em ação,

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pode muito bem ser observada na humanidade como um todo, no melhor homem que se pode imaginar. No ensaio Sobre graça e dignidade, Schiller desenvolve o que poderia ser o início da sua teoria da beleza, elaborada mais tarde, e de forma mais completa, com as cartas sobre a educação estética. As primeiras páginas do ensaio fazem referência ao mito de Afrodite, que de posse do cinto, poderia, ao entregá-lo, “emprestar a graça e obter o amor a quem o porta”. Segundo o autor, é importante mostrar como os gregos conseguiam diferenciar graça e beleza, acreditando que a primeira participa da ideia da segunda, que é, por sua vez, independente daquela. A delicadeza do sentimento dos gregos deixou-os notar que, ainda que a graça seja parte da beleza, ela se diferencia por ser uma beleza móvel, que nasce no seu sujeito mas pode sem prejuízo ser transferida para outrem e pode ainda, deixar de pertencer ao sujeito. Esta mobilidade a distingue da beleza da natureza, que, por ser fixa, nasce e morre necessariamente com o sujeito. O caráter móvel desta beleza só é garantido de modo artificial, e por isso o mito grego estabelece o cinto como metáfora da graça. Ela não deixa de ser Afrodite por oferecer o cinto, pois com ele entrega apenas o seu encanto, mas deixaria de sê-la se perdesse a sua beleza. É com esse golpe que Schiller resolve o problema da beleza na obra de arte e, a nosso ver, justifica a necessidade de uma cultura que forma o espírito de seu tempo através da beleza de suas obras, pois para o sucesso de um projeto como este é fundamental que a beleza satisfaça duas exigências distintas, porque ela precisa ser subjetiva e objetiva, na medida em que, por um lado, pode ser transportada para o sujeito, mas, por outro, não deixa de estar presente no objeto. Já no diálogo com Körner Schiller teria dito que seu conceito de beleza era uma espécie de terceira via 38, que ultrapassa a dicotomia entre as teorias subjetivas e objetivas do belo. Ele, no entanto, deixa bem claro como a beleza “unifica” a natureza sensível e a razão humana, isto é, como se dá a passagem do subjetivo ao objetivo: “A beleza é, por isso, considerada cidadã de dois mundos, a um ela pertence pelo nascimento, ao outro, por adoção; ela recebe sua existência na natureza sensível e adquire, no mundo da razão, a sua cidadania”. (SCHILLER, 2008, 16-17)

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Na verdade, ele se refere a uma quarta forma de explicar o belo. Optamos por dizer terceira via porque, entre as explicações subjetivas do belo, há a separação entres as explicações subjetiva sensível e subjetiva racional.

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A defesa de uma beleza móvel nos permite tentar compreender outra questão, que desta vez remete à influência de Lessing. Ao assumir a função de conselheiro literário e artístico39 e polemizar (com muita frequência, diga-se de passagem) com os autores franceses ao comentar as peças encenadas no Teatro Nacional de Hamburgo, ele foi enfático ao defender a importância da ação para as peças teatrais. É a diferença entre a poesia e a pintura que garante a defesa do privilégio da ação dramática nos palcos, ideia que estava necessariamente vinculada à crítica aos franceses. Não caberia aqui discutir os pormenores da questão. Basta lembrar que Lessing se posiciona contra a tese que as regras da poesia são as mesmas da pintura [ut pictura poesis], defendida por Horácio, alegando que a comparação entre poesia e pintura é inócua, pois dela só conseguimos perceber que “as cores não são sons e os olhos não são ouvidos” (LESSING, 2007, 44) e, além disso, os meios utilizados por cada uma delas para efetuar suas imitações são totalmente diversos, pois uma se vale de sons articulados no tempo e a outra de figuras e cores no espaço. Apesar disso, o autor argumenta que, assim como a poesia, a pintura também poderia imitar ações, sugerindo o movimento através dos corpos, enquanto a poesia sugere as próprias ações. A questão central só se resolve, pelo menos até aqui, com o exemplo paradigmático do gênio. Lessing recorre a Homero para solucionar o problema: “Tenho observado que Homero não pinta outra coisa senão ações em movimento; só pinta os corpos e os objetos na medida em que estes contribuem com cada ação, e, geralmente, com um só traço. Por isso não é de estranhar que ali, onde Homero pinta, o pintor tenha muito pouco ou nada a fazer”. (LESSING, 2007, 49). Na 17ª carta da Dramaturgia, ele afirma que os alemães teriam melhor sorte se pudessem receber as obras de Shakespeare em lugar das de Corneille e Racine, porque, por um lado, teriam a possibilidade de ver algo de gosto mais elevado e, por outro, os alemães poderiam ter a influência de um gênio. É aqui que a ideia de que somente um gênio pode acender outro gênio faz todo sentido. Ainda tratando da alegoria do cinto de Afrodite, Schiller afirma que “o cinto do encanto também não perde o seu poder mágico no menos-belo e mesmo no não-belo; isto é, mesmo o menos-belo, mesmo o não-belo pode mover-se de modo belo” (SCHILLER, 2008, 10). Ele não fala aqui explicitamente de Lessing, mas sua omissão

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Tomamos essa expressão emprestada de Fátima Saadi, no texto intitulado “Estudo sobre a função do dramaturgista”, bastante esclarecedor, produzido para o 2º Encontro Questão de Crítica, em março de 2013, disponível na revista Questão de Crítica, edição de dezembro de 2013.

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não nos impede de pensar que esse “não-belo que pode mover-se de modo belo” é a deixa para entender que é a tragédia grega, com toda sua força e arrebatamento, que mesmo não sendo naturalmente (necessariamente) bela, pode, contudo, mover-se de forma bela. Além disso, a beleza da humanidade, assim como seu caráter ético, reside em sua totalidade, e não nas ações individuais: o mesmo vale para Édipo e Medéia, que não podem esconder a dor e o sofrimento em cada uma de suas ações, mas nem por isso abrem mão de encantar no conjunto de suas peripécias. A ausência de beleza das ações individuais, assim como a ausência de virtude moral ou benevolência em seus atos isolados, não impedem esses heróis de serem profundamente admirados. Afinal, a beleza dos seus gestos finais é consequência direta de suas ações anteriores. Por pior que elas sejam, a grandeza de sua existência, confirmada por seus últimos atos, é proporcional ao erro ou à crueldade de suas ações primeiras. O homem é, para Schiller, o único animal de todos os conhecidos a oportunidade de interferir na natureza e provocar uma mudança na cadeia das necessidades. Suas ações são, portanto, a única forma de fazer com que a beleza móvel apareça no fenômeno, ou seja transportada de um objeto belo para o não-belo ou menos-belo. Por isso, as ações dos heróis trágicos são a válvula de escape para que tenhamos não apenas a beleza natural, mas também aquela proporcionada pelas ações humanas. É aqui que se pode falar, então, no amálgama entre a arte e a política, ou melhor, entre a beleza e a liberdade. Individualmente, como poderia parecer uma primeira leitura da teoria rousseaniana do estado civil, ou mesmo uma recepção demasiadamente entusiasmada com os reclames dos revolucionários franceses, um homem jamais pode ser livre. Schiller deixa este posicionamento bem claro pois, tal como para os antigos, “é apenas na humanidade que o grego inclui toda beleza e perfeição” (SCHILLER, 2008, 11), os modernos também estão destinados a fracassar, porque mesmo que ambos os esforços sejam infinitos, as tarefas são em igual medida irrealizáveis. Por isso existem e só devem existir como ideal.40 Após as considerações sobre a beleza na correspondência entre Schiller e Körner e no ensaio Sobre graça e dignidade, talvez seja pertinente recuperar algumas questões que tratam não apenas do aspecto técnico do trabalho, mas do equilíbrio entre as tensões que se fazem presentes em toda essa trajetória. Pontualmente, as noções de nostalgia e 40

Para Kant, o termo ideal diz respeito à representação singular de algo adequado a uma ideia, isto é, a um conceito da razão. Schiller faz uso do termo ideal em dois sentidos: quando se refere aos gregos antigos, certamente, pensa em ideal como um modelo a ser seguido; e, no mais das vezes, se refere a uma tarefa infinita. Trata-se, pois, de uma ideia (conceito da razão) que é inalcançável.

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de amor, que tanto nos interessam no contexto mais amplo, não podem ser destacadas de forma separada nos textos de Schiller, e por isso optamos por não fragmentar nosso texto, separando cada obra das demais e analisando-as sozinhas. Trata-se certamente de uma decisão metodológica, em que pesa uma possível perda de didatismo e uma negligência aos aspectos cronológicos. Em algumas passagens as obras se misturam, até porque seria exigir demais de um autor como Schiller que os temas abordados pudessem ser tratados de forma isolada. Outra questão merece ser apontada: há uma atenção maior para as questões que trazem à tona a leitura que ele faz de Kant, o que se justifica, sem dúvida, pela importância deste autor para as reflexões sobre a estética e a arte nas décadas posteriores. Nosso trabalho não pretende examinar esta influência, apenas respeitar sua legitimidade e reconhecer seus efeitos no que toca a questão da nostalgia e do amor, e em certa medida, como isso contribui para a ideia de que se estabelece, nesse ensejo, um vínculo intrigante entre as reflexões estéticas de Schiller e a filosofia de Nietzsche. Reconhecemos, enfim, que tratar do belo e do sublime à luz da estética kantiana é fundamental (e justifica os tantos trabalhos feitos com esse interesse), mas não para nossa caminhada. Que não se entenda isso como negligência ou ignorância, mas como eleição de conteúdo e pertinência para garantir a legitimidade deste trabalho. É por isso que dizemos que poderia parecer um salto abrupto de um texto ao outro, mas há de fato uma continuidade entre eles, pois, em A educação estética do homem Schiller também desenvolve de forma mais consistente o que ele apresenta em linhas gerais nas demais obras.

4.4 As cartas sobre a educação estética do homem

Antes de qualquer outra coisa, talvez seja relevante indicar que partimos da edição brasileira da obra, que traduz, de fato, a segunda versão das cartas endereçadas por Schiller ao príncipe. A primeira versão escrita por Schiller e enviada ao seu mecenas teria sido perdida em um incêndio. O príncipe, então, solicitou ao poeta uma cópia das cartas, mas este as reformulou e remeteu, na verdade, as “novas” cartas sobre

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a educação estética do homem41, uma versão mais completa e já bem distante da forma epistolar. Apontamos que o poema “Os artistas” antecipava algumas das ideias sobre beleza que foram tratadas no ensaio Sobre graça e dignidade, e que o ensaio, por sua vez, tocava em algumas questões que estão mais bem elaboradas na sua obra mais importante. Na primeira versão das cartas42, o autor cita versos do poema que foram omitidos na segunda versão. É bem verdade que estes versos também estavam numa versão preliminar do poema e que, ao que tudo indica, foi suprimido posteriormente porque se tratava de uma ideia que foi promovida de desconfiança a certeza absoluta: a tese vital de que a artes do belo e do sublime refinam a sensibilidade, elevam o espírito do homem e aperfeiçoam seu gosto e suas ideias, já que podem libertar o homem da contingência bruta e grosseira da matéria em direção ao Ideal. Faz todo sentido, pois, que o poema estabeleça a ligação entre as duas obras, senão explicitamente, ao menos enquanto fundamento invisível. Aliás, esse ideal é explicado, ainda, por outras passagens incansáveis do poema em que Schiller elogia os gregos, exalta a arte e os artistas, retificando sua inspiração em Winckelmann e sua visão nostálgica da Grécia. Por fim, a supressão dessas passagens na segunda versão das cartas, poderia ter ainda mais uma motivação: a modernidade caminhava a passos largos e o espírito já não era tão dependente de um modelo que precisasse ser lembrado. A nostalgia estava digerida e poderia ceder seu lugar ao amor que o homem moderno nutria agora, com muito entusiasmo, por suas próprias ideias e por si mesmo. Não é à toa que um dos grandes elementos que instaura a nova ordem no mundo europeu é o nascimento do indivíduo como instância majoritária das decisões políticas da modernidade. A noite de 4 de agosto, citada anteriormente, não nos deixa mentir. A epígrafe escolhida para a série de cartas não é apenas um convite para o leitor. Em primeiro lugar, trata-se de uma frase de Rousseau, e isso já sugere algumas coisas. Nos alerta, por exemplo, da influência iluminista forte e presente, bem como entrega concomitantemente uma referência que também teve grande importância para Kant, um dos seus principais alicerces conceituais. Mas a surpresa maior nos chega através do 41

Há muitos detalhes sobre essa primeira versão das cartas que podem ser conferidos no livro Cultura estética e liberdade, de Ricardo Barbosa (2009). Nesta edição, ele assina a tradução da primeira versão e uma introdução que elucida os bastidores deste processo, além de oferecer dados biográficos importantes. 42 Nas observações que faremos a seguir, vamos cotejar as duas versões das cartas, entendendo que em alguns momentos a primeira versão é mais objetiva e direta do que a segunda. Além da vantagem didática em relação ao esclarecimento do conteúdo, a comparação torna visível a diferença de escrita entre ambas. Contudo, ao fazê-lo, adotaremos o seguinte critério: a primeira versão das cartas obedecerá ao critério das datas; a segunda versão, pela numeração das mesmas.

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conteúdo da citação, que diz: “Se é a razão que faz o homem, é o sentimento que o conduz” (SCHILLER, 2002, 17). Assim como Kant procurou percorrer o caminho especulativo acerca da maneira como os homens conhecem o mundo separando o joio do trigo, isto é, deixando o que cabe à razão para ela e reconhecendo o trabalho efetivo da sensibilidade, Schiller também procura separar as atividades por suas faculdades. Ele não pretendeu, em momento algum, apontar uma direção mais segura entre a razão e a sensibilidade. Mas foi enfático ao afirmar que separadas nenhuma dessas esferas poderia levar o homem ao seu dever, e que, para concretizar algum percentual desse sucesso, tanto a razão como a sensibilidade são imprescindíveis. O sentimento, não sendo um conceito e tampouco uma simples impressão, é capaz de sustentar o homem na sua busca improvável pela liberdade da humanidade. Já chamamos a atenção, em outro momento, para a interferência dos acontecimentos históricos na produção de Schiller, em especial, durante o longo período de gestação de sua peça teatral Don Carlos. A mudança na perspectiva do Marques de Posa, que revela um crescente interesse político inescrupuloso que acaba por refletir na sua relação com Carlos, parece ter sido trabalhada à luz da reflexão do autor sobre o andamento da Revolução em Paris. A proximidade do homem com o exercício do poder, cuja oferta é aviltante e a promoção instantânea, se transforma em um dos grandes temas da obra. No plano histórico, fica cada vez mais perceptível a distância que separa a nobreza dos valores defendidos pelos intelectuais que influenciaram a Revolução e as intermitências e vicissitudes da ordem prática do poder. Os interesses, os conflitos e a urgência de tomar decisões em tempo real, ou, para usar uma expressão do senso comum, a dificuldade de se fazer a história, vem à tona de maneira avassaladora. Talvez seja por isso que, na quinta carta, Schiller trata do caráter do homem em sua relação com o Estado e da precariedade da cultura ocidental moderna e do improvável sucesso do ponto de vista dos valores associados à Revolução. A provocação inicial é a seguinte: “Será este o caráter revelado pelo nosso tempo, pelos acontecimentos contemporâneos?” (SCHILLER, 2002, 31). Ainda que não seja tarefa das mais complicadas associar esses acontecimentos à Revolução Francesa, notemos como na primeira versão das cartas a referência é bem mais direta: “A tentativa do povo francês de estabelecer-se nos seus sagrados direitos humanos e conquistar uma liberdade política trouxe a lume apenas a incapacidade e a indignidade do mesmo, e

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lançou de volta à barbárie e à servidão não apenas este povo infeliz, mas, com ele, também uma considerável parte da Europa, e um século inteiro” (SCHILLER, 2009,74). O que está em ambas e não nos deixa mentir é o fato de que ele identifica o problema como sendo o encontro entre um desenvolvimento intelectual singular, capaz de criar os valores necessários para que a liberdade seja o fundamento das relações humanas e a dignidade um bem desejável e exequível, mas o material humano como um todo, não em seus particulares, não estava ainda apto ou sequer poderia ser capaz de fazer valer esses valores. Do ponto de vista moral e político, estávamos muito mais inclinados para estabelecer as relações sociais e morais a partir dos vícios, da corrupção e dos interesses privados, do que de colocar como norte de nossas ações a glória de nosso pensamento. Este aspecto é extremamente interessante porque revela a motivação principal para um projeto de uma cultura estética, capaz de aproximar as ações do homem prático e as ideias do homem intelectual. Ficaria, dessa forma, justificado o projeto pedagógico-estético de Schiller. A humildade é um aspecto característico de sua escrita pode ser percebido com certa frequência. Seja se referindo a Kant, ao príncipe, ou a algum de seus interlocutores, ele costuma ser impecável e delicado no tratamento, a ponto de correr o risco de suavizar demais suas afirmações e o tom das colocações. Na sexta carta, porém, um arroubo o toma de assalto, e com autoridade e autoconfiança Schiller anuncia um diagnóstico geral da humanidade, marcado pelo egoísmo, pela falta de decência moral, e pela fissura aberta através de um fracasso do esclarecimento. Embora tenha prometido a liberdade, nossa cultura nos deixou ainda mais carentes. A promessa deixou lugar para uma tirania da grosseria, pois a razão não foi capaz de enobrecer os sentimentos e elevar as nossas intenções. Sobre o longo diagnóstico que encerra a quinta carta, onde se pode identificar questões morais, políticas, cognitivas e da própria estrutura do Estado moderno, Schiller afirma: este estado de coisas não diz respeito apenas ao seu tempo presente, mas “assemelha-se também a todos os povos a caminho da cultura, pois sem distinção tiveram de abandonar a natureza através da sofisticação, antes de poderem retornar a ela pela razão” (SCHILLER, 2002, 35). Ele acredita ter “provado demais”, sugerindo uma interpretação cíclica do choque entre a natureza humana e o seu exercício na vida em sociedade. A crítica à modernidade passa, como não poderia deixar de ser, pela comparação entre antigos e modernos, isto é, entre a Grécia antiga e a modernidade europeia. Na sexta carta de A educação estética do homem Schiller retoma sua posição crítica em 112

relação à cultura moderna e é ainda mais enfático ao ressaltar que o processo de fragmentação no campo do saber, ainda que ofereça algumas vantagens do ponto de vista científico, traz em sua gênese um rompimento brutal com a noção de totalidade dos antigos. Esta diferença, que para muitos pode ser apenas um mero detalhe, para ele é a demonstração da formação de uma cultura mais fraca e artificial O elogio aos gregos, mais frequente nos seus textos anteriores, reaprece aqui com dupla função: num primeiro momento, nostálgica como no tom dos poemas “Os deuses da Grécia” e “Os artistas”; num segundo momento, paradigmática, apontando-os como nossos modelos e rivais. Para os antigos, saltava aos olhos a ausência de fronteiras e demarcações do saber, da cultura, da visão de mundo. Poesia e especulação – entendida aqui como filosófica ou científica – não faziam de suas diferenças particulares um desencontro de seus fins, pois ambas, aos seus modos, “honravam a verdade”. Essa expressão de Schiller nos convida para a seguinte provocação: “Que indivíduo moderno, apresentarse-ia para lutar, homem a homem, contra um ateniense pelo prêmio da humanidade? (...) Porque o indivíduo grego era capaz de representar seu tempo, e por que não pode ousálo o indivíduo moderno?” (2002, 36). A resposta vem em seguida: “porque aquele recebia suas forças da natureza, que tudo une, enquanto este as recebe do entendimento, que tudo separa”. (2002, 36.) Nesse momento ele já não está mais preocupado em apenas reconhecer os méritos dos autores gregos, porque, para além deste olhar nostálgico, pretende fomentar dentro da cultura germânica a ideia de que é plenamente possível e fundamental superar os gregos43. Essa sede de originalidade não o impede de olhar criticamente a cultura de sua época, e perceber que a origem deste problema está no próprio seio da cultura moderna. Chama à atenção a lucidez ao autor, que não deixa de reconhecer todos os lados da questão: não se trata de um olhar nostálgico a ponto de endeusar os gregos, pois ele afirma que a racionalidade também intervinha nos processos e nos valores dos antigos, chegando, inclusive, a estabelecer um debate e confronto entre razão e sensibilidade. Isto é: mesmo com a separação e a comparação entre ciência e arte, tomando-os como representantes análogos da razão e da sensibilidade, essa fragmentação não chegou a provocar uma ruptura irreconciliável, nem tampouco dilacerou por completo a natureza sensível do homem. O olhar crítico permite, de fato, observar que os efeitos da racionalidade e da 43

Ver: BUTLER, E. M. The tiranny of Greece over Germany. Cambridge: Cambridge University Press, 1935; e SÜSSEKIND, Pedro. “Schiller e os gregos” in: Revista Kriterion. Belo Horizonte: UFMG, nº112, p.243-259. 113

valoração do conhecimento e da arte nos deixaram num estágio dilacerado, mutilado, incapaz de mover-se em direção à liberdade. Schiller admite que, mesmo com todo o prejuízo a ser registrado em conta, não houve outra forma de progresso possível. A oposição entre as potencialidade do homem foi responsável pelo grande salto técnico que a humanidade deu, e seria preciso reconhecer que também hoje, na primeira década do século XXI, nossa cultura acabou por acelerar e aprofundar esse processo, de modo que avançamos demasiadamente do ponto de vista técnico-tecnológico. Mas isso não foi o bastante, até porque temos que admitir que a cultura não é apenas meio, mas também fim. Um projeto de educação estética, ainda que num primeiro momento parta da ideia de que a educação das sensibilidades, para falar de um dos eixos do projeto, é uma mediação, um instrumento para um novo homem e uma nova humanidade, vai acabar tendo que enfrentar, em tempos vindouros, um estado de coisas que nos provoque com outra questão. Se possível for, quando o indivíduo estiver devidamente apto a conviver melhor com a sua natureza sensível e a fazer um uso adequado da sua racionalidade, e mais ainda, leve o suficiente para deixar que ambas as faculdades entrem em conflito, haverá outro desafio? Haverá um terceiro homem, um além-homem? Se essas questões porventura se esgotarem, ou pelo menos se algum dia desenvolvermos um processo cultura que dê conta dessas questões que ainda nos são tão caras e delicadas, com o quê nos debateríamos? É irresistível, agora, lembrar-se de Nietzsche. Mas deixemos para depois, porque o conflito entre as faculdades e a função dos impulsos ocupa as linhas das cartas seguintes, nas quais Schiller dialoga com Fichte, mais uma vez. Salientamos, anteriormente, o debate entre eles acerca da escrita filosófica. Entretanto, considerando a importância de Fichte dentro do cenário intelectual de sua época e o teor de parte das cartas onze, doze, treze, quatorze e quinze não restam muitas dúvidas de que o impacto da contribuição fichteana ocupou mais tempo e reflexão por parte de Schiller. Na décima primeira carta, além de recorrer a argumentos de Fichte e de Kant, ele nos dá uma mostra de como pode ter formado algum tipo de síntese entre a nostalgia e a admiração pela cultura grega e a visão de mundo inegavelmente moderna de seu pensamento. Do primeiro, ele reafirma e ideia de que o fato de pensar, sentir e querer não garante a existência do homem, pois ele é, afinal, o ser que é. Essas demais atividades ocorrem porque, estando no mundo, o homem se dá conta de que não está só e há algo 114

que é muito diverso e independente dele mesmo. Do segundo, ele recicla o argumento epistemológico que apazigua a diferença entre racionalistas e empiristas, ao dizer que o homem só se torna fenômeno para si mesmo através da recepção das impressões daquilo que vem da realidade, da matéria, isto é, a partir da percepção. A noção de indivíduo, por ele mesmo, enquanto consciência de si, só se forma depois da relação do homem com o mundo, e da sucessão de experiências realizadas, que podem promover a modificação do homem e legitimar, assim, sua existência. A mudança, se perpetuada, dá condições para se pensar no homem em termos infinitos, na falsa eternidade do indivíduo, maquiada pela representação da individualidade dentro da humanidade. Isto é: o indivíduo morre, mas o homem se perpetua no conjunto dos seus semelhantes. Talvez seja difícil pensar essa ideia sem ignorar, ao mesmo tempo, que antigos e modernos se separam aqui radicalmente. Se os primeiros simplesmente não fizeram uma separação objetiva entre homens e deuses, a perpetuação faz todo o sentido mesmo inserida numa lógica, digamos, homérica, pois é a possibilidade de se aproximar da divindade que justifica, para a visão de mundo homérica, todo sacrifício na vida humana. Ao menos como metáfora, é dessa forma que os deuses poderiam ser desejáveis e funcionar como modelo glorioso para o homem comum. Até mesmo depois do grande poeta, a cultura órfica, que deixou rastros mesmo na filosofia de Platão, assegurava que de alguma maneira os homens podiam imaginar-se deuses44. Há um aprofundamento desse tema na décima segunda carta, na qual Schiller distingue os impulsos sensível e formal. Resumidamente, podemos dizer que o impulso sensível é responsável por garantir a realidade do homem, pois o limita através da própria natureza sensível humana. Como flerta com o tempo, esse impulso está ligado às mudanças que ocorrem na matéria, no mundo físico, e, por isso, estabelece a finitude como característica intrínseca ao homem. O outro impulso é o formal, que se opõe diretamente ao sensível, porque parte da natureza racional do homem. Justamente por ter essa origem, este impulso está ligado às decisões e à afirmação da personalidade. É ele também que direciona o homem para a liberdade. Nas palavras de Schiller, “enquanto o primeiro impulso constitui apenas casos, o segundo fornece leis” (2002,65). Isso quer dizer que, na visão do autor, o sensível está ligado aos sentimentos, pois diz respeito à experiência momentânea de uma pessoa e às suas inclinações, predileções e motivos, em suma, aos aspectos particulares. O formal está ligado à razão, 44

Ver: REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1999. Vol. I.

