NOTAS CONTRIBUTIVAS SOBRE OS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL

May 19, 2017 | Autor: J. Garboza Junior | Categoria: Hegel, G.W.F. Hegel
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Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú Volume 3 – 2015

NOTAS CONTRIBUTIVAS SOBRE OS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL José Mauro Garboza Junior*

RESUMO

Este presente trabalho tem como por objetivo produzir algumas poucas notas que sirvam de contribuição para o resgate do pensamento hegeliano de um modo geral, e para o pensamento jurídico (brasileiro também) de modo específico. Com isso, elencaram-se quatro observações que julgamos importantes, quais sejam: a) uma breve introdução a respeito da vida do autor e sua localização na tradição filosófica; b) um resumo da tentativa de se criar um “sistema” e, particularmente, uma “teoria geral jurídica”; c) a possibilidade de interpretar as obras segundo certos tipos de traduções (positivismo, não-positivismo e teoria crítica) que orientariam a leitura; d) e, por fim, enquadrar seus temas dentro do que se poderia ser chamado de áreas de concentração ou matérias jurídicas.

PALAVRAS-CHAVE Filosofia do Direito. Georg Wilheim Friedrich Hegel. Princípios da Filosofia do Direito.

ABSTRACT

The presente essay has as main objective to produce a few notes as a contribution to the rescue of the hegelian thought in general, and to the juridical thought (brazilian as well) in a specific approach. Therewith, four points that we consider important were listed, namely: a) a brief introduction about the autor-s life and his location in the philosophical tradition; b) a summary of the attempt to create a “system”, and particularly, a “general juridical theory”; c) the possibility to interpret the works according certain variety of translations (positivism, non-positivism and critical theory)

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that guide further reading; d) and, ultimately, frame the subjects within what could be called areas of concentration or legal matters.

KEYWORDS Philosophy of Law. Georg Wilheim Friedrich Hegel. Principles of Philosophy of Right.

1. INTRODUÇÃO OU A LOCALIZAÇÃO NA TRADIÇÃO FILOSÓFICA

Este singelo trabalho tem como objetivos mostrar, mesmo que resumidamente, a importância da contribuição que Hegel tem para os dias de hoje tanto de um ponto de vista do Direito quanto da Filosofia em geral (em três pontos básicos). Trata-se aqui, preliminarmente, de esclarecer que esse retorno ao filósofo se vale devido a sua ampla carga teórico-crítica produzida nos anos de sua vida1. Portanto, essa introdução tem como finalidade explanar o contexto e a sua alocação na tradição filosófica tomando emprestados alguns marcos para a Filosofia do Direito. No primeiro ponto busca-se discriminar as obras do próprio autor, sua organização, seus comentadores “oficiais” e as obras nas quais o tema jurídico se encontram com maior frequência2. Na segunda parte tomamos emprestado uma reflexão que tem causado um grande impacto para o pensamento jurídico brasileiro contemporâneo do professor Alysson Mascaro acerca dos horizontes ou das formas de se ver o Direito por algumas tradições jurídicas. É necessário trazer essa tese para o debate para, assim, esboçar uma noção preliminar do porquê de alguns problemas na vida cotidiana da teoria jurídica não são (e em certas vezes não podem ser) resolvidos.

1

Este texto é o início de um projeto de estudo que será aprofundado com muitos mais detalhes no decorrer de nossas pesquisas. Traremos, portanto, apenas alguns dados bibliográficos e uma série de pontos básicos que nos servirão como cláusulas de início de trabalho sem um rigor tão radical. 2 Apenas a título de citação, elencaremos algumas biografias do estudo de Hegel que poderão servir como documento consultivo para um futuro aprofundamento: Hegel (1965) de Walter Kaufmann; Hegel, a biography (2000) de Terry Pinkard; Hegel (1998) de Jacques D’Hondt; The Hegel myths and legends (1996) de Jon Stewart. Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

