NOTAS DE CONVALESCENÇA SOBRE IMPRESSÕES DE DOENÇA NA CULTURA ALEMÃ: O LUGAR DO ENSINO DE HISTÓRIA NA FILOSOFIA DO JOVEM FRIEDRICH NIETZSCHE

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FREITAS, Itamar; NASCIMENTO, Victor Wladimir. Notas de convalescença sobre impressões de doença na cultura alemã: o lugar do ensino de história na filosofia do jovem Friedrich Nietzsche. In: Anais do X Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História, 2013, São Cristóvão. X Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História. Aracaju: Segrase, 2013.

Resumo: Este texto faz parte de uma pesquisa mais ampla, desenvolvida junto ao Grupo de Pesquisas em Ensino de História, da Universidade Federal de Sergipe, que busca inventariar os usos da história na formação de pessoas, seja em nível de preceptoria, sejam em ambiente escolar. Aqui, descrevemos a contribuição do filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche, expressa no texto II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história pra a vida. Os resultados apontam que, nesta parte da obra, Nietzsche entende a história como instrumento de formação de valores, desde que os conteúdos expressem a experiência da Grécia arcaica, e defende a faculdade de esquecer como a mais importante para a vida prática. Palavras-chave: Ensino de história. Esquecimento. Friedrich Nietzsche.

Abstract: This text is part of a broader research project, developed by the Grupo de Pesquisas em Ensino de História (Universidade Federal de Sergipe), which seeks to inventory the uses of history in the instruction of people, whether at preceptorship or school context. We describe the contribution of the philosopher Friedrich Wilhelm Nietzsche expressed in "On the Utility and Liability of History for Life". The conclusion indicates that in these writings, young Nietzsche understands History as a tool for shaping values, just like the example born in archaic Greece, as long as it respects the faculty of forgetting as the most important for practical life. Keywords: Forgetting. Friedrich Nietzsche. History Teaching.

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Quais os reais e/ou potenciais usos da escrita da história para a formação de crianças e jovens anunciados nas obras do filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844/1900)? Este texto responde a essa questão, no entanto, sem a desenvoltura dos demais escritos desta série do Projeto “Usos da história na formação de pessoas” (Cf. FREITAS, 2012). Isso porque Nietzsche até pensou um homem, mas o fez ao modo de um historiador historicista: narroulhe a história, das cavernas ao século XIX, para contar como se chegou ao estado atual – do tempo do filósofo – e, sobretudo, para substituí-lo pela ideia de indivíduo. Também foi um moralista. No entanto, sua obra, entretanto, está marcada pela denúncia do principal crime da história da humanidade e a consequente condenação da ideia de bem e mal. Por fim, Nietzsche também pensou a educação dos alemães que frequentavam o ensino secundário, mas não o fez de modo sistemático. Aliás, foi um grande pretexto para dialogar com seu mentor A. Schopenhauer e o seu colega J. Burckhardt (Cf. COLI, 2001). Por esses motivos é que este texto não segue a estrutura dos demais. Não há como descrever a ideia de homem professada e, sequencialmente, trançar os desdobramentos dessa representação para uma possível ideia de sociedade, educação, currículo escolar e, enfim, situar o conhecimento histórico dentro de um tal processo de formação de pessoas. Essas limitações, entretanto, não impedem que comentemos os poucos indícios deixados no seu mais longo texto sobre a história. Na II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história pra a vida Nietzsche estão dispostos os sentidos de história vida e história conhecimento. E é nela que encontramos, ao menos, cinco fragmentos que indicam a possibilidade de um ensino de história ao modo nietzscheano.