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ou ao sentimento moral, portanto, às decisões eternas, ao dever ser. É através deste impulso que o homem deixa de ser indivíduo para se tornar espécie, porque nele as afirmações e os juízos elevam o homem no horizonte do ser, onde ele alcança uma unidade de ideias. Em função da notável oposição que se estabelece entre os impulsos sensível e formal, parece irresistível solicitar um terceiro, na expectativa de resolver a contradição posta no confronto. Porém, na décima terceira carta, Schiller declara ser impossível pensar esse terceiro impulso com um argumento aparentemente simples: os dois esgotam o conceito de humanidade. È importante lembrar, contudo, que mesmo com a constatação de uma contradição irresoluta, os objetos desses impulsos não são os mesmo, e, portanto, eles não podem se autoexcluir. É preciso, na verdade, vigiar e assegurar os limites e o funcionamento de ambos, tarefa que, para ele, é de responsabilidade da cultura. Se considerarmos que Schiller admitiu, sem rodeios, que a modernidade atingiu um grau de desenvolvimento do intelecto bastante elevado, ou, digamos, compatível com as grandes ideias e valores também criados pelo espírito deste tempo, temos a indicação que uma educação estética teria a função primordial de desenvolver sobretudo o impulso sensível. A cultura ocidental moderna é a culminância de um processo que se esmerou em reprimir a sensibilidade e cultivar com mérito o intelecto. Sabemos disso porque a degenerescência dos sentidos foi trabalhada cuidadosamente por nossa cultura, tendo em vista o privilégio do intelecto, cujo pleno desenvolvimento, inclusive, dependia do fracasso ou da supressão da sensibilidade. Como se, por exemplo, a negligência à nossa natureza sensível já fosse um indício de que ali o espírito e o intelecto trabalhavam bem, com grandes chances de sucesso em sua tarefa formadora. Ele aponta, então, para a importância de trabalharmos no entendimento e no bom uso das sensibilidades, evitando que o impulso sensível invadisse o espaço do formal, mas se deixá-lo de lado, abandonado à sorte. Mas, nem por isso, o impulso formal prescindiu de uma orientação adequada. Mesmo aceitando a proposta de que a modernidade já teria alcançado um grau de desenvolvimento suficiente do intelecto, permanece a necessidade de evitar que ele também, assim como a sensibilidade, adentrasse em um espaço onde não é bem-vindo. Para tanto, Schiller deseja nada menos que uma cultura capaz de ensinar a regulamentar os espaços de cada um dos impulsos, reconhecendo e respeitando suas limitações, e 116

evitando que haja uma interferência de ambas as partes. Essa cultura deve, pois, permitir que a faculdade receptiva, isto é, os sentidos, realizem os contatos mais plurais e diversos a fim de ampliar seu horizonte de referências, levando esta faculdade ao maior espectro possível de experiências e sentimentos; mas, ao mesmo tempo, possibilitar que a faculdade racional trabalhe com a maior independência possível da faculdade receptiva, e com isso potencializar ao máximo a atividade racional. Ou, nas palavras do próprio Schiller, “o impulso material tem de ser contido em limites convenientes para a personalidade, e o impulso formal deve sê-lo pela receptividade ou pela natureza” (2002,71). Na décima quarta carta, ainda tratando da necessária e improvável relação de equilíbrio entre os impulsos sensível e formal, surge a hipótese do impulso lúdico figurar como uma resultante entre outros dois. Ora, na carta anterior ele tratou esse terceiro impulso como um conceito impensável, e soa contraditório requerer agora essa alternativa. Pois bem. Parece que se trata apenas de considerar a possibilidade deste terceiro impulso, já que, do ponto de vista da especulação, ele é possível. Se no mundo prático ele for de fato inviável, ainda que isso demonstre um Schiller muito otimista, não há obstáculo que o impeça de ser pensado. Como um norte para os instrumentos de navegação, ou como a glória para os heróis gregos, o impulso lúdico figura então como um estado raro e singular, no qual o homem poderia se dar ao requinte de se perceber como matéria e ter consciência de seu espírito concomitantemente. Este seria o estado do homem livre, consciente de sua humanidade e da sua finitude. Ele é a própria realização de nossa destinação ambígua e aparentemente impossível: uma figura plena de experiência e de razão, livre de não se submeter às intempéries da materialidade e também de não se subjugar às leis cegamente. E, se a liberdade for uma questão teleológica na filosofia kantiana, não resta dúvida de que, mesmo fazendo concessões diferentes das de Kant, Schiller também entende a liberdade como o fim último a existência humana. A décima quinta carta parece ir de encontro à noção de beleza desenvolvida em Sobre graça e dignidade. Lá, ao defender uma beleza móvel, isto é, uma figura que depende do seu movimento, preferencialmente gracioso, para garantir sua aparência bela, talvez não estivesse clara a questão do impulso lúdico. Por isso esta carta parece estar de mãos dadas com o ensaio, especialmente no sentido de dar uma explicação mais técnica e menos ensaística para a questão da beleza. Em síntese, Schiller afirma que o 117

objeto do impulso sensível é a vida, o do impulso formal é a forma, e o do impulso lúdico é a forma viva. Este último, segundo ele, é um “conceito para designar todas as qualidades estéticas dos fenômenos” (2002,77), o que, enfim, chamamos de beleza. Ainda nesta carta ele retoma outra ideia de Kant presente na terceira crítica: o livre jogo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento. É preciso entender o jogo como atividade que só existe como coexistência, isto é: o homem só joga quando ele é pleno, e só pode ser pleno (tanto ele quanto a humanidade) quando joga. É na beleza que ele joga, pois ela regula esse estágio intermediário entre as esferas do mundo material e do mundo intelectual. É, por assim dizer, uma síntese, no melhor sentido hegeliano do termo, porque a beleza é similar à liberdade. Se esta é o próprio jogo enquanto livre dos excessos da vontade e das leis no mundo civil, a beleza é seu amálgama no mundo estético. Afinal, é nesse sentido que devemos entender a afirmação de Schiller que a beleza é cidadã de dois mundos. Há, contudo, um alerta: devemos ter cuidado ao observar esse livre jogo da beleza, porque não se trata da beleza cotidiana, ou da beleza no aspecto mais corriqueiro da vida material, por mais que esta pareça muitas vezes uma fonte inesgotável de prazer e irresistível atração para o homem. Para explicar este porém, Schiller evoca, mais uma vez, os gregos antigos. A busca pela satisfação da beleza deve acompanhar o impulso lúdico, e não os demais impulsos, pois assim estaria cedendo e subordinando sua busca a determinações particulares, ou bem da natureza sensível, ou bem da razão. Enquanto os gregos contemplavam a força, a precisão, velocidade e a flexibilidade dos atletas em suas performances nas competições olímpicas, os romanos, por exemplo, enchiam-se de sentimentos ao assistir o sangue jorrando e os gladiadores lutando pela vida com leões. Excluindo as imagens da comparação, o que temos é o preenchimento de um anseio elevado dos gregos, ao contemplar as ideias através de exercícios que materializavam, enquanto fenômenos, aqueles nobres valores ou conceitos perfeitos, os romanos aproximavam-se da barbárie, ao satisfazer seus anseios de virilidade, força e covardia ao assistir as lutas nas arenas. É notável que, nesse caso, os romanos estariam cedendo ao impulso sensível e negligenciando o formal. É digno de observar que, nesse exemplo, Schiller nos lembra bastante o tom das comparações de Winckelmann nas suas passagens em que exaltava sua visão da elevada cultura grega. O que se torna imprescindível desta sequência de cartas é a compreensão de que o impulso lúdico, patrocinador da beleza, poderia suspender a contradição entres os dois outros impulsos, e, com isso, o homem não precisaria mais oscilar entre o exercício 118

pleno das faculdades racionais ou a satisfação plena dos desejos materiais. E, se admitirmos que a nossa cultura se esmerou em investir a maior parte de sua energia em tentar suplantar a necessidade de satisfazer os desejos materiais em prol de um desenvolvimento galopante do intelecto, através da o arsenal de técnicas que fez alavancar a aparência de civilização no mundo ocidental, poderemos constatar que o tempo trouxe à luz dos olhos a conta a ser paga. A carência deixada na educação das sensibilidades provou ser nociva demais para uma cultura que pretende ser civilizada. A própria ideia de uma civilização higiênica, pura, brilhante de ideias, mostrou-se fadada ao fracasso. Comparativamente, o trabalho a ser feito para alcançar um nível satisfatório em relação ao impulso sensível é muito maior do que para o impulso formal. Esse homem moderno, desequilibrado no desenvolvimento de suas potências, não está preparado para realizar o livre jogo das faculdades e, portanto, está inapto para a satisfação do impulso sensível. A vigésima sexta carta dá tons finais ao debate em torno do livre jogo e de seu papel na educação estética da humanidade. Há, nas cartas que a precedem, um debate muito interessante em relação à maneira como esse processo é gerido internamente pelo homem. Schiller é forçado a recuperar ainda as noções de beleza do diálogo com Körner, o Kallias, e a noção de sublime da Crítica da faculdade do juízo, de Kant. Por mais atraente que seja essa discussão, sobretudo do ponto de vista técnico da filosofia, ela não caberia aqui neste momento, pois os pormenores lá apresentados não conferem diferença substancial ao nosso texto. No nosso entendimento, há a necessidade de privilegiar a compreensão da formação cultural da humanidade a partir de uma educação estética e, essencialmente, como ela se justifica pela visão de mundo apresentada por Schiller. Nesse sentido, talvez seja preciso lembrar algumas questões. Primeiro que a liberdade não se apresenta como finalidade das ações humanas. Ela é, antes disso, ponto de partida, pois tem origem no impulso sensível. Schiller explica isso argumentando que, por analogia, o homem nasce livre e tem toda sua existência inicial em harmonia com a sua natureza, isto é, no começo, o homem é livre por seguir a natureza. No segundo estado, ele se torna dotado de razão e a desenvolve a ponto de pensar as suas ideias mais significativas. Mas este homem já é capaz de criar, e não somente de seguir a natureza. Ele agora pode contemplar a natureza e, consequentemente, abre portas para contemplar suas próprias criações. É neste momento que se estabelece o conflito entre os impulsos sensível e formal. A 119

necessidade do lúdico se justifica na medida em que o homem, agora, precisa aprender a jogar com aqueles, a ponto de domá-los e tirar, de cada um deles, seu melhor. Muito bem. Mas quais são as criações do homem? Não podemos esquecer que não criamos apenas obras de arte, mas que do chão onde pisamos ao céu que nos transporta tudo é resultado de nosso trabalho, de nossas ações. Julgar as nossas próprias criações parece ser uma tarefa ingrata, porque não podemos julgar com os olhos cegos nem com a mente apaixonada. É preciso olhar sem a estupidez da mera aparência e pensar sem as interferências dos interesses. É preciso jogar. Segundo que a beleza ocupa dois lugares, a saber: o de encantar o olhar distraído e despretensioso daquele homem inicial, e ser a meta, o bem almejado por aquele homem que faz. É por isso que a nostalgia em relação aos gregos faz sentido, e é pelo mesmo motivo que Schiller acredita ser possível (ou necessário) superá-los na modernidade.

No entanto, o olhar do homem agora não pode ser o de simples

espectador, que recebe da natureza e se encanta com a sua multiplicidade e pluralidade. Ele tem que poder se encantar com o que ele está apto a fazer, mas por um novo encantamento. Sem ingenuidade, porque agora homem e natureza não são mais o mesmo. Eles se separaram porque fomos capazes de nos distinguir de toda a natureza. E podem pensar agora em uma reconciliação, cuja característica principal é ser formal, porque é feita mediante regras e técnica, mas extrapola a própria forma, porque tem que parecer livre dela para ser bela. É o que Schiller sacramenta com a frase: beleza é liberdade no fenômeno. Na carta de número vinte o tema da liberdade ganha corpo e, com ele, a ideia de que é possível fazer uma aproximação com a filosofia de Nietzsche. Schiller reconhece que a ausência desenvolvimento de qualquer um dos impulsos que constituem o homem implica, necessariamente, em uma situação de ausência de liberdade. Se assim for, isto quer dizer que, dado que na modernidade o homem não se reconhecia como livre, pois se assim fosse não teria feito a revolução em nome desta liberdade, não seria possível dizer que no século XVIII o homem estava pleno, e muito menos desfrutando de sua liberdade. Mas, como Schiller admite que esse reencontro com a liberdade seja possível, e que a educação estética tem papel fundamental nessa busca, ele chega a dizer que “o homem ainda não começou” (2002,102). Essa ideia de que ainda estamos em processo e de que o homem, o verdadeiro homem, ainda não chegou, nos leva diretamente para uma das ideias mais representativas de Nietzsche. Conhecido por ter cunhado o termo übermensch, o filósofo já recebeu das mais diversas interpretações por conta do seu 120

polêmico super-homem. Na raiz de ambos, o que se encontra é o diagnóstico de uma decadência do homem moderno. E não é só isso. Em igual medida, tanto Schiller quanto Nietzsche depositou suas esperanças na arte, em especial o teatro, para (re) conduzir o homem à sua destinação: ser a superação do homem moderno. Tal superação, inclusive, traz consigo características inesperadas. Em um dos poucos pontos de desacordo com a filosofia kantiana, a saber, em relação à supressão da sensibilidade. Para Kant, o sucesso do uso correto da razão está ligado ao esfriamento da interferência da sensibilidade e dos desejos. Schiller, ao contrário, imagina que seja possível assimilar esse processo de tal forma que os desejos e a vontade se associem à razão. Diz ele: “O impulso sensível, portanto, precede o racional na atuação, pois a sensação precede a consciência, e nesta prioridade do impulso sensível encontramos a chave de toda a história da liberdade humana” (2002,101). O papel da arte, e mais uma vez Schiller e Nietzsche se aproximam, recebe um caráter duplo: por um lado, há que se pensar na tragédia grega como modelo para o teatro alemão, pois ela ocupou o lugar de formação efetivo a cultura grega da época; e por outro, o maior benefício que o teatro pode trazer é conduzir essa reformulação do homem a partir da reação provocada, tocando sua sensibilidade, mexendo com seus sentimentos e encorajando-o à mudança, a afirmar seu destino de ser um outro homem. Não restam dúvidas de que, à essa altura, as esferas ética e estética estão extremamente comprometidas uma com a outra. Os autores não escondem em momento algum que, mesmo quando se trata de uma discussão acerca de um problema estético, seu reflexo, pela maneira como eles pensam, se dá na ética. Até porque, quando o que está em jogo é identificar e interpretar os principais dilemas do homem moderno, que se deixam antever por sua formação moral ou por suas ações políticas, o que vem à tona é muito significativo: a lacuna deixada pela ausência de um cultivo das sensibilidades que tem se mostrado sem preço para a civilização moderna. Na última carta da série, Schiller retoma a questão da forma da escrita filosófica, em mais um capítulo de seu debate dom Fichte. Dessa vez, o foco é a questão da aparência, e por isso ele a aproxima ao problema do livre jogo. Mas, ao fim e ao cabo, ele parece não resistir e arrisca seus derradeiros argumentos para defender sua proposta de educação estética que, ao nosso ver, não precisaria mais de álibi, porque tanto o diagnóstico preciso feito por Schiller do homem moderno quanto a sua argumentação em prol de uma formação que eleva o homem e suas potencias e qualidades, já nos

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deixaram mais do que convencidos da sua importância e legitimidade. Com ar de conclusão, ele escreve sobre uma possível formação ética:

Somente o gosto permite a harmonia na sociedade, pois institui harmonia no indivíduo. Todas as outras formas de representação dividem o homem, pois fundamse exclusivamente na parte sensível ou na parte espiritual; somente a representação bela faz dele um todo, por que suas naturezas têm de estar em acordo. Todas as outras formas de comunicação dividem a sociedade, pois relacionam-se exclusivamente com a receptividade, ou com a habilidade privada de seu membros isolados e, portanto, distingue o homem do homem; somente a bela comunicação unifica a sociedade. (...) Somente a beleza fruímos a um tempo como indivíduo e como espécie, isto é, como representantes da espécie. (SCHILLER, 2002,140)

Tentaremos agora, julgando ser possível fazê-lo, passar da grande obra de Schiller para uma de suas obras mais polêmicas, a saber, o ensaio Poesia ingênua e sentimental.

4.5 Poesia ingênua e sentimental

O que hoje se considera um texto único é, na verdade, a reunião de três ensaios escritos de forma isolada: “Do ingênuo” e “Os poetas sentimentais”, ambos de 1795, e “Conclusão do ensaio sobre os poetas ingênuos e sentimentais, com algumas observações concernentes a uma diferença característica entre os homens”, de 1796. Nesta versão completa, que reúne os três ensaios, além de apresentar a distinção entre as poesias grega e moderna, especificando suas diferenças inclusive na nomenclatura – ingênua e sentimental – Schiller propõe a separação da poesia sentimental em três espécies, denominadas sátira, elegia e idílio. Seria possível forjar um encontro entre a vigésima quarta carta e o ensaio Poesia ingênua e sentimental. Sobre este encontro, uma ideia de Peter Szondi poderá servir de fio condutor para analisar dois caminhos diferentes: o primeiro é descobrir se o problema da apresentação de ideias filosóficas e a tensão entre o ingênuo e o sentimental convergem com o projeto de uma educação estética da humanidade. O segundo deles visa estabelecer a diferença histórica e uma possível reconciliação entre a poesia ingênua e a sentimental, e a principal referência é o artigo “O ingênuo é sentimental” 45, de Szondi. 45

SZONDI, Peter. Poésie et poétique de l’idéalisme allemnand. Paris: Gallimard, 1991.

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A escrita de Schiller se diferencia de um discurso propriamente analítico e de uma forma de apresentar as ideias que estaria mais próxima da filosofia de Kant, apesar da influência e inspiração kantianas. A polêmica com seu amigo Fichte foi apenas o estopim e serviu como justificativa para que ele se manifestasse a respeito de um problema que já fazia parte de suas preocupações, seja nas produções literárias ou filosóficas; afinal, a polêmica diz respeito ao estilo das cartas sobre a educação estética. No que diz respeito a suas obras dramáticas, Maria Stuart, de 1800, e A noiva de Messina, de 1803, são tão distintas que podem justificar o argumento de uma busca infinita pela forma ideal. Vale ressaltar que, apesar do sucesso com o público, a composição da tragédia dos irmãos inimigos foi marcada pelo uso que Schiller fez do coro na peça – o prefácio, inclusive, é dedicado a tal explicação. A tentativa de recuperar a maneira antiga de usar o coro teve uma recepção muito negativa entre os poetas e intelectuais da época, entre eles os irmãos Schlegel, Schelling e Hoffmann46. Passemos a examinar primeiramente de que maneira o tema aparece nas cartas. Há motivos para crer que essa questão tem seu surgimento lá no debate sobre as formas de escrita, tema que se torna relevante para o cerne da sua preocupação no campo da filosofia, especialmente por um motivo: o conjunto de exigências que constitui a escrita bela são como que um amálgama do conjunto de elementos necessários para se pensar a possibilidade da liberdade humana. Nesse contexto, certamente as cartas sobre a educação estética do homem constituem uma das principais contribuições de Schiller. Sua forma e conteúdo nos mostram que o problema da escrita, fruto da polêmica com Fichte, é um assunto de suma importância dentro do seu pensamento, e o fato de acompanhar toda a imersão do filósofo em suas reflexões éticas e estéticas reitera a sua relevância no debate sobre a formação cultural da humanidade, a Bildung. Não há, contudo, um uso restrito do termo ‘formação’. Ao contrário, ele parece generalizar justamente para forçar uma analogia entre humanidade e obra de arte, o que pode ser entendido como uma bela comparação entre o processo de formação dos valores nos homens e uma possível especulação teórica sobre a arte de compor. Seja o objeto a ser formado homem ou obra, os processos de formação de ambos não se diferenciam quanto à sua natureza: tendo como finalidade um ideal, tanto na formação do homem quanto na criação artística qualquer limitação pode transformar-se em cerceamento do processo, como uma barreira que intervém na formação plena. A 46

Na edição brasileira de A Noiva de Messina, organizada por Márcio Suzuki, além da tradução cuidadosa de Gonçalves Dias, estão incluídos os textos críticos de Schelling, Schlegel e Hoffmann.

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exigência de certo grau de liberdade revela a ligação íntima entre a própria liberdade e formação, e justifica a ideia de uma composição diversa e complexa, como um movimento de orquestra em que a beleza é dada pela dança entre os instrumentos, sem que cada um deles atrapalhe a desenvoltura do outro. Esta dança equilibrada é a beleza; a leveza das composições que encanta os homens e enobrece os espíritos. A definição de beleza apresentada nos Fragmentos das preleções sobre estética, compostas durante o inverno de 1792-93, pode esclarecer a concepção das formas científica e popular do artigo “Sobre a necessidade do uso de formas belas”. Ainda que as Preleções não tratem do problema das formas de exposição, a definição de beleza ali apresentada sugere uma ideia de liberdade que nos remete à de leveza, pois: “A liberdade da forma, o resultado da força que se limita a si mesma, constitui a beleza. (...) A força que se mostra no repouso é a força contida. (...) Assim, ela é bela se é livre, se não chega ao sofrimento, se não degenera em trejeitos faceais e não demonstra coação.” (SCHILLER, 2004, 68). Tanto a forma científica quanto a popular são nitidamente exemplos de anti-leveza, de apresentações que submetem o livre jogo, a dança entre os componentes. Se na forma científica é seu rigor e sua objetividade que lhe impõem peso e dureza, é a necessária adequação da linguagem que impede a forma popular exibir sua beleza. Rigidez e adequação são as limitações regulamentares que violentam a liberdade da apresentação, que inibem a exibição de sua beleza própria. A procura de uma forma que seja bela e ao mesmo tempo dê conta das necessidades que engendram a forma de exposição e a formação cultural resgata a importância de uma forma de exposição de ideias que exerça o seu papel formador. Ainda no mesmo parágrafo das Preleções Schiller faz o seguinte comentário sobre a relação entre a formação cultural da humanidade e a beleza: “Toda formação (Bildung) ou forma consiste na limitação e é, pois, de certo modo, uma restrição surgida ou por uma regra ou pelo acaso. (...) Beleza, porém, é liberdade no constrangimento, natureza na conformidade à arte; ela está presa apenas à intuição imediata.” (SCHILLER, 2004, 67). Recuperamos este tema aqui porque entendemos que o lugar do problema da escrita na investigação filosófica de Schiller está relacionado com as suas demais preocupações intelectuais, como a ética, a moral, o teatro e a história. Contudo, sugerimos que todos esses problemas fazem parte de uma preocupação mais ampla que está relacionada com a formação cultural da humanidade. Aliás, não apenas no caso de

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Schiller, mas no da grande maioria dos filósofos da metade do século XVIII e do século XIX. Passemos, porém, à hipótese a partir de Szondi. A vigésima quarta carta começa com a reflexão sobre os três estágios que a humanidade pode atingir em sua existência, que podemos entender como as três diferentes possibilidades de relação do homem com a natureza e consigo mesmo. Segundo Schiller, esses três estados são o físico, onde o homem ainda é completamente refém da natureza; o estético, onde ele se torna livre da natureza; e o moral, onde ele é capaz de dominar e subjugar a natureza. Considerando que as três possibilidades não se encerram temporalmente, e que muitas vezes coincidem no homem, sugerimos que esta ideia pode ter servido de fundamento para a teoria sobre os tipos de poesia desenvolvida posteriormente em Poesia ingênua e sentimental. Os dois tipos de poesia que representam a Antiguidade e a modernidade são, de certa forma, também uma maneira de representar a visão de mundo de sua época, pois a forma de representar tais conteúdos expressa genuinamente a maneira como o homem se relaciona com e enxerga a natureza. Ao final desta carta, porém, Schiller destaca que o homem não deve ser completamente nem o estado físico nem o estado moral, isto é, não deve ser dominado completamente pelo poder da natureza nem tampouco subjugar definitivamente a natureza através da razão, pois é urgente na trajetória da humanidade o exercício da liberdade, que permite o crescimento e a desenvoltura tanto da sensibilidade quanto do espírito – pois só assim o homem vive a sua plenitude: reconhecendo a independência de cada um desses reinos, mediante uma relação harmônica. Dessa forma, esta abordagem revela, mesmo que sumariamente, as implicações do gênero poético e suas espécies – ingênua e sentimental (daí a aproximação entre as cartas e o ensaio) – na construção da visão de mundo do homem, e, em decorrência disso, das implicações éticas que os problemas estéticos podem suscitar na Bildung. Nesses termos, entendemos que seja plausível uma aproximação entre esta carta e o ensaio sobre o gênero poético, relacionando de que maneira os dois textos acabam possam estabelecer uma relação entre as formas de escrita e a formação cultural da humanidade. Schiller articula a questão da escrita e da Bildung como percebemos nesta passagem: “Essa mesma forma técnica, que torna a verdade visível ao entendimento, a oculta, porém, aos sentimentos: pois o entendimento, infelizmente, tem de destruir o objeto do sentido interno quando quer apropriar-se dele.” (2002, 21).

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Agora, trataremos brevemente da comparação entre a poesia antiga e a moderna como desenvolvida no ensaio. Apesar de o ensaio designar-se como uma análise das espécies de poesia, Schiller trabalha com muito mais ênfase e detalhe na sua análise crítica da poesia moderna. Essa escolha reitera a nossa posição de que o autor já havia de fato abandonado o olhar nostálgico em relação aos poetas gregos, e que tenha realmente se interessado em encontrar o ideal de poesia entre os modernos, reivindicando, portanto, a necessidade de encontrar uma forma de exposição que fosse adequada e pertinente à cultura e ao mundo modernos. Além disso, se levarmos em conta a totalidade do projeto filosófico de Schiller, a analogia entre poesia e humanidade ajuda a entender o fundamento de uma suposta superioridade dos modernos em relação aos antigos. Enquanto a poesia ingênua é espelho de uma humanidade ainda ingênua, incapaz de refletir criticamente e problematizar suas questões em forma de conceito, a poesia sentimental torna-se um fenômeno típico de uma humanidade também sentimental. Esta, por sua vez, é fundada pela cultura racional, pelos hábitos e costumes construídos a partir da reflexão e ponderação do homem. Ora, em termos de organização social, os padrões modernos em muito superam os limites e modos de comportamento dos antigos. A poesia, como espelho da cultura, carrega consigo toda essa marca. Se a modernidade caminha em direção a um melhoramento do indivíduo e da sociedade, a poesia acompanha esse processo. A distância que separa a poesia antiga da moderna não envolve apenas uma questão formal. Pensar esta diferença como um mero modo de compor ou apresentar uma história seria negligenciar outra diferença crucial: a visão de mundo e as relações humanas e sociais estabelecidas na cultura grega eram essencialmente diferentes da visão de mundo e da cultura dos modernos. No parágrafo 31 de Poesia ingênua e sentimental, Schiller afirma:

O sentimento de que se fala aqui não é, portanto, aquele que os antigos tinham; é, antes, igual ao que temos pelos antigos. Eles sentiam naturalmente; nós outros sentimos o natural. Foi, sem dúvida, um sentimento de todo diferente o que encheu a alma de Homero quando fez o divino guardador de porcos hospedar Ulisses, e o que emocionou a alma do jovem Werther ao ler esse canto após uma reunião social enfadonha. Nosso sentimento pela natureza assemelha-se à sensação do doente em relação à saúde. (1991, 56)

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A partir desta imagem é possível concluir que o limite entre os antigos e os modernos no tocante à natureza encerra-se na apropriação dela mesma: enquanto os antigos viveram a natureza, os modernos a recriaram. Ele continua:

Já por seu conceito os poetas são em toda parte os guardiões da natureza. Onde já não o possam ser completamente, onde já tenham experimentados em si mesmos a influência de formas arbitrárias e artificiais ou tenham tido de combatê-la, surgirão como testemunhas ou vingadores da natureza. Serão natureza ou buscarão a natureza perdida. Daí nascem duas maneiras poéticas de criar completamente distintas, mediante as quais se esgota e mede todo o domínio da poesia. (1991, 57)

Outra diferença substancial entre a poesia antiga – ingênua – e a moderna – sentimental – está relacionada à sua realização: a poesia antiga é limitada em sua tarefa, pois a sua plenitude se encerra quando ela consegue imitar a natureza com tal perfeição que imprime na realidade o seu ápice. Por outro lado, a poesia moderna tem necessariamente uma tarefa infinita: na busca pelo ideal de harmonia na unidade entre natureza e cultura, a sua plena realização está sempre em construção, pois sua finalidade é por sua própria natureza inalcançável. Em outras palavras: a grande virtude do poeta ingênuo é ser genial dentro da sua limitação; enquanto o virtuoso poeta sentimental é aquele que compõe visando o infinito, pois o que lhe falta é exatamente o limite para o Ideal. Para Schiller, a poesia ingênua estabelece uma relação de necessidade entre homem e natureza, pois o gênio ingênuo representa a experiência humana nua e crua, propriamente dita. Por outro lado, o gênio sentimental busca a relação perdida entre homem e natureza, mediante o auxílio da razão. Assim, o poeta moderno pode usar a reflexão para tomar consciência de sua condição livre, e buscar através da liberdade a ingenuidade como modelo. Nisso consiste a busca pelo ideal na poesia moderna. Por isso a diferença fundamental entre antigos e modernos se dá na relação com a natureza, porque os modernos só conseguem perceber o seu sentimentalismo diante da ingenuidade dos antigos. É importante lembrar que ele não compara ingênuo e sentimental enquanto sentimentos, mas somente enquanto ideia (conceito), isto é, na medida em que configuram espécies do gênero poesia. Todavia, fica em aberto a possibilidade de determinar “o que é exclusivamente antigo” e “o que é exclusivamente moderno”, porque tanto na poesia moderna quanto na poesia antiga é possível identificar ambos os sentimentos.