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Seguindo o título deste trabalho, o ponto seguinte tentará indicar como é possível unir a noção de Mascaro com o texto propriamente jurídico de Hegel a fim de servir de roteiro para as leituras hegelianas e em que medida esses “encaixes” contribuem para a teoria. Para tanto, estruturaremos os Princípios da Filosofia do Direito com algumas esquemas para, futuramente, estabelecer alguns pontos de partida. Sendo assim, é importante destacar os limites impostos nesse trabalho desde já, vale dizer, a) o caráter transitório deste trabalho como uma primeira tentativa de sistematizar noções que até então se encontram desamarradas para a teoria, b) a relativa incapacidade de o autor dizer mais do que pode sem o devido tempo de reflexão necessário a garantir uma coesão definitiva das propostas (trata-se de uma aposta!), e c) unindo tudo com esse recente campo de pesquisa no Brasil (o resgate de Hegel e a sua importância para o Direito são fenômenos muito recentes que não contam com mais de 30 anos), contribuem para a deficiência deste escrito mas, por outro lado, não quer dizer que não haja nada importante ou inutilizável aqui.

2. O “SISTEMA” HEGELIANO E OS PRÍNCIPIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO

Ao longo de sua trajetória de produção intelectual, Hegel pode deixar como documentos escritos de sua juventude, grandes obras que fizeram dele um dos grandes filósofos da história e, ainda, um conjunto de manuscritos organizados por ele e por seus alunos sobre suas aulas dedicados a diversos temas como Estética, Filosofia da História, História da Filosofia, Filosofia da Religião, Teoria Jurídica e outros mais. Atualmente, o que temos como referência é a coleção organizada por E. Modenhauer, e K. M. Michel em 20 volumes inicialmente feita nos anos de 1969-1971, sistematizado a seguir:

1. Frühe Schriften (Primeiros Escritos) 2. Jenaer Schriften (Escritos de Jena) Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

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3. Phänomenologie des Geistes (Fenomenologia do Espírito) 4. Nürenberger und Heidelberger Schriften (Escritos de Nurenberg e Heidelberg) 5. Wissenschaft der Logik I (Ciência da Lógica I) 6. Wissenschaft der Logik II (Ciência da Lógica II) 7. Grundlinien der Philosophie des Rechts (Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Princípios da Filosofia do Direito) 8. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaft I (Enciclopédia das Ciências Filosóficas I) 9. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaft II (Enciclopédia das Ciências Filosóficas II) 10. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaft III (Enciclopédia das Ciências Filosóficas III) 11. Berliner Schriften 1818-1831 (Escritos de Berlim) 12. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte (Conferências sobre a Filosofia da História) 13. Vorlesungen über die Ästhetik I (Conferências sobre a Estética I) 14. Vorlesungen über die Ästhetik II (Conferências sobre a Estética II) 15. Vorlesungen über die Ästhetik III (Conferências sobre a Estética III) 16. Vorlesungen über die Philosophie der Religion I (Conferências sobre a Filosofia da Religião I) 17. Vorlesungen über die Philosophie der Religion II (Conferências sobre a Filosofia da Religião II) 18. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie I (Conferências sobre a História da Filosofia I) 19. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie II (Conferências sobre a História da Filosofia II) 20. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III (Conferências sobre a História da Filosofia III).

Infelizmente, no Brasil, ainda não há a tradução integral das obras completas de Hegel, mas tem-se visto um grande avanço com as traduções e demais formas de Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

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produção que levam o pensamento hegeliano em consideração, como, por exemplo, a criação da Sociedade Hegel Brasil – SHB e sua Revista de Estudos Hegelianos, alguns centros de estudos nas academias e certo resgate de suas leituras pelas várias escolas de psicanálise pelo país. No que diz respeito ao “sistema hegeliano”, vários autores entram em divergência. Paulo Meneses (2006, p. 21), por exemplo, afirma-o indicando algumas características e advertências, ele o define como

um sistema que vive em estreita unidade com o método que o constrói, uma lógica que é uma metafísica, um discurso que pensa por verbos e não por substantivos, um resultado que só tem sentido junto ao processo que a ele conduziu, a conclusão que é o fundamento de tudo – são algumas das características da filosofia hegeliana que constituem dificuldades árduas para quem dela se aproxima.

