Nota de falecimento

June 7, 2017 | Autor: Matilde Leone | Categoria: Short story (Literature)
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NOTA DE FALECIMENTO

Justino viu sua morte publicada no jornal. Foi um choque. Era ele mesmo.
Não tinha dúvida, mesmo nome, mesma idade....De repente, sentiu-se do outro
lado da vida observando a humanidade. Por um momento, voltou à realidade: "
Pode ser um homônimo..." Mas, poderia ser ele mesmo, pois mais ninguém se
chamaria Justino Aureolano Ronco. "Que nome" estranhou mais uma vez como
sempre acontecia quando via seu nome escrito ou quando tinha de dizê-lo em
voz alta.
Sentado ali no banco da praça com o jornal aberto nos classificados de
emprego, seus sentimentos variavam de um lado a outro diante da nota de
falecimento: medo, raiva, indignação, confusão mental.. mas, pouco a pouco,
foi se conformando e começou a se sentir morto. Estava no céu.
- No céu, Justino? Que prepotência é essa? diria sua mulher. No mínino no
purgatório, não é mesmo?
- Mas, isso aqui está mais parecido com céu, pensou.
Como não precisava mais procurar emprego, fechou o jornal e passou a
observar melhor seu novo lar.
No banco da frente, sob o sol fraquinho da manhã, uma velha senhora
segurava a bolsa firmemente contra o peito. Por que ela se preocupa tanto
com a bolsa se aqui ninguém poderia roubar ninguém?
Examinou melhor a mulher e chegou a ver uma sombra atrás dela, que subia e
envolvia sua cabeça. Seria a aura?
A mulher não parecia feliz. Um menino passou por ele carregando uma
mochila, a caminho da escola, lhe pareceu.
- Que pena, morrer assim tão criança... Como teria morrido? Doença,
acidente? O que ele poderia aprender aqui?
Então se deu conta de que não se lembrava de ter estado doente ou sofrido
algum acidente. Só uma gripe que logo passou com algumas aspirinas. Mas
devia ser assim mesmo... as pessoas esquecem o que aconteceu quando passam
para o outro lado.
Levantou-se e com o propósito de conhecer melhor o lugar já que aquela
seria sua morada eterna. Parece que levitava, sentia-se leve e tranqüilo.
Isso é bom. Deve ser a falta de gravidade.
O jardim estava repleto de rosas vermelhas e amarelas e ele se encantou com
as cores, os formatos, a suavidade das pétalas com respingos de orvalho.
Parece que nunca havia reparado na beleza das flores. Continuou caminhando
e tropeçou em uma lata vazia de refrigerante. Recolheu a lata e colocou num
cesto de lixo. Lixo no céu? Estranhou.
Mais adiante, dois senhores de terno e gravata conversavam, parados sob uma
árvore. Parece que falavam de negócios. Um deles abriu a maleta, retirou um
envelope e, devagar, entregou ao outro, em câmara lenta. Viu uma freira
atravessando a rua e se deu conta de que havia carros, trânsito ali. Não se
incomodou. Devo estar na transição, ainda cheio de memórias de minha vida
na Terra.
Passou diante de uma loja e viu sua imagem espelhada na vitrine. Estou
inteiro ainda. Será que vou ficar assim para sempre? E as roupas brancas?
Cansado, voltou ao banco da praça e começou a refletir. Ninguém ainda se
dirigira a ele e isso era estranho, pois sempre ouvira dizer que no céu, ou
onde quer que seja para onde a gente vá, os mortos são recebidos com
carinho, há sempre alguém para apoiá-lo. viu isso num filme, tinha
certeza... Acho que não mereço.... e passou em revista seus pecados.
Lembrou-se de todos, principalmente os piores: enganara sua mulher uma vez,
saindo com a ascensorista do prédio onde trabalhou. Mas, foi uma coisa
inocente. A moça era linda, delicada, e sua mulher vivia aos berros com ele
implicando com a cerveja, o futebol, o baixo salário, o sexo medíocre....
Passar algumas horas nos braços da ascensorista foi uma benção. Depois, só
saiu com ela mais duas vezes porque ela foi transferida para outro lugar.
Vejamos.... Quando criança, roubou a galinha de uma vizinha que vivia
brigando com sua mãe. Foi só vingança. Arrependeu-se e tremeu de medo ao
ouvir a vizinha esbravejando contra esses ... ladrões de galinha.
Além isso? Justino era um homem simples. Alto, magro, cabelos e olhos
castanhos, estudou pouco, nem fez faculdade porque o dinheiro não dava e
também porque não tinha muita vontade. Trabalhava no escritório de uma
indústria, primeiro como contínuo, depois como auxiliar administrativo e,
nos últimos anos, antes de ser demitido por problemas financeiros da
empresa ( pensava ele) tentava entender informática para conseguir um
emprego melhor. Nunca se destacou, nunca foi o empregado do ano.
Casara-se com Mércia, uma moça escandalosa que vivia fazendo cerco a ele,
com roupas decotadas mostrando metade dos peitos, até conseguir que ele se
apaixonasse. A família foi contra. Diziam: essa moça não é boa pra você,
olhe só as roupas que ela usa... vai te dar trabalho.
Que nada. Casou com ela. E ela não deu trabalho. Faziam muito sexo e ela
era meio despudorada.... Achava bom. Boa dona de casa, até ajudava nas
despesas fazendo bicos de crochê em panos de prato que ela vendia para a
vizinhança. Mas não quis ter filhos. Isso o deixou triste por uns tempos,
depois se acostumou. Não queria estragar o corpo, dizia. Tudo ia bem, mas,
com o tempo, ela foi se transformando, reclamando de tudo, da rotina, da
vidinha.... e até engordou, ficou com a cintura larga e não usava mais
calcinhas de renda.
Justino nunca fez uma longa viagem, dessas importantes para o exterior, mas
tinha o sonho de conhecer o Uruguai, pois diziam que lá tinha um mar del
plata e isso o instigava: mar del plata. Queria conhecer esse mar.
De repente seu estômago começou a roncar. Fome, no céu? E mais: sua bexiga
estava quase estourando. Com todos esses mortos passando, como eu fazer
xixi? Ah, ninguém deve se importar com isso. Apoiou-se numa árvore e fez,
ali mesmo. Uma mulher que passava gritou: PERVERTIDO.
O dia foi passando, chegou a noitinha e ninguém se aproximou dele.
Resolveu, então, ver o que estava acontecendo em sua casa, se Mércia estava
chorando, sofrendo com a morte dele, se a família estava reunida, se já
fora enterrado, se havia flores, coroas de flores dos amigos, do ex-patrão,
do timinho de futebol das peladas das quintas-feiras.
Passou por muitos seres indiferentes durante o trajeto. Quando chegou em
casa... logo do portão, ouviu o som da tevê, ligada na novela das oito.
Que desnaturada. Nem hoje ela deixa a novela de lado?
Entrou, a mulher estava na sala deitada no sofá e nem se levantou quando
ouviu a porta abrir. - Tem comida na geladeira, é só esquentar.
Comeu e pareceu que a comida descia por um tobogã. Foi para a sala, mas ela
estava muito interessada no capítulo daquele dia que era especial, a vilã
iria se vingar das maldades sofridas na infância.....o galã de olhos verdes
iria, enfim, conquistaria a mocinha.. Passou por ela a caminho do quarto..
- Arrumou emprego, afinal? Ela perguntou sem desviar os olhos da tevê.
- Pra quê? Eu já morri!
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