Nota sobre fontes documentais para o estudo da demografia escrava.

September 28, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: História do Brasil, Demografia Histórica, História da escravidão no Brasil
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NOTA SOBRE FONTES DOCUMENTAIS
PARA O ESTUDO DA DEMOGRAFIA ESCRAVA


Iraci del Nero da Costa
da FEA-USP



Conquanto os estudos sobre o escravismo brasileiro tenham avançado
largamente nas últimas décadas, não é exagero afirmar-se que a pesquisa
sistemática da demografia escrava ainda está em seu nascedouro, pois só
recentemente o tema colocou-se como uma das preocupações centrais dos
historiadores de nossa população, os quais, num primeiro momento,
privilegiaram o elemento livre. A este respeito, os forros encontram-se em
situação idêntica à dos cativos, pois faltam-nos estudos de base sobre seu
comportamento demográfico, o qual, a nosso juízo, revelava-se distinto
daqueles vigorantes para os outros dois segmentos básicos de nossa
sociedade colonial e imperial: livres e escravos. Tenha-se presente, pois,
que as observações aqui tecidas para cativos podem ser estendidas, mutatis
mutandis, aos que alcançaram a alforria.

Nestas breves notas, atendendo à necessidade de aprofundarmos nossos
conhecimentos sobre a demografia e a vivência escravas, identificamos
algumas das principais fontes primárias disponíveis, as quais compõem um
corpus riquíssimo no qual poderemos haurir as evidências empíricas que nos
faltam para completar o caminho já percorrido. Não nos anima, digamo-lo
desde logo, qualquer veleidade de originalidade; referir-nos-emos a
material já conhecido pelos historiadores e que tem sido sistematicamente
trabalhado tanto por eles como por outros cientistas sociais. Estas notas
dirigem-se, portanto, aos pesquisadores e aos alunos de pós-graduação que
se iniciam na pesquisa em demografia histórica. Colocadas estas observações
preliminares, atenhamo-nos às aludidas fontes. Repisemos, antes do mais, os
registros paroquiais de nascimentos (batismos), óbitos e casamentos, aos
quais devemos grande parte dos estudos mais recentes sobre a demografia
escrava. Com respeito aos assentos de defunções, consigne-se-os como
elemento da mais alta relevância para o estudo da morbidade, aspecto dos
menos explorados da vida e morte das pessoas reduzidas ao cativeiro. A
complementá-los -- algumas vezes com riqueza ainda maior de informações --
estão as listas nominativas de habitantes, das quais, a nosso ver, até
agora só foi revelada a parcela menor, devendo restar a parte maior em
fundos ainda não catalogados. São conhecidos levantamentos populacionais
para São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Bahia, Amazonas, Minas Gerais,
Piauí, Sergipe e Rio de Janeiro, muitos dos quais ainda não mereceram uma
exploração sistemática que os esgotasse como fonte de dados das mais ricas.

Similares às listas nominativas, porém com informações mais sumárias,
comparecem os róis da desobriga ou relações de confessados, cuja
elaboração, como os registros acima aludidos, ficava sob a alçada dos
párocos e que -- como as listas de habitantes levantadas sob
responsabilidade da oficialidade das companhias de ordenanças -- serviam,
precipuamente, ao controle das populações do passado. A relevância destes
três conjuntos documentais não se prende, tão-somente, ao fato de serem
ricos em dados demográficos, mas, também, por apresentarem, em princípio,
cobertura máxima, pois estavam desenhados para abarcar a massa escrava em
sua totalidade. É este, aliás, o caráter de nosso primeiro censo geral, o
Recenseamento da população do Império do Brasil o qual, datado de 1872,
também se apresenta como fonte irrecorrível para o estudo da demografia
escrava.

Num segundo grupo colocam-se duas outras fontes, cuja cobertura, embora das
mais amplas, não se mostrava exaustiva. Referimo-nos às listas de matrícula
de escravos e às que, durante algum tempo serviram ao arrolamento dos
cativos sobre cujo número calculava-se a contribuição em ouro devida ao
poder régio pelos seus proprietários que, em Minas Gerais, vinculavam-se
imediata ou mediatamente à exploração do ouro; códices estes conhecidos
como Quintos e Capitação e que cobrem parte da primeira metade do século
XVIII (1) enquanto aqueles primeiros foram elaborados a contar de 1872 e
correspondiam a todo o território nacional. Infelizmente, grande parte dos
livros de matrícula de escravos foi destruída logo após a abolição, não
obstante, a parcela remanescente tem inspirado estudos de inestimável
valor. Cópias de listas de matriculas, assim como de certidões de averbação
de escravos e ingênuos (2), compõem tal remanescente e são encontradas,
freqüentemente, nos inventários de herança e em alguns processos que
envolviam litígio sobre a propriedade ou posse de escravos; encontrando-se,
nos dias correntes, sob a guarda de cartórios. (3)