Redyson (2011) também admite a possibilidade de um sistema de acordo com Paulo Meneses. Por outro lado, o professor Carlos Pérez Soto (2015) defende que em Hegel não há propriamente um sistema e o que houve, na verdade, foi uma tentativa de organizar um sistema que nunca saiu do papel, essa ideia de sistema, segundo ele, foi um projeto de toda a vida de Hegel que não se concretizou. Independentemente de haver ou não um sistema rígido criado por Hegel, seu legado é inegável e sua construção teórica, ainda hoje, é de se admirar (ainda mais levando em conta que o autor passou por altos e baixos em sua vida que de certo modo o impediram de levar a cabo sua intenção final). Fiquemos portanto com o que nos interessa: o texto do Princípios da Filosofia do Direito1. Dando uma ligeira passada de olhos nos textos hegelianos, percebe-se que cada obra tem elos e indicações de várias outras, devido a isso não é tão simples ler a teoria do direito simplesmente por ela mesma. Para fins de didatismo de caráter resumido, o que será tentado é simplesmente estabelecer os Princípios como obra

1

O Princípios da Filosofia do Direito tem como verdadeiro título Fundamentos da filosofia do direito natural e ciência política em compêndio (Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrechts uns Staatswissenschaft im Grundrisse em alemão). Na verdade, essa obra é a continuidade da segunda seção da Filosofia do Espírito no terceiro volume da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (REDYSON, 2011, p. 74-75). Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

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principal para o jurista que se interessa em mergulhar profundamente nas terras hegelianas. Estabelecido como marco para a filosofia do direito, passaremos a colorir os modos de leituras dele. A pergunta aqui seria: é possível ler o Princípios de uma ou várias maneiras? Se sim, o que isso implica?

3. HORIZONTES DE SUA INTERPRETAÇÃO

Diante da breve apresentação do Princípios da Filosofia do Direito, tentaremos aqui cruzar uma leitura de uma das teses do jurista brasileiro Alysson Mascaro sobre uma possível classificação da Filosofia do Direito, o que ele chama de grandes blocos, ou preocupações, métodos ou horizontes da jusfilosofia com as possíveis aberturas que a obra jurídica hegeliana tem. É recorrente nos trabalhos de Mascaro uma orientação de algumas visões de mundo jurídico, tais visões permitiriam ao jurista trabalhar com algumas formas de pensamento que levassem em conta ou desconsiderassem alguns elementos. Em suas palavras: Tenho proposto nos últimos anos, em especial no livro Filosofia do direito, que se pode enquadrar a leitura da filosofia do direito e da filosofia política contemporânea a partir de três grandes horizontes: o liberal, o existencial-decisionista e o crítico, que podem ser lidos, especificamente para o campo do direito, como o juspositivismo, o não juspositivismo e o marxismo. No campo do liberalismo e do juspositivismo, sua derradeira manifestação é de caráter ético, como no caso dos pensamentos de Rawls e Habermas. No campo do não juspositivismo, fundado numa percepção do poder existencialdecisionista, são Heidegger, Gadamer, Schmitt e Foucault seus grandes teóricos. O terceiro grande campo, o da crítica, é o do marxismo (MASCARO, 2011, p. 13).1 1

Essa tese é recorrente nos trabalhos de Mascaro, em uma entrevista concedida ele resume tais horizontes da seguinte maneira: “Podem-se descortinar três grandes horizontes da filosofia do direito contemporâneo, tudo isso a depender de como se considera o fenômeno jurídico a partir de sua vinculação estrita ao Estado. Uma primeira grande corrente da filosofia do direito pode-se considerar juspositivista. Ela se limita aos problemas atinentes ao direito estatal. Uma segunda grande corrente da filosofia do compreende o fenômeno jurídico de modo alargado. Pode-se chamar essa visão, com uma certa vênia, de caminho existencialista da filosofia do direito. Uma terceira grande corrente precede à crítica do fenômeno jurídico, não parcialmente, mas pela totalidade. Nesse grande campo está o Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