Lembrança e morte, esquecimento e vida

A II Consideração intempestiva não anuncia uma epistemologia ou filosofia da história. Não se trata sequer de uma propedêutica do conhecimento histórico – justificando o modo como a história foi utilizada e produzida pelo próprio Nietzsche em outras obras. É um conjunto de especulações que remetem, obviamente, a outros textos e situações onde o diálogo com determinados autores e escolas – Goethe, primordialmente, Ranke, Hegel, Hartman, o historicismo, marxismo e o cientificismo – é explícito. 2

Se o texto analisado não é uma propedêutica ou uma epistemologia e, ainda, se não se trata, assumidamente, da defesa de um determinado tipo de formação de pessoas, mediante o emprego da instrução escolar, proponho retomá-lo a partir de um tema bastante caro aos historiadores do tempo presente: a relação memória-esquecimento. Em seguida, indico os fragmentos captados na II Consideração intempestiva que fazem referência direta ao estudo da história. Para Nietzsche, memória e esquecimento são duas forças humanas – faculdades se preferirem – que atuam em movimento contrário e de modo interativo. Tais forças são apresentadas em sua versão mais elaborada na Genealogia da moral, texto produzido algum tempo depois da II Consideração. Apesar do aparente anacronismo, permitam-me citar essa versão mais sofisticada que muito nos ajudará a entender os sentidos de um provável ensino de história Nietzscheano. Para o filósofo, Esquecer [...] é uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido [...] Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo [...] eis a utilidade do esquecimento [...]: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. (NIETZSCHE, 2009, p. 43).

A memória, ao contrário, é uma faculdade inibidora da vontade, pois suspende o esquecimento, sobretudo “nos casos em que se deve prometer”. E a “promessa”, assim como a “responsabilidade” são meios pelos quais o ascetismo cristão reproduz constantemente as ideias “culpa” e “pecado” e conduz os culpados e pecadores para o “autodisciplinamento”, “autovigilância” e “autossuperação” (Cf. NIETZSCHE, 2009, p. 109).

Na II Consideração, esses sentidos de memória e esquecimento estão sintetizados em sentenças hoje célebres, a exemplo de: “Toda ação exige esquecimento” e “É [...] possível viver, e mesmo viver feliz, quase sem qualquer lembrança, como o demonstra o animal; mas é absolutamente impossível viver sem esquecimento”. (NIETZSCHE, 2009, p. 73). Está clara, então, a opção nietzscheana. Porém, afirmar que o esquecimento é uma força criadora não significa condenar toda a memória – e, consequentemente, toda a história – à inutilidade. Nietzsche, ao contrário, entende que todo homem e todo povo necessita de algum conhecimento do passado para viver. Não há futuro e nem presente sem o conhecimento do passado, seja para imitá-lo, conservá-lo ou criticá-lo. Isso ocorre porque os 3

4 seres vivos “agem e perseguem um fim, porque eles conservam e veneram o que foi, porque eles sofrem e têm necessidade de libertação.” (NIETZSCHE, 2005, p. 82). É nesse sentido que a história – como reunião de acontecimentos – serve à vida. A quantidade de passado e a atitude para com esse passado, entretanto, devem ser regulados pelas carências de cada homem e de cada povo. Homens e povos, se não quiserem sucumbir, devem possuir “força plástica” – o poder de esquecer – para selecionarem acontecimentos e os empregarem na construção do presente e do futuro. Eles devem libertarse do peso que a totalidade do passado possa acarretar, ou seja, eles devem usar o passado em proveito da vida. No entanto, se a relação com passado for exageradamente marcada pela imitação, conservação ou pela crítica avassaladora do mesmo, homens e povos tornar-se-ão escravos desse passado, uma vez que o “novo” – uma obra de arte, uma verdade científica, por exemplo – será entendido sempre com algo a ser eliminado. O novo, nesses casos, nunca nascerá em um homem ou povo que se esmere na imitação, conservação ou na crítica ao passado. É nesse contexto – quando a história consumida pelo homem ou pelo povo é hegemonicamente monumental, tradicionalista ou crítica – que a história deixa de ser útil à vida. Nas II Considerações, a apresentação dessa tipologia da narrativa histórica, bem como dos efeitos resultantes dos excessos de seu consumo é seguida de uma descrição crítica da racionalidade da história do seu tempo. É nesse momento, digamos, moralista, que Nietzsche fornece algumas ideias sobre o ensino de história.