Comparecem, a formar um terceiro e último grupo documental, os códices cuja
cobertura define-se, desde logo, como restrita a um conjunto específico de
pessoas as quais, por alguma característica comum decorrente de suas
próprias ações ou em virtude de alguma vicissitude que as reunia em dado
momento, viam-se arroladas de acordo com esta ou aquela denotação
demográfica; deste grupo fazem parte, ademais, os cativos que, embora em
termos individuais, conheceram experiências que os distinguiram como um
subconjunto social específico sobre o qual recaiu a atenção da sociedade
civil ou das instituições vinculadas á Igreja ou ao poder régio.

Assim, as matrículas de escravos serviam à elaboração das "listas das
juntas de classificação de escravos" utilizadas para efeitos de emancipação
de acordo com os critérios e os recursos previstos para o Fundo de
Emancipação; ao que parece, estas listas são raras, não obstante já
mereceram a atenção dos demógrafos historiadores. (4)

Neste grupo integram-se, ainda, os diversos registros referentes ao tráfico
e à comercialização de escravos: registros de passagem, de navios, livros
alfandegários concernentes ao tráfico africano, anúncios de fuga de
escravos estampados em jornais coevos, anúncios e livros de registro de
compra e venda de cativos. Igualmente promissores nos parecem as cartas de
alforria, as quais também eram registradas, os testamentos e inventários de
alforriados e dos proprietários de cativos, assim como os Livros de
Registros de Terras, pois tanto uns como outros têm propiciado o cruzamento
entre variáveis demográficas e aquelas concernentes à riqueza. Sobre as
condições de vida e o quotidiano da massa reduzida ao cativeiro, figuram
como materiais indispensáveis, os livros das irmandades aos quais somam-se
os autos de processos crimes e as distintas peças documentais que compõem
os manuscritos respeitantes às devassas, peças estas que complementam as
decorrentes das visitações do Santo Ofício.

Neste capítulo encontram-se, ademais, as memórias, os relatos de viajantes
e o farto e disperso material publicado no século passado por diversas
instâncias do poder -- quais sejam, relatórios de chefes de polícia, de
Presidentes das Províncias e de órgãos do poder central --, ou por
particulares, como os Almanaques. Cabem, aqui, também, os poucos escritos
deixados por escravos ou ex-cativos, aos quais somam-se os depoimentos
prestados por alguns deles ou por seus descendentes. Por fim, não se
poderia deixar de fazer menção aos diversos tipos de cantos e cantigas dos
cativos e ao rico material pictórico produzido, sobretudo, por visitantes
estrangeiros.

As fontes pertencentes a este terceiro grupo devem servir, sobretudo, como
elementos complementares daquelas consignadas nos dois primeiros conjuntos.
Não obstante, ensejaram estudos nos quais aparecem isolada ou
conjuntamente, como fontes básicas de dados. A própria relevância de tais
trabalhos, aos quais muito se deve do que sabemos a respeito do escravismo,
atesta a qualidade e demonstra a alta potencialidade de tais códices.

Restam, pois, arrolados os principais repositórios de informações que
poderão servir ao estudo da demografia escrava. Não é demais repetir que
tal acervo está pulverizado no território nacional, dos mais modernos
arquivos sediados nas grandes capitais à mais modesta estante de uma
paróquia do sertão; localizá-lo e preservá-lo é tarefa de todos, analisá-lo
percucientemente é desafio que se coloca a quantos se debruçam sobre nossa
formação histórica.


NOTAS


(1) Sobre estes códices veja-se LUNA, Francisco Vidal. Minas Gerais:
escravos e senhores. IPE-USP, São Paulo, 1981, (Ensaios Econômicos, 8), 224
p.

(2) Entre 1872 e a abolição, os proprietários de escravos foram obrigados a
registrar -- nas mesmas coletorias municipais em que haviam matriculado
seus cativos -- as alterações ocorridas nos respectivos plantéis e no grupo
de ingênuos -- vale dizer, beneficiários da lei do Ventre Livre -- colocado
sob sua responsabilidade. A estes registros dizem respeito as certidões
aqui referidas.

(3) Sobre estas fontes documentais veja-se o trabalho modelar de SLENES,
Robert W. O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da
escravidão no século XIX. Revista Estudos Econômicos, IPE-USP, São Paulo,
13(1): 117-149,1983.

(4) Cf. SLENES, Robert W., op. cit., p. 142 e seguintes.
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