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A tríade de horizontes positivista-não-positivista-crítico exprime exatamente três campos de investigação do jurista na contemporaneidade. No primeiro há o interesse de se analisar somente o Direito Positivo, o direito posto como emanação de um poder central estatal criador de legislações que impõem a ordem (ordenamento jurídico) de modo obrigatório. Para o positivista, os fatos existem somente se revestidos eles forem de juridicidade, ou seja, o mundo do positivista é o mundo da norma (como um exemplo muito explicativo de Mascaro, é o caso do jurista que olha para o Código Civil como um conjunto de normas e fatos que lhe interessam com um grau de organização extraordinário!). Alargando um pouco mais esse espectro está a escolha por ver o horizonte não-positivista (ou existencialista). Nesse espaço não há somente normas e a produção delas, mas há um recuo do observador. Tal mudança de ponto de vista permite ao jurista não-positivista perceber as estruturas que fundam uma ordem normativa e a constante relação de forças dentro de qualquer realidade social. Há, assim, normas, fatos e decisões sobre os dois primeiros. Por fim, chegamos ao terceiro e mais alto horizonte possível para a investigação do fenômeno jurídico. Aqui, continua-se com as características dos dois primeiros horizontes adicionado um toque investigativo-radical (pesquisar até as raízes) recuperando o sentido mais elementar da palavra crítica. É possível, de agora em diante, analisar as normas, os fatos, as estruturas de relação de poder inerente a elas e construir um sistema de investigação da conjuntura denunciando suas limitações e suas possibilidades revolucionárias (de abertura para uma mudança realmente social que altere as coordenadas de nosso tempo). Essa imagem de três círculos concêntricos dada por Mascaro nos ajudar a perceber como os juristas (e os diversos “tipos” deles) se organizam em torno de suas práticas profissionais e teóricas. É evidente que são formas diferentes de visualização e que cada uma não é pior ou melhor que as outras, ou que de uma é possível saltar para a outra como um progresso determinado pela história; são caminhos diferentes,

marxismo.” Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/a-filosofia-do-direito-e-seushorizontes/ . Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

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com facilidades e dificuldades próprias e que, em última instância, estão desconectados uns dos outros. Mas, afinal, que isso tem a ver com a obra hegeliana? É aqui que a leitura cruzada pode ajudar a pensar esse retorno a Hegel... Isso se daria com a possibilidade do texto hegeliano ser interpretado de várias formas, cada qual com um horizonte ou um caminho da Filosofia do Direito. Sendo assim, pode-se dizer que há três juristas hegelianos: a) um primeiro que tenta ver os fatos e inseri-los no interior do ordenamento normativo positivando-os e elevando-os ao status de fatos jurídico (ou juridicamente relevantes), isto é, por via de um Hegel do dever-ser ou Positivista; b) um segundo que está um passo atrás em relação ao positivista, e essa distância o permite analisar as construções (discursivas, ideológicas, normativas) que estão subentendidas no Direito, chamaremos de um Hegel Observador; e, c) um terceiro que leva em consideração a totalidade social e que é capaz de fazer um balanço investigativo entre a situação atual das coisas e as possibilidades de mudança, pode-se chamar de Hegel Crítica ou Materialista1. Tomemos como exemplo um trecho do §33 dos Princípios da Filosofia do Direito (HEGEL, 1997, p. 35), nele Hegel diz: 33 – Segundo as fases do desenvolvimento da ideia da vontade livre em si e para si, a vontade é: a) Imediata. O seu conceito é portanto abstrato: a personalidade; e a sua existência empírica é uma coisa exterior imediata, é o domínio do direito abstrato ou formal; b) A vontade que da existência exterior regressa a si é aquela determinada como individualidade subjetiva em face do universal (sendo este em parte, como bem, interior, e em parte, como mundo dado, exterior), sendo estes dois aspectos da ideia obtidos apenas um por intermédio do outro; é a ideia dividida na sua existência particular, o direito da vontade subjetiva em face do direito do universo e do direito da ideia que só em si existe ainda, é o domínio da moralidade subjetiva; c) Unidade e verdade destes dois fatores abstratos: a pensada ideia do Bem realizada na vontade refletida sobre si e no mundo exterior, embora a liberdade como substância exista não só como real e 1

Essa é uma das teses que estamos construindo e defendendo levando em conta alguns autores hegelianos tanto de uma tradição fortemente influenciada por Kant quanto por uma vertente marxista. Muitos autores tentam, com seus próprios instrumentos, construir diversas leituras da obra hegeliana. Um dos livros que temos como referência para esse debate político que enfatiza a dimensão crítica materialista de Hegel é The Hegel Variations de Fredric Jameson. Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

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necessária mas ainda como vontade subjetiva. É a ideia na sua existência universal em si e para si, é a moralidade objetiva.

