Nostalgia no realismo de Blest Gana

May 31, 2017 | Autor: Fernanda Lobo | Categoria: Latin American Studies, Literatura Latinoamericana, América Latina
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São Paulo, julho de 2016 Fernanda Lobo

A nostalgia no realismo de Blest Gana

No começo do séc. XIX, a intelectualidade latino-americana passa a voltar-se para si. Após os processos de independência, a necessidade de promover o fortalecimento dos estados nacionais levanta questões a respeito dos processos históricos e sociais dos países da América Latina até aquele momento. Da simples emulação, tendo como modelo a literatura e toda a produção intelectual europeia, passa-se a questões identitárias que passam necessariamente pela descolonização do imaginário e pela busca de uma produção intelectual "própria". Começa aí um processo complexo, que se estende por toda a história do continente a partir do momento em que não é possível continuar aceitando a tutela mental da Europa. Mas como produzir material próprio se a língua e o padrão estético são totalmente europeus? A Europa nesse momento abrigava o apogeu do Romantismo, que surge como negação do racionalismo neoclássico, em voga até o séc. XVIII. É um movimento na direção de provar o fracasso da Ilustração, das revoluções burguesas, da República de Weimar, que resultam, agora, em gigantescas convulsões sociais. Os principais expoentes do Romantismo são Goethe e Schiller, antecedidos por Voltaire e Rousseau. Em termos formais, na literatura se produziam exaltadas defesas de licenças poéticas, como resultado de um impulso vital para a urgente prática da liberdade. Há uma aposta na pluralidade, a abertura dos portões intelectuais ao "feio", acompanhados da fascinação pelo mistério, pelo pitoresco e visões frequentemente místicas ou cósmicas sobre o lugar existencial do homem são bem-vindas. A escrita impetuosa no chamado Sturm und drang, a nova confiança na intuição da criação, o tratamento religioso dos eventos naturais, enfim, todo o movimento era no sentido de desacreditar a pretensa exatidão racional, que era lei até aquele momento. Mas, como diz Schwarz, "nada cruza impunemente o Atlântico" e aqui o Romantismo desembarca como instrumento político para o fortalecimento do Estado-nação, pressupondo-se que, garantindo a circulação simultânea de material que inspire uma unidade identitária, linguística e de costumes, existiria o fortalecimento político institucional. Nesse sentido, o Romantismo latinoamericano é completamente diferente do europeu. Enquanto lá, existia uma "abertura dos portões" à pluralidade, aqui, a necessidade política de modelo a ser seguido para o SER chileno (ou argentino, ou brasileiro etc.) traz para a literatura um tom de evocação elogiosa superficial de características genéricas que todo apreço pela homogeneidade traz consigo. O que era tido como exótico no

continente europeu, aqui era a banalidade cotidiana. No entanto, as abordagens acabavam sendo semelhantes e o resultado, artificial. Essa diferença resulta em momentos curiosos, como a tradução e circulação na América Latina de Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre, que mobiliza valores idealizados a respeito da vida na natureza e projeta a figura do "bom selvagem"; ou a tradução de Atala, de Chateaubriand, obras que, na América Latina, no mínimo contam com uma recepção bem menos distanciada e idealizada do que os autores tentam representar. Romances românticos escritos pelos próprios intelectuais latino-americanos acabam, ainda, reproduzindo o mesmo tom superficial e idealizado.

Contexto histórico do Chile

Após a Guerra do Pacífico, anteriormente à publicação de Martín Rivas, o Chile vence e anexa territórios da Bolívia e do Peru, Bulnes e Montt impulsam a modernização do país, por meio da atividade mineradora. 80% da população é rural e analfabeta e a hegemonia oligárquica é absoluta. Com a modernização, há também aumento da escolaridade e da alfabetização e investimento em bibliotecas públicas, apesar da manutenção da estrutura colonial de produção. É necessário educar para atingir o patamar de nação respeitável: por influência dos valores Iluministas, o progresso econômico somado ao conhecimento universal significava plenitude histórica. Blest Gana no discurso que faz ao assumir cadeira na Faculdade de humanidades, na Universidade do Chile – discurso inclusive escrito em bom espanhol arcaico – insiste na importância da literatura, mais especificamente da novela ou romance de costumes, para alavancar o país. Os intelectuais liberais envolvidos no processo de independência, como Andrés Bello, que havia lutado ao lado de Bolívar e, posteriormente, fundado a Universidade do Chile, começam uma movimentação em torno da busca pela literatura dita nacional. Fundam-se diversos grupos de debate intelectual, como a Sociedade da Igualdade, em 1850, presidida por Santiago Arcos, que é inclusive citada em Martín Rivas, nosso romance em questão. Inicia-se, também, a produção e circulação de jornais, como o El amigo del pueblo, ou o El museo. A democratização da leitura é, neste momento, enxergada como a grande chave para a libertação da heteronomia intelectual, é o passo para a autonomia, daí a grande importância dos debates e da circulação de publicações em que apareciam os conflitos políticos da época, cheios de defesas de convicções ideológicas e estéticas.