Por que o excesso de história é prejudicial à vida?

Para Nietzsche, o excesso de história é prejudicial à vida por cinco razões. Em quatro delas o ensino de história – ou o uso do conhecimento histórico na formação de pessoas – é mencionado. Em primeiro lugar, o excesso de história é nocivo porque destrói a personalidade. Ele instaura a incoerência entre o interior – repleto de histórias que não correspondem às suas necessidades – e o exterior do homem – moldado pela convenção. Não sendo mais sincero consigo mesmo e com os outros, o homem torna-se incapaz de selecionar os acontecimentos – 4

já que todos têm o mesmo valor – e de tirar proveito dos mesmos – pois os grandes acontecimentos não mais os mobilizam (NIETZSCHE, 2005, p. 110-111, 114-115). Não obstante os descaminhos provocados pelo desequilibrado consumo de narrativas, para Nietzsche, o estudo da história poderia, ainda, oferecer algum valor: O homem que é autenticamente e profundamente sério não se deve transformar num Dom Quixote; ele deve ter coisa melhor a fazer do que lutar contra estas falsas realidades. Mas, em todo caso é preciso ficar atento e gritar para cada mascarado: “Alto! Quem vem lá?”, e arrancar-lhe a máscara da face. Estranho fenômeno! Esperava-se antes que a história incentivasse sobretudo os homens a serem honestos – ainda que se tratasse de honestos imbecis. E sempre foi esta a sua função: mas não hoje em dia! A cultura histórica e a sobre casaca da universalidade burguesa reinam simultaneamente. Ainda que, em todo lugar, só se fale da questão da “livre personalidade”, não se vê mais absolutamente personalidade alguma, sobretudo uma personalidade livre, mas apenas homens universais receosos e dissimulados (NIETZSCHE, 2005, p. 110. Grifos nossos).

Em segundo lugar, o excesso de história prejudica a vida porque a objetividade praticada pelo historiador suscita virtudes que ele não possui: a vontade a força para ser justo – o historiador objetivista é tolerante e generoso e o justo é inclemente; o poder de generalizar sobre os atos humanos do passado – atos humanos são frutos de trajetórias caóticas de impossível demonstração; e o poder de escrever sobre o passado – deve escrever história “somente o homem experimentado, o homem superior”. Apenas “aquele que constrói o futuro tem o direito de julgar o passado.” (NIETZSCHE, 2005, p. 127). Como fazer, então, para curar o homem da falsa justiça e da neutralidade oferecida por essa epistemologia? Uma solução é selecionar os conteúdos históricos a serem consumidos no processo educativo. Formai em vós a imagem na qual o futuro será formado, e esquecei a crença supersticiosa que vos condena a ser apenas meros epígonos. Este futuro vos dará muito no que meditar e descobrir; mas não deveis pedir à história que ela vos indique os meios e os instrumentos necessários para realizá-lo. Se, ao contrário, mergulhardes na vida dos grandes homens, nela descobrireis uma suprema prescrição de amadurecer e escapar à prisão de uma época que vos priva de educação e que coloca o seu interesse em não vos deixar amadurecer, a fim de vos dominar e explorar. E se buscardes biografias, que não sejam aquelas que têm como refrão “Um tal senhor e seu tempo”, mas aquelas que deveriam ter como título: “Um lutador contra o seu tempo”. Enchei as vossas almas de Plutarco e, acreditando nos seus heróis, ousai acreditar em vós próprios. Uma centena de indivíduos educados de maneira não moderna, quer dizer, amadurecidos e habituados a respirar um ar heroico, bastaria para reduzir ao silêncio toda esta estrepitosa baixa-cultura (Afterbildung) do nosso tempo. (NIETZSHE, 2005, p. 128. Grifos nossos). 6 A [suposta] justiça histórica viabilizada pela objetividade que o historiador professa também provoca 5

mais um desdobramento nocivo à vida: ela enfraquece e desencoraja o “instinto criador” do homem (Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 129).