Apesar do difícil vocabulário, a finalidade do §33 é explanar o que poderia ser considerado Direito para Hegel (ou, como ele próprio defende, a Filosofia do Espírito Objetivo): um conjunto de relações que partem de situações mais simples para as mais complexas sem uma supressão da “fase anterior”, ou seja, a Vontade Imediata (a) não dá lugar a Moralidade Subjetiva (b), mas ela é o início de um movimento de parte dela própria (a) e que cria um excesso que deve ser “posto para fora de si mesmo”, para outro lugar, outro campo (para a moralidade subjetiva). A esses movimentos de extrusão e preservação contínuos damos o nome de suprassunção1. Ora, a partir do que poderia ser o Direito (Espírito Objetivo), tem-se exatamente os modos de leituras dos juristas proposto por Mascaro. Passemos brevemente a eles: 1. De acordo com o enunciado acima, é possível perceber esse Espírito Objetivo como um ponto em que o dever ser e o ser se convergem, ou seja, de que aquilo de Hegel está falando é a descrição fidedigna. A intenção última do positivismo é tachar o fato como inserido nas relações jurídicas, marca-lo e inscrevê-lo na visão de mundo para que o mundo real e o mundo jurídico sejam apenas e tão somente um só. 2. A segunda leitura possível intenta, primeiro, descrever os fatos e o que, em seguida, deveriam ser os procedimentos para que eles se realizem. A descrição do mundo passa por um filtro e a função aconselhadora ou programática tem um papel fundamental. Pode-se dizer que esse Espírito Objetivo hegeliano ainda não era efetivamente o existente na época e que Hegel estava fazendo um exercício teórico de elencar alguns fundamentos que deveriam emergir num pleno contraste com as ideias absolutistas e pré-constitucionais de uma agremiação de estados do século XVIII que viriam ser a Alemanha. 3. Já a terceira leitura trabalharia com duas velocidades ao mesmo tempo. Na medida em que ela tentaria descrever a situação e oferecesse um conjunto de

1

É importante aqui enfatizar o problema de tradução da palavra suprassunção muito bem evidenciado por Paulo Meneses (2006, p. 10): “ [...] parece necessário explicar mais uma vez nossa tradução de aufheben e Aufhebung. Devido à ausência total nas línguas latinas de termos equivalentes, que significassem ao mesmo tempo suprimir e conservar, adotaram-se os que Labarrière introduziu (sursumer, sursomption) e que escrevemos como suprassumir, suprassunção. Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

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medidas que poderiam tornar um novo modelo possível, estaria embutida outra questão: essa medida cria uma zona de desconforto para a totalidade. Para deixar em linhas bem claras, ao mesmo tempo em que é construída uma ideia de totalidade social

como

ponto

de

partida

teórico-investigativo,

a

dimensão

prática

sintomaticamente denuncia as mazelas desse campo no mundo real e concreto. É uma leitura que define as fronteiras entre o teórico e o prático sem uma tentativa de fundi-las numa única visão. Estabelecidas e demarcadas tais leituras, assumimos que esta última é uma forma de pensamento mais acabada e refinada por se tratar de um emaranhado complexo que permite a interlocução total entre os demais ramos da Filosofia geral sem, contudo, perder-se da dimensão prática. Em seguida, veremos como elas poderiam ser aplicadas aos Princípios da Filosofia do Direito de modo sistemático no próximo tópico.

4. ESTRUTURA E ÁREAS DE CONCENTRAÇÃO

Após descrever os filtros positivista, não-positivista e crítico, é possível passar agora para a análise da estrutura da obra mais especificamente1. O livro é composto por 360 parágrafos, alguns seguidos de notas explicativas feitas pelo próprio autor, e formado por quatro partes: a) Introdução (dos §§ 1º-33); b) O Direito Abstrato (dos §§ 34-104); c) A Moralidade Subjetiva (dos §§ 105-141); d) A Moralidade Objetiva (dos §§ 142-360). Na Introdução está contida o plano da obra e a abertura para o debate acerca do objetivo da Filosofia do Direito. O § 1º diz que “O objeto da ciência filosófica do direito

1

Algumas referências aqui valem a pena serem citadas: A Estrutura Lógica dos Poderes do Estado na Filosofia do Direito de G. W. F. Hegel de Gonzalo Humberto Tinajeros Arce, trata-se da tese de mestrado defendida em 2010 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; O Conceito de Sociedade Civil em Hegel e o Princípio da Liberdade Subjetiva de Tarcílio Ciotta, trata-se da tese de doutorado defendida em 2007 na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP; Explicación Sucinta de la Filosofía del Derecho de Hegel (1992) de Carla Cordua; Dialéctica y Derecho: el proyecto ético-político hegeliano (1983) de Jorge Eugenio Dotti e La Idea de Sociedad Civil em Hegel (1995) de Raul Hernández Vega. Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

