Nota sobre uma busca inglória.

September 27, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Historia, Socialismo, História, Socialismo S. XXI, TEORIA MARXISTA, Socialismo del siglo XXI
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NOTA SOBRE UMA BUSCA INGLÓRIA








Iraci del Nero da Costa


São Paulo, setembro de 2004










A nosso ver, alguns pensadores marxistas ainda se prendem ferrenhamente
à idéia de que uma eventual mudança socioeconômica radical dependerá,
necessariamente, da liderança ideológica e da condução política de uma
classe social revolucionária.

Dadas as transformações ocorridas no seio do velho proletariado, alguns
buscam um novo "sujeito revolucionário" no seio de segmentos mais bem
preparados do ponto de vista intelectual e profissional; integrantes de
tais segmentos, aptos a chegarem a um refinamento ideológico mais
sofisticado, aglutinar-se-iam numa elite politicamente atuante a qual
viria a comandar as esperadas mudanças radicais. Já outros, procuram
esse "indivíduo universal" nos estratos menos abonados da sociedade,
entre os que "não têm nada a perder, a não ser as correntes que os
agrilhoam".

De toda sorte, estejam onde estiverem, tais elementos terão de estar em
algum lugar de nossa complexa sociedade de inícios do século XXI. Tudo
se passa como se o momento tido como "objetivo" tivesse preeminência
absoluta sobre o elemento considerado de ordem "subjetiva". A nosso
juízo, a permanência de tal visão cediça, que já se mostrava limitada e
ultrapassada no passado, é muito perniciosa e impede que se "limpe o
terreno do pensamento marxista" a fim de que possamos formular novas
formas de encarar a realidade atual e de atuar sobre ela; realidade
essa fundamente marcada e alterada, tanto objetiva como subjetivamente,
pela derrocada do assim chamado "socialismo real".

Uma das mudanças significativas decorrentes da experiência histórica
acumulada no correr dos últimos cento e cinqüenta anos talvez tenha
sido a de liberar uma eventual revolução social futura das amarras que,
como se supunha, a prendiam a uma dada classe social.

Segundo pensamos, o papel ativo e historicamente significativo do
proletariado culmina e se esgota com a formulação da crítica do capital
efetuada por Marx. Pode-se dizer que a classe operária desempenhou
papel fundamental para indicar à humanidade (aqui personalizada em
Marx), de uma parte, a possibilidade de se subverter a sociedade
burguesa, e, de outra, a de evidenciar a direção básica dessa mudança:
a supressão da propriedade privada sobre os meios de produção.

A contar da obra de Marx, a revolução deixa de ser uma tarefa desta ou
daquela classe e se torna um programa de mudanças que se impõe a toda a
humanidade. Tal alteração no caráter de uma eventual revolução futura
não é aleatório, pois resulta tanto de causas de ordem objetiva como de
razões de ordem subjetiva. Vejamos, inda que superficialmente, alguns
desses condicionantes.

A concepção de um descolamento da mudança revolucionária de corte
socialista com respeito à classe operária, ou a uma dada classe social,
parece-nos muito incipiente e está a demandar uma sistematização
teórica de largo fôlego; embora saibamos que não estamos pessoalmente
preparados para efetuá-la, sentimos que podemos intuir sua necessidade
e cremos que elementos teóricos embrionários de tal descolamento já se
encontram presentes no pensamento de Marx, Engels e Lukács. Assim, lê-
se no Manifesto Comunista: "Todas as classes dominantes anteriores
procuraram garantir sua posição submetendo a sociedade às suas
condições de apropriação. Os proletários só podem se apoderar das
forças produtivas sociais se abolirem o modo de apropriação típico
destas e, por conseguinte, todo o modo de apropriação em vigor até
hoje. Os proletários nada têm de seu para salvaguardar; eles têm que
destruir todas as seguranças e todas as garantias da propriedade
privada até aqui existentes" (MARX & ENGELS, 1998, p. 18-19).

