[Notas de Ensino] Um Estranho no Ninho ou um Ninho Estranho? Um caso de Socialização no Processo de Expatriação

June 14, 2017 | Autor: Felipe Fróes Couto | Categoria: Socialization, Human Resources, Expatriation, Expatriates, Recursos Humanos
Share Embed


Descrição do Produto

Volume 5 Número 2 Jul/Dez 2015 Doc. 9-N1 Rev. Bras. de Casos de Ensino em Administração ISSN 2179-135X ________________________________________________________________________________________________ DOI: http://dx.doi.org/10.12660/gvcasosv5n2n9

UM ESTRANHO NO NINHO OU UM NINHO ESTRANHO? UM CASO DE SOCIALIZAÇÃO NO PROCESSO DE EXPATRIAÇÃO (Notas de Ensino) FELIPE FRÓES COUTO – [email protected] Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte, MG, Brasil LUIZ ALEX SILVA SARAIVA – [email protected] Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte, MG, Brasil Submissão: 12/07/2014 | Aprovação: 04/10/2015 _______________________________________________________________________________________________

Objetivos de aprendizagem O caso trata de questões relacionadas à dinâmica simbólica nas organizações, abordando diferentes dimensões por trás da expatriação, como poderes, identidades e socialização dos indivíduos. Objetiva-se promover o debate no que tange aos seguintes aspectos: as significações e dinâmicas sociais no processo de socialização do estrangeiro; o conflito subjetivo existente entre nativos e estrangeiros em ambientes corporativos locais, e a dinâmica de relações de poder e resistência dentro do contexto da expatriação. Fonte dos dados Este caso reflete uma série compilada de situações verídicas, ocorridas em uma empresa multinacional do interior do Estado de Minas Gerais, no primeiro semestre letivo de 2014. O nome da empresa não foi mencionado. O nome do personagem principal foi modificado, é fictício. Embora se trate de um caso real, foram introduzidos elementos ficcionais na narrativa objetivando tornar a leitura mais agradável e interessante ao leitor. Os dados foram levantados por meio de entrevistas com expatriados e pessoas que interagem diretamente com os expatriados na realidade organizacional: colegas e superiores. Aspectos pedagógicos Este caso pode ser lido em poucos minutos e pode ser utilizado para promover discussões e debates em disciplinas de graduação e pós-graduação relacionadas a estudos organizacionais, estudos sociais, gestão de pessoas, entre outras. Sugere-se a leitura individual e posterior discussão em grupos. Após as discussões em grupo, o professor pode escolher representantes para debater os três discursos/posicionamentos implícitos nessa situação-problema: as interações sociais advindas do processo de adaptação cultural do estrangeiro; o conflito subjetivo existente entre brasileiros e estrangeiros em empresas multinacionais e a dinâmica de relações de poder e resistência em contextos de expatriação. Questões para discussão

1. Que diferenças culturais e/ou quais fatores são relevantes na dinâmica cultural do caso?

2. Quais são as prováveis razões da discrepância de percepções sobre o propósito da presença de um estrangeiro no ambiente organizacional? 3. Como se dá a dinâmica da relação de poder entre estrangeiros e brasileiros? ©FGV-EAESP / GVcasos | São Paulo | V. 5 | n. 2 | jul-dez 2015

www.fgv.br/gvcasos

UM ESTRANHO NO NINHO OU UM NINHO ESTRANHO? UM CASO DE SOCIALIZAÇÃO NO PROCESSO DE EXPATRIAÇÃO

2

Felipe Fróes Couto, Luiz Alex Silva Saraiva

4. Em sua opinião, quais são as dificuldades que Trinity encontrará ao tentar inserir a mudança cultural no contexto brasileiro?