Blest Gana e o meio literário chileno

Nosso autor, Blest Gana, acaba sendo um dos nomes mais importantes do referido momento no Chile. Vindo de família relativamente abastada, ou que pelo menos circula entre os meios influentes, é considerado o fundador do romance realista chileno, apesar de começar sua produção intelectual com inclinações estéticas românticas - como a totalidade dos autores da época. Com o desenvolvimento do debate da situação política e social chilena, e consequentemente sobre a identidade nacional, o autor começa a promover uma verdadeira cruzada contra a circulação de produção estrangeira no País, que, em meados do séc. XIX, somavam 99% das publicações, quadro que muda entre 1855 e 1860, quando, de 72 publicações anuais em média, 33 eram religiosas, 18 eram obras estrangeiras e 13 obras eram chilenas, segundo Susana Zanetti. Bello defende que a novela é a forma apropriada para expressar as questões de seu tempo, no que é seguido por Blest Gana. O autor nutre grande admiração por Balzac, chegando mesmo a considerá-lo um modelo e, assim como o famoso escritor francês, pretendia construir uma obra cíclica sobre o Chile, como A comédia humana para os costumes franceses. Sarmiento, escritor de Facundo, o romance fundador da América Latina, no qual manifesta a crença no poder ilustrado que conduziria a massa não ilustrada é grande propulsor da educação e da educação livresca e defende a circulação de novelas nacionais para alavancar o caminho evolutivo à boa literatura. Os folhetins, por exemplo, seriam uma ferramenta para moldar os espíritos e mudar os rumos da sociedade. A ideia da educação estética que estes intelectuais defendem é uma ideia schilleriana, do auge do romantismo europeu. A arte é vista como promessa de felicidade, é o caminho para a emancipação humana, ou seja, a plenitude da vida humana se daria pela relação da sensibilidade com a racionalidade. O lugar do intelectual, militante e autor que “evolui” ao realismo como solução formal para a literatura no século XIX é controverso: por um lado, além de conviver com os intelectuais europeus que vivem na América Latina, este autor bebe na fonte espiritual da revolução burguesa francesa e dos teóricos iluministas, idealistas românticos, empunhando a bandeira do conhecimento ao alcance de todos, simbolizado na figura do livro; por outro, quer se livrar da tutela mental europeia, mas reivindica igualdade e democracia a partir da cosmovisão eurocêntrica. A pretensa representação totalizante da sociedade se mostra um ideal seriamente comprometido pela perspectiva enviesada, devido aos modelos seguidos e à classe social e econômica que lhe dá origem. A Europa é o modelo e mesmo as teorias emancipatórias e descolonizadoras ironicamente vêm daquele continente. Se Delacroix criticou Courbet por causa da estética realista, que “sacrificava a arte em prol da verdade da vida” e era uma “provocação da insurreição social”, as escolhas estéticas de Blest

Gana, como veremos durante o desenvolvimento do trabalho, não permitem disfarçar a visão do homem branco, intelectual e invariavelmente pertencente à elite, mesmo no Realismo. O autor pretende, apesar disso, retratar toda a sociedade; vê-se em condições de fazê-lo sem, contudo, afastar-se dos modelos academicistas europeus. Em seus livros, o autor não raramente invoca valores aristocráticos para desmerecer a classe média emergente, chega a classificar como irretratáveis as classes marginais e as massas são descritas como “turba beligerante y rabiosa.” Em Martín Rivas, por exemplo, em dado momento da narrativa, após longas e esmeradas construções de personagens e descrições de situações sociais sintéticas – que seriam a síntese do Chile – Blest Gana, ao iniciar a descrição de uma mulher que é doméstica de pessoas pobres, diz que retratar aquela pessoa é impossível:

Dar una idea de aquella criada, tipo de la sirvienta de casa pobre, com su traje sucio y raído y su fuerte olor a cocina seria martirizar la atención del lector. Hay figuras que la pluma se resiste a pintar, prefiriendo dejar su producción al pincel de algun artista: alli está em prueba el “Niño Mendigo” de Murillo, cuya descripción no tería nada de pintoresco ni agradable. (GANA, 1962, p.64) Aqui percebemos que a intenção democratizadora e igualitária tem um limite e que retratar a totalidade da sociedade não é possível; que existe um abismo entre a teoria democráticadescolonizadora e a realidade popular chilena e que talvez um vasto setor da intelectualidade se interesse por “inventar” um país “decente”, de pessoas letradas, mas está indisposto a qualquer ruptura com os valores oligárquicos, pelo contrário, buscam-se acordos tácitos entre valores liberais e conservadores. Doris Sommer mostra inclusive que tais acordos que aparecem frequentemente na literatura nada mais são do que metáforas dos conchavos políticos: nos romances nacionais do Chile e do México os acordos tácitos entre as classes pela manutenção da ordem são realizados na consumação de matrimônios utilitários. Em Martín Rivas, ela observa que Edelmira, a personagem coadjuvante, pobre e suburbana entrega o homem de seus sonhos, Martín Rivas, a Leonor, uma mulher mais privilegiada, apesar de merecê-lo. Tal resignação diante do sacrifício em prol da mulher ou das classes mais abastadas são tidos como atos de prudência e, pelo tom do texto, quase elogiados como a virtude dos pobres. O próprio Martín Rivas age como alcoviteiro-lobista ao longo do romance, compreendendo o valor do dinheiro como mediador social e negociando casos de amor como quem negocia sapatos. “No Chile, uma elite branca administrou a harmonia internamente”, diz Sommer. Blest Gana trai, nesse ponto, até seu principal modelo, Balzac, para quem o dinheiro e a moralidade estariam irrevogavelmente separados. Blest Gana demonstra aqui, como ocorre na obra de Balzac, melancolia, um sentimento de perda com relação ao passado. A ascensão da personagem Martín Rivas à aristocracia é o

movimento do próprio escritor em direção aos valores aristocráticos, que, paradoxalmente, estão no passado e não no futuro, como seria de se esperar de um liberal. Assim, o fato de Blest Gana eleger Balzac como o seu mais destacado modelo estético acaba transferindo também, de acordo com o que tentaremos demonstrar, a nostalgia política balzaquiana para a obra do chileno.

Balzac, o modelo No ensaio “A polêmica entre Balzac e Stendhal”, de Lukács, vemos a análise de dois modos completamente opostos de representação empregados pelos dois maiores realistas de então. Balzac inicia a análise de A cartuxa de Parma dividindo os estilos do romance em três grandes correntes: a literatura dos ideiais, que é a literatura do iluminismo francês, seria a praticada por Voltaire, Le Sage, Stendhal; a literatura das imagens, que teria como expoentes Chateaubriand, Lamartine, Victor Hugo e o ecletismo literário, estilo em que se inclui e que seria a fusão das duas correntes anteriores, também seria seguida por Scott, Madame de Stael e George Sand. O autor se contrapõe à literatura idealista – e consequentemente às escolhas formais de Stendhal – afirmando que não é possível usar os elementos dos séculos XVII e XVIII para a literatura, já que o artifício da imagem, da descrição, das artes plásticas são indispensáveis nesse momento1, em contraposição ao acumular de pensamentos e acontecimentos. Stendhal desprezaria as soluções formais românticas, por isso Balzac inclusive exalta a linearidade e falta de digressões e descrições de Stendhal, “que não se desvia do seu caminho sequer para colher uma flor”. Lukács vê aí uma afinidade entre os dois, já que, na realidade, nenhum dos dois se afastaria do essencial da obra, a diferença estaria somente em o que seria essencial para a obra de cada um. Stendhal, apesar de não atender às soluções formais românticas – no que mais tarde teria sido vencido pela obra de grandes realistas como Flaubert - no entanto, guardaria profunda devoção ao ideal romântico, iluminista e progressista. Balzac, por sua vez, teceria críticas ao estilo de Stendhal apontando a falta de elementos que seriam próprios do estilo romântico e, no entanto, já havia dado como mortos os ideais românticos de revolução e progresso, sendo inclusive um reacionário político, já que é entusiasta da Restauração, período da retomada da monarquia. A ideia de Balzac seria “superar o romantismo, transformando-o em um momento do grande realismo”, no sentido hegeliano. Ambos os escritores presenciaram o levante dos primeiros movimentos operários, o nascimento da concepção socialista do mundo. Na obra de Balzac, confluíam a crítica socialista do capitalismo, a crítica romântica do capitalismo, a teoria socialista feudal religiosa e a luta de classes. Balzac fazia confluir em sua obra a influência de todas essas visões, e acaba defendendo um 1O próprio termo realismo é cunhado pela primeira vez para fazer referência ao trabalho do pintor Rembrandt.