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é a ideia do direito, quer dizer, o conceito do direito e a sua realização” (HEGEL, 1997, p. 1), isto é, a Ideia do Direito (justiça, igualdade) e também sua forma procedimental de produção de normas. Trazendo para o debate contemporâneo, pode-se dizer que o positivismo trata claramente deste assunto, tanto na sua vertente formal (a Teoria Pura do Direito de Kelsen), ética (O Conceito de Direito de Hart) e o neopositivismo (Conceito e Validade do Direito de Alexy e Direito e Democracia de Habermas); os não-positivistas tratam da desconstrução da ideia e das relações normogenéticas. Podem elas ser existencialistas (Verdade e Método de Gadamer, Ser e Tempo de Heidegger), desconstrucionistas (Microfísica do Poder de Foucault e Força-de-lei de Derrida) ou decisionistas (O Conceito do Político de Schmitt). O § 3º descreve o que Hegel entende por direito positivo (de acordo com os horizontes jurídicos, a ênfase e a recepção deste trecho devem mudar) pelo “caráter formal de ser válido num Estado, validade legal que serve de princípio ao seu estudo: a ciência positiva do direito” e quanto ao conteúdo (HEGEL, 1997, p. 4). Ainda na primeira parte, está o § 33 já visto no tópico acima dos campos que serão tratados durante as etapas seguintes. A partir do desenvolvimento da Ideia de Direito, chegaríamos na segunda parte da obra, o Direito Abstrato. É aqui que se faz necessário a postulação de certos direitos que seriam o ponto de partida tanto para um plano ético quanto para um plano social. O Direito Abstrato ou os direitos abstratos poderiam ser alocados na discussão do que poderia ser os direitos fundamentais para as teorias mais modernas, além de serem a base de qualquer construção de condutas éticas (personalidades) e de uma constituição bem definida. Na seara mais positiva esses pontos (direitos fundamentais, direitos inerentes) teriam de ser levados em consideração, para a construção existencial-histórica a formação e a conquista desses modos de direitos ganham importância. Para a teoria crítica, o Direito Abstrato estaria em pleno acordo com o que ultimamente vem se chamando de forma social jurídica, isto é, os valores da sociedade moderna burguesa (liberdade, igualdade, propriedade). Esta última, no Brasil, vem ganhando um espaço de extremo valor principalmente por parte da crítica marxista feita por inúmeros novos juristas que pretendem denunciar as contradições

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do jurídico e suas estreitas limitações no que diz respeito à liberdade com vistas a emancipação humana do indivíduo. Na Moralidade Subjetiva está implícito um debate sociológico (no campo positivo estaria aí o Direito Financeiro, Previdenciário e ramos do direito que tratam de temas socialmente relevantes sem uma presença tão forte do Estado) das formas nas quais as sociedades civis juridicamente formadas estão inseridas. Se tais sociedades se regem pelo mercado e produzem concentrações de renda causando certos danos sociais gerais e exclusão social, se há uma crise de representação do indivíduo na sociedade do mercado existe, se há maneiras ou não de conter esses desvios com a finalidade de se criar uma ética mais humana... Essas questões podem ser visualizadas por toda essa terceira parte potencializadamente, ainda, pois Hegel tem uma visão muito pessimista (é uma leitura possível, também) do mercado, chamada por ele de sistema de carências. A última parte também se faz presente não só no Direito como nas ciências humanas em geral por ser um debate fervoroso pelas vias da Teoria do Estado. Listando brevemente algumas matérias: a) todos os ramos do Direito que dizem respeito ao Estado como sujeito, isto é, Direito Administrativo, Previdenciário, Tributário, Eleitoral; b) a questão da constituição do Estado, suas funções (legislativa, judiciária, executiva); c) a representatividade dos indivíduos nos Estados; d) a soberania estatal e sua relações com as demais nações (o Direito Internacional como ramo do direito positivo). É importante destacar a sensibilidade das passagens de uma parte para a outra presentes sempre ao final de cada seção da obra (vale dizer, nos §§ 33, 104, 141, 181, 256) e, como esses parágrafos estão de acordo com toda a filosofia hegeliana. De uma forma ou de outra, é possível perceber que os temas no Princípios da Filosofia do Direito continuam atuais e seguirão sendo por muito tempo. Praticamente toda questão, jurídica ou não, transformou-se em impasses em processo de desenvolvimentos por uma quantidade de Escolas do pensamento que se aproveitam para marcar uma distância em relação a Hegel, sempre tendo-o como parâmetro mesmo que tal tradição o negue totalmente (mesmo sem ser intencional, essa