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Mesmo assim, todos os poetas serão ou ingênuos ou sentimentais, de acordo com a conjuntura histórica de sua época ou se, por ventura, sofrer influência acidental de algo exterior. Aquilo que sobrava aos antigos na sua vida cotidiana, transforma-se em meta para os poetas modernos, pois estes buscam justamente aquela ingenuidade, aquela relação com a natureza que se perdeu e foi corrompida pela cultura. Neste caso, o sentido de corrupção da cultura representa a maneira como a racionalidade dogmática ou paradigmática da nossa tradição cultural perverteu a relação do homem com a natureza e, em consequência, ao dominá-la pôs-se a perdê-la. É nesse contexto que o exemplo da controvérsia entre Schiller e Goethe esclarece a posição aparentemente paradoxal de Schiller. Se de fato o ensaio Poesia ingênua e sentimental foi uma maneira dele tentar diferenciar a sua poesia e a de Goethe, bem como seus distintos estilos, a comparação baseia-se na possibilidade de identificar na poesia de Goethe a noção de ingênuo. Por isso ele defende que as duas maneiras de se relacionar com a natureza podem estar presentes tanto entre poetas antigos como em modernos, abrindo a possibilidade para se pensar que não ocorre um rompimento definitivo, isto é, por exemplo, que a poesia sentimental não é absolutamente livre da ingenuidade, pois se assim o fosse, deixaria de ser poesia. Esta é a sugestão que encontramos no artigo “O ingênuo é sentimental”, de Szondi. Nesse sentido, o problema mais relevante consiste na possibilidade e caminhos para se fundir, numa mesma e única obra, o ingênuo e o sentimental. No §47 do ensaio sobre o gênero poético, Schiller anuncia que tal conciliação exigiria certamente da respectiva obra a suprema perfeição na exposição, isto é, na representação sensível, e a maior riqueza em relação ao conteúdo apresentado. Segundo ele, “uma obra para o olho só encontra sua perfeição na limitação; uma obra para a imaginação pode alcançá-la também pelo ilimitado.” (1991, 63). Desse modo, a realização sensível da poesia em sua mais plena possibilidade torna-se algo irrealizável, a não ser que seja a última obra a ser feita, ou seja: a tarefa do poeta moderno é a busca infinita desta perfeição, mesmo tendo consciência da improbabilidade do alcance de sua busca. Talvez, por isso, a realização da poesia perfeita seja uma analogia da construção de uma sociedade ideal. Schiller explica com mais clareza a diferença entre a poesia ingênua e sentimental e deixa clara a analogia entre a poesia e a humanidade quando, numa cartaresposta a Humboldt, de 25 de dezembro de 1795, afirma:

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Poesia ingénua está para sentimental como a humanidade ingénua está para a sentimental. (...) a humanidade simplesmente ingénua não possui a substância para o espírito sentimental, concebida na cultura, possui, e que esta não iguala a primeira na forma, no conteúdo para a apresentação. Por isso é que a última, ao ter atingido a perfeição, se eleva a um plano muito superior à primeira. Ao ter, porém, atingido a perfeição deixa de ser sentimental, passando a ser ideal47.

Porém, é importante ressaltar que na continuidade da carta ele argumenta que a poesia sentimental apenas tende para a perfeição, e não que ela de fato atinja tal perfeição. Até porque, como já dissemos, se a poesia atingisse o nível da perfeição deixaria de ser uma espécie de poesia. Podemos concluir, por fim, que as ideias expostas no ensaio Poesia ingênua e sentimental são complementares às presentes nas cartas sobre a educação estética da humanidade, pois a diferença fundamental da visão de mundo moderna consiste na conquista da liberdade como condição humana, em contraposição ao destino traçado pelos deuses ou à redenção do homem diante da força da natureza. Além disso, se as espécies de poesia podem ser de fato análogas aos diferentes estágios por que a humanidade atravessa, podemos dizer que a forma através da qual o homem expressa suas questões combina com a sua visão de mundo e coincide com a maneira como ele percebe e compreende a realidade. É, portanto, através das formas de escrita que o homem expressa sua cultura, seu estágio de formação cultural da humanidade, sua Bildung. As cartas sobre a educação estética e Poesia ingênua e sentimental são, portanto, a própria representação da compreensão de Schiller acerca do problema da escrita, cuja solução proposta surge por dois caminhos: quanto ao conteúdo, o ensaio é propriamente um estudo analítico das formas de poesia, enquanto a forma ensaística exibe uma alternativa às formas de exposição. Da mesma maneira, acessamos o conteúdo da avaliação crítica e consciente que Schiller faz de como a cultura moderna estabeleceu seus parâmetros e necessidades na Bildung; o estilo epistolar do texto, por sua vez, é a própria elaboração de uma exposição que compreende as exigências descritas por Schiller ao longo da sua investigação. Assim entendemos que, no tocante à forma, ele experimenta nas duas obras as possibilidades e estratégias para compor uma apresentação livre dos entraves e dos 47

Tradução de Teresa Rodrigues Cadete no comentário de: SCHILLER, Friedrich. Sobre poesia ingénua e sentimental. Tradução de Teresa Rodrigues Cadete. Lisboa: INCM, 2003, p.151.

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vícios da forma científica e da popular, sem deixar escapar a oportunidade de, com a forma adequada, usar a sensibilidade do homem naquilo que ele pode ser afetado. E, ainda, no que diz respeito ao conteúdo, Schiller faz uma análise suficientemente consistente sobre a maneira como a humanidade constitui sua visão de mundo, sustentada no seu processo de formação cultural, e na forma como o gênero poético participa desse processo de formação, contribuindo para a construção dos valores morais, sem os quais a sociedade moderna jamais seria capaz de existir. É fundamental a ideia de autonomia da arte, justamente porque uma possível analogia entre arte e homem explicaria a intenção de realizar os ideais iluministas, enobrecidos pelas reflexões filosóficas que constituem o vigor da ideologia da Aufklärung. Somente pelo caminho da liberdade, guiados pela razão, os modernos conseguirão recuperar aquilo que se perdeu: no campo ideológico, a espontaneidade que fora suprimida pela reflexão; no campo da ética, a influência do impulso sensível nas nossas ações, que fora completamente inibido pela instauração das leis morais internas, que formaram o homem da modernidade. O estilo de Schiller em A educação estética do homem e em Poesia ingênua e sentimental é a maneira que ele encontrou para além do paradigma das formas científica e popular, afirmando, no conteúdo dos textos e através da forma utilizada, o papel fundamental que o pensamento e a forma de exposição do pensamento interferem no processo de formação cultural da humanidade. Até aqui, se olharmos para os três textos apresentados conjuntamente, esperamos ter cumprido a seguinte etapa desta jornada: identificar o surgimento do sentimento de nostalgia, mas não apenas enquanto uma categoria patológica, mas, sobretudo, como limite de demarcação do chamado Helenismo na Alemanha, ou até, de forma mais ampla, se possível, da relação dos modernos com a Antiguidade grega. A noção de nostalgia que ganha importância inegável com os trabalhos de Winckelmann parece ser devorada, ao longo de algumas décadas, e transformada numa espécie de amor. Dizemos uma espécie porque, na verdade, seria ingênuo demais pretender, para além daquilo que demarca este trabalho, definir o amor dentro da filosofia. Mas, independente de querer fazer ou não uma genealogia do amor, o que se apresenta como imprescindível é compreender como esse sentimento nostálgico se transforma ou é superado por um sentimento ainda maior e mais forte, o amor.

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4.6 Três metamorfoses

É justamente a partir daqui que gostaríamos de apresentar a última questão do trabalho: a passagem do amor para o trágico, ou melhor, do amor para o amor fati. Essa transformação traz consigo a marca dos primeiros indícios de esgotamento ou da crise da modernidade, mesmo que ainda em seus anos iniciais. Traz, também, a possibilidade de enxergar vínculos entre o pensamento de Schiller e o de Nietzsche. Podemos recuperar uma discussão de Sobre graça e dignidade que aponta para uma preocupação por parte de Schiller que certamente é um dos temas mais caros para o jovem Nietzsche: o conflito entre as exigências da natureza humana e a aposta de uma autossuficiência da racionalidade. Ainda que dentro do pensamento de Schiller essa questão esteja ensejada num contexto político, e, além disso, sustente sua teoria da beleza, não podemos deixar passar em branco suas observações. Em primeiro lugar, salta aos olhos o fato dele tratar do tema sem querer dar um veredicto para a concorrência entre ambas as forças no controle da vida humana, preferindo ressaltar a tensão que se estabelece entre elas e investigar o que é fruto desse enfrentamento: o livre jogo das faculdades produz a beleza no campo estético, que, em última instância, é semelhante à liberdade no campo ético. Razão e sensibilidade, a rigor não combinam nem se complementam. Contudo, quando este improvável equilíbrio deixa em suspenso seu juízo final, há uma dupla falha: nem a sensibilidade domina a razão, nem o contrário pode ser observado. Nietzsche, logo em sua primeira obra, propõe que esses dois lados em conflito aparentemente interminável, sejam interpretados do ponto de vista estético e recebam uma nomenclatura à altura, evocando as divindades de Apolo e Dioniso para formar a imagem dessas ideias. A famosa disputa entre esses deuses do mundo grego, vista posteriormente com olhos críticos48 pelo próprio Nietzsche, é repetida inúmeras vezes quando o autor se refere às pulsões no homem, e exemplifica tanto o excesso da racionalidade quanto a força brutal da natureza. Pois bem. A lucidez com que Schiller diferencia as mesmas esferas, evidentemente sem o poder das imagens divinas, chama atenção para a semelhança da visão nietzschiana. Diz ele:

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Anos depois de publicar O nascimento da tragédia, Nietzsche acrescenta às edições posteriores uma “Tentativa de autocrítica”, onde ele chama a atenção para o odor hegeliano de seu próprio texto, preso à estrutura dialética da oposição entre os deuses Apolo e Dioniso.

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Ou o homem reprime as exigências da sua natureza sensível, para proceder segundo as exigências mais elevadas da sua natureza racional; ou ele inverte isto e submete a parte racional do seu ser à parte sensível e segue, portanto, somente o abalo com o qual a necessidade natural o impele do mesmo modo que aos outros fenômenos; ou os impulsos da última se põem em harmonia com as leis da primeira e o homem é unificado consigo mesmo (2008, 35).

O nono capítulo de Eros e a civilização, de Herbert Marcuse, é extremamente esclarecedor sobre essas questões. Assim como Schiller, ele reconhece que foi o próprio homem que construiu esse antagonismo entre as esferas da sensualidade e da razão, ao adotar como fundamento os valores que reiteram para nós, com a frequência que se exige deles, que há uma diferença qualitativa entre a matéria e o espírito, entre o corpo e a alma. A superimportância que se dá ao intelecto, e consequentemente ao espírito, não é apenas uma discussão de estatuto e qualidade porque se transformou em privilégio, isto é, transbordou o que poderia ser um debate ontológico ou epistemológico para assumir função no terreno político. Estamos todos de acordo que a sugestão de um terceiro impulso, a saber, o lúdico, é a saída de Schiller para conter a imobilidade gerada pelo antagonismo entres os impulsos sensual e formal. Marcuse, por exemplo, diz “o que se procura é a solução de um problema político: a libertação do homem de suas condições existenciais inumanas” (1968, 167). Nesse sentido, o impulso lúdico é a própria liberdade, já que não se coloca emparelhado com qualquer outro impulso, nem disputa algo com eles. Ele é a força própria da vida, pairando sem as repressões que cercam o homem, tanto pelo lado da natureza, através das necessidades, quanto pela cultura da civilização, através do amparo e do sistema legal, isto é, a lei. Ao invés de temer a morte a ponto de fazer tudo para evitá-la, protegendo-se desesperadamente da própria vida, ou desejar a morte veementemente, também protegendo-se da vida, só que pela fuga imediata, este homem movido pelo impulso lúdico é semelhante ao espírito do personagem de Max Von Sydow, o cavaleiro que retorna das Cruzadas no filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman. Diante do horror da peste e da eloquência brutal da morte, o cavaleiro se vê forçado a pensar sobre o sentido da vida. Sua chegada, porém, é marcada pela presença inusitada não da morte enquanto fenômeno natural, mas da morte personificada. Ele, então, antes de temer a morte ou aceitá-la resignado, desafia-a para um jogo de xadrez, talvez pleiteando um tempo maior para suas reflexões existenciais. Afinal, ele poderia ter um sem número de reações diante da morte, antes de mostrar a leveza necessária, de gesto quase blasé, para sugerir

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uma pausa acordada, uma espécie de prorrogação, justamente para aquela que não respeita o tempo dos homens. Contudo, voltemos às considerações de Marcuse sobre Schiller. Devido ao peso da influência da filosofia de Kant, alguns leitores ficam inclinados a rejeitar alguma inovação ou novidade da proposta de Schiller, e outros tendem a vê-lo como uma passagem da filosofia kantiana para a hegeliana. Marcuse, porém, afirma de forma contundente: “essas ideias representam uma das mais avançadas posições de pensamento” (1968, 167). Sua proposta de uma educação estética, aos olhos de Marcuse, é a salvação de uma cultura que ficou restrita aos controles repressivos que legitimou ao longo dos séculos no afã de garantir, por um lado, um comportamento sexual reprimido a partir da supressão dos instintos; e, por outro, a compensando essa repressão com os grandes avanços proporcionados pelo desenvolvimento do intelecto e da ciência. A denúncia da repressão à sensualidade, em especial, aproxima Schiller de Nietzsche, ainda que este mesmo o condene por ser “kantiano” demais. Primeiro, se o projeto está vinculado necessariamente ao valor que a arte tem para a formação da cultura, neste ponto ambos estão de mãos dadas. Uma educação estética é, necessariamente, uma educação das sensibilidades. Segundo, o diagnóstico da doença moderna, entendida como uma supervalorização da racionalidade e uma segregação da sensualidade, é, nas palavras de Marcuse, “o estabelecimento da tirania repressiva da razão sobre a sensualidade” (1968, 169). Nietzsche, também como médico da civilização e dotado de um olhar clínico e cirúrgico para os efeitos da cultura no nosso modo de vida, vai tomar para si, de modo bem particular, o projeto de completar o diagnóstico da civilização que divulgou e enalteceu o amor, mas esqueceu de vivê-lo.

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5 CAPÍTULO 4: “QUERO SER, ALGUM DIA, APENAS ALGUÉM QUE DIZ SIM!”49 Está tudo exposto à luz do dia, não há nada a esconder; quando se trata da verdade, qualquer um de espírito largo joga fora as mais finas maneiras. 50 Franz Kafka

5.1 Nietzsche e os gregos

O eixo central em que se deslocam as especulações e as reflexões ao longo deste trabalho é uma possível relação entre os termos nostalgia e amor inseridos no debate da estética e da filosofia da arte, principalmente na filosofia alemã a partir da segunda metade do século XVIII. Diante disso, por mais delicado e temerário que seja trazer Nietzsche para a discussão de fato somente no último quarto do trabalho, seria um equívoco inexorável deixá-lo de fora, ou, ainda, à margem. Tal equívoco seria imperdoável por dois motivos distintos, a saber: pela coragem e profundidade com que o filósofo enfrenta seus temas de maior interesse e pela agilidade e destreza com que escolhe as palavras que escreve as suas reflexões. Se Winckelmann deu os primeiros passos para que a Grécia se transformasse no modelo perturbador e mágico para a filosofia moderna, em especial na estética e filosofia da arte, Nietzsche foi o filósofo desvendou que se aquela Grécia de Winckelmann poderia ser pensada enquanto ideia de uma Grécia, processo que teve grande contribuição de Schiller e Schelling51, no fim das contas, também a modernidade e toda a filosofia desde Platão deveriam ser pensadas como uma ideia de filosofia. Uma dentre muitas possíveis. Uma filosofia que não é a única filosofia possível, mas que foi resultado das deliberações e das predileções daqueles que a construíram. O perspectivismo abre espaço então para que uma polifonia se instaure na filosofia depois dele.

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Nietzsche, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2007, p.188. 50 KAFKA, Franz. Um médico rural. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das letras, 1999, p. 62 e p.72. 51 Ver a introdução de O nascimento do trágico, de Roberto Machado. (2006).

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Contudo, assumindo esse risco e empenhando este capítulo na filosofia de Nietzsche, outros compromissos importantes pedem passagem, como, por exemplo, tratar da questão do método de aproximação ao pensamento e à obra do filósofo. Na introdução de Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos, Scarlett Marton traça um panorama breve (mas muito esclarecedor) da recepção da obra de Nietzsche na Alemanha, Itália e França, e, consequentemente, no Brasil. Ao fazê-lo, ela trata de maneira didática os problemas que envolveram o estabelecimento da obra de Nietzsche, elaborada na íntegra por Colli e Montinari, já corrigidos os equívocos e arbitrariedades provocados, sobretudo, pela irmã do filósofo, Elizabeth Förster-Nietzsche. Outra observação importante diz respeito à datação e divisão do conjunto dos textos em períodos. Como nosso trabalho não tem a pretensão de debater essas divisões, tampouco especular sobre uma possível alternativa interpretativa, acolhemos a divisão sugerida por Scarlett Marton, adotando os três períodos (1870-1876, 1876-1882, 18821888), mas fazê-lo de forma normativa, submetendo o conteúdo de nossas reflexões às categorias, apenas considerado-as na medida em que for necessário para o bom andamento do trabalho. A leitura de Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos tem também o mérito de fornecer os diferentes usos que se deram à obra de Nietzsche. Mais uma vez, para evitar problemas futuros, reconhecemos que, enquanto for possível, vamos nos ater ao texto de Nietzsche, sem privilegiar a perspectiva hermenêutica ou a da “caixa de ferramentas”. Assim como Winckelmann e Schiller, Nietzsche é mais um dos intelectuais alemães profundamente envolvidos com a questão da formação cultural do homem, e, também como eles, enxergou nos gregos antigos uma fonte inesgotável de questões e reflexões imprescindíveis para se pensar a cultura e o homem modernos. O entusiasmo pelos gregos que marcou definitivamente o pensamento de Winckelmann e de Schiller também fisgou Nietzsche, de forma mais intensa entre os anos de 1870 e 1876. O interesse pela reforma na cultura alemã, que comprometeu Winckelmann, Lessing e Schiller não se restringiu a este período de sua atividade enquanto pensador, marcando de maneira muito forte suas ideias ao longo de toda sua trajetória. Mas por que, afinal, seria insensato deixar o filósofo à margem desta discussão? A primeira questão fundamental a ser pensada é a seguinte: a nostalgia da Grécia está vinculada, de fato, à necessidade de se discutir o papel da arte numa empreitada rumo à reforma da cultura alemã. Disparada por Winckelmann, a visão de que os gregos encontraram-se num estágio singular, no qual a arte exercia um papel protagonista na 135

formação cultural do homem grego contaminou a geração de Schiller, mas seus reflexos atingiram por completo a visão de arte construída por Nietzsche no seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, mas também muito presente nos textos que antecederam esta obra, a saber, em suas preleções sobre a tragédia de Sófocles, no texto A visão dionisíaca do mundo e nas duas conferências “O drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia”, além de A filosofia na era trágica dos gregos, texto no qual ele defende que os filósofos pré-socráticos foram os únicos que compreenderam as forças trágicas que regem a vida dos homens. Portanto, ele também vai encontrar nos gregos uma visão de mundo singular, o auge de uma cultura artística e, consequentemente, de uma civilização forte e afirmativa. Em “O drama musical grego”, ele descreve com que provável surpresa um homem moderno se portaria diante de uma tragédia grega. O ar heroico com que trata os atores, comparados aos combatentes de Maratona, nos dá a impressão de que o esforço incomensurável tenderia a ser compensado pelo efeito provocado no público. O ator aparece mesmo com as virtudes de um nobre guerreiro, pois além da concentração e da força, mantém um entusiasmo admirável. Nietzsche menciona Lessing para admitir um elemento interessante: o rigor e a exigência do público que, mesmo ingênuo 52, seria capaz de reprimir uma desmedida no tom ou um erro de acento destacados entre os cerca de mil e seiscentos versos que cada ator poderia cantar. Um público formado pelo povo, mas de gosto elevado e delicado. Chega a chamá-lo de bárbaro, sem prejuízo algum, mas apenas para diferenciar um ambiente menos artificial para uma representação dramática. O viés da crítica de Winckelmann ganha um ar de sarcasmo na passagem em que ele deixa exposta sua admiração e, ao passo que critica duramente a relação do povo alemão com a cultura artística, deixa entrever aquele tom nostálgico de que falamos anteriormente: Não era a fuga angustiada diante do tédio, a vontade de se ver livre de si e de sua miséria, a todo preço, por algumas horas, o que levava aqueles homens ao teatro. O grego refugiava-se da dispersiva vida pública, tão habitual para ele, da vida do mercado, na rua e no tribunal, na solenidade da ação do teatro que dispunha para a calma e que convidava ao recolhimento: não como o velho alemão, que queria distração quando vez por outra rompia o círculo de sua existência interior, e que encontrava distração

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Em O nascimento do trágico (2006), Roberto Machado chama a atenção para o fato de Nietzsche se valer aqui da oposição ingênuo e sentimental, admitida, posteriormente, como uma alusão aos conceitos que Schiller discute no ensaio Poesia ingênua e sentimental.

