Nota sobre uma terracota de um togatus recolhida na Rua Augusta (Lisboa)

July 24, 2017 | Autor: R. Banha da Silva | Categoria: Roman Pottery, Late Roman Pottery
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NOTA SOBRE UMA TERRACOTA ROMANA DE UM TOGATUS RECOLHIDA NA RUA AUGUSTA (LISBOA) Rodrigo Banha da Silva

Estudos e relatórios de Arqueologia Tagana, 3

LISBOA 2015

NOTA SOBRE UMA TERRACOTA ROMANA DE UM TOGATUS RECOLHIDA NA RUA AUGUSTA (LISBOA) Rodrigo Banha da Silva (CAL-CML; CHAM-FCSH/UNL e UAç) [email protected]

1. Introdução. A intervenção arqueológica na Rua Augusta, no espaço denominado na gíria arqueológica lisboeta como «Mandarim Chinês», foi dirigida em conjunto por Clementino Amaro e depois somente por Jacinta Bugalhão, tendo decorrido sincopadamente entre 1992 e 1996. Este ponto arqueológico de Lisboa revelou um valioso conjunto de elementos para a caracterização da evolução das cidades que jazem sob a “Baixa Pombalina”, devendo destacar-se o conjunto de estruturas de uma ferraria da Época Moderna, equipamentos artesanais oleiros da Idade Média Muçulmana e os vestígios de officinae de garum de Época Imperial Romana (Bugalhão, 2003; Bugalhão e Folgado, 2007). Da acção resultou, de igual forma, mais um espaço visitável da capital com ruínas integradas urbanisticamente, cuja articulação com o espaço comercial onde se encontram não é, no momento em que se escrevem estas linhas, o mais ajustado para a sua fruição, aspecto que carece de abordagem por parte das entidades com responsabilidade na matéria. De entre o vasto acervo de dados, os contextos e materiais associados do período romano foram disponibilizados por Jacinta Bugalhão de forma célere (Bugalhão, 2003). O elemento objecto da presente nota escapou, contudo, ao aturado trabalho da investigadora, dado ter sido colectado num depósito bastante posterior e portanto descontextualizado. Apesar de se tratar de um objecto singular, foi considerando o seu interesse intrínseco para o conhecimento da coroplastia romana olisiponense que se publica a presente nota. 2. Alguns elementos de enquadramento contextual e cronológico do exemplar. O artefacto foi, segundo as indicações de recolha que o acompanham, colectado em 22/01/1992 no «sector I, Área 5, Plano 4 e camada 2» da escavação. Este contexto terá sido formado na segunda metade do século XVIII, como se depreende dos exemplares associados em faiança portuguesa, porcelana chinesa, loiça comum regional em «barro vermelho», vidrada ou não, que se conservam entre o espólio depositado nas reservas municipais de Lisboa. Poderá parecer surpreendente o aparecimento de um elemento de cronologia romana entre os níveis bem mais recentes, todavia deverá ter-se em conta que os trabalhos de edificação da “Baixa Pombalina” provocaram afectações por vezes profundas do subsolo, em particular nas zonas das paredes mestras dos novos prédios. Ora, foi justamente junto do alicerce de fachada que a intervenção arqueológica identificou os níveis romanos mais bem preservados (Idem). Página 1