monarquismo político nos moldes ingleses, apresentando uma visão apocalíptica de sua época nos últimos romances. O escritor julga o capitalismo com os olhos da Direita. É certo que vê com mais profundidade e precisão que o seu rival o período entre 1749 e 1848, e trabalha, sobretudo, com a construção de personagens complexos e ativos, retratando personagens degradadas ao adotar o caminho do “arrivismo nu e cru”, como o banqueiro e agiota Nucingen, capaz de toda a sorte de especulação financeira com seu grupo de banqueiros em uma fase de industrialização crescente, ou Lucien, de As ilusões perdidas, cujas crises espirituais, morais e materiais Balzac descreve com maestria. Enquanto isso, a construção da única personagem capitalista de Stendhal, Leuwen, se comporta mais como uma exceção, por ser culto, refinado e vivo, traços que desaparecem nas personagens balzaquianas na escalada para a ascensão social burguesa. Blest Gana constrói em Martín Rivas uma personagem cujo acento burguês se assemelha mais às personagens de Balzac, como Don Fidel Elías, porém coloca na figura de Don Dámaso Encina um maior “comedimento”, além de uma boa dose de posições políticas escorregadias. Ao descrever don Fidel, diz:

Entre nosotros es bastante conocido el tipo del hombre que dirige a este fin todos los pasos de su vida. Para tales vivientes todo lo que no es negocio es superfluo. Artes, historia, literatura, todo para ellos constituye un verdadero pasatiempo de ociosos. La ciencia puede ser buena a sus ojos si reporta dinero. La política les merece atención por igual causa y adoptan la sociabilidad por cuanto las relaciones sirven para los negocios. Hay en esas cabezas un soberbio desdén por el que mira más allá de los intereses materiales y encuentran en la lista de precios corrientes la más interesante columna de un periódico. (GANA, 1962, p.179) Balzac, como dito, é fiel à Restauração, entusiasta da retomada do trono pelos Bourbon, instaurando uma monarquia, mesmo diferente do Antigo Regime. Está assustado com o setor da burguesia que declara, agora, que o direito à terra é de quem trabalha e não instituído por Deus e encontra uma maneira de atacar a burguesia ascendente com essas personagens. Como a ascensão do capitalismo já arrastou irremediavelmente a nobreza, ele retrata os tipos trágicos, cômicos, grotescos e tragicômicos, fruto da evolução desse mesmo capitalismo: a ação desmoralizadora desse processo deve arrastar toda a sociedade. Retrata devotos e honestos representantes de monarquistas de província de mentalidade estreita. O romance Martín Rivas é também uma projeção elogiosa desse mesmo “herói mediano”. Sensatez, prudência, honestidade, senso de oportunidade, paciência e alguma resignação são consideradas características indispensáveis à personagem que ascende. As características de suas personagens “de êxito” são as mesmas que Jaime Concha atribui a sua obra. Blest Gana traz ainda, assim como Balzac, a acidez na crítica aos costumes “modernos” e deixa entrever que o “objeto perdido” gerador da nostalgia é nada menos que um mundo no qual tudo estava em seu lugar: o

mundo anterior, estático, o mundo aristocrático.