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verdadeiramente prazerosa no debate judiciário, o qual por isso determinava forma e atmosfera também para o seu drama. A alma do ateniense, por outro lado, que vinha contemplar tragédia nas Grandes Dionisíacas, ainda tinha em si algo daquele elemento de que tinha nascido a tragédia. Trata-se da pulsão de primavera que irrompe de maneira avassaladora, um tempestuar e enfurecer-se num sentimento misto, tal como é conhecido de todos os povos ingênuos e de toda a natureza a aproximação da primavera. (2005,54) A aproximação da primavera indica a chegada da estação que promove a renovação da natureza. É o período das renovações, do brotar da flora que se faz viva a cada nascer do sol primaveril: o nascimento ou recomeço da natureza. De certa forma, o nascimento da tragédia está ligado fortemente às características de um evento como esse. O próprio irromper do embate entre as pulsões apolínea a dionisíaca e suas intermináveis reconciliações encontra abrigo na primavera como metáfora. O misto de celebração da natureza que surge renovada no solo e nas árvores se mistura com as manifestações onde renasce também o homem, onde talvez seja temerário querer mensurar o quanto há de ingênuo em crer neste renascimento, na possibilidade do novo homem. O rastro das celebrações está arraigado na nossa cultura, como o próprio Nietzsche já apontava no artigo: “como se sabe, nossos jogos de carnaval e jogos de máscaras também foram originalmente festas da primavera” (2005, 55). E o são até hoje. Infelizmente, talvez tenhamos que nos acostumar a administrar cada vez mais nossa forma de participação nesta sorte de celebração, seja em obediência à nossa tolerância para com o riso, o escárnio, a dança e a festa, seja por hábito incutido de regulamentar a economia cultural e libidinal, porque há aí uma força repressora do gozo. Afinal, não somos mais ingênuos. (!) E Nietzsche segue comparando o espectador moderno com o ateniense, sobretudo pela capacidade de se deixar tocar pela tragédia, mas não somente por ela. Também pela festa, pelo entusiasmo, pela proximidade com a natureza e com o próprio renascer. Uma qualidade ímpar de reformar-se, de adorar o movimento cíclico da natureza que transformar homem e terra a fim de torná-lo novo e ingênuo, mais uma vez. O filósofo não esconde sua admiração por Heráclito e, ao seu lado, posiciona-se em favor da mudança e contra a ordenação hierárquica e teleológica que marcou a história da filosofia desde a disputa de Platão com os sofistas. Disputa esta, que, a julgar pela primazia da ordem diante do caos, e da estabilidade diante da mudança, isto é, a história vitoriosa da tradição metafísica na filosofia, legitimada pelo lugar de destaque e pelo 137

privilégio de comentadores e admiradores, foi vencida com folga por Platão e companhia. Essa característica camaleônica contrasta com a do espectador moderno, mas também do homem moderno: seco, seguro de suas certezas e vitórias, ele não mais se sente parte da natureza e, portanto, não admira e não celebra as renovações, porque não quer e não vê sentido em voltar a ser. O passado, para ele, deve ser esquecido. Aqui talvez se justifique a ideia do surgimento do sentimento nostálgico na modernidade, porque o esquecimento enquanto meta provoca em muitos homens o anseio de retorno, da pátria-origem perdida, do passado que não volta mais. Um estado patológico, de dor incurável, cuja representação artística mais precisa poderia ser o Hipérion de Hölderlin. O ateniense “tinha ainda seus sentidos frescos e matutinos, festivamente animados, quando ele se assentava nos degraus do teatro”, que lhe permitiam encontrar aquela manifestação sem estar preparado para recebê-lo, e, dessa forma, “ele sorvia a bebida da tragédia tão raramente que ela lhe sabia cada vez como se fosse a primeira” (2005, 56-7) E se o paladar atestava a virgindade da experiência, a visão, sentido cujo valor e delicadeza Aristóteles destacou muito bem, precisaria de um choque muito forte para atravessar o embotamento do cotidiano e do hábito, que quase o torna obsoleto pela repetição e pela comodidade. Ver, como se fosse pela primeira vez, exigia uma renúncia admirável e a coragem de desnudar-se diante da vida. Mas o espírito moderno não mais permite este tipo de homem. Ele construiu sua civilização em busca de proteção, de segurança e garantias através da repetição, do planejamento e da economia. Ao invés de deixar a natureza completar seus ciclos, ele prefere interromper os processos naturais e administrar a força da natureza com a técnica e os demais instrumentos criados pela racionalidade para afastar o homem de seu passado dito bárbaro. No fim do artigo “O drama musical grego”, Nietzsche ainda faz referência à semelhança dos rituais religiosos, especialmente o católico, com o aspecto religioso da celebração musical grega, ao afirmar que “em geral, muito do ritual da missa lembra o drama musical grego, com a ressalva de que na Grécia tudo era muito mais claro, mais ensolarado, efetivamente mais belo, e, por isso, também era menos íntimo e sem aquela infinita simbólica enigmática da igreja cristã” (2005, 69). O alvo aqui parece ser o espírito esclarecido, do homem que derrubou os séculos de pouca luz e encontra-se num horizonte pleno de claridade. O homem ilustrado transformou o presente de Prometeu. Se antes ele era um acessório, roubado dos deuses, agora ele é um item de fábrica e

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todos os homens gozam de seus benefícios igualmente sem desejar tê-lo mais que o vizinho. Portanto, a diferença notável entre os antigos e os modernos a partir destas celebrações tem duplo aspecto: na religiosidade e na arte. Se Wagner é aquele que pretende reformar a música de sua época, e aqui Nietzsche ainda é admirador de seu trabalho, devemos observar que sua genialidade não é uma novidade, pois “quem à sua vista lembrar do ideal do atual reformador da arte terá de dizer ao mesmo tempo que aquela obra de arte do futuro não exatamente uma miragem brilhante mas enganadora: o que esperamos do futuro já foi uma vez realidade – em um passado de mais de dois mil anos” (2005, 70). A partir dessas palavras parece mais simples perceber o caráter ambíguo que a nostalgia da Grécia atinge com Nietzsche. Se, antes, era visível que se tratava de um sentimento negativo, pois nem naquele porto nenhum barco poderia atracar novamente e naquela época pessoa alguma poderia ver a mesma luz do sol, a partir de Nietzsche esse sentimento assume um caráter afirmativo. É uma inspiração grega vislumbrar a possibilidade de afirmar a vida, e já que aqueles homens assim estabeleceram sua relação com ela, resgatar esta relação é parte de uma nostalgia sim. Mas o aspecto negativo se esvai na medida em que o filósofo imputa ao homem a urgência por afirmar a vida, por dizer sim, e não esconder-se atrás de seus incontáveis véus de maia. Se Winckelmann aborda de forma até jocosa a decadência dos alemães, sugerindo que as condições climáticas e os hábitos alimentares produziram um corpo inapto para servir de modelo ao artista moderno, Nietzsche vai entender que a modernidade é uma civilização em processo de decadência, não em função dos hábitos alimentares e do clima totalmente contrário à contemplação das formas bem traçadas, mas pelos valores através dos quais entende e sustenta essa cultura e sua forma de viver. É assim que, em Sabedoria para depois de amanhã, ele afirma: “A cultura é apenas uma fina casca de maçã que envolve um caos incandescente” (2005, 147). Aproximemo-nos desta provocação de Nietzsche para tentar compreender em que medida a cultura, especialmente a ocidental moderna, teve êxito ou fracassou na sua tentativa de eclipsar a vida, isto é, de dar uma aparência ordenada para aquilo que Nietzsche chamou de “caos incandescente”, isto é, para legitimar as propostas e os anseios humanos na sua empreitada administrativa sobre a existência e as vicissitudes da vida humana. Essa pretensão é comum nas mais variadas culturas, distantes em

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tempo, geografia ou visão de mundo, e de certa forma sua relação com a filosofia é mais íntima do que muitos filósofos gostariam de admitir. Façamos um pequeno desvio. Uma das maneiras de interpretar a obra de Aristófanes, um dos mais importantes poetas gregos, que acompanhou de perto a chegada inédita e boa parte da repercussão do surgimento da filosofia grega, é pelo viés crítico, colocando-o no lugar de um cronista da época, à maneira como nos acostumamos, por exemplo, aos textos do saudoso Nelson Rodrigues. Crônica, enquanto gênero literário, deriva do termo Chronos, deus do tempo na mitologia grega e também uma das palavras para designar o substantivo tempo. A crônica nada mais é do que uma forma de escrita na qual o autor narra um acontecimento recente, local, geralmente associado à moral ou aos hábitos cotidianos de uma cultura, com a peculiaridade do seu olhar. Isto é: o cronista conta uma história e faz dela, também, a sua interpretação do acontecido. O que é muito comum nas crônicas é um olhar irônico e sarcástico, curiosamente semelhante em Aristófanes e em Nelson Rodrigues. Mas, no primeiro caso, ainda que se possa indicar um ar conservador na forma como ele apresenta a cultura grega, seus hábitos e valores, a ironia com que ataca esses elementos é admirável perturbadora. Um de seus alvos mais frequentes é Sócrates, que além de principal interlocutor dos diálogos de Platão, é também imagem-homem através da qual Aristófanes destila seu veneno e ironia, questionando a forma e o valor trazidos pela recente filosofia. No décimo sétimo parágrafo de O nascimento da tragédia, demonstrando respeito e admiração pelo poeta cômico, Nietzsche afirma que “o instinto seguro e captante de Aristófanes sem dúvida apreendeu o certo quando conjugou, no mesmo sentimento de ódio, o próprio Sócrates, a tragédia de Eurípides e a música dos novos ditirâmbicos, e farejou em todos esses três fenômenos os signos característicos de uma cultura degenerada”. (2003, 105) O elogio a Aristófanes não foi em vão. É também na figura de Sócrates que o filósofo alemão vai concentrar grande parte da sua crítica à filosofia. A admiração pelo poeta cômico é revelada, assim como alguns de seus argumentos recebem uma atualização pela letra de nietzschiana. A crítica à cultura realizada mediante a eleição de figuras elementares, que sugerem uma semelhança entre a filosofia defendida pelo pensador e a recepção e digestão de suas ideias no seio da vida comum, tornou-se uma das questões mais atraentes da obra de Nietzsche. Voltemos, agora, ao nosso tema. Nos capítulos anteriores pretendemos traçar de forma não linear o percurso da cultura ocidental, a partir da leitura que os alemães do século XVIII fizeram dos gregos, 140

com atenção especial para a noção de nostalgia, entendida dessa forma: num primeiro momento, como o encaminhamento idealizado dos antigos, marcado pela apropriação de ideias e de práticas que definiram a produção cultural da Grécia antiga e que repercutiu de forma avassaladora na visão de mundo e sobre a arte que a geração de Goethe e Schiller construiu. Cabe a ressalva de que essa visão de mundo e sobre a arte não foram garantidas por uma unanimidade, mas sim, por um debate intenso a partir de um núcleo de comum interesse: tentar responder qual o papel caberia à arte no processo de formação cultural da humanidade, sobretudo no que diz respeito à concorrência com a ciência e a religião, e com olhos atentos para as condições de reflexão sobre as regras do fazer artístico. Num segundo momento, como acontecimento legítimo da modernidade: as rupturas operadas pelo homem resultante desses séculos, agora se vendo impelido a dialogar com suas referências mais distantes e elementares, mas engajado num projeto do tempo presente: a construção do homem e da cultura modernos.

5.2 Schiller e Nietzsche

Nesse quesito, entendemos que Schiller exerceu um papel muito interessante e de difícil categorização: ser ponte entre a Grécia e a Europa, e ao mesmo tempo lançar perspectivas radicais que, com grande chance, talvez tenham aberto pela primeira vez a ferida do homem moderno. Esta, que se tornou mais tarde, prato predileto da dieta de Nietzsche. Dito de outra forma: este segundo momento foi interpretado como a transição do amor nostálgico sobre a Grécia num amor idealizado pela modernidade, elemento condicional para o aparecimento do tema do amor fati em Nietzsche. Por isso dizemos que o sentimento de nostalgia em relação à Grécia não deve ser entendido de forma homogênea entre os pensadores alemães. Há uma variação significativa entre a visão sobre os gregos de Winckelmann, Goethe, Schiller e Hölderlin. Por exemplo, Goethe consideraria um absurdo imaginar uma que uma obra moderna pudesse superar uma antiga, ao passo que Schiller julga a Ifigênia do próprio Goethe superior à de Eurípides. No caso de Nietzsche, entendemos que a importância da Grécia se dá, sobretudo, nas suas primeiras obras, entre os anos de 1870 e 1876, e que, destas O nascimento da tragédia ocupa lugar central.

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Guardadas as devidas proporções, especialmente em função da diferença colossal do cenário político e social da Europa entre o final do século XVIII e a segunda metade do XIX, o interesse que move ambos a pensar a questão da formação cultural passa, declaradamente, pela discussão da importância da arte nesse processo. E, porque não dizer desde já, a visão de que a arte deveria ter um papel preponderante e não subordinado aos valores de outra ordem ou subjugado pelo pensamento científico com ênfase no racionalismo, é resultado da visão compartilhada por eles sobre a Grécia antiga. Contudo, algumas observações pertinentes podem salientar nuances sobre essa Grécia e permitir o anúncio da ideia que se apresenta como primeiro começo do final deste trabalho: a passagem do amor nostálgico para o amor fati, que explica, por assim dizer, as maiores diferenças entre Schiller e Nietzsche. Schiller deixou poucas páginas sobre teoria de teatro, resultado de suas reflexões na última década do século XVIII. Do conjunto de textos que reúnem suas reflexões sobre estética e filosofia da arte, o que talvez trate mais diretamente de uma questão técnica do teatro é “Sobre o uso do coro na tragédia”. Escrito posteriormente à peça, mas como seu prefácio, o texto tem a intenção de defender a maneira como utilizou o coro em A noiva de Messina. Escrita entre 1802 e 1803 e encenada pela primeira vez em Weimar, em fevereiro de 1803, é uma de suas peças mais polêmicas. A tragédia gira em torno de Dom Manuel e Dom César, os irmãos inimigos, filhos de Isabel, a princesa de Messina. Por um anseio do povo e uma vontade particular, Isabel trabalha insistentemente na reconciliação dos seus filhos. Aqui a estratégia da trama se aproxima muito de uma autêntica tragédia grega: há uma filha, Beatriz, renegada pelo pai em função de uma mensagem temerária de um oráculo, que foi na verdade entregue a um convento quando deveria ter sido assassinada. O pequeno desvio da mãe surge então como grande trunfo para reaproximar os filhos, mas, ao apresentar-lhes Beatriz, Isabel jamais poderia imaginar que ambos os irmãos já dedicavam para a bela desconhecida irmã seus mais entusiasmados votos de matrimônio. Evidentemente que seria impossível numa única cena uma personagem ser apresentada três vezes e conservar seu frescor e desconhecimento, e, tão logo, os irmãos inimigos passaram então a ter um motivo a mais para empenhar suas armas um contra o outro, agindo, é importante dizer, na ignorância. O desfecho não poderia ser mais desencantado: Dom César tira a vida de seu irmão e, ao sabê-lo, encerra a sua também.

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Em tempo recorde Beatriz ganha e perde seus irmãos e Isabel, vê a reconciliação dos seus filhos ser alcançada da pior maneira possível. A recepção da obra foi permeada por críticas severas, das quais conhecemos as dos irmãos Schlegel, de Hoffmann e Schelling. Em defesa de Schiller temos apenas um elogio de Goethe, e a menção que Nietzsche faz no sétimo parágrafo de O nascimento da tragédia, onde podemos perceber claramente em que medida Nietzsche se baseia nele para desenvolver sua teoria acerca da origem da tragédia. É justamente este prefácio que Nietzsche menciona no §7, exaltando o ponto de vista de Schiller, essencial para a compreensão de arte trágica pretendida pelo filósofo, pois a visão é a de que o coro deve se estabelecer como uma muralha viva que isola a tragédia do mundo real para garantir seu solo ideal e sua liberdade poética. De uma forma geral, a ideia é fazer da tragédia um rompimento com a naturalidade comum da poesia dramática, passo necessário para resgatar a alma da tragédia dos tempos de Sófocles, isto é, um coro primitivo, muito mais próximo de uma manifestação da natureza humanado que parte de uma estratégia ou articulação dramática ordenada logicamente. Para ele, foram os gregos que forjaram esse estado natural, elemento importantíssimo para que a tragédia ficasse “desobrigada de efetuar uma penosa retratação servil da realidade.” (2003, 54.) Nietzsche continua, indicando de que maneira a tragédia tem sua origem no coro dionisíaco e dos rituais primitivos: Não se trata de um mundo arbitrariamente inserido pela fantasia entre o céu e a terra; mas, antes, de um mundo dotado da mesma realidade e credibilidade que o Olimpo, com seus habitantes, possuía para os helenos crentes. O sátiro, enquanto coreuta dionisíaco, vive numa realidade reconhecida em termos religiosos e sob a sanção do mito e do culto. Que com ele comece a tragédia, que de sua boca fale a sabedoria dionisíaca da tragédia, é para nós um fenômeno tão desconcertante como, em geral, o é a formação da tragédia a partir do coro. (2003, 54-5.) O que nos chama atenção especialmente é a atitude de Schiller de buscar algo reconhecidamente impossível: a rigor, a tentativa de recriar a cena trágica e resgatar o espírito inestimável de Sófocles não resultaria em outra coisa que não a frustração imediata e uma profusão de severas críticas, que, de fato, vieram. Mas com elas também uma exaltação ao menos: Nietzsche, como Schiller, dispensava questionar se se tratava da possibilidade de recriar o mundo grego, e sim, que era necessário tentar fazê-lo. Ou melhor: que só esta atitude poderia trazer de volta a verdadeira visão de mundo, o único valor realmente supremo, a condição trágica da humanidade que seria capaz de permitir 143

ao homem recriar seus valores, superando os modernos. Este retrato, naturalmente, jamais poderia ser feito pelas mãos da ciência ou da filosofia, mas apenas pela arte. Assim Nietzsche encerra o §7: Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, qual feiticeira da salvação e da cura, a arte; só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enjoados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto domesticação artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da náusea do absurdo. (2003, 56.) A tentativa de Schiller em A noiva de Messina, ponto culminante de sua busca por fundir o máximo possível a forma da tragédia grega, destacando a função do coro, e um tema da modernidade, é reconhecida por Nietzsche também nas suas preleções sobre a história tragédia grega, um trabalho escrito entre 1869 e 1879. É interessante observar que esse é um dos textos que faz parte dos seus trabalhos filológicos, marcados por um posicionamento crítico em relação à filologia praticada nas universidades alemãs. Ernani Chaves, na apresentação da Introdução à tragédia de Sófocles, argumenta que o problema girava em torno da perspectiva historicista dominante na filologia da época, que pretendia estabelecê-la como ciência e, para isso, entendeu que seria imprescindível ignorar a relação do passado com o presente. Tal relação, para Nietzsche, configurava o elemento fundamental da razão de ser do filólogo: a investigação do passado é motivada e delimitada pelo presente do investigador. Além disso, a pretensão cientificista exigia transformar, por exemplo, uma peça de Sófocles em um documento histórico, e analisá-lo a fim de assegurar a verdade dele enquanto tal. Nietzsche, ao contrário, pretendia diminuir seu valor enquanto documento histórico, e explorar a vida e o pensamento através daquelas obras. No quinto parágrafo, ao analisar o coro como elemento da tragédia grega, Nietzsche retoma a argumentação de Schiller na sua defesa do uso do coro naquela tragédia. Para se ter ideia do impacto deste empreendimento na visão nietzschiana da do coro trágico, é preciso observar a maneira como ele sai em defesa do poeta na polêmica com seus detratores: “Tudo artificial, o que foi dito contra A noiva de Messina; ele reproduziu a Antiguidade num sentido extremo, de modo muito mais profundo do que foi reconhecido na época pelos eruditos.” (2006, 67-8) Como o próprio Nietzsche diz, não foi o que pensaram August Schlegel, Schelling e Hoffmann. Schlegel apontou duas questões pelas quais ele não aprovou a peça de Schiller. Primeiro, em relação à adoção de um tema moderno e com uma forma antiga, ele afirma 144

que o resultado de uma história inteiramente inventada com uma forma nada adequada, sem verossimilhança interna alguma, foi uma representação nem ideal, nem natural, nem mitológica nem histórica. Segundo, em relação ao coro, ele afirma que o autor peca por estabelecer dois coros cada um defendendo um dos irmãos, pois sugere uma pessoalidade que não combina com a voz que unifica e compartilha de forma sublime, ultrapassando as demarcações pessoais – seu entendimento a respeito do coro grego. Schelling é mais contundente em sua explanação e fundamenta sua crítica no mesmo ponto de Schlegel: constituído de mais de uma pessoa, e empregado para tomar partido e aconselhar, a cada momento, um dos irmãos, aquele coro trai sua função primordial. Além disso, como se trata de um coro com “duas vozes”, ele parece não segurar aquele distanciamento que dá a impressão de que as personagens falam sozinhas, sem a presença do coro. Por fim, Hoffmann, de forma bem mais diplomática do que Schlegel, também estranha o fato de o poeta ter escolhido um tema moderno para uma tragédia de forma antiga, assim como observa que um coro com muitos homens tem grandes chances de fracassar caso o responsável não tenha domínio preciso da musicalidade do coro grego. Portanto, as críticas miravam fundamentalmente duas características: o uso do coro como na tragédia grega, com a peculiaridade de servir a dois patrões, e, como consequência disso, o exotismo de reunir numa mesma obra o conteúdo moderno e a forma antiga. Nietzsche, definitivamente, enxerga algo totalmente diverso. Ali onde esses críticos viram a possibilidade de uma inação no palco gerar risos na plateia, sugerindo que a tal uso do coro engessava a representação, ele enxergou que “o coro abandona o estreito círculo da ação, para se estender sobra o passado e o futuro, sobre o humano em geral, para extrair os grandes resultados da vida” (2006, 68), separando, com isso, a ação da reflexão, purificando a poesia dramática. Quando ele afirma que o coro se estende entre o passado e o futuro nos dá a impressão que vem à tona a sua diferença para com a filologia que tanto criticava. O que o historicismo desta fazia era justamente isolar a tragédia grega no seu tempo e impedir que ela, de certa forma, fizesse sentido para além do registro de um documento histórico como outro qualquer, ou seja, como um documento filosófico e poético e que, enquanto tal, poderia interferir no pensamento do homem moderno. Nesse sentido, ele faz valer a observação de Aristóteles no capítulo nono da Poética, onde, para defender que a poesia pode atingir o universal, o filósofo acaba por estabelecer uma comparação entre o termo grego historía e a poesia. Embora o 145

historiador trabalhe com fatos reais e a poeta narre muitas vezes algo que jamais aconteceu, ao sugerir que a poesia é mais verdadeira que a história o filósofo não entra em contradição. Quem explica bem esse aparente paradoxo é Rafael Barbosa no artigo “Quando o irreal é mais verdadeiro que os fatos” (2009), onde, a partir da conclusão de Aristóteles de que a poesia é mais verdadeira que a história porque ela trabalha com as coisas universais enquanto a outra com as particulares, escreve: “Esta conclusão é realmente perturbadora. Como a poesia, que se dedica a narrar coisas que de fato não aconteceram, coisas sabidamente irreais, pode ser mais filosófica e diligente que a história que se preocupa com os fatos que ocorreram efetivamente?” (2009, 77). Diferentemente dos pensadores da geração anterior, que enxergavam em Platão e na sua filosofia algo realmente valoroso, Nietzsche se posiciona como crítico voraz de seu pensamento, elegendo a figura de Sócrates como porta de entrada para o universo da filosofia platônica. Bem, Aristóteles também se posicionou contrário em relação à filosofia de seu mestre de outrora. Não é apenas no quadro A escola de Atenas, de Rafael Sanzio, que os dois mais influentes pensadores da língua grega apontam em direções contrárias. São muito conhecidos os argumentos de Platão a respeito desta questão. Basicamente, podemos dizer que há uma problematização do tema lançada no diálogo socrático Ion, onde não aparece crítica alguma à presença da poesia ou de qualquer outra arte na polis. O alvo das especulações de Sócrates é a arte do poeta, que além de ser inspirada pelos deuses, acaba afirmando questionável: a ideia de que o poeta, por narrar muitas ações distintas, poderia dominar cada uma delas através da sua própria arte, o que significaria dizer que o poeta dominaria também a arte da medicina, da carpintaria e tantas outras quanto couberem nos versos homéricos (no caso do Íon). O interrogatório não conduz ao veredicto, e a posição de Platão só se define concretamente depois, na sua obra mais importante, A república. Nela, o tema aparece em dois momentos: no livro III, quando o filósofo reconhece o grande valor e o potencial da arte, em especial a música, sobre a formação do caráter dos homens. Da sua potência descende o seu perigo: é justamente por isso que a poesia e as outras artes devem ser vigiadas de perto, para não criar maus valores nos governantes e guardiões. A perspectiva do filósofo só se consolida na sua decisão de afastar a poesia da polis no livro X, ao considerar a mímesis uma imitação depreciativa da ideia, o que significa dizer que as obras resultantes da produção humana, não passam de uma cópia degenerada das ideias, estas sim, eternas, imutáveis e perfeitas. As artes audiovisuais, 146

em especial, estariam condenadas à desvalorização ontológica se comparadas às ideias e estariam afastadas em dois graus. O artista seria uma espécie de produtor de falsas realidades. Portanto, grosseiramente, podemos concluir que, para Platão, uma tragédia, independente de seu conteúdo, seria condenada por sua natureza mimética e incapacidade pedagógica de formar os cidadãos de que a cidade precisa, isto é: ela seria capaz de entusiasmar os homens em direção à formação e conduta ideais, mas não teria condições de formá-los para este fim. Em sua Poética, Aristóteles faz justamente o movimento contrário. Garantidas as exigências da necessidade e da verossimilhança, a mímesis da poesia não deprecia em nada a realidade. O fato de ela ser uma imitação da natureza, não a restringe a imitar apenas o que a natureza produz, porque o homem pode muito criar algo além da natureza, imitando aí, apenas, o seu hábito de respeitas as regras da poética, a saber: a de narrar uma ação verossímil através de uma sucessão de acontecimentos ligados por uma relação de necessidade. Por isso, em relação à habilitação da poesia para participar do processo de formação do homem, não há razões para pensarmos que Nietzsche difere substancialmente de Aristóteles, até porque as críticas de ambos se aproximam quando a motivação é encontrar inconsistências ou uma espécie de moralismo na posição de Platão sobre este assunto. Não há mais tanta coisa relevante para ser dita aqui. Ao longo de sua trajetória de pensador, Nietzsche vai travar duelos profundos e intermináveis com Platão, e até já nos acostumamos a reforçar a ideia de que eles são, no campo filosófico, adversários em todos os quesitos. A empolgação dele com os gregos mais antigos é inversamente proporcional ao seu entusiasmo pela filosofia de Platão e Sócrates, tanto que, em O nascimento da tragédia, ao avaliar as mudanças inseridas por Eurípides na forma da tragédia, ele chega a afirmar que trata-se de um socratismo estético incorrigível e prejudicial para a história de nossa cultura. Em Escritos sobre Nietzsche, Giorgio Colli faz uma observação que pode causar certo estranhamento: para ele, O nascimento da tragédia é a obra mais difícil de Nietzsche. Para uma cultura acadêmica acostumada a supervalorizar o comentário e a erudição, elementos decorrentes também do estabelecimento da obra canônica de um filósofo, pode causar certa admiração que um dos especialistas mais importantes e respeitados no que toca os estudos nietzschianos tenha atribuído ao primeiro livro tal adjetivo. No nosso caso, entretanto, é interessante que ele tenha feito essa observação.

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Já dissemos que a questão da nostalgia da Grécia está localizada de maneira mais intensa nas primeiras obras de Nietzsche, e que destas, a que se destaca é O nascimento da tragédia. Também foi dito que se trata de uma obra fundamental para entendermos os limites do Helenismo na Alemanha. E, agregando a isso a suposição que ela pode ser sua obra mais difícil temos, então, um grande desafio para tentar mostrar quais os limites deste sentimento que foi notável na figura de Winckelmann, mas que engendrou algumas nuances em Nietzsche. Quando nos voltamos para o sentimento nostálgico com relação à cultura grega, até agora nos referíamos a uma cultura que incluía Platão e Eurípides, dois grandes gênios da filosofia e da tragédia. Mas este é o corte winckelmanniano, que influenciou as visadas de Goethe e Schiller. Um olhar essencialmente platônico e que se deixa compreender pela ampla defesa que ele faz do ideal de beleza dos gregos. Este conceito pode ter exercido uma poderosa influência sobre a Alemanha helenística, que se na arte estava concentrada em reproduzir o ideal de beleza dos gregos, assentado na filosofia geométrica de Platão, na filologia não deixava vir à tona essa nostalgia, que, então, não poderia se vir a ser um problema para os autores da época. Mas, com Nietzsche, a coisa muda de figura. A rejeição ao ideal de beleza se apóia na rejeição da filosofia de Platão e, com ela, entram em choque os diferentes olhares sobre a Grécia, levando o debate sobre a nostalgia a confrontar-se com as teorias filológicas em voga. Por isso, seu olhar faz um segundo corte, dessa vez, excluindo nominalmente Platão e Eurípides do panteão digno de ser admirado e desejável. Aproximemo-nos deste segundo corte, feito pelo filósofo. No que diz respeito à filosofia, o interesse pela filosofia pré-socrática e em absolvê-la da crise socrática fica nítido em A filosofia na era trágica dos gregos, e é reafirmado em O crepúsculo dos ídolos, onde apenas Heráclito escapa ao seu martelo. A nostalgia de Nietzsche tem como limite claro o desenvolvimento da filosofia platônica, para a qual ele elege dois adversários como ícones a serem atacados. Um representante da filosofia, Sócrates, e um da tragédia, Eurípides. Mas mesmo que ele tenha feito críticas direcionadas a cada um deles, o que sustenta essas críticas de certa forma é uma coisa só: o universo da aparência conquistado pela razão, cujo disfarce, na arte, toma a forma da beleza e de sua divindade, Apolo. Pouca certeza temos a respeito da biografia de Eurípides, mas tudo indica que a informação de que ele teria frequentado Sócrates e Protágoras faz todo sentido, além de

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constar na maioria das suas informações biográficas53. A julgar por algumas tiradas filosóficas que saem da boca de alguns personagens de suas tragédias (que inclusive podem não ter sido bem recebidas pelos espectadores), a sofística parece ser uma influência frequente nas suas peças, motivo que abre espaço para acreditarmos que muitas vezes o poeta revela a diversidade de opiniões e teorias que separavam filósofos e sofistas. Em sua Paideia, Jeager afirma que “a sofística tem uma cabeça de Jano, da qual um dos rostos é de Sófocles e o outro é de Eurípides” (1986,267). Se a força da sofística está presente em Sófocles através da preocupação em relação do desenvolvimento harmônico da alma humana, isto é, da formação do homem grego, a face euripidiana da sofística reside justamente no conflito com a primeira parte. Repetindo as palavras de Jeager, “a educação sofística revela seu parentesco com o mundo dividido e contraditório que aparece na poesia de Eurípides, através da oscilante insegurança dos seus princípios morais” (1986,267). Trata-se de retomar o argumento de que diante de uma mesma questão há pelo menos duas formas contraditórias de pensamento, ou seja, que se concebem ideias contrárias a partir de uma mesma questão. A sofística foi de fato responsável pelo incremento do relativismo, pelo qual recebeu inclusive o mérito e a má fama. Não caberia aqui investir nas inumeráveis possibilidades de aproximar a obra de Eurípides e as principais ideias dos sofistas no intuito de apontar claramente em que termos se dá tal influência. Basta estar atento ao fato de que as decisões residem unicamente no homem, e que qualquer força externa capaz de direcionar a ação humana, como numa peça de Ésquilo, já não merece destaque entre as obras de Eurípides. A partir da célebre frase de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são”, podemos imaginar que o homem e, em última instância, também a polis, respondem pelas ações e decisões, e isso pode ser um forte indicador de como Eurípides pode revelar a fragilidade ou a instabilidade dos grandes valores da pólis grega. Em A tragédia grega, Albin Lesky afirma: “Nas palavras de Protágoras encontramos, como algo decisivo, a ruptura com a tradição em todos os setores da vida; há nelas a reivindicação revolucionária de converter em objeto de debate racional todas as relações da existência humana”. (1996,190).