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distância marcada diz, de certo modo, qual é a importância do filósofo alemão para os dias atuais). Esperamos que, como esboços, essas notas podem contribuir para o estudo sistemático de Hegel e que, ao mesmo por uma única vez, o jurista se depare com essa obra e entenda a atualidade de seus postulados para que, ele mesmo, possa fazer seu próprio cálculo de distância em relação a ela.

CONCLUSÃO

A partir do que foi exposto nessas breves considerações, podemos deixar concluídos certos elementos que deveriam ser aceitos tanto como constatações simples quanto pontos de partidas para estudos posteriores em nível de profundidade mais radical. Para facilitar a assimilação, elencaremos nos parágrafos seguintes o que seria interessante, para o filósofo e para o jurista, destacar:

1. Quanto ao estudo de Hegel e a sua recuperação: é imprescindível assumirmos que o pensador, no Brasil e no mundo, é pouco estudado, visto a grandeza de desvios e comentários críticos desproporcionais (acusando-o de totalitarista ou monarquista, por exemplo). Tal fato se deve também pela sua recente redescoberta. 2. Quanto à sua importância de suas obras: devido ao grande volume de suas obras e seus conteúdos riquíssimos, é importante assumir uma posição clara de que Hegel é um denominador comum para o pensamento jurídico, pois, com ele, abre-se um leque de autores que vão desde conservadores, passando pelos progressistas, até os mais revolucionários radicais. De alguma forma, dizemos: é preciso voltar a Hegel! 3. Quanto aos desafios: diante dos dois problemas colocados acima, percebe-se que o século XXI impõe, para nosso tempo, a urgência de atualização frente à novos problemas que estão cotidianamente aparecendo, como as mudanças nos meios de comunicação (e de maneira mais ampla nos circuitos de micropoderes [direito abstrato]; a soberania dos estados; as mudanças estruturais subjetivas e coletivas [moralidade objetiva] – o indivíduo, a família e a sociedade civil; e, a mudança de uma postura ética – [moralidade subjetiva]).

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A partir da tentativa de sistematização exposta acima, podemos afirmar (e concluir apenas momentaneamente) que é perfeitamente possível e provável que cada espécie de leitura hegeliana comparada com as grandes correntes da filosofia do direito está de acordo (respeitando, obviamente, seus capacidades e limites). Levar em consideração o recente material de estudo ultimamente feito sobre seus desdobramentos para o campo jurídico é digno de destaque. Ainda falta uma consolidação que exprima claramente as suas influências no Brasil. Para finalizar, é preciso pontuar também que esse engajamento de tentar criar algo novo (um estudo de Hegel no Brasil que sirva realmente para que o ordenamento jurídico possa ser entendido nas velocidades positivista, não-positivista e crítica) é um risco que devemos assumir sem o receio das falhas. É nesse momento que é preciso defender a tão simbolista passagem de Hegel (1995, p. 28) em suas lições sobre a filosofia da história de que “nada de grande acontece no mundo sem paixão”.

REFERÊNCIAS

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995. __________. Princípios da filosofia do direito. tradução Orlando Vitorino. – São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Clássicos) MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. – 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2014. MASCARO, Alysson Leandro. Prefácio. In: ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Tradução Maria Beatriz de Medina. – São Paulo: Boitempo, 2011. p. 1117. MENESES, Paulo. Abordagens hegelianas. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2006. REDYSON, Deyve. 10 lições sobre Hegel. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. (Coleção 10 Lições) SOTO, Carlos Pérez. Hegel en el horizonte político. Ciudad de México: Hypathia Editorial, 2015. (Colección Cuestiones)

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Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP, graduando em Ciências Sociais pela Universidade Metropolitana de Santos – UNIMES e coordenador do coletivo Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia – CEII – www.ideiaeideologia.com . Para quaisquer dúvidas, críticas ou sugestões entrem em contato: [email protected] . *

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