5. Como consultor de negócios, qual seria a sua proposta para aliviar as tensões existentes entre os atores envolvidos? Análise do caso e revisão de literatura É perceptível, para aqueles que desejam construir as suas carreiras e histórias de vida na gestão de grandes empresas, que o currículo não possui mais fronteiras. Com a intensificação dos negócios internacionais, a cada dia cresce a quantidade de empregados que são designados para missões e oportunidades no exterior (Bueno, 2010). A distância, cada vez mais, se tem se tornado um produto social seletivo (Bauman, 1999), uma vez que a sua extensão varia dependendo da velocidade com a qual pode ser vencida – para alguns, atravessar o mundo e se comunicar pode levar questão de segundos, para outros, o mero deslocamento para uma cidade vizinha pode levar o dia inteiro. Assim, tanto faz para as muitas multinacionais se elas precisam de pessoas atuando na filial dinamarquesa ou na filial brasileira – o trabalhador vai para onde a organização o designar. A expatriação é atualmente uma prática comum no quotidiano de grandes empresas, sendo resultado de uma política organizacional consistente em objetivos variados, como a internacionalização de sua gestão, aumento de conhecimentos de equipes, desenvolvimento de projetos, formação de novas lideranças etc. (Freitas, 2005). Para a autora, uma experiência bemsucedida de expatriação se traduz não apenas em um investimento bem-aproveitado, mas em uma política organizacional bem-sucedida. Mas uma dimensão é evidente em processos de expatriação, e não está relacionada à questão da política organizacional das empresas: a interação social e a dinâmica subjetiva e as tensões existentes entre diferentes indivíduos em relações de poder e diferenças culturais. Falar de cultura nas organizações torna o tema da expatriação mais árido e complexo do que a simples transferência de um trabalhador de um lugar para outro. “Gerenciar seres humanos”, nesse sentido, torna-se uma atividade muito mais complexa do que gerenciar meros recursos, e são exatamente esses dilemas que tornam a literatura sobre expatriação mais voltada para a questão cultural e para questão da adaptação dos indivíduos em novos contextos. É por essa razão que Sainsaulieu (1987), ao falar sobre cultura organizacional, opta, ao nosso ver, de maneira mais acertada, pelo termo “culturas na organização”. Segundo o autor, assumir a possibilidade da existência de uma cultura organizacional implica assumir que as relações sociais existentes em tais organizações se desenvolvem a partir de reproduções mentais coerentes e valores articulados que são interiorizados por diversos atores existentes em tais contextos. Uma vez assumindo tal premissa, não seria possível a assunção de diferenças de interesses dentro de organizações e, em razão de tal, não se torna plausível a compreensão de uma única cultura em determinado ambiente. Assim, Sainsaulieu (1987) entende que as empresas não devem ser tidas como ambientes homogêneos, pois são caracterizadas por conflitos de interesses, desigualdades de funções, exclusão e exploração etc. Antes de se falar em cultura da empresa, fala-se em uma diversidade de relações culturais que ocorre dentro do ambiente organizacional. Uma vez sendo um ambiente de multiplicidade de culturas, a organização também se torna um espaço de socialização e ressocialização dos indivíduos, de significação e ressignificação de símbolos, rituais e conhecimentos. Compreender essa dinâmica torna a tarefa do gestor internacional de recursos humanos ainda mais complexa. Entender o processo de socialização dos indivíduos requer uma leitura profunda da obra “A Construção Social da Realidade”, de Berger e Luckmann (2004), especialmente no que diz respeito à sociedade como realidade subjetiva. Nessa obra, os autores discorrem sobre o fato de que o indivíduo não nasce membro de uma sociedade, mas “nasce com a predisposição para a sociabilidade e torna-se membro da sociedade” (Berger & Luckmann, ________________________________________________________________________________________________

GVcasos | São Paulo | V. 5 | n. 2 | jul-dez 2015

www.fgv.br/gvcasos

UM ESTRANHO NO NINHO OU UM NINHO ESTRANHO? UM CASO DE SOCIALIZAÇÃO NO PROCESSO DE EXPATRIAÇÃO

3

Felipe Fróes Couto, Luiz Alex Silva Saraiva

2004, p. 173). O processo de interiorização é o processo pelo qual os indivíduos passam ao dotar de sentido um acontecimento subjetivo ou, em outras palavras, criar significados para cada coisa que se percebe no mundo e na vida social – significados esses que são assumidos de um mundo no qual outros já vivem. A socialização primária é a primeira socialização que cada um experimenta em sua infância; a socialização secundária ocorre quando um indivíduo já socializado adentra novos setores do mundo objetivo (Berger & Luckmann, 2004). Em resumo: distâncias são cada vez mais produtos sociais, e as empresas já não operam considerando a existência de fronteiras, mas essas fronteiras que não existem para o capital existem para os seres humanos, que, por sua vez, encontram barreiras culturais difíceis de serem gerenciadas pela subjetividade existente nos processos de socialização e ressocialização dos indivíduos. A complexidade toma conta do processo de expatriação. As empresas, então, buscam meios de facilitar a gestão por intermédio da transferência da responsabilidade pela adaptação aos empregados: assim, torna-se claro o porquê de essa abertura à mudança e socialização se tornarem competências cada vez mais desejadas pelas organizações. A capacidade de retirar o indivíduo do seu habitat e incluí-lo em novas realidades em função da necessidade organizacional é um atributo cada vez mais valorizado em um universo de negócios sem fronteiras, onde a eficiência operacional supera qualquer necessidade individual de familiarização com os espaços, indivíduos e com os valores experimentados. Essa é uma das principais razões das mudanças dos perfis profissionais considerados “de maior sucesso no mercado”, aqueles ditados, hegemonicamente, pelas organizações com finalidade econômica (Bauman, 1999). Do ponto de vista do expatriado, é importante lembrar que se trata, antes de um profissional a ser reconhecido e admirado por suas experiências internacionais, de um ser humano dotado de carências, de significados e de cultura. A experiência em um país distinto do seu pode ser algo permeado por confusão, por estranhamento e, muitas vezes, por rejeição (Joly, 1996). Isso ocorre porque os antigos esquemas de referência, e os significados obtidos tanto na socialização primária quanto ao longo da socialização secundária no contexto anterior, podem ser dissonantes da nova realidade experimentada e, muitas vezes, precisam ser reinventados para que se possa adaptar a novos acontecimentos e fatos. A abertura por parte do expatriado, nesse sentido, se faz mais importante do que a abertura daqueles que o rodeiam, porque o esquema de conhecimentos e sentidos vivenciados pelo expatriado são os únicos afetados pela mudança de contexto; dificilmente ele se fará entender sem exprimir, de alguma forma, como constrói seu pensamento e suas ideias e por que as suas perspectivas devem prevalecer sobre as existentes. Isso se dá no cotidiano, na realidade experimentada, no lugar onde o indivíduo interage, sofre e se comunica com o outro (Weick, 1995). A construção do cotidiano é o alicerce do processo de aprendizagem organizacional, tanto para o expatriado quanto para os empregados locais. Entretanto, há um problema: ainda subsiste a noção de superioridade da cultura dominante expressa pelo vencedor, pelo explorador, por aquele que desbravou o mundo e estabeleceu a sua história de sucesso vencendo fronteiras e submetendo outras culturas para sobreviver (Freitas, 2008). Essa noção de cultura superior é notável no caso em análise, quando se considera que os empregados brasileiros enxergam os imigrantes dinamarqueses como pessoas privilegiadas, ou de alguma forma superiores em habilidades gerenciais, o que não é, de fato, verdade, principalmente quando se analisam as dinâmicas de resistência locais. Essa dimensão fica evidente no caso, pois são perceptíveis dois movimentos distintos: um no sentido de exercício de poder e controle da matriz em relação à filial mediante o envio de empregados culturalmente adestrados, e outro de resistência dos trabalhadores locais que percebem a realidade sob outra perspectiva – completamente adversa à da expatriada. Podemos, então, concluir que a problemática concernente ao problema surge do fato de que a expatriação pode falhar no aspecto referente à congruência de crenças e sentidos, que residem no