53

Ver: A tragédia grega, de Albin Lesky. (1996).

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Porém, para a leitura que Nietzsche faz da obra de Eurípides, toda a influência da sofística esteve o tempo todo a serviço da decadência inevitável da tragédia grega. É bem verdade que ele presta homenagem à grande obra do poeta, As bacantes, como sendo a sua única tragédia verdadeiramente dita. É nessa peça que o poeta questiona o valor de Dioniso e condena Penteu, por sua pretensão e desrespeito ao culto dionisíaco, a ser decapitado pela própria mãe, tomada pelo poder e pela força incontrolável da natureza promovida por uma chegada surpreendente do deus do teatro. Mas já é tarde, o tempo outro e o esforço em vão. Isto porque Nietzsche entende que o poeta sacramentou o fim da grande arte, transformando-a numa nova comédia, pois é assim que ele chama o teatro de Eurípides: “um gênero tardio de arte, conhecido como nova comédia ática”. (2003, 73). O parágrafo onze de O nascimento da tragédia é dedicado a uma análise do efeito Eurípides e o desaparecimento da verdadeira tragédia. Contudo, no fim do décimo parágrafo, o autor parece rogar uma praga para o poeta, amaldiçoando-o pelo crime inafiançável de ter provocado a morte da tragédia. Aqui a forma do texto nietzschiano extrapola toda e qualquer obediência à tessitura acadêmica e científica: ele discute em tempo presente com Eurípides, convoca-o para o desafio de justificar a arquitetura de seu assassinato. Ele o acusa de, como um bom roteirista de filme policial, ter forjado uma morte trágica para a tragédia. Visto que ela morreu de dentro para fora, as alterações promovidas pelo último tragediógrafo foram um veneno letal. Eurípides teria extirpado a alma da tragédia, e com ela, o espírito dionisíaco da vida dos atenienses. “O que pretendias tu, sacrílego Eurípides, quando tentaste obrigar o moribundo a prestar-te mais uma vez serviço? Ele morreu sob tuas mãos brutais: e agora precisas de um mito arremedado, mascarado (...).” (2003,72). Se o mito já havia perdido seu vigor e majestade entre Ésquilo, o mais trágico dos poetas, e Sófocles, agora ele tornou-se obsoleto. Ao derrubar o mito, os deuses passaram a ser supérfluos para os gregos. Nietzsche ainda sugere a aproximação do poeta com os interesses políticos da classe dominante, subordinando a obra de arte aos ditames de uma classe que pretendia nada menos que a manutenção do status quo. Além disso, o arrebatamento que outrora estremecia aquele homem ingênuo agora perdeu seu efeito, porque “cada pessoa por si só aprendeu a exprimir-se com Eurípides e, ao competir com Ésquilo no concurso, ele próprio se gaba de que agora, por seu intermédio, o povo aprendeu a observar, a discutir e a tirar consequências, segundo as regras da arte e com as mais matreiras sofisticações” (2003,74). A ingenuidade foi 150

deixada de lado por um tipo de homem que adquiriu valores socráticos, que é moderado, observa antes de julgar, compreende e obedece a regras estabelecidas. São as mesmas virtudes do homem moderno, mesmo que embrionário e tímido. A razão avassaladora, que tudo entende, controla, julga e banaliza. A crítica de Nietzsche à filosofia de Platão é feita através do mais importante interlocutor de seus diálogos, que pode ser entendido, do ponto de vista literário, como seu grande personagem, Sócrates, a imagem do homem teórico, uma espécie de “homem-conceito”, a peça original que serviu de modelo para o homem moderno e que hoje se transformou no modelo standard. É importante falar disso usando o vocabulário industrial, porque é realmente isso o que somos hoje: cópias simplificadas, produzidas em série, com rigor e padrão de processo produtivo do início ao fim. Uma peça que cada vez mais menos se diferencia das demais, que é desenvolvida na lógica industrial da máxima economia e mínima singularidade. Não queremos dizer com isso que não houve mudança significativa do que entendemos pelo termo “homem” nos últimos vinte e cinco séculos, apenas que Sócrates, ao olhar de Nietzsche, já se apresentava nos diálogos platônicos como um padrão de homem desejável, sobretudo, em função das suas virtudes e dos valores que defendia. Se Eurípides envenenou a tragédia abrindo espaço para que o espectador comum subisse ao palco, naturalizando a relação entre personagem e homem comum, podemos dizer também que Platão faz o mesmo quando aproxima Sócrates, sobretudo pelos seus hábitos e simplicidade, do cidadão ateniense. O desaparecimento dos deuses como esfera mais forte é consequência da desvalorização destes como personagem e tema principais da tragédia, cujo ponto culminante é Eurípides. A substituição destes deuses pelo homem nobre reduziu o potencial de impacto sobre o espectador, que passou a sentir-se mais íntimo da vida e da trajetória do herói trágico. O efeito causado pelas modificações que caracterizaram a tragédia euripidiana e a filosofia platônica, somados, foram decisivos para a formação de uma cultura que caminhava para o estabelecimento de uma religião única e, ainda, vazia, porque parecia erguer sua imensa estrutura e seus desmembramentos sociais a partir de um ventre oco. O poder que sustentava as religiões pagãs estava associado à força de seus deuses, isto é, de seus mitos. A paulatina desvalorização desses deuses, aos poucos sendo substituídos pelo prazer do conhecimento enfraqueceram tanto as religiões quanto a capacidade de o sentimento de religiosidade, algo próximo daquela ingenuidade schilleriana. 151

Com isso, o teatro, originariamente então uma celebração artística e religiosa, passa a ocupar um espaço fútil: ser reserva de defesa e publicização da moral nobre ou, posteriormente, burguesa. A mão de força que regia o homem abandona a arte e associase à ciência, instaurando não um regime onde o otimismo racional substituiu o respeito pela natureza. Afinal, se conduzimos nossa história em direção a uma cultura mais administrável, refém do entendimento e da moralidade, é de se imaginar que uma lógica pragmática fosse mais conveniente. A nostalgia de Nietzsche é, portanto, duplamente mais restrita: filosoficamente, pela exclusão de Platão e da racionalidade socrática, artisticamente, pela rejeição do teatro de Eurípides, marco da decadência dos valores trágicos e da visão de mundo dionisíaca. Essa cisão fez o filósofo voltar seu interesse e seu respeito pelos gregos mais antigos, mais ingênuos e menos cerebrais. Esse movimento também alcança a esfera da ética, pois a nova comédia de Eurípides fortaleceu o estabelecimento de uma moral dos senhores e dos escravos, porque a dimensão trágica da vida não mais representava a vontade e os caprichos dos deuses, e sim, a incompetência e as virtudes adulteradas dos homens. Schiller e Nietzsche chegam a conclusões muito parecidas com relação ao homem moderno, pois o primeiro afirma que o homem propriamente dito ainda não pisou sobre a terra, e o segundo, acaba desenvolver a noção do além do homem, que significaria, entre outras coisas, a superação do homem moderno. De fato, entre 1805, ano da morte de Schiller, e 1870, período em que Nietzsche inicia sua produção intelectual, muita coisa relevante aconteceu.

5.3 Nietzsche e a cultura moderna

O século XIX é marcado pelo colapso de alguns impérios, entre eles o espanhol, o francês e o sacro império. A derrocada do império francês, após as guerras napoleônicas, foi decisiva para a ascensão do império britânico. Aliás, essa transição de protagonismo no cenário europeu é chancelada pelas duas grandes revoluções: a francesa, burguesa, e a inglesa, industrial. Além disso, na química, na física e na biologia as notícias são perturbadoras: a força eletromotriz foi observada experimentalmente por William Thomson, físico e matemático irlandês, em 1851. Ao 152

longo do século alguns elementos químicos são descobertos, como o vanádio e o carbureto de cálcio. As invenções também contribuíram para mudar completamente a atmosfera e a vida cotidiana: ainda no começo do século, em 1804, foi construída a primeira locomotiva a vapor; a lâmpada incandescente, e o fonógrafo. William Morton inventou a anestesia em 1846 e os irmãos Lumière fizeram a primeira projeção pública com um cinematógrafo, em 1895. Com tantas novidades atraentes e, sob certa ótica, revolucionárias, a da lâmpada incandescente merece uma observação. Nietzsche considera que a cultura moderna nos fez acreditar na ilusão de que o trabalho dignifica o homem para, na verdade, justificar uma dupla dominação: a do homem pelo homem, como no caso da escravidão, e a da natureza pelo homem. Se ele se mostra indignado com as condições de trabalho e a violência que se estabelece ao tornar o trabalho um valor central da economia moderna, acelerada, superficial e exploratória. Quanto não ampliamos nosso tempo de trabalho e nossa capacidade de realizar mais atividades durante um ciclo do sol se este, agora, recebeu uma sobrevida criou as condições para que trabalhemos sempre muito mais? Sabemos, pois, que a teoria da evolução é para Nietzsche um tema de suma importância, da mesma forma que tomamos ciência das aproximações possíveis entre a teoria da psicanálise e os métodos utilizados por Nietzsche. É de se imaginar que todas essas novidades tenham tido um impacto poderoso na vida comum, de modo que a vida limitada do final do século XVIII deu vez a uma oferta generosa de ideias e uma expectativa impensável de alternativas para melhorar a vida humana. Sem dúvida, todas essas coisas são um reflexo do desenvolvimento da racionalidade, das suas técnicas e dos métodos científicos. Darwin, com a teoria da evolução, e Freud, com a psicanálise, enriquecem ainda mais o rol de contribuições determinantes do século XIX. Mas, de todas as grandes teorias do século, certamente a de Darwin aparece com mais intensidade no pensamento de Nietzsche a partir de Genealogia da moral. Em relação à condição em que se encontra o homem na modernidade, os dois autores afirmam que ele está muito distante do seu melhor. Mas, se Schiller apresenta uma proposta para acelerar o processo de educação estética na esperança de que, desenvolvendo as sensibilidades no mesmo grau em que ele já havia feito com a racionalidade, Nietzsche alega que é necessário destruir este homem cuja razão está a todo vapor e os sentidos atrofiados. A partir do diagnostico negativo que fez da cultura de seu tempo, chegando a admitir que o homem ainda não havia chegado ao mundo, 153

dada a sua incapacidade e inaptidão para levar seus pares às realizações projetadas nas suas cabeças mais férteis e bem intencionadas, Schiller mantém-se otimista. Acredita ser ainda possível, partindo de parâmetros modernos, alcançar algum êxito no que tange ao projeto iluminista europeu. Nietzsche, todavia, mesmo concordando que o homem ainda não é aquele homem aguardado, preparado para enfrentar as intermitências da vida, nega qualquer possibilidade de nutrir um otimismo. Pesa o fato de que o otimismo de Schiller não obteve êxito algum até a época de Nietzsche, mas não é o tempo a determinação mais segura desse péssimo desempenho. Mesmo não podendo acalentar seu coração com a expectativa de uma melhoria, Nietzsche se esquiva do que seria mais óbvio: o niilismo. Como explicar, então, uma visão de mundo que escapa ao niilismo e também ao otimismo encantador dos anseios burgueses? Assim como Nietzsche prefere falar nas pulsões divinas Apolo e Dioniso ao invés de dizer representação e vontade, ele também lança mão da beleza para suportar a dor inexorável. Não é questão de evitar o sofrimento. Esta é uma escolha do mundo cristão. Nem tampouco resignar-se diante dele, como recomenda a cultura judaica. O paganismo de Nietzsche se aproxima mais da celebração das experiências que a vida nos oferece, enfrentando com alegria e entusiasmo a vida seja ela qual e como for. Esta é a resposta de Nietzsche: a afirmação incondicional da vida, o amor fati. A sua forma mais conhecida nos chegou pelo aforismo 276 de Gaia Ciência: Para o ano novo – Eu ainda vivo, e ainda penso. Ainda tenho de viver, pois ainda tenho de pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum.[Eu sou, portanto penso: eu penso, portanto sou.] Hoje, cada um se permite pensar o seu mais caro desejo e pensamento: também eu, então, quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este ano, me veio primeiramente ao coração – que pensamento deverá ser para mim razão, garantia e doçura de toda vida que me resta! Quero cada vez mais a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (2007, 187-8)

O processo de “dizer sim” é simpático e soa simples. Mas não se trata de um mero aconselhamento, autoajuda ou uma condescendência resultante de um relativismo grosseiro. Mesmo assim, a primeira impressão que fica é a de que essa afirmação incondicional está associada ao homem ingênuo, ao espectador das tragédias de Ésquilo e Sófocles. A cultura grega deu alguns passos adiante e aquele grau de espanto (to 154

thaumatzein), parece que não foi apenas reconhecido por Platão e Aristóteles, mas foi combatido, vítima de uma interpretação que o julgou demasiadamente bobo. Isto é, mesmo que a capacidade de espantar-se tenha sido considerada o despertar do homem para o conhecimento, reconhecendo a sua ignorância, foi também a mola propulsora para um afastamento desse estágio, uma rejeição da ingenuidade. É interessante notar que o movimento da modernidade é realmente o de interpretar esta ingenuidade como algo desejável. Rousseau, um dos representantes da filosofia iluminista francesa mais influentes no pensamento alemão, identificava essa ingenuidade como algo admirável, puro, imaculado. Nutria, nesse sentido, uma nostalgia da Antiguidade. Mas ele mesmo imaginou ser necessário ultrapassar esse estágio. O homem civilizado, embora possa buscar alento na sua ancestral pureza, precisa de uma quantidade razoável de instrumentos pensados e articulados para garantir, legitimar e controlar sua civilidade, reprimindo seu estágio bruto e ingênuo. De forma análoga e anacrônica, podemos observar que se trata de um embate muito semelhante. Os contratualistas estão, de certa maneira, reunindo seus esforços assim como Platão enfrentou a paidéia de Homero. O homem minimamente tocado pela filosofia de Platão, aquele que se enxerga, em certa medida, na figura de Sócrates, poderia ser incapaz de recuperar tal estágio de entrega. Só que, evidentemente, Nietzsche não é um homem ingênuo e nem fala para um grupo deles. Da mesma forma, não espera que retornemos à Grécia antiga através de uma máquina do tempo. Em Ecce homo, Nietzsche afirma que tanto Aurora como A gaia ciência são livros que dizem sim, embora o último talvez seja ainda mais profundo e menos benévolo do que o primeiro, e ainda agradece ao maravilhoso mês e janeiro que lhe permitiu trazer esta obra ao mundo. Fica claro, por esse viés, o quanto o filósofo valoriza a interferência que as experiências vividas trazem para o pensamento. Na verdade não é dificuldade alguma para aqueles que se dedicaram a um par de leituras dele que essa questão aparece com frequência, seja como conteúdo de alguma reflexão, ou como uma manifestação direta de seu estado de humor e, algumas vezes, também de saúde. De certa forma, o próprio título do livro indica que o filósofo passara por um período muito estimulante e de alegria intensa. A ciência alegre, risonha, sugere estabelecer uma relação diferente com a natureza, pelo menos diferente daquela relação que Nietzsche aponta como sendo a finalidade da outra ciência: destruir a natureza. Tal finalidade, na sua interpretação, faz sentido na medida em que os métodos e técnicas da ciência propagada em nossa cultura pretender objetivar o máximo possível a 155

natureza, categorizando e resfriando tudo aquilo que é intenso e vivo, pulsante. A manifestação dele parece ser a favor de uma ciência que não enfrente a natureza pretendendo derrotá-la, engoli-la, elimina-la, mas sim, coexistir com ela. Permitir que a natureza seja o que ela é, sem submetê-la a conceitos e procedimentos repetitivos. O dizer sim, a filosofia afirmativa, está associada a incorporar ao pensamento a própria vida. Vejamos o que diz Nietzsche no fragmento 324 de A gaia ciência: In media vita [No meio da vida] – Não, a vida não me desiludiu. A cada ano que passa eu a sinto mais verdadeira, mais desejável e misteriosa – desde aquele dia em que veio a mim o grande liberador, o pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer – e não um dever, uma fatalidade, uma trapaça! – E o conhecimento mesmo: para outros pode ser outra coisa, um leito de repouso, por exemplo, ou a via para esse leito, ou uma distração, ou um ócio – para mim ele é um mundo de perigos e vitórias, no qual também os sentimentos heroicos tem seu lugar de dança e de jogos. “A vida como meio de conhecimento” – com este princípio no coração podese não apenas viver valentemente, mas até viver e rir alegremente! E quem saberá rir e viver bem, se não entender primeiramente da guerra e da vitória? (2007, 215)

O questionamento acerca do niilismo e do otimismo parece estar atendido aqui. A ideia de um fracasso pode estar embutida na perspectiva paralisante da ciência moderna, resultado da sua péssima relação com a natureza. Só que nutre expectativas inalcançáveis, para além da realidade e do destino, isto é, fora dos limites da vida humana e da natureza, pode construir um sentimento tão forte de destruição negativa. Uma espécie de autoflagelação por uma tarefa que não cabe ao homem cumprir, a saber, a de tomar a natureza para si. Pois é justamente o contrário disso que está prestes a acontecer todos os dias e noites: o homem sucumbir diante da força da natureza, que, em forma de destino, toma o homem de assalto e se alimenta dos seus desenganos. Neste fragmento, o filósofo parece falar de outro conhecimento, negando a visão de mundo da tradição que estabelece um tipo específico de conhecimento, vazio de vida e cheio de sentidos No ensaio “O porvir de Nietzsche”, Emmanuel Carneiro Leão estabelece uma diferença entre pensar e conhecer que vai de encontro à maneira como pretendemos interpretar a relação entre pensamento e conhecimento para Nietzsche, sobretudo diante da perspectiva apresentada de que a vida é um meio de conhecimento. Ele afirma que “pensar não é conhecer. Quem conhece não pensa e quem pensa não conhece. O pensamento é a presença incômoda e desconcertante na consciência do não saber” (2000, 73).

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Em geral, quando observamos um texto filosófico dos chamados clássicos, algo que se destaca é a precisão com que colocam os termos em seus textos. Há um cuidado muito grande em não confundir os termos e também a não usá-los para designar coisas ou significados distintos, pois poderia provocar uma contradição e criar obstáculos aos leitores para a correta leitura e compreensão do texto. Esse costume, aliás, tornou-se uma das marcas do texto filosófico e teve pelo menos duas consequências interessantes. Uma delas foi abrir espaço para os comentários em que especialistas no assunto e no filósofo investem seu talento para explicar os motivos que levaram determinado pensador a usar aquele termo, que lhe é tão caro, com outro significado em certa parte do texto, ou mesmo em outra obra. A outra assegurou a legitimidade e a seriedade da filosofia, pois criou uma família de conceitos demasiadamente importantes para a filosofia, além de estabelecer um vocabulário singular, como um conjunto de termos que aparecem com muita frequência nas obras daquele autor. Não se trata, aqui, de negar o valor dessas consequências. A questão é outra. Alguns desses termos acabaram por agregar em suas raízes um leque de valores que foram incorporados com o uso ao longo dos séculos, amalgamando-os como se fossem parte do conceito. Passados muitos anos, tornou-se cada vez mais complexo e difícil separar esses conceitos parasitas, e, evidentemente, algumas palavras se transformaram em sinônimos de outras, com as quais, em sua origem, muitas vezes não tinham uma relação se semelhança, mas que foi conferida e validada pelo hábito. Conquanto essa miscelânea não interfira na nossa atividade judicativa, tudo bem. Ao contrário, tornamo-nos vítimas de nós mesmos ao julgar erroneamente, cometendo a temeridade de julgar a partir de associações de significados construídas arbitrariamente, ou ao sabor da vontade dos homens, da disputa política, ou do desconhecimento em relação à outra cultura ou povo. Recentemente, no Brasil, presenciamos atitudes condenáveis, ações cuja bizarrice talvez tenha ultrapassado o limite dos excessos que costumamos chamar de aceitáveis. Mas não é privilégio nosso. Quantos casos de jovens que invadem escolas para deferir tiros na direção de colegas e professores são necessários para constatarmos que não se trata de um acesso de loucura momentânea ou descontrole emocional, mas sim, de uma reação a uma das tantas feridas abertas no seio de nossa história? A violência da natureza humana se manifesta em incontáveis situações e graus de tolerância que tornam a admirar a cada novo golpe todos aqueles que preferem acreditar

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que o lado racional, moderado ou controlado do ser humano pode suplantar a nossa natureza voraz. Tal privilégio está relacionado com o rigor e a seriedade da filosofia, que trabalhou majoritariamente no sentido de suplantar os sentidos, a vontade e o corpo, que serve como uma metáfora dos termos que, no conjunto de uma determinada arquitetura filosófica, são voláteis, imprecisos e variáveis. Estes, para uma filosofia séria, não podem ser considerados conceitos, porque não transmitem segurança e regularidade, não podem ser controlados e administrados, e não ajudam a contar a história do privilégio da alma sobre o corpo, da razão sobre os sentidos, da ciência sobre a natureza. O aforismo 327 de A gaia ciência diz: Levar a sério – o intelecto é, na grande maioria das pessoas, uma máquina pesada, escura e rangente, difícil de por em movimento; chamam de “levar a coisa a sério”, quando trabalham e querem pensar bem com essa máquina – oh, como lhes deve ser incômodo o pensar bem! A graciosa besta humana perde o bom humor, ao que parece, toda vez que pensa bem; ela fica “séria”! E “onde há riso e alegria, o pensamento nada vale”: - assim diz o preconceito dessa besta séria contra toda a “gaia ciência” – Muito Bem! Mostremos que é um preconceito! (2007, 217)

O termo “conhecimento” é de grande valia para a filosofia desde os gregos. Evidente que, ao longo desses mais de dois mil anos de filosofia, muita coisa decisiva se disse sobre o conhecimento. Descartes e Kant, sem dúvida, foram dois dos pensadores que influenciaram de forma determinante aquilo que acreditamos hoje ser o conhecimento. Na esteira da lógica da qual falamos há pouco, das palavras que agregam significados , às vezes silenciosamente, podemos dizer que a palavra conhecimento apaixonou-se de tal forma pela palavra verdade que este matrimônio pode ser considerado dos mais sólidos, firmes, tendo alcançado um sucesso impressionante. Ele foi imprescindível para o desenvolvimento das ciências e determinante para o rumo de nossas vidas, mas isso não quer dizer que é a única história que poderia ser contada. Apenas a título de provocação, sem pretender, portanto, fazer uma avaliação da obra e uma revisão do pensamento do filósofo, recuperemos o Teeteto, de Platão.

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5.4 Nietzsche e Platão

Primeiramente, é importante frisar que essa reflexão sobre Platão e Nietzsche, que vem a seguir, foi muito encorajada pelo ensaio “A filosofia entre Platão e Nietzsche”, de Olímpio Pimenta. A suspeita de que seria possível argumentar em favor de uma aproximação entres os dois filósofos, a despeito de toda a competente investigação que existe sobre as críticas feitas por Nietzsche a Platão, encontrou semelhante posição neste precioso ensaio. A história da filosofia está farta de trabalhos que investigam os mínimos detalhes do pensamento de cada filósofo, e que contribuíram muito para criar uma visão comum de que seria impossível julgar que houvesse algum ponto em comum. Mas, principalmente se nos atentarmos aos trabalhos que procuraram recentemente dar legitimidade àquilo que não está escrito no texto platônico, sobretudo por considerar que há muitos motivos que justificam a importância e a anuência do próprio filósofo a respeito deste tema54. Partimos da ideia, então, de que as diferenças entre os dois pensadores não são suficientes para impedir que, no que diz respeito à concepção do filosofar, possa haver uma semelhança entre eles. Talvez mais do que isso: reconhecendo os motivos que tornam os filósofos extremos um do outro, como diferença gritante das conjunturas histórico-políticas de suas épocas, os objetos preferenciais de suas investigações, os métodos escolhidos, e o fato mais notável que é o posicionamento crítico de Nietzsche em relação a Platão, ainda assim encontramos razões para observar que suas filosofias, de algum modo, se tocam. O texto de Olímpio Pimenta nos mostra, por exemplo, que a ideia de que há uma parecença entre a figura do rei filósofo e a do filósofo legislador, e a “aspiração envolvendo o alto destino a ser cumprido pela filosofia está ligada àquilo que se espera do filósofo e de sua integridade” (2006,58). Essa observação nos conduz a um dos pontos que nos interessa muito e que tangencia toda a investigação deste trabalho como um todo. Ora, ambos estão preocupados com a formação cultural e filosófica do homem. Estão cientes da força e do perigo que podem ser tanto o pensamento quanto a arte, e, ainda, como pode ser nocivo para o filosofar o engessamento provocado pela falsa segurança que nos dá quando julgamos haver encontrado a verdade absoluta. É por uma defesa da vitalidade do pensamento que faz sentido falar na doutrina dos não-escritos de Platão. E é pelo

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Ver o artigo “Para uma leitura alternativa de Platão”, de Denis Xavier (2005).