Coube a Georg Lukács lançar luz sobre essa observação de Marx e Engels,
destarte, em Historia y consciencia de clase, encontramos, calcada na
citação acima posta, uma longa explanação sobre as tarefas de novo tipo
que se imporiam ao proletariado: "Pues las clases que en anteriores
sociedades se vieron llamadas al dominio y, por lo tanto, fueron
capaces de realizar revoluciones victoriosas, se encontraron
subjetivamente ante una tarea mucho más fácil, a causa precisamente de
la inadecuación de su consciencia de clase respecto de la estructura
económica objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de su
propia función en el proceso del desarrollo social. Les bastó con
imponer sus intereses inmediatos mediante la fuerza de que disponían, y
el sentido social de sus acciones les quedó siempre oculto, entregado a
la 'astucia de la razón' en el proceso social determinado. Pero como el
proletariado se encuentra en la historia con la tarea de una
transformación consciente de la sociedad, tiene que producirse en su
consciencia de clase la contradicción dialéctica entre el interés
inmediato y la meta última, entre el momento singular y el todo. Pues
el momento singular del proceso, la situación concreta con sus
concretas exigencias, es por su naturaleza inmanente a la actual
sociedad, a la sociedad capitalista, se encuentra sometida a sus leyes
y a su estructura económica. Y no se hace revolucionaria más que se
inserta en la concepción total del proceso, cuando se introduce con
referencia al objetivo último, remitiendo concreta y conscientemente
más allá de la sociedad capitalista. Pero eso significa, subjetivamente
considerado, para la consciencia de clase del proletariado, que la
relación dialéctica entre él interés inmediato y la acción objetiva
orientada al todo de la sociedad queda situada en la consciencia del
proletariado mismo, en vez de desarrollarse, como ocurrió con todas las
clases anteriores, más allá de la consciencia (atribuible), como
proceso puramente objetivo. La victoria revolucionaria del proletariado
no es pues, como para las demás clases anteriores, la realización
inmediata del ser socialmente dado de la clase, sino – como ya lo vio y
formuló agudamente el joven Marx – la autosuperación de la clase. El
Manifiesto Comunista formula esa diferencia del siguiente modo: 'Todas
las clases anteriores que conquistaron para sí el dominio intentaron
asegurar la posición que ja havian logrado en la vida sometiendo la
sociedad entera a las condiciones de su logro. Los proletarios no
pueden conquistar para sí las fuerzas sociales de producción más que
suprimiendo su propio anterior modo de apropiación y, con ello, todo
modo de apropiación existido hasta ahora.'" (LUKÁCS, 1975, p. 77-78).

Como se vê imediatamente, o cerne da questão repousa no caráter
totalmente original das transformações a serem implementadas. Não se
trata mais da subordinação de uma ou mais classes sociais aos
interesses imediatos de um segmento social dominante, mas da própria
superação das classes sociais; não se trata de impor uma nova forma de
expropriação, mas de eliminar a possibilidade de que a exploração possa
ocorrer. Este elemento de ordem objetiva empresta um conteúdo novo à
própria idéia de revolução, tornando-a uma tarefa aberta à participação
de todas as classes e segmentos sociais, enfim de toda a parcela da
Humanidade favorável à emergência de uma sociedade mais equânime,
ademais, confere um novo status ao momento subjetivo.

Encontramo-nos, de fato, em face de uma situação limite na qual o
elemento de ordem objetiva deixa de ter um caráter transformador per se
e o elemento subjetivo assume papel determinante, pois o passo
transformador definitivo depende agora, necessariamente, da ação
consciente dos homens.

Para nós, como apontado em trabalhos anteriores realizados juntamente
com José Flávio Motta, o desenvolvimento das formas mercadoria,
dinheiro e capital conhece seu ponto culminante com a emergência da
mercadoria força de trabalho, ou seja, com o estabelecimento do
capitalismo, no âmbito do qual se dá o pleno amadurecimento de tais
formas. Estabelecido em espaço geográfico considerável passou ele a
operar de maneira a subordinar e recriar, à sua feição, todo o espaço
social, econômico e físico com o qual entrava em contato. Observa-se,
assim, não só a emergência da história universal, mas, também, de uma
mudança qualitativa na própria história da humanidade; a partir de
então só persiste o modo de produção capitalista – que a tudo ilumina,
como se diria em termos clássicos – tudo subordinando, condicionando e
determinando.

De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento superior
daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabilidade natural
da humanidade; a partir de então – e na medida em que o capital
industrial traz implícitas as condições de sua reprodução, de sua
reposição – apenas um movimento do espírito, da ação conscientemente,
poderá conduzir à superação das condições dadas, vale dizer, do
capitalismo, o qual, caso contrário, repor-se-á indefinidamente. O
primeiro passo necessário à sua superação estará, pois, no
estabelecimento da crítica teórica das condições dadas, estudo este que
deverá fundamentar a ação consciente no sentido da negação do status
quo; assim, a crítica da lógica de funcionamento do capital industrial
e do capitalismo define-se como pressuposto imprescindível à aludida
superação.

A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração e a
publicação de O Capital representaram o primeiro momento do referido
movimento do espírito indispensável à criação das condições subjetivas
para que a humanidade pudesse propor-se a negação do capitalismo e,
portanto, passar a empenhar-se nessa tarefa.

Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a
condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção
capitalista. Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e a
universalização do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a
crítica do sistema (da lógica de funcionamento do capital industrial) e
a formulação, ainda que num mero bosquejo, de uma nova forma de
sociabilidade, a primeira a se assentar inteiramente no espírito e que,
portanto, terá de ser por ele sustentada (isto é, terá como suporte a
ação consciente de homens livremente associados).