________________________________________________________________________________________________

GVcasos | São Paulo | V. 5 | n. 2 | jul-dez 2015

www.fgv.br/gvcasos

UM ESTRANHO NO NINHO OU UM NINHO ESTRANHO? UM CASO DE SOCIALIZAÇÃO NO PROCESSO DE EXPATRIAÇÃO

4

Felipe Fróes Couto, Luiz Alex Silva Saraiva

aspecto cultural. Trata-se de uma dinâmica de grande complexidade, sujeita à ocorrência de efeitos não esperados. O presente caso trata uma situação na qual fica evidente que as culturas existentes dentro de uma organização interagem de várias formas, criando situações de resistência à mudança que se mostram de difícil solução. Contudo, encontramos na noção de formação de sentido a solução subjetiva de problemas objetivos. Dessa forma, torna-se aparente que o esforço faz muito mais sentido na noção de cooperação para a construção de sentidos comuns do que de na criação de uma cultura comum, uniforme em nível global. A mudança, para se tornar legítima, portanto, deve ser aceita pela organização em nível individual, muito mais pelo enaltecimento de crenças em comum do que pela imposição de métodos e estruturas preexistentes de trabalho. A melhor forma de diminuição da tensão é no esforço da ação conjunta, na via de mão dupla, na inclusão local e na transparência de propósitos. Ora, quem disse que o caso deve ser tomado a partir de um painel de adaptação à cultura global? E a divergência cultural? Como gerenciar e reduzir outras possíveis fontes de tensão entre a matriz e as filiais? O dilema nos remete ainda a outra pergunta: cultura e interesses são gerenciáveis? As indicações trazidas ao longo do texto tratam da complexidade do tema, que não pode ser visto de maneira reducionista ou apenas por meio de teorias prescritivas do comportamento humano. Referências

Bauman, Z. (1999). Globalização: As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Berger, P. L., & Luckmann, T. (2004). A construção social da realidade: Tratado de sociologia do conhecimento (24a ed.). Petrópolis: Vozes.

Bueno, J. M. (2010). Brasileiros e estrangeiros na construção de um cotidiano organizacional intercultural. Tese de doutorado, Administração de Empresas, Escola de Administração de Empresas, Fundação Getulio Vargas, São Paulo.

Freitas, M. E. de. (2005). Executivos brasileiros expatriados na França: Uma contribuição aos estudos organizacionais interculturais. Relatório apresentado na banca para professor titular do programa de pós-graduação em Administração de Empresas, Fundação Getulio Vargas, São Paulo. Freitas, M. E. de. (2006). Identidades e interculturalidade: O expatriado profissional é sempre um estrangeiro. Anais do Colóquio Internacional sobre o Poder Local, Salvador, 10.

Freitas, M. E. de. (2008, abril-junho). O imperativo intercultural na vida e na gestão contemporânea. Revista Organizações & Sociedade, 15(45), 79–89.

Joly, A. (1996). Alteridade: Ser executivo no exterior. In J. F. Chanlat (Coord.). O indivíduo na organização: Dimensões esquecidas (Vol. 1). São Paulo: Atlas. Sainsaulieu, R. (1987). Sociologie de l'organization et de l'entreprise. Paris: Presse de Fondation Nationale des Sciences Politiques/Dalloz. Weick, K. E. (1995). Sensemaking in organizations. London: Sage.

________________________________________________________________________________________________

GVcasos | São Paulo | V. 5 | n. 2 | jul-dez 2015

www.fgv.br/gvcasos

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.