Martín Rivas

Nos vários momentos em que Blest Gana narra de forma pejorativa e, por vezes, cômica a necessidade de ostentação da burguesia, ele ridiculariza a tentativa de emular um comportamento que não pertenceria aos emergentes, senão a pessoas da aristocracia. A ascensão social e o acesso a símbolos aristocráticos, mesmo que pela mímese de costumes quase sempre esvaziada de sentido, são na maior parte das vezes representados em tom jocoso. Em Martín Rivas, a postura pedante de Agustín, o primogênito da família Encina, as constantes expressões francesas e alusões a pratos e lugares europeus nos diálogos entre família são algumas maneiras de ridicularizar o comportamento emergente, que quer se diferenciar do medio pelo e - por que não – uma sugestão castradora, para que fiquem em seus lugares e não tentem ocupar os que não lhes cabem – ainda que tenham posses. Segundo Jaime Concha em seu prólogo a Martín Rivas, Blest Gana está no ponto intermediário entre um autor da época limitado ideologicamente e o revolucionário Martí. É classificado como morno, equilibrado, até monótono e simplório, criticado pela falta de força e vitalidade, “ao contrário da elogiada obra de Vicente Perez Gonzalez, cujos livros possuíam motor, tensão e atividade coletiva”. Faltava em Blest Gana, apesar de ter escrito novelas populares, a capacidade de fazer viver uma experiência coletiva, como diria Lukács ao criticar a arte expressionista: “por não dar sentido à existência, não levava o leitor a formar uma opinião pública e, portanto, não o ajudava a interagir, tanto no âmbito da cultura como do político.” Em outro ponto de seu prólogo, Jaime Concha expede este belo veredicto: La novela burguesa es casi siempre – para glosar títulos de Blest Gana – un intento de reconquista de los ideales perdidos. Vitalidad y canto del cisne se dan la mano en la mejor épica burguesa, pues la historia, en todos estos casos, potencia a la novela y ésta surge como un melancólico, a veces animado colofón de lo que ya, en la realidad, permanece exánime. (CONCHA, 1977) Blest Gana seleciona os acontecimentos a serem narrados de modo que nada sumamente incentivador da anarquia se sobreleve, como vemos em “O realismo e o medo do desejo”. O autor escreve sobre os acontecimentos de 1851, o levante dos liberais, mas ignora o levante popular de 1859 contra a burguesia e outros levantes que também foram duramente massacrados. Vive a Primavera dos Povos na Europa, mas escreve apenas um breve relato, em Os desposados, sobre os acontecimentos de então. No fundo, Blest Gana não toma o partido dos ideais libertários. Parece entender que a manutenção das estruturas coloniais é necessária até certo ponto, pois, em última