Em outra passagem, o filósofo já havia alertado que todo “grande acontecimento histórico” era precedido de algum entorpecimento dos sentidos – cegueira, surdez, irracionalidade – ou seja, uma grande obra de arte, uma vitória militar ou a liberdade de um povo (Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 76) resultariam da capacidade de os seus autores vivenciarem momentos a-históricos ou anti-históricos. É tal capacidade – de iludir-se, de acreditar “incondicionalmente em algo que seja justo e perfeito” (Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 129) – que a febre historicista destrói, no seu afã de a tudo conhecer e a tudo dissecar (Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 131). Os prejuízos são perceptíveis já na adolescência, quando os discípulos são obrigados a consumirem todo tipo de acontecimento, sem os sentirem. Nietzsche reclama que, no seu tempo, os adolescentes eram habilitados ao estudo da história política ainda que desconhecessem, por exemplo, a natureza da guerra. Essa prática provocava a perda do “sentimento de estranheza” e de admiração, tornando-os, desse modo, apáticos e indiferentes em relação à vida: “Os jovens se viram assim tão desenraizados, que acabaram por duvidar de todos os costumes e de todas as ideias” (Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 134). Esse consumo de toda a história por indivíduos imaturos também grassava o ensino superior, já orientado pela “divisão do trabalho” e pelo rigor da produtividade. [...] examinemos agora especificamente o estudante de história, herdeiro de uma apatia prematura, sugerida provavelmente já na adolescência. Desde cedo, ele deve já assimilar o “método” que usará no seu trabalho, os truques e o tom superior do seu mestre; ele recortou cuidadosamente do passado um pequeno capítulo, sobre o qual empregará a sua sagacidade e o método apreendido. Ele já produziu, ou para usar uma palavra mais ambiciosa, ele “criou”; a partir de então, como o seu trabalho, ele se transformou num servidor da verdade e passou para o campo da história universal. Se, quando era adolescente, ele já se sentia “realizado”, eis que agora ele se sente mais do que realizado: basta apenas sacudi-lo para fazer cair estrepitosamente os frutos da sua sabedoria; mas esta sabedoria está podre e cada maçã tem já o seu verme. Creia-me: se os homens fossem obrigados a trabalhar e a produzir na fábrica da ciência antes de alcançarem a maturidade, a própria ciência estará logo arruinada, assim como os escravos prematuramente utilizados nesta fábrica. (NIETZSCHE, 2005, p. 135. Grifos nossos). 7 A quarta razão alegada para a nocividade do excessivo consumo de história está fundada na falsa crença de que o século XIX, tempo da narrativa nietzscheana, é a época final 6

da humanidade, onde se estabelece o juízo de todos os tempos (Cf. Nietzsche, 2005, p. 137139). Essa crença é prejudicial à vida porque leva o homem e os povos à passividade. Ele completa: “talvez vivamos ainda na Idade Média [...] talvez a história seja ainda uma teologia disfarçada. Por isso também, talvez o respeito do leigo pela casta científica seja somente uma sobrevivência do respeito que outrora se tinha pelo clero” (NIETZSCHE, 2005, p. 142). A teologia disfarçada tem nome: a filosofia da história de Hegel. Ela fortalece a ideia de que cultura alemã do século XIX é o ápice da cultura Greco-romana clássica e, ainda, que “todo acontecimento é uma vitória da lógica ou da Ideia” (Nietzsche, 2005, p. 146). Essa ideologia impede a construção de um “tempo novo”. Para Nietzsche, “o homem jamais é virtuoso senão na medida em que ele se revolta contra o poder cego dos fatos, contra a tirania do real [...] na medida em que ele se submete apenas às leis que não sejam aquelas das flutuações históricas” (NIETZSCHE, 2005, p. 148). Aqui, mais uma vez a seleção de acontecimentos a rememorar – e a consequente apresentação dos mesmos –, em ambiente didático, quem sabe, poderia combater as toxinas hegelianas e historicistas: trata-se da experiência da Grécia pré-clássica. [...] pode ser que possamos propor, como sendo a mais nobre das recompensas, a tarefa ainda maior de ir para além desse mundo alexandrino, de ir corajosamente buscar os nossos modelos no mundo grego arcaico, na sua grande e natural humanidade. Então, encontraríamos também neste mundo a relação de uma cultura essencialmente a-histórica e, não obstante, ou antes por isso mesmo, indizivelmente rica e cheia de vida. Ainda que nós, os alemães, fôssemos somente os seus herdeiros – poderíamos ser o povo maior e mais orgulhoso, se nos déssemos como tarefa absorver a herança de uma tal cultural. (NIETZSCHE, 2005, p. 144).