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mesmo motivo que faz todo o sentido a escrita perturbadora e oscilante de Nietzsche: para assegurar que o pensamento não morra em verdades convenientes. E, por fim, Olímpio Pimenta aponta o orgulho como uma das convergências possíveis: Orgulho de poder se lançar e saber – sendo indiferente nessa altura se isto é tomado como reconhecimento racional da realidade das ideias ou como imposição de um sentido derivado de uma perspectiva singular. Porque tal orgulho quer dizer, antes de mais, convicção íntima de que um modo de vida excelente só existe enquanto liberdade criada pela experiência do pensamento. (2006, 58-59)

Vejamos o que conseguimos neste sentido. Os estudiosos, em geral, admitem que o tema central deste diálogo é a validade do conhecimento enquanto epistéme. Benedito Nunes, na introdução da edição brasileira55 do Teeteto, afirma que a definição de conhecimento enquanto opinião verdadeira foi o rastro deixado para as contribuições de Descartes e Kant, que em suas obras se dispuseram a dar um tratamento moderno ao problema sugerido por Sócrates, acrescentando, pois uma série de argumentos que acabaram por aproximar o problema da reflexão sobre o papel da linguagem no processo de conhecimento. O diálogo começa com a refutação da tese de Protágoras, de que o conhecimento é sensação. Observemos o que eles dizem: Teeteto – Realmente, Sócrates, exortando-me como o fazer, fora vergonhoso não esforçar-me para dizer com franqueza o que penso. Parece-me, pois, que quem sabe alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que se me afigura neste momento é que o conhecimento não é mais do que sensação. Sócrates – Bela e corajosa resposta, menino. É assim que devemos externar o pensamento. Porém examinemos junto se se trata, realmente, de um feto viável ou de simples aparência. Conhecimento, disseste, é sensação? Teeteto – Sim. Sócrates – Talvez tua definição de conhecimento tenha algum valor; é a definição de Protágoras; por outras palavras ele dizia a mesma coisa. Afirmava que o homem é a medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não existem. Decerto já leste isso? Teeteto – Sim, mais de uma vez. Sócrates – Não quererá ele, então dizer que as coisas são para mim conforme me aparecem, como serão para ti conforme de aparecem? Pois eu e tu somos homens. Teeteto – É isso, precisamente, o que ele diz. (151e-152a, 2001, 49)

Sócrates refuta, a partir de então, a tese de que conhecimento é sensação, alegando o relativismo que se encaminha se admitirmos a hipótese de que o conhecimento é de cada maneira para quem o sente de determinada forma, 55

PLATÃO. Teeteto – Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001.

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engendrando, ao final, a impossibilidade de se ter um conhecimento seguro sobre algo, e também válido para pessoas diferentes em situações distintas. Sem nenhuma pretensão de esgotar aqui esse assunto, mas conscientes dos rumos que isso tomou ao longo da história da filosofia, o argumento da efemeridade da sensação e da sua possível falsidade é apresentado por Descartes nas Meditações metafísicas, em especial, na primeira delas, onde ele sugere a hipótese dos sentidos enganadores. Nietzsche não se satisfaz com esses argumentos e revela um notável desconforto com os desdobramentos dessa tese, que deságuam, a saber, na desqualificação das sensações na concorrência pelo conhecimento. Se ele chega a dizer no aforismo 327 que “a graciosa besta humana perde o bom humor, ao que parece, toda vez que pensa bem; ela fica “séria”! E “onde há riso e alegria, o pensamento nada vale”: - assim diz o preconceito dessa besta séria contra toda a “gaia ciência” – Muito Bem! Mostremos que é um preconceito!”, é porque toda a estrutura que sustenta a rigidez, a precisão e a seriedade está ligada a uma ideia de homem sério, que não se permite deslizes, erros, equívocos, porque tem certeza (ou encontrou evidências) de que há o conhecimento verdadeiro. Saber, conhecer e pensar, que para a história da tradição metafísica da filosofia constituem uma irmandade, são, para Nietzsche, coisa diversa. Mas voltemos ao diálogo, e depois retomamos essa questão. A sequência de exigências feitas por Sócrates a Teeteto leva o diálogo para uma formulação cada vez mais robusta, dando conta das imprecisões destacadas pelo condutor da conversa. Sócrates – Então, para começar, que diremos, mais uma vez, que se conhecimento?Pois estou certo de que não vamos para aqui. Teeteto – De jeito nenhum; salvo se desanimares. Sócrates – Então, dize, que é a melhor maneira de defini-lo sem nos contradizermos muito. Teeteto – Precisamente a que tentamos há pouco, Sócrates; não vejo outra saída. Sócrates – Qual é? Teeteto – Opinião verdadeira é conhecimento. O pensamento certo está isento de erro, e tudo o que sai dele é belo e bom. (200 d – e, 2001, 124)

Isso já seria o bastante para incomodar Nietzsche. O pensamento isento de erro, a negação do fracasso do homem na sua luta pelo conhecimento e a ideia de que tudo o que sai dele é resultado das instâncias superiores, que sustentam a teoria da ideias de Platão, a saber, o belo e o bom, são todos eles belas invenções humanas. Insuperáveis, 161

do ponto de vista da execução criativa e da reflexão filosófica, porque não? Mas são ilusões, ironicamente, ilusões para evitar o equívoco das aparências. Nisso reside, para Nietzsche, uma ingenuidade que se transformou em característica singular do homem moderno, por levar isso ao extremo. Mas Sócrates e Teeteto continuam: Sócrates – No entanto, amigo, se conhecimento e opinião verdadeira nos tribunais fossem a mesma coisa, nunca o melhor juiz julgaria sem conhecimento. Mas agora parece que são coisas diferentes. Teeteto – Sobre isso, Sócrates, esquecera-me o que vi alguém dizer; porém, agora volta a recordar-me. Disse essa pessoa que conhecimento é opinião verdadeira acompanhada de explicação racional, e que essa deixava de ser conhecimento. As coisas que não encontram explicações não podem ser conhecidas - era como ele se expressava – sendo, ao revés disso,objeto do conhecimento todas as que podem ser explicadas. (201 c-d, 2001, 125)

Conhecimento então passa a ser “opinião verdadeira acompanhada de explicação racional”, inserido numa perspectiva de que a razão é o que assegura a qualidade da opinião e, por isso, mesmo quando usamos o termo conhecimento fora de um texto filosófico ou científico, ele traz consigo a pecha da verdade. Seria um absurdo falar em conhecimento não verdadeiro, assim como falar em conhecimento separado da razão. Porém, façamos justiça com o que está escrito no texto. A interpretação de que neste diálogo Platão cria as bases para o trabalho feito pelas teorias cartesiana e kantiana é tanto factível quanto provável, e a semelhança dos argumentos contra a sensação no diálogo de Platão e nas meditações de Descartes nos mostram isso. Mas, admitindo que a recomendação sobre o Teeteto é correta, a saber, que se trata de um diálogo inconclusivo, fazendo parte do grupo dos diálogos socráticos – que terminam em aporia – mesmo que ele tenha responsabilidade nos vínculos tais obras modernas; lá, no texto, Sócrates deixa tudo em aberto. Desconfiado de que a formulação conhecimento é opinião verdadeira acrescida de explicação racional torna-se problemática porque o próprio discurso pode ser insuficiente, afinal, a explicação racional se refere a um problema de identidade e diferença, o parteiro de ideias encaminha a conversa para o reconhecimento da impossibilidade de se dar um ponto final para o debate. A reflexão, o exercício da dialética platônica e a atividade de parir ideias conduzem o homem para construir seu próprio pensamento, talvez, agora, maduro o suficiente para fazê-lo por si mesmo. Depois de dizer que o conhecimento não poderia, à vista das questões apresentadas, ser nem sensação, sem opinião verdadeira, nem mesmo opinião verdadeira acrescida de explicação racional, Sócrates indaga Teeteto: 162

Sócrates – E ainda estaremos, amigo, em estado de gravidez e com dores de parto a respeito do conhecimento, ou já se deu a expulsão de tudo? Teeteto – Sim, por Zeus! Com a tua ajuda, disse mais coisas do que havia em mim. Sócrates – E não declarou nossa arte maiêutica que tudo isso não passa de vento que não merece ser criado? Teeteto – Declarou. XLIV – Sócrates – Se depois disto, Teeteto, voltares a conceber, e conceberes mesmo, ficarás cheio de melhores frutos, graças à presente investigação. Mas se continuares vazio, serás menos incômodo aos de tua companhia, porque mais dócil e compreensivo, visto não imaginares saber o que não sabes. Isso, apenas, é que minha arte é capaz de fazer, nada mais; nem conheço o que os outros conhecem, esses grandes e admiráveis varões do nosso tempo e do passado. A arte de partejar, eu e minha mãe foi de um deus que a recebemos: ela, para as mulheres; eu, para os adolescentes de boa origem e para os dotados de qualquer beleza. Agora, preciso ir apresentar-me ao Pórtico do Rei, a fim de responder à acusação que Méleto formulou contra mim. Amanhã, Teodoro, voltaremos a encontrar-nos aqui mesmo. (201 b-d, 2001, 140-141)

A visita ao diálogo platônico, em tom de provocação, trouxe consigo dois interesses distintos, além de confirmar a delicadeza da escrita que sobressai dos diálogos do filósofo, marca de suas obras, e a tensão provocada pela competência em levar à exaustão uma problematização filosófica de primeira ordem. Por um lado, o interesse em apresentar que, mesmo Platão, parece não estar tão preocupado em deixar em traços definitivos e determinados a relação entre conhecimento e o pensamento, mas sim, em esticar ao máximo a possibilidade de pensar a questão, num belíssimo exercício de reflexão filosófica. Por outro, encetado no nosso interesse de aprofundar a discussão de Nietzsche, em apontar como na história da filosofia essas contribuições se encontram e repercutem, sedimentando visões de mundo que poderiam não ser tão unânimes como aparentam em determinadas épocas. No aforismo 355 de A gaia ciência, Nietzsche parte de uma constatação corriqueira para abordar o que os filósofos costumam entender por conhecimento. Embora ele não faça uma menção direta a Platão, duas coisas no movem da direção desta aproximação: a primeira ainda em relação ao final do Teeteto e a outra sobre este aforismo supracitado. Vamos ao primeiro caso. Se, por um lado, o fato de Sócrates deixar em aberto a questão do conhecimento, privilegiando ao invés da definição e do conceito objetivo o exercício do pensamento, que é, na sua concepção, assim como para Nietzsche, um caminho que deve e só pode ser feito por cada indivíduo em relação com as suas experiências vividas, por outro lado, uma observação desafina deste conjunto. Ao afirmar que se continuares vazio, serás 163

menos incômodo aos de tua companhia, porque mais dócil e compreensivo, visto não imaginares saber o que não sabes, Sócrates dá a entender que há um conforto no conhecimento, ainda que apenas o conhecimento da própria ignorância ou limitação. Ser mais dócil e compreensivo parece ser um benefício recebido pelo exercício do pensamento, mesmo que não se alcance, com ele, um conhecimento efetivo sobre alguma matéria. Nesse sentido, o pensamento funcionaria como uma forma de tornar o homem mais dócil, mais ameno, mais agradável para a convivência com seus semelhantes. Isto, definitivamente, não passa pela cabeça de Nietzsche. Recuperemos a forte afirmação de Carneiro- Leão: o pensamento é a presença incômoda e desconcertante na consciência do não saber. O prazer provocado pela sensação de controle sobre um objeto ou matéria é o regozijo do homem teórico, que se imagina, ao saber alguma coisa, senhor de si daquilo que ele (supostamente) conhece. Mas se, ao contrário, o pensamento for um incômodo, um desconforto, algo perturbador que toma o homem de assalto e o move em direção à vida, ele não poderá ser uma espécie de conforto ou consolo metafísico que deixa o homem dócil e compreensivo. No aforismo 355 Nietzsche sugere uma frase qualquer ouvida na rua para sugerir que nós admitimos em geral que o conhecimento ou o reconhecimento se dá quando algo estranho é comparado a algo conhecido. Ou seja, no senso comum, o conhecimento adquire aquele caráter de conforto e segurança. É aí então que ele pergunta: E nós, filósofos – já entendemos mais do que isso, ao falar de conhecimento? O conhecido, isto é, aquilo a que estamos habituados, de modo que não mais nos admiramos, nosso cotidiano, alguma regra em que estamos inseridos, toda e qualquer coisa em que nos sentimos em casa: – como? Nossa necessidade de conhecer não é justamente essa necessidade do conhecido, a vontade de, em meio a tudo isso o que é estranho, inabitual, duvidoso, descobrir algo que não mais nos inquiete? Não seria o instinto do medo que nos faz conhecer? (2007, 250-251)

Mas se for o instinto do medo que nos faz conhecer, é imprescindível que eu não substitua esse instinto do medo ou, pior ainda, elimine essa força que impele o homem a realizar a sua atividade mais importante, talvez aquela que o distinga entre tantas outras espécies da natureza: pensar. Mais ainda: não é só pelo medo, mas também pelo instinto! São os dois elementos que a modernidade tratou de atacar para assegurar o conforto e a tranquilidade do homem moderno: não temer mais ser um animal não civilizado, refém dos seus instintos, porque ele agora pode ser organizar em torno de uma sociedade, de um bem comum, de regras e instituições que ordenam e administram 164

a vida moderna. E, como consequência dessa vida administrada, que é possível, por sua vez, graças à técnica do homem teórico, nós não precisamos mais sentir aqueles efeitos brutos dos animais que correm atrás de sua caça e atacam para não se tornaram presa. Medo e pavor são qualidades de um homem que não é capaz de usar a razão em seu benefício, de usar a técnica e as ciências para dominar a natureza, que precisa temer o desconhecido e as divindades porque não tem condições de apontar suas origens e influência na vida humana. É admitido quase por unanimidade que a filosofia de Nietzsche não é marcada por uma teoria do conhecimento, pelo menos no sentido disciplinar que atribuímos ao termo dentro da academia, o que quer dizer, afinal, que se buscássemos citar os temas estruturais da filosofia que estão presentes na obra nietzschiana, certamente poderíamos falar em estética e filosofia da arte, mas seria difícil argumentar em favor da teoria do conhecimento. A razão disto é simples: ele não propõe em momento algum de sua obra um sistema que trate da questão do conhecimento a fim de pensar a sua origem, seus métodos, suas questões e as diferentes correntes teóricas que o envolvem ao longo da história da filosofia. Por esse motivo, falar em teoria do conhecimento ou em epistemologia nietzschianas soa muito mais um exagero ou uma provocação do que algo sério e sensato. É possível concordar com isto e, no entanto, não fechar os olhos para as observações que ele faz ao longo de seus textos que tocam questões relativas ao conhecimento, em especial aquelas em que suas críticas à metafísica, à racionalidade científica, ao dogmatismo filosófico e científico, e, enfim, à moral. Fizemos uma sugestão, há pouco, que dizia respeito a uma diferenciação entre conhecer e pensar, e recuperamos um diálogo de Platão, o Teeteto, para discutir um dos eixos centrais do tema a partir da concepção fundamental de conhecimento que influenciou de forma decisiva a filosofia e a ciência ocidentais modernas. Gostaríamos, agora, de lembrar outro diálogo, tão ou mais bem escrito que o anterior. É no Fédon, diálogo no qual Platão apresenta seus argumentos sobre a questão da imortalidade da alma, que gostaríamos de buscar uma afirmação deveras interessante com relação à tensão entre conhecer e pensar. O eixo central do diálogo gira em torno de quatro provas da imortalidade da alma, das quais, a segunda talvez seja a mais conhecida do público geral: a teoria da reminiscência, isto é, a de que o conhecimento é sempre um reconhecimento. Grosso modo, este diálogo sustenta a base da concepção do filósofo sobre o conhecimento enquanto rememoração, mais conhecida como a teoria da 165

reminiscência. Tentemos, sem a pretensão de violentar o cabedal de interpretações da filosofia de Platão, explicar resumidamente esta teoria para aproximar a discussão ao aforismo recém-mencionado de Nietzsche. António Gomez Robledo, em Platón, los seis grandes temas de su filosofia, nos põe à parte desta teoria introduzindo o seguinte argumento: a partir do Fédon, Platão utiliza o termo eidos para designar ideia num sentido puramente lógico, além de variar entre o uso de eidos e idea sem maiores prejuízos para a compreensão de ideia enquanto uma classe de coisas, a saber, as metafísicas. Tanto eidos quanto idea tem origem no mesmo verbo, eiden, que significa ver (ver a forma, observar a aparência com a visão). Platão sustenta claramente que as ideias, as formas geométricas, estão em outro mundo, distante em qualidade deste no qual fazemos as nossas experiências, e que, para a filosofia grega em geral, a visão é o sentido que nos premia com a possibilidade de ver ou rever neste mundo aquilo que em alguma outra ocasião vimos naquele outro. No mundo sensível, portanto, realizamos as experiências que nos permitem rever aquilo que vimos no mundo inteligível; e como este é eterno e imutável, a visão experiência sensível é sempre menor e periférica, se comparada ao ver das ideias. Elas são, em suma, complementares, porque a teoria da reminiscência e a das ideias são como unha e carne, não fazem sentido isoladas, mas justificam e legitimam uma à outra. Por isso, quando Nietzsche fala do benefício de reconhecer o conhecido, das vantagens e da comodidade de não precisar equilibrar-se a cada experiência na vida propriamente dita, é da concepção de conhecimento da filosofia platônica que ele está falando, pois quanto mais frequentes forem em nossas vidas as experiências de reconhecimento, mais fácil, menos incômodo e angustiante se torna viver. Dessa forma, o pensar mostra-se totalmente diverso do conhecer: enquanto a vigência do pensamento reside no árduo equilíbrio da corda bamba, no risco, o conhecimento assiste à vida atormentada do equilibrista do conforto de suas poltronas de cinema, em plena segurança. Logo, se o pensamento é a presença incômoda e desconcertante na consciência do não saber, o conhecimento só pode ser a ausência silenciosa e acalentadora da certeza de uma verdade provável. É nesse sentido que a sequência da argumentação do Fédon justifica a uma frase de Sócrates que provoca risada no seu admirador Símias: “Receio, porém, que, quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer” (1979,65). O estranhamento causado no jovem é motivado por espécie de anedota pronta, pois os adversários dos 166

filósofos concordariam de imediato que eles mereceriam morrer tão logo fosse possível. Para deixar claro o que pensamos sobre isso, queremos entender a frase de Sócrates no seguinte sentido: filosofar é aprender a morrer. E, não obstante na animada conversa com Símias sobre a morte Sócrates defenda que morrer não é nada mais do que separar corpo e alma, cuja consequência direta seria a libertação da alma do corpo e das eloquentes atrações materiais que insistem em desviar o filósofo de seu caminho de retidão e serenidade, queremos entender que há mais enigmas nessa frase do que parece. A caminho do julgamento e já convencido de sua iminente derrota, Sócrates admite dedicar-se a partir de então à poesia. Seria isto um gesto de menosprezo ou justamente o contrário? Platão, o arquiteto por detrás desta cena cinematográfica, estaria mais uma vez zombando das artes e das musas ou estaria, sutilmente, homenageando os poetas? Mesmo com toda a crítica que Nietzsche faz a Sócrates e, por conseguinte, a Platão, preferimos apostar que ao afirmar que filosofar é aprender a morrer, Sócrates estaria defendendo uma tese da mais alta importância para a filosofia de Platão, mas, ao mesmo tempo, mostrando com sua própria vida uma alternativa. Numa espécie de fluxo de consciência, uma estratégia bastante comum na dramaturgia contemporânea, o humilde pensador estaria abusando de seu poder de provocar os leitores ao extremo e forçá-los a decidir por eles mesmos, afinal, qual é a grande lição deste diálogo. Talvez Nietzsche tenha sido vítima de seu próprio veneno. Porque não pensar na possibilidade de ter ele escorregado na ambiguidade de uma metonímia? A filosofia de Platão poderia muito bem defender um tipo de homem que jamais pisou na terra, numa história onde Sócrates seria justamente aquele que levou às últimas consequências a expectativa de purificar sua alma, separando-se dos demais homens. Ele mesmo afirma que o homem só pode conhecer verdadeiramente a morte quando não puder mais acordar, pois a verdade só seria completamente conhecida quando o homem conseguir efetivamente abandoar a matéria, isto é, quando somente a alma estivesse em operação. E de fato, nesse caso, somente uma teoria da reencarnação poderia tirar a prova dos nove de que o fim da vida garantiria o esplendor da razão.

5.5 Por um pensamento-afirmação da vida

Nietzsche é um filósofo que afirma a vida e a existência humanas incondicionalmente, e nisso consiste a ideia do amor fati. Nada pode ser maior do que 167

passar pela vida, experimentar suas vicissitudes e atravessar os caminhos que na natureza couberam ao homem e somente a ele. Para nós, Sócrates, ao defender a filosofia como um aprender a morrer, é realmente um filósofo trágico. Doutro modo, filosofar seria compreender plenamente o conceito de fim, morte. Mas conhecer não é tudo que a experiência humana pode fazer, é apenas uma das coisas. E se Platão queria que o homem encontrasse uma justificativa e entendesse a importância soberba de realizar-se por completo do ponto de vista cognitivo, isto não quer dizer que Sócrates tivesse que fazê-lo. Ele poderia apenas anunciar o desfecho e demonstrar aos seus admiradores até onde poderia ir a grandeza humana. Para este Sócrates, nosso, repentinamente trágico, a grande realização da existência humana é a própria vida, e não o que está além dela. Uma pergunta fora de hora: afinal, porque tamanha implicância do genial poeta Aristófanes para com Sócrates? Ele, um conservador, alguém que usou de sua melhor arma para ridicularizar e difamar o parteiro de ideias; que sugeriu a greve do leito feminino como última aposta para salvar a polis, dizendo não à filosofia e à guerra, fizera o quê com isto tudo além de contribuir para que a imaginação de todos nós não tivesse limites para mensurar esse “efeito Sócrates”? Não restam dúvidas que Nietzsche enxerga na teoria do conhecimento de Platão, muito bem construída a partir dos argumentos que explicam a teoria das ideias e a teoria da reminiscência, o primeiro movimento que valoriza demais a racionalidade do homem teórico e que reivindica uma censura pesada para aqueles que souberam usar mais a imaginação do que a razão. E não é só isso: ao desenvolver uma teoria na qual há homens que detém privilégios, ele está permitindo que os homens ocupem os espaços dos deuses, que, aliás, foi um dos movimentos imprescindíveis para o estabelecimento de um modo de vida e de pensar muito diverso do que havia até então. Esse processo, sem dúvida, não ocorreu da noite para o dia, e há muitos motivos para crer que ele até hoje se arraste nos conflitos religiosos mundo afora, sem contar no caso brasileiro, onde um crescimento impressionante do número de parlamentares e políticos em geral que ocupam concomitantemente cargos em instituições religiosas ameaça essa “conquista” dos modernos. No fundo, a batalha travada pelos defensores de um mundo governado mais pela ciência do que pela natureza é interminável. Não é à toa que os alemães, e também os demais europeus, tenham construído esse sentimento de nostalgia em relação à Grécia. É por profunda admiração e intenso desejo de alcançar muitas coisas semelhantes, mas 168

também é por uma identificação muito forte, porque em alguma medida menos presa ao calendário do tempo cronológico, que os europeus querem voltar à Grécia, mas sem precisar voltar efetivamente no tempo. Diga-se de passagem, uma viagem um tanto exótica. Aliás, é justamente sobre os motivos que permitem aos homem imaginar uma viagem dessa natureza que Nietzsche se manifesta no começo da sua Segunda consideração intempestiva, escrita em 1783. Sobre ela, o próprio autor escreve em Ecce homo: “traz à luz o que há de perigoso, de corrosivo e contaminador da vida em nossa maneira de fazer ciência: a vida enferma desse desumanizado engenho e maquinismo” (2008, 64). Tudo indica que o olhar dele sobre o valor que a ciência adquiriu até a sua época é exatamente o contrário do que nos acostumamos a ter. Em geral, na educação escolar e nas diferentes experiências que temos e que sedimentam a nossa formação como um todo, nos é incutida a ideia de que o progresso é necessariamente bom. E, junto com esse raciocínio, há um fortalecimento geral da ideia de que a ciência, mola propulsora do progresso, é também muito boa, no sentido de contribuir positivamente para que a vida humana siga sua travessia em direção ao patamar desejável. Mas, afinal, que lugar é esse? Quem é esse homem? Que mundo é esse? As quatro considerações intempestivas, ou extemporâneas, são textos marcados por uma visão que Nietzsche tem de si mesmo como um homem que, enquanto filósofo, precisa encontrar sua posição em relação ao seu tempo. De mais a mais, no mínimo ele precisa conseguir esclarecer os motivos pelos quais ele se sente fora do seu tempo, em desacordo com os valores cultivados no seu país e pelos outros homens de sua geração e, somado a isso, por não concordar com o projeto de vida humana que está em curso. Tal projeto, necessariamente, exige um conjunto de valores, de ideias, de doutrinas, e de metas e anseios específicos, dos quais ele não partilha. Pior que isso, ele entende que este conjunto é a própria degenerescência do homem. Na Segunda consideração, Nietzsche identifica o valor que atribuíamos à nossa história como a grande doença que nos atingiu no final do século XVIII, e que impregnou em nossa cultura de tal maneira que nos tornamos viciados, porque seria impossível cultivar tantas virtudes sem, com elas, cultivar também os nossos erros. Esse processo de banalização das virtudes e dos erros pode ter dado a impressão de que não se trata de virtudes trabalhadas e erros condicionados, e sim, de um tipo de homem que é assim mesmo (como se fosse natural), que enxerga o mundo dessa forma, e que tem, diante de si, apenas uma tarefa possível: a de continuar nessa reta, perseguir a satisfação 169

desses mesmos valores, cultivando e transmitindo as mesmas virtudes e, sobretudo, a continuar em enxergar os erros que comete. Nietzsche, então, admite que só uma coisa permitiu que ele pudesse enxergar esse mundo de fora, como alguém que efetivamente não é deste tempo, porque é “pupilo dos tempos mais antigos, especialmente dos gregos”, e que por isso pode ser extemporâneo. Uma das características mais marcantes da Antiguidade que Nietzsche diz engendrar é a da unidade da natureza, que foi atacada, com muitas armas, por Platão, quando ele estabeleceu argumentos de fato muito fortes em prol da separação entre corpo e alma e, com isso, abriu espaço para pensarmos em esferas distintas e fisicamente separadas, não mais legitimadas pela força da cultura órfica, por exemplo, mas pelo raciocínio lógico. A rigor, essa jogada nos permitiu com segurança afirmar que a mitologia era uma crença e se sustentava em algo totalmente diverso da ciência, que tem como pilar a verdade. Esta sim, ainda mais do que deuses, é eterna e imutável, tão segura e certa como o céu, e até mais importante do que ele, porque ela é resultado do trabalho do homem. Um trabalho que é, fundamentalmente, racional. É importante dizer também, para que não fique a impressão de uma espécie de genialidade do Nietzsche ou de que ele foi o único a enxergar essas questões, que outros autores perceberam e atacaram essa postura moderna de supervalorizar a ciência e o racional em detrimento das outras características que constituem o homem. Em 1919, Franz Kafka publicou uma obra com catorze pequenas narrativas, intitulada O médico rural, da qual gostaríamos de destacar “Um relatório para uma Academia”. O título é mais do que suficiente: trata-se de um relatório, não mais que isso, entregue para uma Academia. O que salta aos olhos é a origem deste material, pois se trata de um macaco que apresenta a transição aparentemente assustadora pela qual ele passou num período recente: um macaco que entrou para o mundo dos homens, tornando-se um deles. O conteúdo da narrativa não poderia ser mais apropriado, e não são poucas as passagens em que o vocabulário fisiológico nos lembra da maneira como o filósofo costuma falar dos reflexos da nossa cultura que sentimos no corpo. Depois de ter levado dois tiros e ser capturado, o então símio foi preso a uma estrutura semelhante a uma jaula, e dali, gradativamente, aprendeu com os marinheiros disponíveis, a se comportar como homem, de quem aprendeu o primeiro gesto: apertar as mãos como sinônimo de franqueza e amizade.