3. Descrição. MC.90/01- Busto sobre base de figura humana masculina togada em terracota, fragmentado, a que falta a cabeça e pescoço. O corpo está modelado de forma estilizada, com o torso, costas e cintura apesar de tudo bem demarcados. Com modelação simplista, os antebraços e mãos aparecem essencialmente esboçados, cruzados sobre o ventre e o peito, o vestuário somente sugerido, com dobra no braço esquerdo, sugerindo a toga. O arranque do pescoço está assinalado de forma evidente, sobretudo por ressalto na parte posterior da peça. Os membros inferiores não foram representados, estando o torso assente numa base de perfil de tendência tronco-cónica, oca como o restante do objecto. A pasta é de coloração bege e tonalidades rosadas, dura, homogénea e depurada, de textura laminar, contendo e.n.p.s de muito pequena dimensão em que são visíveis elementos quartzosos, calcíticos branco amarelados, muito pequenas micas prateadas e rara cerâmica moída, sendo observáveis também alguns alvéolos. As superfícies apresentam-se intensamente polidas por espatulamento, com os traços bem evidentes, em especial na base, lados e parte posterior da peça. Bem marcada no exterior, apesar do espatulado de alisamento que obliterou as rebarbas, apresenta-se a zona de junção das duas valvas do molde que serviu para produzir o elemento. Dimensões: altura conservada= 99 mm; diâmetro máximo da base= 46 mm; largura máxima= 58 mm. 4. Nota final. A produção intensa e generalizada de modelações coroplásticas em terracota vulgarizouse em Época Helenística, ocorrendo em espaços culturalmente diferenciados do Ocidente, de forma mais intensa em áreas mais “cosmopolitas” como sejam a esfera ebusitana ou o levante hispânico. A integração no espaço político romano promoveria a mais ampla difusão do hábito cultural, bem como a sua utilização em diferentes âmbitos, sobretudo privados e mágicoreligiosos. Esta nova abrangência geográfica, aportada pelo advento do Império, revela todavia distintas expressões quantitativas difíceis de explicar somente pela inexistência de um determinado “saber fazer” oleiro nas diferentes áreas provinciais, parecendo antes assentar em diferentes matizes culturais dentro do mosaico complexo que genericamente se designa por romanidade (Terranato, 1999 ). Estudos compreensivos sobre as terracotas romanas foram já conduzidos para diversas áreas provinciais ocidentais, mas o panorama português, sintomaticamente mais pobre na sua Página 2

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5 cm

Figura 1- Terracota do “Mandarim Chinês”/Rua Augusta.

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Aparência, conta com uma dispersão de referências, delas se destacando a lista de objectos encontrados há longa data fornecida por Leite de Vasconcelos ao longo dos três volumes das Religiões da Lusitânia (Vasconcelos, 1897-1913) e, mais tarde, através da publicação do conjunto de Conimbriga colectado nas escavações da Missão Luso-Francesa (Étiènne e Alarcão, 1979). Neste sentido, uma pesquisa mais alargada e profunda da bibliografia disponível iria, decerto, facultar outros exemplos provinciais lusitanos no espaço actualmente português. Circunscrevendo-nos à área olisiponense, os estudos modernos sobre a matéria foram inaugurados com a divulgação do achado da bem conhecida cabeça de negróide identificada na uilla do Alto da Cidreira (Encarnação, Cardoso e Nolen, 1982 ; Nolen, 1988), a que se acrescenta agora o togatus da Rua Augusta. De notar que a matéria parece assumir uma insuspeitada expressão que, apesar de modesta nos números, se mostra diversificada na distribuição, assinalando-se outro exemplos na Rua dos Remédios, de cronologia cláudia (Silva, no prelo) e outros na cidade e mantidos ainda inéditos, como os oriundos da Praça da Figueira e os recolhidos no jardim do Palácio dos Condes de Penafiel, brevemente objecto de nota neste mesmo lugar. De um ponto de vista morfológico, a terracota da Rua Augusta tem paralelo próximo num conjunto de estatuetas recolhido no séc. XVIII em Beja, da qual Virgílio Correia nos deixou a transcrição integral do manuscrito do achamento (Correia, 1972). Deste excepcional e interessante achado pacense sobreviveram somente dois exemplares passíveis de ser rastreados com segurança: um depositado no Museu de Évora, de que o mesmo investigador publicou uma fotografia no volume relativo ao domínio romano na monumental História de Portugal dita “de Barcelos” (Correia, 1928), e um outro que se conserva no Gabinete de Antiguidades e Numismática da Biblioteca Nacional de Lisboa, publicado por Jorge de Alarcão e Manuela Delgado como de proveniência desconhecida (Alarcão e Delgado, 1969), mas cujas características correspondem a uma das peças descritas no achado setecentista do Alentejo. No seu conjunto, e a despeito de outras funcionalidades, nomeadamente mágicas, as terracotas figurativas parecem ter conhecido usos sobretudo cultuais no quadro da devotio privada a antepassados ou a divindades tutelares da casa, praticados nos larários. No caso presente, e pese embora o estado de conservação fragmentário e o esquematismo da representação, verifica-se a inexistência de atributos divinos, o que poderá ser indicador de tratar-se de uma representação de antepassado. Se assim for, o cunho cultural itálico do(s) seu(s) utilizadore(s) seria marcado, dado a prática não ter precedentes similares na Idade do Ferro da região de Lisboa e Vale do Tejo, arqueologicamente documentados. Bibliografia ALARCÃO, J.; DELGADO, M. (1969)- Catálogo do Gabinete de Numismática e Antiguidades. Lisboa, Ministério da Educação Nacional, Biblioteca Nacional de Lisboa. BUGALHÃO, J. (2003), “Mandarim Chinês, Lisboa-Contextos Romanos”, in Actas do Quarto Encontro de Arqueologia Urbana (Amadora, 10 a 12 de Novembro de 2000). Amadora: Câmara Municipal da Amadora,