Essa crença do século XIX de que o povo alemão vivencia a época final da humanidade – a que tem o poder de julgar as épocas anteriores – se desdobra em um quinto e último prejuízo para a vida, revelando-se como ironia e como cinismo. A ironia está no fato de os alemães estarem no ápice da civilização Greco-romana e concomitantemente, às vésperas do seu próprio fim. (Nietzsche, 2005, p. 151). O cinismo se configura na exigência de substituir a “personalidade” pelo “processo universal”. (Nietzsche, 2005, p. 165). A ironia e o cinismo são sintomas da doença que assola o povo alemão contra a qual Nietzsche se insurge: “o fim [sentido] da humanidade não pode residir no seu termo [final], mas somente nos seus exemplares superiores”. (NIETZSCHE, 2005, p. 157). Se se quer a cura desta moléstia, deve-se dizer não a essa história das massas, uma vez que ela desconsidera a diversidade de experiências, busca leis gerais, substitui o indivíduo pela 7

realização do conceito (processo universal), enfim, “impede que o homem sinta as coisas e aja de maneira a-histórica” (NIETZSCHE, 2005, p. 165). A solução para Nietzsche é redigir a história sob o ponto de vista dos grandes homens. (NIETZSCHE, 2005, p. 160). Ao final da II Consideração, Nietzsche confessa a possibilidade de estar contaminado com os males provocados pelo excesso de história. Mas se regozija de ter podido denunciálos: [...] eu tenho confiança na força inspiradora que, na ausência do gênio, conduziu o meu barco, tenho confiança na juventude, que não me extraviou, quando me obrigou a protestar contra a educação histórica que o homem moderno dá à sua juventude, a exigir que o homem aprenda sobretudo a viver e não use a história senão para melhor estar a serviço desta vida com tudo o que ela nos ensina. (NIETZSCHE, 2005, p. 166. Grifos nossos).

Em seguida, indicando os remédios para a salvação da juventude alemã, faz a crítica aos fins da educação prescritos pela “literatura escolar e pedagógica” do seu tempo: formar o homem culto, apresentando ao aluno o “conhecimento sobre a cultura”, ao invés de possibilitar-lhe “uma experiência direta da vida” (NIETZSCHE, 2005, p. 169). Junto às críticas à finalidade da educação, Nietzsche sugere parâmetros para o ensino: Este saber deve ser infundido e inoculado no aluno sob a forma de um conhecimento histórico; quer dizer, se enche a sua cabeça com uma quantidade formidável de ideias tiradas do conhecimento extremamente indireto das épocas e dos povos do passado, não da intuição imediata da vida. Seu desejo de fazer suas próprias experiências e de sentir que elas se organizam nele como um sistema vivo e coerente, este desejo se encontra sufocado e como que intoxicado pela suntuosa ilusão de que é possível, em poucos anos, acumular em si as experiências mais sublimes e mais admiráveis das épocas passadas e particularmente das épocas mais grandiosas. É exatamente este mesmo método insensato que conduz os nossos jovens artistas às galerias e aos museus em vez de levá-los à oficina de um mestre e sobretudo à oficina única que é a natureza (NIETZSCHE, 2005, p. 170).