instância, a educação europeia e o conhecimento que detém são os elementos que o projetam, a civilização é o destino desejável em sua obra, já que nos referimos a um autor com declarada intenção de fama internacional e que nunca esteve separado dos trâmites de poder dentro do Chile. É uma situação sintética sobre as soluções de conflitos entre os liberais e conservadores da época e como sempre, transformados quase magicamente através de acordos em muitos casos, o que ainda é um padrão na América Latina. Ao acompanhar as trajetórias paralelas do par de amigos Rafael San Luís e Martín Rivas, em Martín Rivas, fica clara a função punitiva sobre aquele que vai além do limite aceitável em seus posicionamentos políticos. Rafael San Luís, companheiro de Martín Rivas, um leitor assíduo, revolucionário convicto, acabava de passar por uma desilusão amorosa e se lança na linha de frente da batalha de 1851, morrendo nos braços do amigo. O fato de a personagem haver acabado de passar pela desilusão amorosa antes de se lançar corajosamente na batalha indica mais uma espécie de suicídio do que um ato ideológico convicto. A personagem é expulsa, inclusive de maneira pouco honrosa, como se, de alguma maneira, suas questões amorosas estivessem acima de seus ideais políticos, como se a única causa pela qual fosse possível morrer fosse o amor, nunca a política. O caráter janiforme do par está em evidência não só em Martín Rivas, mas que aparece também em La aritmética del amor e em El ideal de un calavera traz a face do jacobino e outra face do liberal representadas em uma dupla de amigos, segundo Jaime Concha. Outro aspecto curioso é a estrutura cíclica do romance. Martín Rivas retorna à casa de don Dámaso Encina para pedir uma “ajuda” com uma carta de seu recém falecido pai, José Rivas, que, na realidade era uma cobrança de dívida passada, uma vez que don Dámaso havia ficado com os lucros da mina de ouro de maneira obscura. O final da história do dedicado, estudioso e sempre comedido Martín Rivas é seu casamento com Leonor e a assunção dos negócios da família abastada para que o patriarca don Dámaso Encina possa se dedicar a funções políticas. Ou seja, mesmo a ascensão social de Martín Rivas é mais um “retorno” a um lugar que é seu por direito, não exatamente uma mudança de classe social, o que reforça a “harmonia internamente administrada” e os acordos tácitos dos setores privilegiados, uma conciliação tão absoluta que chega a suprimir qualquer dissidência. Não se pode deixar de admitir que, neste ponto, mesmo à revelia da intenção do autor, trata-se de um romance com características bem típicas da América Latina, ainda tão perita na supressão de dissidências. Vale lembrar que, ainda segundo Concha, Alberto Blest Gana narra a história do levante capitalino em 1962, mais de dez anos depois de acontecido, e, a partir daí, começa a usar fatos cada vez mais distantes como pano de fundo de seus romances, omite por completo a revolução de 1859 e levantes de caráter mais populares. Mesmo a cronologia de publicação de seus romances se referindo a acontecimentos sempre mais e mais distantes, o apreço pelo passado seletivo, nos dá

matéria para inferir o caráter nostálgico da obra e do autor. El ideal de un calavera narra el asesinato de Diego Portales, uma das figuras mais importantes da consolidação do estado chileno, que ocorreu em 1937; El loco estero se ambienta ainda anteriormente no passado, nos anos em que acaba a Guerra do Pacífico e Durante la reconquista está situado no processo independentista do Chile; sua novela de 1897 narra fatos de 1814, formando os extremos cronológicos de sua vida e obra, que, segundo Jaime Concha, forma um abismo aberto pela crise ideológica que é o motor de Martín Rivas. Além disso, uma leitura atenta permite identificar mais uma variável catalisadora do elemento nostálgico: em um continente que tem sua vida social e intelectual sempre marcadas pelo signo da falta - “la vacuidad y el espanto”, como diz Bolaño em “Poesia latino-americana” - com relação à verdadeira cultura, a cultura europeia, trará a melancolia como resposta à perda. Vale lembrar que os realistas europeus daquele momento já denunciam a Europa como um mundo degenerado e imitá-los é também imitar um mundo em ruínas, é correr para alcançar algo que já está retornando com o fracasso em mãos. É sintomático o fato de que o discurso de Blest Gana ao tomar posse na Universidade do Chile seja feito em espanhol arcaico, se a intenção era justamente a libertação ideológica da colônia. Abordamos aqui questões pertinentes à trajetória literária de Alberto Blest Gana, valendonos de temas pertinentes ao contexto da literatura chilena e latino-americana, com o intuito de evidenciar as lacunas e paradoxos dessa formação literária em seus primeiros momentos, que conta com continuidades e rupturas posteriores. Apenas adotando o fio condutor da nostalgia presente nos textos e tentando trilhar os caminhos deste elemento, não poderíamos simplificar questões tão complexas quanto a formação identitária nacional e suas questões éticas e estéticas, sendo o texto mais um passeio por esse terreno literário.

Bibliografia

BOLAÑO, Roberto. La universidad desconocida. EditorialAnagrama. Barcelona, 2007. CONCHA, Jaime. “Prólogo a Martín Rivas”. In: GANA, Alberto Blest. Martín Rivas. Santiago de Chile, 1862. GANA, Alberto Blest. Martín Rivas. Editorial Amazon Digital Services LLC, 2011. LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1965. SOMMER, Doris. “Algo para celebrar – núpcias nacionais no Chile e no México.” In: Ficções de fundação. Os romances nacionais da Amércia Latina. ZANETTI, Susana. “Modelos extranjeros y literatura nacional.” In: La dorada garra de la lectura. Ensayos Críticos, 2002.

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