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Museu Municipal de Arqueologia, ARQA, p. 127-146. BUGALHÃO, J.; FOLGADO, D. (2007)- “O arrabalde ocidental da Lisboa Islâmica: urbanismo e pordução oleira“, in Arqueologia Medieval, nº 7, Colóquio «Lisboa, Encruzilhada de Muçulmanos, Judeus e Cristãos. 850º Aniversário da Reconquista de Lisboa». Porto: Campo Arqueológico de Mértola, Ed.Afrontamento, p. 115-145. CORREIA, V. (1928)- “O Domínio Romano”, in História de Portugal, vol. I. Barcelos: Editorial Portucalense, p. 228-284. CORREIA, V. (1972)- Virgílio Correia Obras, vol. IV, Estudos Arqueológicos. Coimbra: Universidade de Coimbra. ENCARNAÇÃO, J.; CARDOSO, G.; NOLEN, J.U.S. (1982)- “A Villa romana do Alto do Cidreira em Cascais”, in Arquivo de Cascais - Boletim Cultural do Município. Cascais: Câmara Municipal de Cascais, p. 9-27. ÉTIÈNNE, R. ; ALARCÃO, J. (Dir.) (1979)- Fouilles de Conimbriga, vol. VII, Trouvailles Diverses. Conclusions générales. Paris : Diffusion E. De Boccard. FORCEY, C.; HAWTHORNE, J.; WITCHER, R. (Eds.) (1999)- TRAC ´97,. Proceedings of the Seveth Annual Theoretical Roman Archaeology Conference, Nottingham University, April 1997. Oxford: Oxbow Books. NOLEN, J.U.S. (1988)- “A villa romana do Alto do Cidreira (Cascais) - os materiais”, in Conimbriga, vol. 27. Coimbra: Instituto de Arqueologia, p. 61-140. SILVA, R.B. (no prelo): “O facies cerâmico de Olisipo (Lisboa) no período julio-cláudio”, in Los facies cerámicos altoimperiales en el sur de la Península Ibérica. Granada: Universidad de Granada. TERRANATO, N. (1999)- “The Romanization of Italy: global acculturation or cultural bricolage ?”, in Forcey, C.; Hawthorne, J. e Witcher, R. (Eds.), TRAC ´97,. Proceedings of the Seveth Annual Theoretical Roman Archaeology Conference (Nottingham University, April 1997). Oxford: Oxbow Books, p. 20-27. VASCONCELOS, J.L. (1897-1913)- Religiões da Lusitânia, 3 vols. Lisboa: Imprensa Nacional.

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