O texto se encerra com o anúncio dos remédios que possibilitarão à juventude dar origem a uma cultura: a força a-histórica que conduz o homem a um “horizonte limitado” – a faculdade de esquecer – e as forças supra-históricas que lhe fornecem “um caráter de eternidade e estabilidade” – a arte e a religião. Juntas – esquecimento, arte e religião – põem um freio à ciência do seu tempo, excessivamente evolutiva, ou seja, historicizada, que invadiu e dominou a vida do povo alemão. (NIETZSCHE, 2005, p. 173).

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Conclusões

Nas II Consideração intempestiva sobre a inutilidade e os inconvenientes da História para a vida – texto de maior fôlego de Nietzsche sobre a história –, os usos da história na formação de pessoas ocupam lugar principal em uma dissertação que se propõe a denunciar um mal que aflige o povo alemão – o historicismo –, os sintomas desse mal – a falta de cultura ou a cultura desenraizada da própria vida – e os antídotos a esses sintomas – as forças a-históricas e supra-históricas (esquecimento, arte e religião). O “estudo da história” ou a “educação histórica da juventude”, como o filósofo anuncia, não são, no entanto, tratadas de forma sistemática com o intuito de construir uma nova pedagogia ou conjunto de noções sobre aprendizagem ou sugestões de estratégias de ensino. Aliás, o sujeito mesmo do texto oscila entre o indivíduo e o povo alemão do seu tempo. Essas características, porém, não nos impedem de identificar algumas das suas posições acerca do ensino de história que vivenciou. Em primeiro lugar – e seguindo a ordem de apresentação dos fragmentos neste texto –, podemos afirmar que Nietzsche conserva a ideia de que a história é conhecimento fornecedor de valores para a formação das pessoas. O filósofo também indica a experiência da Grécia arcaica como fonte privilegiada para a seleção, senão de acontecimentos, mas de valores e atitudes (anti-históricas) que comporiam um currículo – em sentido amplo – eficaz na construção do homem moderno – [o superhomem?]. A terceira posição em relação aos usos da história, que nos interessam neste texto, é a defesa explícita do sujeito da história – o grande homem – e o desprezo pela experiência das massas como matéria de ensino. Por fim, a posição referente ao ensino de história nas universidades do seu tempo. Para Nietzsche, a febre historicista que se derrama por sobre os programas de ensino não somente destrói indivíduos jovens, também destrói a ciência da história. Ainda que não professemos os “cinco nãos” de Nietzsche – a luta contra o sentimento de culpa, o ideal cristão, o homem bom do século XVIII, o romantismo e a ideia de 10 supremacia dos instintos gregários (NIETZSCHE, 2005, p. 353-354) –, consideramos bastante atuais e estimuladoras as críticas que o mesmo formulou a respeito do excesso de história e da separação entre o saber sobre a vida e as necessidades da vida que determinam a busca por esse saber. Certamente, não vivemos mais sob o império das filosofias da história – visões 9

totalizantes do passado e apostas utópicas para o futuro –, mas a longa e crescente extensão dos novos livros didáticos de história, a nossa incapacidade de excluir acontecimentos dos planos de estudo, o nosso pré-conceito em relação ao grande homem e a indiferença dos formadores de professores com as questões que envolvem o ensino de escolar da história nos obrigam a ouvir, constantemente, os reclames do filósofo alemão.

Referências

COLLI, Giorgio: Escritos sobre Nietzsche. Lisboa: Relógio d'Água, 2001. FREITAS, Itamar. “Retrato do mundo e da natureza da humanidade”: o lugar do ensino de História na educação do futuro burguês, segundo John Locke (1677/1703). Sobral, 2012. Anais... ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DO CEARÁ, 13. Disponível em:http://ce.anpuh.org/index.php?option=com_content&view=article&id=58&Itemid=2. NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história pra a vida. In: Escritos sobre História. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2005. ______. Genealogia da moral. São Paulo: Escala, 2009.

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