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O texto não chega a apresentar uma reflexão profunda sobre a liberdade, mas faz um alerta que para nós, que estamos enfrentando filosoficamente a geração dos valores modernos, muito interessante. Estar preso ao caixote poderia ter provocado uma sensação muito ruim e, com resposta a ela, ele poderia ter buscado a todo custo sair dali, e busca da liberdade que gozava em outras épocas. Mas não. Ao contrário, como um macaco que pensa com a barriga, como ele mesmo diz, a liberdade nunca tinha sido uma questão até aproximar-se do modo de vida humano. Por mais que desejasse ter para onde ir ou como sair daquele caixote, o símio não emprega o termo “liberdade”, mas reconhece que em muitas oportunidades queixou-se por não ter saída. E é sobre essa questão que ele alerta: É muito frequente que os homens se ludibriem entre si com a liberdade. E assim como a liberdade figura entre os sentimentos mais sublimes, também o ludibrio correspondente figura entre os mais elevados. Muitas vezes vi nos teatros de variedades, antes da minha entrada em cena, um ou outro par de artistas às voltas com os trapézios lá alto junto ao teto. Eles se arrojavam, balançavam, saltavam, coavam um para os braços do outro, um carregava o outro pelos cabelos presos nos dentes. “Isso também é liberdade humana”, eu pensava, “movimento soberano”. Ó derrisão sagrada da natureza! Nenhuma construção ficaria em pé diante da gargalhada dos macacos à vista disso. (1999,64) O mais interessante do texto, visto pela ótica do macaco, é que em momento algum ele se condena ou se vangloria por aprender a viver como homem. Mas confessa que se lhe fosse dada a oportunidade de atirar-se ao mar ao invés de ficar ali recolhido, a a imitar os homens em seus afazeres pouco atraentes e vazios de sentido, a despeito de sonhar com a liberdade como eles faziam, não teria dúvidas. Aquela vida, aquela nova vida que lhe fora apresentada e oferecida como grande alternativa a ser um símio, lhe era tão tediosa e sem sentido como qualquer outra coisa. Muito mais sem sentido que sua condição anterior, afinal: “era não fácil imitar as pessoas! Nos primeiros dias eu já sabia cuspir. Cuspíamos então um na cara do outro; a única diferença era que depois eu lambia a minha e eles não lambiam a sua” (1999, 67) Aprender a cuspir, beber, coçar, fumar e a apertar os semelhantes através de um aperto de mão que muito parecia oferecer não era uma vida admirável, porque sequer esta vida parecia, àquele que não estava viciado nela, algo interessante e digno. As vísceras diziam muito mais ao macaco do que os sonhos, ele, que antes não sabia o que era sonhar, agora sabe que nunca poderá realizá-los. A julgar pela pequena narrativa de 171

Kafka, uma espécie de inversão da Metamorfose, na qual encontramos as angústias de um homem reflexo de seu tempo, a cultura moderna dava mais indícios que ia muito mal naquela época do que poderíamos imaginar. E se algumas questões que naquela época perturbavam mentes como as de Nietzsche e Kafka, alimentando a descrença na civilização e justificando ainda mais um possível mar de desesperança, um niilismo que chegava a galope. Retomemos, após a divertida intromissão kafkiana, ao problema dos Estados laicos cheios de razão. Seria possível inclusive sugerir uma analogia entre o desaparecimento do mito na tragédia grega desde Ésquilo até Eurípides com a substituição de deus pela ciência, que na passagem para a modernidade acabou exercendo um papel fundamental. Ao olhar de Nietzsche, pelo menos, trata-se de processos cuja semelhança não é descartável. Já que ele que ele interpreta a figura de Sócrates como um protótipo do homem moderno, não há delito algum em estabelecer essa comparação, sobretudo se considerarmos que tanto os filósofos antigos quanto os modernos buscaram, através da razão, superar um estágio ameaçador. Tal substituição é muitas vezes considerada como uma das etapas cruciais do amadurecimento do homem, como vemos, por exemplo, no argumento de Freud em O mal estar da civilização, ao apontar a religiosidade como um sentimento infantil, a necessidade de uma proteção, de um amparo mais forte que o próprio homem. Esse sentimento oceânico seria responsável por sustentar a ligação do homem com algo maior que ele, com a própria natureza e com o tempo, porque impedia a percepção dura e pesada de que o homem pudesse estar efetivamente sozinho no mundo, abandonado e sem a proteção de algo grande, muito maior do que ele, infinito, absoluto e interminável. Enquanto o homem cultivasse o sentimento oceânico, que lhe garantia também a certeza de pertencimento ao mundo, mais segurança ele teria para dar seus próprios passos, ainda que com a limitação imposta pela tutela invisível. Em compensação, este mesmo homem jamais deixaria de ser criança, responsável por seus pensamentos a atitudes, enfim, alguém que afirmasse sua existência. Não quer dizer que o argumento de Freud não faça sentido. Ao contrário, ele vai ao ponto nevrálgico da questão. Até porque, a primeira coisa que podemos observar é que a religião, a princípio, impossibilita a coexistência de um homem que diz sim, isto é, da afirmação da vida. Entretanto, como seria uma espécie de suicídio intelectual partir para essa discussão aqui, consideramos suficiente e estaremos satisfeitos se conseguirmos apresentar três elementos que podem servir para elucidar como esse 172

resgate do divino na visão de mundo de Nietzsche não entra em choque com a posição de Freud, até porque o filósofo não está sugerindo que nos tornemos ingênuos como nas primeiras décadas de vida, e sim, para que não percamos o olhar encantado e a força da imaginação que abandonamos juntamente com os deuses de outrora. A primeira coisa é que não faltam argumentos para enxergar em Nietzsche um dos maiores críticos contundentes da religião. É interessante ressaltar que, mesmo sendo um crítico desta qualidade, sua posição não se sustenta na negação ou na simples desqualificação dela como elemento cultural, como aqueles que a julgam prejudicial ao homem. Seu questionamento tampouco se esgota na ansiedade de refutar qualquer utilidade para a religião, assim como também o faz para a filosofia e para a ciência. A crítica aos utilitaristas é a porta de entrada da Genealogia da moral. Além disso, não bastasse esta obra, ele ainda empenha outras duas, pelo menos, o Anticristo e Além do bem e do mal, no projeto que disseca os vícios que nos conduzem para a contemplação de natureza religiosa. Fundamentalmente, a relação custo-benefício é o grande problema para uma cultura que, por ter nascido amparada na aproximação das culturas judaico-cristã, acostumou-se a pesar a religião pelo seu quilate moral: a função moral da religião acabou se estabelecendo como sua balança de precisão, ainda que, entre judeus e cristãos, os pesos fossem sempre da discórdia. Portanto, não é como artilheiro que direciona todas as suas munições contra a religião que vemos Nietzsche, e sim, como alguém que, por ter compreendido com os olhos e com o estômago as vicissitudes porque passou a cultura ocidental a partir do choque das três religiões, cuja influência parece ser incalculável. A segunda questão é uma semelhança que enxergamos entre Nietzsche e Hölderlin, poeta que levou ao extremo o projeto do retorno à Grécia. Ele, certamente, não cogitou a possibilidade de se tratar de uma metáfora ou de um arroubo de entusiasmo. De todos de sua geração, Hölderlin foi o mais grego dos alemães, cuja nostalgia pelos antigos penetrou em seu pensamento de forma irrevogável. Um texto, escrito ainda no período de juventude no seminário de teologia em Tübingen, supostamente na companhia de Schelling e Hegel, denuncia a seriedade com que levou tal proposta. Em “O programa sistemático”

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, escrito supostamente a seis mãos, muito

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O texto está incluído na edição brasileira da coleção Os pensadores, no volume de Schelling. Os comentadores se dividem quando o assunto é a atribuição de autoria do texto, manuscrito que ficou perdido por cerca de 120 anos, até ser descoberto por Franz Rosenzweig, em 1917. Alheios à polêmica da autoria, preferimos apenas apresentar este texto como uma fonte interessante para pensar os limites da

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se pode ver daquilo que Hölderlin levou consigo até os longos anos de solidão em prisão psiquiátrica, pois jamais se livrou da acusação de estar tomado pela insanidade. A simples sugestão de que Hölderlin possa ser um dos autores do texto é suficiente para discutirmos a influência do conteúdo ali apresentado e a perspectiva que Nietzsche defende a respeito da religiosidade, com consequências interessantes para pensarmos a possibilidade de uma mitologia da razão. O texto é bastante enxuto e, como o que se tem dele começa com uma palavra que deve ser o fim de uma frase, certo ar enigmático toma o leitor. O decorrer do texto segue um tom de manifesto, em que se procura apontar qual é a natureza de uma ética pensada a partir da ideia fundamental de liberdade, mas que, para vingar, exige um mundo, isto é, a realidade, que forneça as experiências necessárias para as ideias pensadas, norteadas, sobretudo, pela ideia de humanidade. O problema que surge se dá na medida em que uma das obras humanas que foi criada visando o cumprimento dessa proposta é o Estado. E, como este oferece algo muito aquém do necessário para o sucesso da ideia de humanidade e de liberdade, o autor condena enfaticamente o Estado, primeiro negando-lhe a existência de uma ideia de Estado, e depois que o Estado propriamente dito, na sua natureza mecânica, precisa ser superado. O tema da superação do Estado aparece, por exemplo, em “O estado grego”, um dos cinco prefácios que Nietzsche escreveu previamente para obras que ainda seriam escritas57. O que se sabe, contudo, é que ao mesmo tempo em que essas obras acabaram mesmo em seus prefácios, os temas dos prefácios são desenvolvidos em outras obras do filósofo, o que indica que estes textos não foram totalmente esquecidos e não precisam ser renegados pelos estudos nietzschianos, pois tem seu valor na medida em que indicam, ainda na época de sua primeira obra, questões que foram tratadas apenas na sua maturidade. O que nos motivou a relacionar o fragmento “O programa sistemático” com “O estado grego” é o fato de que a ideia de uma inevitável superação do Estado aparece nos dois como alternativa para o esgotamento das práticas políticas na modernidade, que são, ao fim e ao cabo, reflexo das grandes ideias e valores que conduziram o homem a deixar a Idade Média para trás. A partir da comparação da sociedade grega com a moderna, é interessante observar que o filósofo se mostra muito cético em relação aos seus contemporâneos, relação entre mitologia e razão, cujo impacto nesta geração entusiasmada com a Revolução Francesa não pode ser desprezado. 57 Nietzsche, Friedrich. Cinco prefácios para livros não escritos. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7 letras, 2005.

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enquanto acalenta uma admiração pelos antigos, conservando o olhar nostálgico sobre a Grécia. Tal olhar se dá, sobretudo, porque se aqueles revelaram uma necessidade da arte para aguentar a dor da existência, enquanto nós escravos das leis gerais que estabelecemos como princípio norteador de nossas vidas. Diz ele: “confrontado com o grego, o mundo moderno cria em geral apenas aberrações e centauros” (2005,41). Depois da questão a superação do Estado, surge a apologia de uma visão de mundo poética, centrada na ideia de beleza que funcionaria como princípio unificador de todas as coisas separadas pela cultura racional. Isto é: o desenvolvimento da ciência e da racionalidade provocou uma separação radical entre as esferas do mundo dos deuses e do mundo dos homens, a fragmentação do kosmos noéticos que garantia a unidade marcante do mundo grego. Esta fragmentação, que no século XX Adorno58 considera irreversível, ainda é tratada pelos autores como algo pensável, por mais improvável que fosse. Verdade e bondade mais uma vez poderia estar irmanadas, agora pela ideia de beleza, que através de um ato estético satisfaz duas carências abissais: a de poesia, por parte do filósofo, e a de razão, por parte dos mitos. Diz o texto: “A poesia adquire com isso uma dignidade superior, torna-se outra vez no fim o que era no começo – mestra da humanidade; pois não há mais filosofia, não há mais história, a arte poética sobreviverá a todas as outras ciências e artes” (1980,43) O encerramento do texto é uma espécie de convocação para o estabelecimento de uma cultura estética, pautada numa mitologia da razão, pois nem a religião satisfaz as necessidades humanas desta natureza, nem a razão é suficiente para agradar e encantar o homem que mantém uma forma interminável de imaginação. O terceiro elemento é tentar entender a aproximação aos deuses não como uma relação de subordinação inapelável ou de busca por ajuda e recompensa. Por um lado, a filosofia nos mostra através da tensão entre o mito e o logos que esta disputa reservou um lugar ao sol para o logos. Por outro, a história das tragédias gregas nos mostra que a representação cultural mais relevante para a antiguidade também cedeu ao encanto da razão, atribuindo a ela a função e o valor que outrora eram do mito. Por isso, recuperar apenas o mito é um gesto que se mostra superficial, ou, porque não dizer, ingênuo e sem propósito, porque revelaria muito mais uma ausência de criatividade e de soluções artísticas do que uma admiração e devoção pelos deuses. É por isso que, anteriormente, imaginava-se que o brilho do mundo grego pudesse ser transportado por uma espécie de

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Ver: “O ensaio como forma”, em Notas de literatura I, de Theodor Adorno. (2004)

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máquina do tempo, capaz de trazer com o objeto não apenas suas qualidades materiais, mas também seus valores simbólicos. Em Humano, demasiado humano, ele afirma que “a vida dos gregos brilha somente onde cai o raio do mito, fora disso ela é sombria.” (2000: ) Trata-se de construir (ou reconstruir) uma visão de mundo onde os deuses participam da vida dos homens de uma forma muito diferente, o que, no fundo, exigiria uma concepção totalmente diversa de deus. Tal concepção vai de encontro às críticas que ele faz, em especial, ao judaísmo, ao cristianismo e, com menor peso, ao budismo. Este elemento está presente na obra de Nietzsche, especialmente, nas obras O nascimento da tragédia e na Genealogia da moral. Esperamos que o debate em torno desses três elementos tenha sido suficiente para explicar uma ideia que nos é de suma importância: o fato de Nietzsche ser um crítico voraz dos valores que consolidaram a cultura moderna e que tem sua origem lá na filosofia e na cultura gregas, nominalmente em Sócrates, Platão e Eurípides, a saber, a racionalidade, o privilégio do intelecto em detrimento da sensibilidade e o afastamento dos mitos capitaneado pelo progressivo estabelecimento da ciência, não faz dele um pensador totalmente desacreditado. Isto se comprova pelas críticas que ele defere contra o niilismo e o ceticismo radical, e também ao conformismo e resignação presentes, sobretudo, nas religiões orientais. A ideia de que a finalidade da ciência é destruir a razão fica muito clara porque o homem teórico, esse que assimila a racionalidade e não se dá conta do prejuízo e do quão antinatural é abandonar os sentidos e substituí-los pela razão, se deixa dragar pelos objetivos e metas de uma economia e um modo de vida que se opõe violentamente à todos os aspectos naturais do homem, dentre os quais, para Nietzsche, a admiração para com os deuses é vital. Não se trata, nesse caso, de uma devoção subserviente porque esta poderia ser, no fundo, um jogo de interesses disfarçado de religiosidade. A verdadeira religiosidade não precisaria ser esse jogo de interesses hipócrita, que sustenta, no fundo, o exercício de poder, nem aquela procura desesperada por uma proteção, por um sentimento de amparo paterno para aquele que se sente frequentemente abandonado. Portanto, não sendo vazia, no sentido da usurpação da vida alheia e da dominação de outro povo ou mesmo do próximo, e não sendo ingenuidade e ausência de força e amor próprios, a relação com os deuses poderia ser a vitória da celebração de uma vida humana que participa e deseja ser integrante da natureza. Não deixa de ser, no fim das contas, a defesa do exercício da religiosidade numa perspectiva panteísta que, no mínimo, 176

exigiria uma compreensão de deus muito diversa da concepção judaico-cristã que fundou a nossa cultura. O esforço de Nietzsche em destrinchar os descaminhos dessa cultura monotonoteísta são claros. O homem está exaurido por um descompasso assombroso que o afastou de sua natureza. Os deuses se tornaram estéreis porque os mitos agora são obsoletos. Talvez os deuses fizessem muito mais sentido para o homem quando eles eram percebidos como imagens, como ídolos, porque agora, na forma de polícia fiscalizadora, eles se tornaram carrascos. Vejamos se as coisas ficam mais claras: o reconhecimento do poder da imagem, da força dos ícones e dos verdadeiros ídolos, precisa ser recuperado para que o homem reestabeleça sua relação natural com a natureza humana da qual outrora fez parte. Nesse ponto, Schiller enxergou a necessidade de uma educação estética e Nietzsche enxergou a necessidade de tornar um mundo uma vez mais aparência, mas não por descuido ou superficialidade, e sim, por afirmação da condição instantânea e efêmera de cada um de nós. Uma das questões mais interessantes na obra de Nietzsche é que ele procura identificar cada etapa do processo de sedimentação e assimilação da racionalidade na nossa cultura, sem abrir mão de investigar em cada momento desse o que movia as ações humanas. Ou seja: ao invés de se agarrar na irresistível conclusão imediata e da engenhosa classificação dos conceitos, ele buscou evidenciar quais os interesses subterrâneos que alimentavam as deliberações no plano político e as especulações no campo intelectual. Os primeiros filósofos, que buscaram o princípio de todas as coisas, isto é, a arché, merecem de fato o título de arqueólogos. Por uma ironia do destino, aceitar a tese de que há um princípio de todas as coisas tornou-se, depois de Nietzsche, uma tarefa meramente exploratória, exatamente como quem busca o primeiro registro de uma cultura, mas não poderá jamais compreender como ela se desenvolveu. Isso pode ser percebido com certa nitidez pela observação das dissertações de Genealogia da moral, sobretudo a primeira delas, onde o método genealógico é trabalhado com extrema gentileza para com o leitor. Além disso, Foucault, em A ordem do discurso, de 1971, também reconhece a influência e a importância do método genealógico nietzschiano em seu trabalho. O princípio de todas as coisas é mesmo um fóssil: seria como buscar compreender a filosofia de Sócrates encontrando suas sandálias em alguma ruína ateniense. 177

Nietzsche ficou famoso, inclusive para fora dos muros da Universidade, o que, para a filosofia, é pelo menos um caso raro, por ter sentenciado a morte de Deus. O fragmento 343, que abre o quinto livro de A gaia ciência, atesta essa afirmação: “O maior acontecimento recente – o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa” (2007, 233). É bem verdade que nesta passagem ele é apenas muito explícito, pois o sentimento de que a crença no deus cristão já não era mais algo tão popular em sua época aparece em muitas outras passagens de sua obra. Talvez a falta de objetividade em certos momentos tenha sido o motivo de uma frase tão direta como essa. Ou então a escassez de leitores atentos, que poderiam sozinhos chegar a esse veredicto depois da leitura de um filósofo como Nietzsche, tenha provocado essa impactante e sinuosa afirmação. O fato é que Heinrich Heine, em uma obra fundamental para entendermos muitas polêmicas que marcaram este período tão brilhante e produtivo da inteligência alemã que foi o final do século XVIII, já havia sacramentado esse assassinato e, para aqueles que tenham interesse investigativo no campo policial, o autor do crime era ninguém menos que Immanuel Kant. Foi em Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha, escrita a pedido de amigos em 1834, que Heine se empenhou em escrever uma breve e esclarecedora história da religião e da filosofia na Alemanha, já que a obra de Madame de Stäel não havia agradado. Cada um à sua maneira, podemos dizer que, no que tange a assimilação desta conclusão poderosa sobre a cultura europeia moderna, tratou-se de um homicídio em dupla. A maneira como o então assassino de Könisberg formulou a improvável existência de Deus não se deu no campo ontológico, mas, de maneira restrita, no campo epistemológico. Ao provar que seria impossível conhecer Deus porque se trata de um noumeno, e, nesse caso, seria imprescindível que ele chegasse a nós enquanto fenômeno, Kant teria matado Deus do ponto de vista do conhecimento. Portanto, para uma cultura erguida à duras penas e sustentada na sua base pela existência, ainda que remota, de um Deus vigilante e punitivo, seu fundamento moral mais importante estava prestes a ser substituído pelo imperativo categórico kantiano. Heine, contudo, no adverte que nada poderia ser tão simples e rápido. Além de Kant ter dado a notícia de uma forma quase inacessível ao homem comum, já que suas obras, em especial a Crítica da razão pura, não foram reconhecidas pela fácil leitura e compreensão das ideias, tal informação de extrema importância permaneceria restrita a 178

um grupo seleto de intelectuais. Coube então a Nietzsche a dura tarefa de anunciar aos quatro cantos este homicídio já prescrito. Ele o fez e, diga-se de passagem, da melhor forma possível para quem pretendia derrubar um ícone de importância imensurável. Mas ele também apontou a impopularidade da informação e a dificuldade de se assimilar tamanho golpe. “Essa longa e abundante sequência de ruptura, declínio, destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?” (2007, 235). Heine, por sua vez, advertiu os leitores franceses de que os alemães teriam sido muito mais vigorosos em suas ideias do que propriamente os franceses em suas ações. Longe de desmerecer as conquistas jurídicas da revolução, ele se refere, na verdade ao legado moral dela. Por mais violento que tenha sido todo o processo em Paris, não faria sentido algum permanecer frequentando a Igreja Católica apenas para manter a aparência, por mais importante que fosse uma manobra política. A crítica de Heine, de certa forma, vai de encontro à ideia que Nietzsche formulou. As mais sangrentas batalhas podem não ser suficientes para mudar os hábitos mais subterrâneos, a moral mais sorrateira, os valores mais sedimentados. Por isso, o porvir ainda seria lento, doloroso e perigoso para a humanidade. É, a partir desta ideia, que o projeto Nietzschiano da transvaloração faz todo o sentido. Na introdução de Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores, Luís Rubira faz uma afirmação fundamental para compreendermos o início do fim deste trabalho. Diz ele: Foi na hipótese cosmológica do eterno retorno do mesmo, ou seja, na possibilidade de uma eternidade temporal, que Nietzsche julgou encontrar uma nova medida de valor para realizar a tansvaloração de todos os valores. Se comente no último semestre de sua atividade intelectual ele empreendeu a transvaloração foi porque, em face da possibilidade cosmológica do retorno, que eternamente poderia fazer regressar o niilismo, havia a necessidade de uma definitiva aquiescência ao amor fati. (2010, 17)

Pois bem. Para além do problema de se pensar em decidir em definitivo se Nietzsche é um filósofo niilista ou ainda pertencente às rédeas da metafísica, como queria Heidegger, faremos uma breve discussão sobre como a nostalgia sobre a Grécia se transforma em amor fati no percurso que realizamos até aqui. Isto porque, se selecionarmos uma dezena de aforismos ou frases do filósofo seria mais do que possível 179

afirmar seu niilismo e até mesmo apontar certo ressentimento em relação à cultura moderna. Da mesma maneira, não seria muito difícil argumentar que, sobretudo o Nietzsche da época de O nascimento da tragédia, na qual destacamos a preponderância do mundo grego em seu rol de interesses, sua nostalgia aponta na direção de uma idealização dos gregos antigos e, ao mesmo tempo, que aquela obra ainda está inserida numa categorização dualista ou dialética, ao sugerir a reconciliação interminável entre as forças de Apolo e Dioniso. A refutação desta interpretação, inclusive, o próprio Nietzsche fez na sua “Tentativa de autocrítica”, na qual ele mesmo intitula o livro como “bizarro” e “impossível”. Nossa aposta está na ideia de que foi a influência de Schiller, no auge da sua ousadia na composição de A noiva de Messina, que, ao defender a utilização do coro nos moldes da tragédia grega da época e Sófocles, apontou a direção para superar a ideia de uma Grécia meramente metafórica entre os alemães. Além disso, os aspectos antropológicos revelados nas cartas sobre a educação estética do homem também são de uma força extraordinária, a ponto de o autor falar eu u m “homem que está porvir”, tal como Nietzsche posteriormente também fala. Isto que quer dizer que tanto Schiller quanto Nietzsche identificar e alcançaram os limites da modernidade, de diferentes maneiras, mas como um traço em comum muito interessante: evitar o tanto quanto possível o niilismo e o idealismo, e jamais renunciar de contribuir para o surgimento de um novo homem, de uma nova humanidade, de uma polis radicalmente diferente da europeia de suas épocas. Contudo, se a péssima saúde não permitiu que Schiller levasse ainda mais adiante seus planos e expectativas para o ser humano, os ataques ao bem-estar de Nietzsche não o impediram de realizar grande parte de sua obra. O que em Nietzsche é incomparável é a ideia de afirmação da vida incondicionalmente.