Como afirmado, a história natural do homem esgotou-se, chegou à sua
forma superior com a existência do modo de produção capitalista; impõe-
se, agora, sua história "cultural", uma história propriamente humana
uma vez que posta pelo "espírito" e não uma simples decorrência da
acomodação do homem à situação objetiva que, embora sendo fruto de sua
ação, lhe aparece como algo dado, como uma criação que lhe é exterior;
não como um fato social, mas como um fato natural.

Já não basta aos homens perseguirem seus interesses imediatos para dar-
se a transformação revolucionária, é preciso que eles transcendam seus
eventuais interesses "egoísticos", para usar uma linguagem própria de
Antonio Gramsci; o "político" sobrepõe-se ao "econômico", o "subjetivo"
sobrepuja o "objetivo". Quais elementos deveriam, afinal, estar
presentes no bosquejo acima referido? Sem pretendermos sequer arranhar
a resposta definitiva a esta questão, não nos furtamos a tecer os
breves comentários que se seguem com o intuito de encaminhar a
discussão. Em primeiro lugar, considerando que terá de haver livre
assentimento com respeito à nova forma de sociabilidade, é
indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a democracia e os
direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer, absoluta e
irrestritamente, e a ambos, obviamente, há de estar aliado o maior grau
possível de liberdade pessoal e coletiva. Em segundo, tal sociedade
terá de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os
meios de produção, uma vez que não pode haver, por hipótese, qualquer
mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição
consoante as necessidades dos indivíduos. Em terceiro, para a gestão da
vida econômica dessa sociedade "pós-capitalista" precisar-se-á de uma
engenharia econômica que não se confunde com a(s) engenharia(s) de
hoje, nem com a administração como a conhecemos, nem com a economia
como a praticamos nos dias correntes; a essa nova engenharia cumprirá
estabelecer as relações que vincularão a produção física com os
recursos e as técnicas disponíveis e com as demandas de caráter
individual e social.

Em suma, temos, no capitalismo, um sistema "natural" integrado, auto-
regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor) encontram-
se "naturalmente" delineadas. De outra parte, deparamo-nos com o
embrionário pensamento da esquerda, ainda incapaz de compor um quadro
coerente e articulado do que deverá vir a ser, em idéia, o sistema pelo
qual almejam os críticos radicais do capitalismo. Pensamento este que
nos parecerá muito mais rudimentar se tivermos presente o quanto lhe
resta por avançar, pois, por se tratar de algo "antinatural", tudo, ou
quase tudo, ainda está por ser elaborado. Pensamento que, por esta
mesma causa, defronta-se com o fato de que não há nenhuma razão de
ordem natural conducente ao estabelecimento e à persistência no tempo
de uma nova forma de sociabilidade humana (as questões aqui sumariadas,
como avançado, são tratadas mais detidamente nos seguintes trabalhos:
MOTTA & COSTA, 2000 e MOTTA & COSTA, 2004).

Talvez seja oportuno lembrar a esta altura desta nota que o empuxo
transformador de caráter objetivo devido à ação da classe operária e do
campesinato é bastante para colocar o capitalismo em xeque, mas, na
ausência do elemento subjetivo aqui referido, o movimento
revolucionário passa a "patinar" e sua direção pode ser empolgada por
grupos políticos que conduzem o corpo social a situações em que domina
o elemento repressivo ou totalitário e nas quais podem vir a predominar
aparelhos burocráticos corruptos e/ou em que a ineficiência se mostra
generalizada. Exemplos de casos como tais encontramos na URSS, nos
países do leste Europeu, na China e em nossa tão desventurada Cuba.

Se as opiniões acima reportadas estiverem corretas é forçoso reconhecer
que a tarefa colocada ao pensamento de esquerda não é a de encontrar
uma "nova classe redentora", mas a de mobilizar consciências para a
execução de um projeto político-ideológico consistente e abrangente,
projeto este que nos cabe formular, pois ele ainda nem sequer foi
esboçado em todas as suas dimensões.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




LUKÁCS, Georg. Historia y consciencia de clase. Barcelona: Editorial
Grijalbo, 1975. (Instrumentos, 1).

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. In: Daniel Aarão
Reis Filho (organizador). O Manifesto Comunista 150 anos depois. Rio de
Janeiro: Contraponto/São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, 208 p.

MOTTA, José Flávio &. COSTA, Iraci del Nero da. Hegel e o fim da
história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana.
Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro:
Editora 7 Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54.

MOTTA, José Flávio &. COSTA, Iraci del Nero da. A mercadoria força de
trabalho, o capitalismo e a emergência de uma nova forma de
sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia
Política. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, número 14, jun. 2004, p. 32-
47.
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