Trata-se de uma forma de ver a vida e a natureza humanas

totalmente diversa, livre dos vícios e dos males entranhados após séculos de uma cultura cristã que empenhou todos os seus sacerdotes em divulgar as ideias de seus pensadores e, especialmente, em evitar que o homem decidisse por viver a vida sem a presença repressora e distante de Deus. Essa estratégia aparece de forma belíssima na passagem de Assim falou Zaratustra, intitulada “Do amor ao próximo”. Nesta passagem é possível observar como o filósofo conjuga uma série de elementos que deixam ver como a passagem para o amor fati se torna uma das etapas mais importantes para a chegada do novo homem, do além do homem. 180

É importante manter os ídolos à distância, senão bem controlados para que eles não tomem conta de nós. É importante aceitar o caráter finito da vida e do ser humano, mas não querer lutar contra isso usando estratégias e subterfúgios que aumentam e alimentam nossa dependência e nossa necessidade de crer em algo. É importante quebrar com a lógica de que o conhecimento é um reconhecimento, porque os benefícios desta lógica não nos fortalecem a auxiliam a afirmar a vida, mas somente a negá-la e evitar que a vida transborde exuberante, apesar da sua violência e força. É importante amar, sobretudo, o que não é semelhante. Esta forma de amor é fraca, é compensatória, não estimula o homem ao crescimento, ao enfrentamento, às suas potências. Ao contrário, ela enfraquece o homem, reduzindo-o a repetições, economias e vícios. Ela induz ao erro disfarçado de verdade, como quem satisfaz nossa vontade de verdade e ignora o saber trágico da vida. Este sim, que nos foi dado pelos gregos antigos, e desde então foi perseguido como um mal porque aproxima o homem da terra. A concepção platônica do conhecimento precisa ser questionada, porque os limites estabelecidos para o que é o nosso conhecimento da vida não são efetivamente um conhecimento da vida, mas um saber para a morte. Ela é, nesse sentido, essencialmente negativa. Também ela precisa ser superada, e para seu lugar que o homem consiga trazer a experiência para formar seus valores junto ao corpo, à matéria e à natureza, porque o corpo não e apenas um cofre onde se trancam as almas até suas partidas. O eclipse de Deus e a decadência do Estado moderno não fizeram nada ainda de relevante, porque suas quedas ainda não se tornaram realidade. A conservação ainda é uma lógica presente, perversa e invisível. Em nome desse amor fati, dessa forma de golpear a estrutura estabelecida que regulamenta os nossos afetos a partir do valor de nossas verdades, Nietzsche diz: “Fugis de vós mesmos em direção ao próximo, e desejaríeis fazer disso uma virtude: mas eu enxergo através disso vosso “desinteresse”. (2011, 59) Afirmar a existência, juntamente com as vicissitudes, as carências, as falhas, as paixões, os órgãos internos do corpo humano é uma forma de aceitar a morte, não necessariamente enquanto fim, mas como realização da natureza humana. Afinal, nós nascemos para morrer e precisamos chegar a este ponto. “Que o futuro e o mais distante sejam para ti causa do teu hoje: no teu amigo deves amar o super-homem como tua causa”. (2011, 60) Gostaríamos, agora, enfim, de retornar ao aforismo 355 sobre a questão da nostalgia: será que a modernidade como um todo não criou este sentimento como um 181

mecanismo de fuga do seu presente, de medo do seu presente, e por isso quis retornar à Grécia, ou ao que eles imaginaram que ela poderia ser, como uma espécie de consolo metafísico? Não seria, a visão moderna da Grécia antiga, o próprio consolo metafísico para o desconforto que as conquistas da modernidade estavam trazendo para o homem moderno?

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ensaio “O que é o contemporâneo?”, do filósofo italiano Giorgio Agamben, começa pela discussão do posicionamento de Nietzsche sobre o problema da história na Segunda consideração extemporânea, texto no qual o filósofo alemão apresenta três tipos de história: a monumental, a antiquária e a crítica, a fim de diagnosticar quais os vícios que essas três formas cultivaram no homem. De mais a mais, a questão da relação do homem com o tempo e do homem com o homem em diferentes épocas aparece com certa relevância na discussão. Ali, ao tratar do imbróglio entre a modernidade e antiguidade, Agamben afirma que “os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico”. (2013,70) Para ser contemporâneo é preciso mergulhar nas trevas do passado que constituem o lado sutil e escondido do tempo presente. É por esse motivo que Nietzsche aponta as desvantagens da história, que nas três formas apresentadas pelo filósofo, só fizeram acelerar o processo de decadência do homem moderno. Este ato de coragem, este ímpeto de enfrentar seu próprio tempo pelo que nele é memória e não está ali é a atitude de Nietzsche para com o seu tempo. De certa forma, quando a visão de mundo nostálgica começou a ser construída na Europa, sobretudo no tocante aos gregos, formou-se um solo fértil para os idealismos. A postura de Winckelmann e Goethe foi decisiva para que a Grécia, na filosofia e na arte, se tornasse um modelo a ser seguido. É bem verdade que a filosofia ocidental, sobretudo no rastro de Platão, criou os fundamentos necessários e suficientes para que o ocidente se acostumasse à ideia de modelos exemplares, de ícones que representam e de ídolos que alimentam as aspirações dos homens comuns. É nesse sentido, por exemplo, que se assenta a ideia de que Sócrates de transforma numa figura heroica, numa espécie de ídolo, depois do diálogo Fédon. Nossa impressão é a de que na segunda metade do século XVIII o mundo europeu sustentou seu progresso acelerado, para a época, estimulado pela interpretação que eles fizeram sobre a Grécia. Não entra na conta, portanto, o que a Grécia foi de fato, mas o quão extraordinária ela pode ter sido: o critério da condição de possibilidade é o 183

que separa o joio do trigo, é a mão pesada que sustenta a visão de mundo estabelecida pelos filósofos modernos. Parece, ainda, um excesso de autoconfiança ou um egocentrismo disfarçado de idolatria, afinal, a Grécia inimitável se eleva e se torna tão grandiosa na medida em que se afigura como modelo para os modernos. A expectativa da criação e do estabelecimento de uma cultura racional e científica, cada vez mais distante de um suposto primitivismo e da concepção de vida humana associada de forma impura ao corpo e à matéria, legitimou uma visão de si mesmo no imaginário coletivo do europeu que, de alguma forma, o fez acreditar ser especial. Num primeiro momento, um homem cujos ideais e cujo modo de vida ainda se inspirava com respeito e profunda admiração nos gregos, mas que indicava um projeto para tornar-se autossuficiente. Esse excesso de confiança foi proporcionado por pelo menos dois elementos dessa cultura: primeiro, a segurança transmitida pela ciência e pela racionalidade, que permitiram ao homem enxergar-se como administrador e controlador do mundo e da natureza, e, consequentemente, do tempo; segundo, pelo apoio oriundo da certeza de que o ciclo da vida é progressista. O que quer dizer que, na medida em que os gregos foram extraordinários e nós somos “naturalmente” mais avançados que eles, nós podemos sem grande dificuldade superar suas construções e criações. Preferimos não pontuar essas últimas palavras em relação a cada capítulo do trabalho, mas agrupá-las em três eixos que se tornaram fundamentais ao longo do seu desenvolvimento, a saber: as reflexões estéticas e teóricas sobre a arte; a relação entre a formação cultural e a esfera sociopolítica; e o estabelecimento do sujeito burguês moderno. Antes de qualquer outra coisa, é importante frisar que esses três eixos se tocam com muita frequência, e a dificuldade de separá-los se dá principalmente porque em épocas como período que se estende entre o final do século XVIII e a metade do XIX a interferência entres elas é, além de incomum, capaz de produzir efeitos muito intensos no desenvolvimento da história. Além disso, esses mesmos três eixos não foram tratados separadamente nos quatro capítulos do trabalho, pois a abordagem que fizemos exigiu estabelecer com certa frequência suas aproximações. E, por último, Schiller e Nietzsche, os dois autores mais presentes aqui, são eles mesmos exemplos de figuras cuja relação com a história e a política é determinante para a formação do pensamento. Em relação às reflexões estéticas e as teorias da arte, entendemos que a nostalgia ocupa um lugar privilegiado. Por um lado, sem dúvida, a contribuição de Winckelmann 184

foi fundamental para o desenvolvimento da estética alemã, pois sem ela muito provavelmente o olhar para os gregos poderia não ter se transformado em método e o valor daquela cultura para a modernidade certamente não seria tão elevado. Foi esse olhar nostálgico que abriu as portas para o Helenismo na Alemanha e, posteriormente, para o despertar da admiração aos gregos, que se fez presente para as reflexões estéticas, mas também políticas, éticas e epistemológicas. Por outro, entendemos que movimentos como o Romantismo alemão foram alimentados por um sentimento que aflorou nas décadas seguintes às de Winckelmann, que acabou por mexer com uma demanda reprimida de ídolos e referências, e que, associada à vontade epidêmica de tornar-se especial, alcançou algumas gerações de poetas e filósofos, todos interessados em beber da fonte grega de alguma maneira e de elevar o novo espírito alemão a um lugar de destaque na Europa e no mundo. O principal alvo de suas críticas é Bernini, e o conteúdo delas está centrado na distinção entre imitação e cópia, que, no fim das contas, se estabelece como um dos elementos mais influentes da estética moderna. Imitar uma forma de fazer algo, ou seja, desejar e permitir-se ser influenciado da mesma forma como aconteceu com os gregos é radicalmente diferente de copiar uma estátua grega, por exemplo. Portanto, na medida em que Bernini pretendia que seus discípulos se aproximassem o máximo possível da realidade, ao copiá-la, ele pode muito bem desenvolver o senso para a perfeição prática. Contudo, quando Winckelmann abre mão da perfeição da cópia para uma interpretação das possibilidades da obra, isto é, de imaginar como seria a perfeição de uma obra, ele traz consigo a exigência da imaginação, e não apenas da execução manual. Isto, que podemos chamar de aspecto metafísico de sua teoria, chancela as especulações posteriores sobre a arte a ultrapassar as questões restritas a estilo, técnica e à utilização de determinados materiais, para incluir o elemento menos objetivo da criação artística: a inspiração. A solução moderna para a natureza dessa inspiração é o que conhecemos como estética do gênio. Aqui Winckelmann já não se faz mais presente. Entendemos que ele se aproxima muito mais do aspecto místico da inspiração, tal como ela aparece nos momentos em que o próprio Platão reconhece o mérito desta discussão para a filosofia, como no diálogo Íon. Os filósofos modernos, em sua maioria, extirparam toda e qualquer chance de um elemento místico ou inapreensível interferir na criação artística, e adotaram para este problema a mesma estratégia que usaram para os demais problemas que em outros tempos apontavam para o horizonte místico ou sagrado: 185

reduziram a pó suas imprecisões e apontaram o homem e seu caráter racional, desta vez, elevado à enésima potência, como fonte de todas as criações artísticas. A substituição de Deus pela razão suficiente, na arte, é a substituição da inspiração divina pela categoria do gênio. Mas além do debate em torno da imitação, outro ponto precisa ser lembrado. A beleza é uma das questões mais problemáticas das reflexões estéticas do século XVIII, dentre as quais se destacou a de Winckelmann, que nunca deixou de ser, assumidamente, profundamente marcada pela concepção platônica da beleza. Por isso, inclusive, podemos observar que ele imprime a ideia de que é possível alcançar um ideal de beleza, de que é possível produzir uma obra de arte definitivamente bela. E, mais uma vez, assim como para Platão, essa possibilidade permite também imaginar que a beleza se assemelha demais às ideias de bem e de verdade, porque uma visão unitária da realidade sustenta tal condição. Ainda que Schiller tenha sido muito influenciado por Winckelmann, há um limite que se impõe justamente nessa possibilidade de alcançar a beleza da obra de arte. Ele parece ser mais consciente do que o autor das Reflexões de que toda obra de arte é um fenômeno, e, enquanto tal, efêmera e transitória. Sua semelhança com a verdade, mesmo que sirva como argumento para uma teoria especulativa da beleza, não é forte o suficiente para que Schiller aposte na real possibilidade de produzir uma obra de arte bela. Essa desconfiança tem boas chances de ter sido alimentada pelo ambiente político de sua época e dos frutos colhidos por ele através de sua investigação antropológica, manifesta através da incrível profundidade de suas personagens. Talvez seja importante mencionar mais uma vez as decisivas influências de Lessing e Kant. Um no teatro e o outro na filosofia, ambos foram fonte de reflexão para toda a arte e a filosofia depois deles. Enquanto Lessing inaugurou gênero e deixou a primeira comédia realmente alemã, produziu o maior (e o primeiro) trabalho crítico da dramaturgia e da literatura alemãs, trouxe à superfície autores como Shakespeare e defendeu com unhas e dentes a criação de uma literatura e um teatro alemães, em lugar da cega obediência aos cânones franceses e romanos. Kant foi um dos filósofos mais importantes de nossa história, sendo responsável por uma mudança radical na teoria do conhecimento moderna a partir da revolução copernicana. Para a estética e filosofia da arte, muito embora não tenha se debruçado de forma explícita sobre este tema, abriu espaço para a autonomia na e da obra de arte, pois apresentou os fundamentos necessários para que o paradigma da subjetividade invadisse a esfera artística. 186

Os desdobramentos dessas duas contribuições foram enormes para Schiller. Alimentando sua inabalável expectativa de conduzir a arte para cerne do debate sobre a formação cultural da humanidade, Lessing contribuiu tanto pela forma como abordou a crítica aos franceses, inaugurando a crítica de arte em solo germânico, tanto pelo conteúdo, quando trouxe para o palco os temas e personagens burgueses ainda inéditos na dramaturgia alemã. Se no campo artístico Lessing foi crucial, no campo filosófico foi Kant quem provocou Schiller, exigindo, de certa forma, que sua leitura não fosse um mero esforço de compreender a filosofia kantiana, mas de inserir sua contribuição no panorama da estética moderna. A nosso ver, foi Schiller quem deu a importância necessária para a abordagem de Kant na terceira crítica que se permitiu uma revolução também no campo da estética. Em se tratando estritamente da teoria kantiana, Schiller não se satisfez com a teoria do belo, projetando uma alternativa ao tratamento kantiano que se diluiu entre a correspondência com Körner e os artigos publicados na última década do século XVIII. A tônica da sua proposta é legitimar o projeto de uma educação estética que conduza o homem à liberdade, e para isso ele sugere uma teoria da beleza que seja um amálgama da liberdade teleológica kantiana, presente na segunda parte da terceira crítica. Com a similitude entre beleza e liberdade, Schiller oferece uma alternativa às teorias da beleza dos empiristas, dos racionalistas e de Kant, legitimando, em tese, a possível equivalência entre ética e estética. Desde a segunda metade deste trabalho, nos propusemos a articular as ideias de nostalgia e amor fati, observando de perto as ligações entre Schiller e Nietzsche, melhor dizendo, em que medida eles se tomaram posições semelhantes em relação aos mesmos temas. Portanto, não nos interessou seguir os trabalhos daqueles comentadores que costumam enxergar em Schiller um continuador de Kant, ou mesmo identificá-lo como um kantiano. Isso significou privilegiar dois elementos na teoria estética de Schiller: a admiração para com os gregos e desconfiança em relação aos modernos. Este segundo item, ademais, foi entendido por nós na esteira das observações antropológicas de Schiller, através da precisão cirúrgica com a qual ele definiu o caráter de suas personagens teatrais, para os quais reconheceu a existência de uma maldade natural no homem, que em momento algum é ajuizada ou condenada pelo autor. Esse detalhe, associado ao seu estudo sobre o trágico, foi a ponte que precisávamos para aproximá-lo de Nietzsche.

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A Bildung é outro eixo fundamental em que trilhamos nossa pesquisa. Assumindo-a como formação cultural da humanidade, ele mesmo se transforma em uma das questões mais relevantes a serem discutidas aqui, porque tanto Schiller quanto Nietzsche demonstraram enorme interesse em pensar a relação entre a arte e a formação de nossa cultura ocidental. Na verdade, se pensarmos que a estética alemã é toda ela herdeira dos problemas originados pela teoria winckelmanniana, pois assenta suas reflexões a partir de suas duas célebres afirmações, a visada em direção a Grécia surge como um procedimento de fácil compreensão. Nesse sentido, é notável o amálgama que se forma entre o mundo grego do século V a C e o período helenístico na Alemanha: se a paideia platônica é um alternativa à homérica, substituindo-a na forma e no conteúdo, mas mantendo a concepção de uma formação universal, encabeçada pela tríade de ideias (bem, justo e belo), podemos muito bem dizer que a Bildung germânica recupera a proposta do filósofo grego e põe à mesa a questão da formação universal e da similitude entre a ética, a estética e o conhecimento, estabelecendo, por sua vez, um enfrentamento do sistema feudal e abrindo espaço para que a burguesia alemã surgisse e ocupasse seu lugar na política e na cultura alemãs. O auge desse encantamento com sugestão de uma possível formação plena, para a qual não há uma hierarquia nem distinção de valor entre essas três esferas, se fez presente com o fragmento intitulado “O programa sistemático”, que exprime em poucas palavras tal projeção. Embora o texto talvez tenha sido escrito conjuntamente com Hegel e Schelling, dizemos que Hölderlin leva às últimas consequências a visão estabelecida por Winckelmann: ignorando o tempo, a geografia e a história, ele suspende uma ponte imaginária entre o mundo grego e o alemão, sugerindo uma visão de mundo que engendrasse àquela forma de vida às necessidades apresentadas pelos homens de seu tempo. Contudo, o projeto político moderno, como um todo, entra em colapso. E não foi pelo exagero e pela impossibilidade de executar as vertentes mais agudas das quimeras hölderlinianas, e sim, pela natureza e pelo estatuto do programa em curso na modernidade. Sem dúvida, ainda mais depois de ter resgatado uma parte dessa trajetória, podemos tratar o homem moderno como produto da lógica e dos valores estabelecidos desde os primeiros apontamentos da filosofia grega. E, antes de adentrar mais nessa questão, é importante reconhecer que isso não significa necessariamente um fracasso da filosofia enquanto tal, porque as deliberações práticas de nossa história, mesmo que possam ser pautadas ou decorrentes das reflexões filosóficas, foram muitas 188

vezes conduzidas por interesses privados, sobretudo no que diz respeito à manutenção de privilégios e ao exercício do poder dominante. Se o modo especulativo da filosofia contribuiu para que o intelecto se tornasse negligente em relação à política, por exemplo, o desenvolvimento da capacidade crítica e a bandeira da autonomia poderiam muito bem ter contribuído para que a filosofia interferisse de outra forma no rumo de nossa história. Em geral, a maioria dos comentadores prefere identificar Schiller como continuador da filosofia de Kant, privilegiando o aspecto moral da concepção de liberdade do filósofo, algo que é notável especialmente nos seus comentários sobre Kant e em cenas de destaque de sua obra teatral, como no encontro fictício entre Maria Stuart e sua prima Elizabeth I, na tragédia que leva o nome da rainha escocesa. Mesmo assim, preferimos voltar o olhar para os receios alimentados por Schiller em relação aos valores modernos e aos procedimentos adotados em nome do exercício de poder, sejam eles provenientes de um governo tirânico ou da tirania intrínseca à natureza humana. Se, por um lado, Schiller de fato tinha formação médica e usufruiu do vocabulário técnico para diagnosticar os males que conduzem o homem às suas mais terríveis mazelas; Nietzsche, por outro lado, se apropriou com maestria do vocabulário da fisiologia e, atento ao debate entre as ciências de sua época, soube articular os processos patológicos do corpo com os males resultantes das escolhas e decisões do homem ocidental. A vilania, fruto do inescrupuloso exercício de poder e da vontade de dominação, não é exatamente uma espécie de mal enquanto substância ou entidade que impele o homem a agir, contrapondo-se ao um bem que governa os homens bons e virtuosos. A estratégia maniqueísta de polarizar esses termos é uma maneira de querer compreender a imperfeição das ações humanas como categorias, evitando o embate pesado e difícil do enfrentamento da realidade. Estratégia essa, aliás, frequente entre alguns filósofos, mas que se mostrou, no mínimo, pouco eficaz. Fruto desse processo, talhado artesanalmente durante séculos, o homem moderno representa a tentativa de legitimar uma cultura de privilégios como se eles fossem condições naturais, justificáveis e louváveis. A hipocrisia, elemento imprescindível para a constituição do homem moderno, foi a saída racional para vender as ideias e valores mais elevados, pensados pelo melhor uso possível da nossa capacidade racional e imaginativa, mas que, ao mesmo tempo, flerta com a perfeição e a bondade, esquematiza sua forma de dominação e perpetuação do poder na aparência do democrático, humanístico, libertário e justo. 189

É nesse sentido que chegamos ao terceiro item de nossas últimas considerações, que diz respeito ao surgimento do sujeito burguês moderno. As revoluções burguesa e industrial não foram somente resultado de um processo agudo de transformações político sociais, que mexeram com a estrutura da produção econômica, a divisão do trabalho e a formação da população urbana. Foram eventos que semearam mudanças ainda mais profundas, que só com o amadurecimento do sistema burguês e de seu modo de vida, suas crenças e valores, transformaram-se em objeto de interesse das especulações filosóficas e sociológicas.

Entretanto, do ponto de vista filosófico,

podemos dizer que as duas revoluções encontraram um homem capaz de apreender rapidamente as mudanças e de incorporá-las no seu modo de vida. Na França e na Alemanha os processos históricos foram bastante distintos. Se, no caso dos franceses, a ascensão da burguesia foi consequência de uma série de acontecimentos que a desencadearam, na Alemanha foi a dramaturgia quem apontou pela primeira vez para os hábitos e a forma de pensar do burguês alemão. Isso indica que, no rastro da visão empregada por Madame de Stäel, se houve uma revolução na Alemanha, ela se deu predominantemente no intelecto. Não quer dizer que as mudanças práticas não tenham ocorrido. Tampouco que as mudanças no intelecto não interferem na vida prática. Mas que a formação intelectual, a chamada formação do espírito, se deu fundamentalmente a partir das próprias ideias, e não de uma intensa movimentação exigida pelas marchas urbanas. Porém, contra a sugestão de Stäel, Heinrich Heine advertiu no primeiro livro da Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha que a expectativa dos franceses em entender a Alemanha a partir sua literatura não se concretizaria, pois, ao conhecê-las,

“passaram

apenas

do

estado

de

completa

ignorância

ao

da

superficialidade” (1991, p.19). Talvez esse argumento queira deixar claro que a literatura alemã poderia sugerir uma conjuntura política e social que, para além das páginas das primeiras obras primas daquela literatura recém-nascida, não se encontraria pelas ruas, muito menos incrustada no modo de vida daquele povo. Sem ignorar a importância de cada país e cultura na formação da história europeia, não seria exagero algum dizer que, depois dos séculos de predomínio dos romanos e da euforia dos países da península ibérica, foram alemães e franceses os que mais contribuíram para o estabelecimento de uma cultura do velho continente, especialmente no século XVIII. Temos duas contribuições muito fortes e incisivas, que em função da maneira como foram forjadas se distanciam notavelmente. Na nossa 190

cabeça, o sujeito moderno não pode ser filho apenas da cultura francesa, bem como também não pode ser declarado alemão sem mistura, e sim, um espírito talhado no choque entre essas duas culturas, entre o privilégio das ideias, que traz consigo certa dose de ingenuidade em relação ao real e à vida, e a força avassaladora das ruas, do exercício de cidadania prática, que muitas vezes extrapola os limites de uma racionalidade moderada. Esse sujeito moderno de caráter burguês não abriu mão de nenhuma das suas influências, nem mesmo aquelas referências sedimentadas da cultura judaico-cristã. Muito pelo contrário, ele veio desenvolvendo desde a modernidade uma capacidade cada vez mais complexa e elaborada de tornar imperceptíveis seus valores mais arraigados, inibindo o exercício da autocrítica e da mudança de pensamento. Quer dizer: todo o desenvolvimento tecnológico e científico, representados pelas incalculáveis conquistas da nossa ciência, reforçaram nossa natureza conservadora. E é por isso que nos assombramos com os casos de preconceito, de violência, segregação e usurpação dos direitos humanos que pululam nos veículos de comunicação de massa. Esse aparente retrocesso pode ser, na verdade, uma resposta ao exercício cidadão da exigência daqueles valores que defendemos publicamente desde a revolução de 89.O enrijecimento das contradições nos parece parte necessária para o processo civilizador. Por mais violento e estarrecedor que seja, ele não pode ser abafado, porque é imprescindível para o permanente desenvolvimento humano. Nietzsche nos alertou, especialmente em Além do bem e do mal e na Genealogia da moral, que muitas palavras de grande importância e representatividade da nossa história foram recebendo valores que se aglutinaram à sua natureza como mariscos em casco de navio, numa legítima atividade parasitária. No Brasil, em particular, esse efeito tem sido danoso demais para nossa expectativa de desenvolvimento enquanto nação, e para não extrapolar nas observações, ficaremos satisfeitos em falar apenas do termo cultura. Em geral este termo é compreendido de forma elevada, o que significa dizer que quando nos referimos a um homem culto ou a um povo que tem cultura, queremos dizer que tal homem, além de hábitos civis, tem uma boa formação intelectual e possui referenciais artísticos acima da média. Ou seja, que se trata de um homem que, se não pode ser um crítico de arte, pelo menos conhece uma gama suficiente de obras e de artistas que lhe conferem o grau de homem culto.

191

Este trabalho nos permitiu chegar a uma conclusão satisfatória, especialmente se considerarmos que nossa maior motivação interna residia na suposição de que apesar de haver algumas diferenças insuperáveis entre Schiller e Nietzsche, elas não seriam suficientes para combater a ideia de que a arte tem uma importância singular na formação cultural da humanidade. E não há mais nenhuma dúvida de que a defesa dessa ideia está pautada em uma admiração incomum pela Grécia antiga, ou pelo que eles entenderam ser o modo de vida e o espírito gregos. Outro ponto em comum entre os dois é o olhar crítico em relação ao homem moderno e a desconfiança de que, desde a Revolução francesa, caminhamos muito mais para uma decadência do que para o sucesso e bom desempenho do homem moderno. O esgotamento do modelo de racionalista e da supressão dos sentidos e da imaginação já apontava para um futuro sombrio. A iminente crise de valores, problema reconhecido nos últimos anos como um dos temas mais urgentes e delicados por uma parcela razoável da comunidade acadêmica, foi diagnosticada pelo médico Schiller e pelo filósofo Nietzsche. Entretanto, reconhecer essas aproximações não nos impede de enxergar uma diferença gritante: enquanto Schiller, ainda que ressabiado, depositava suas fichas na educação estética como alternativa capaz de fazer o homem dar uma guinada radical na sua formação histórica, desde que tivesse claro em sua mente a similitude entre beleza e liberdade e sua necessária participação no projeto de educação estética, Nietzsche remava para outra direção. Algumas décadas depois, ele já enxergou um estado de coisas no qual nenhuma esperança poderia ser depositada, em qualquer direção que fosse, porque além de reconhecer o papel fundamental da arte no processo de formação cultural do homem, seria indiscutível que uma mudança radical nos valores estabelecidos fosse empreendida. Aquele homem, moderno, não seria capaz de nada afirmativo, nada que lembrasse de longe o espírito grego, o enfrentamento da própria natureza humana, das nossas limitações e das nossas potências. Não apenas mais construir, mas sobretudo destruir muita coisa que já havia sido feita. Enfim, a travessia da nostalgia grega até a formulação do amor fati é a ferida aberta de todas as paixões humanas. Nossos modelos de outrora foram também parte constituinte desse processo que, se para a vida prática nos legou um exercício de vida que mais parece uma provação, para a filosofia tem se mostrado uma fonte inesgotável de problemas, cujos desdobramentos ocupam a vida e o pensamento dos homens, exigindo deles nada mais que a exaustão dos recursos intelectuais e sentimentais. 192

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