Notas esparsas sobre o contágio

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NOTAS ESPARSAS SOBRE O CONTÁGIO Eduardo Silveira1 Isto se constitui enquanto um diário corroído por precariedades. Diário que oscila levemente entre medo, incompreensão e excitação. Há algo de sombrio nele. Como também há confusão, indeterminação e leveza. Resistência e desejo. É também um diário que vacila convicto entre ficção e relato pessoal impreciso. Todas essas ambiguidades e contradições insinuam-se através de notas entrecortadas que materializam as páginas abaixo. Cada uma das notas apresenta uma narrativa construída a partir de três principais fontes: O teatro e a peste, texto de Antonin Artaud; O Mez da Grippe, livro-dispositivo de Valêncio Xavier e relatos pessoais descritivos de alguns momentos durante o processo de formação com o palhaço. Algumas dessas notas são mais longas, outras mais curtas, algumas são somente fragmentos. Rasgos. Suspiros de alguma possível significação. Outras são imagens que brincam com o olhar e constituem um oceano de possíveis leituras. Devaneios. Febres intermitentes. Essa diferença constitutiva não impede que tenham elas elementos em comum. O primeiro deles diz respeito à sua construção múltipla e aberta, que em conjunto acaba por constituir aquilo que Barthes chama de escritura: “uma galáxia de significantes, não uma estrutura de significados; não tem início; é reversível, nela penetramos por diversas entradas, sem que nenhuma possa ser considerada principal” (BARTHES, 1992, p.39). Disso se desprende um segundo elemento comum entre as notas aqui expostas. Todas elas trazem, como urgência central, o contágio. A potência do contágio. Seja ele o contágio avassalador entre corpos biológicos, como nas epidemias. Ou o contágio que toma o corpo artístico em um contínuo processo de poiesis. Ou ainda o contágio que se extravasa pelo corpo social e político. Deleuze e Guattari (1997) se referem aos processos de contágio, como aqueles que determinam um significativo devir e colocam em jogo termos inteiramente heterogêneos. Sem filiação possível e determinada. Enfatizando o devir-animal, dizem eles se tratar de processos que envolvem seres distintos. Multiplicidades sem uma filiação hereditária possível, que se Graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Paraná (2006) e Mestre em Educação pela mesma instituição. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Biologia no Instituto Federal de Santa Catarina (IF-SC). Contato: [email protected]

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combinam em uma dinâmica inter-reino, forçando a natureza a proceder contra si mesma, contra o ciclo permanente que define a reprodução da vida (reprodução filiativa em que intervém a dualidade macho-fêmea), mas que ainda assim também se constitui enquanto natureza. Núpcias anti-natureza. Desejo zoofitoprotofílico. Um homem e uma bactéria e um vírus e um animal e uma planta e um fungo e uma molécula e um objeto e. Agenciamentos operando constantes devires em co-funcionamento. Macro ou microdevires. Invisíveis, avassaladores, angustiosos. Não há hierarquia entre as multiplicidades que se contagiam. Perturbação rizomática vibrando em propagação exponencial e agindo em corpos e gestos. Assim se organiza esse pequeno diário: escritura de eventos contagiosos que se tocam transgressivamente em audaciosa proliferação. Cada uma das notas apresentadas propõe um possível encontro com o movimento próprio do contágio através dos corpos em devir-outro. [Nota número um] É difícil permanecer indiferente às descrições devastadoras e aterrorizantes. Aqueles anos devem ter sido difíceis... A peste negra2 assolava cidades inteiras pela Europa, dizimando ferozmente sua população. Não por acaso, eu soube da história sobre o vice-rei da cidade de Cagliari, na Sardenha. Diz-se que em 1720 ele impediu um navio de atracar em seu porto após ter um sonho premonitório em que via aquele navio trazendo a peste e a destruição para a cidade. Não me surpreenderia que tivesse havido uma comunicação entre o vice-rei e a peste (ARTAUD, 2006). Troca de emanações. Uma comunicação em devir, extremamente sutil, prevendo uma possibilidade de contágio. Comunicação entre o representante político e simbólico daquela cidade, o humano e a representante legítima da matilha que compunha a peste, Yersinia pestis, a quem me refiro carinhosamente como Yersin. Dois símbolos. A fronteira entre saúde e doença. Seria interessante acompanhar tal diálogo. Certamente deve ter iniciado como iniciam os diálogos entre adversários de guerra: com uma fria troca de impressões, perguntas sobre os exércitos, conselhos... Na sequência do diálogo cada parte desfiaria suas ameaças e desdenharia do adversário. Ao final, cada um retorna ao seu exército. A diferença é que o vice-rei retorna aterrorizado, pois mesmo sem qualquer indício de que a peste estivesse presente no navio, bastou a ele o medo do contágio para fazê-lo agir, A peste bubônica, causada pela bactéria Yersinia pestis foi responsável por uma das mais terríveis epidemias da história da humanidade, ocorrida durante a Idade Média e dizimando 30% da população da Europa. A doença é transmitida ao ser humano pela pulga através do rato-preto.

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negando ao navio permissão para que atracasse no porto da cidade. Já Yersin, obscuridade plena, retorna com um desdenhoso sorriso no canto da boca, pois sabe da potência do contágio que ali representava e não se abateu com a negativa para que os corpos contagiados aportassem naquela cidade. Assim, seguiu seu rumo até Marselha, onde o navio aportou possibilitando a Yersin que continuasse com sua proliferação potente e avassaladora. Eis que penso nos contagiados. Naqueles corpos onde Yersin conseguiu proliferar estabelecendo a estranha simbiose humano–bactéria. Eles tornam-se seres degradados. Passam a constituir uma minoria. Seus corpos deixam de ser humanos para tornarem-se o híbrido negro. Híbrido corpo humano–Yersin. Esse heterogêneo que é atravessado por um devir-animal degradante. Porém, é inegável perceber também a potência que esses corpos expressam. Potência que age socialmente ocasionando fissuras e desvios em normas, padrões de funcionamento e regras sociais. Corpos que fundam um espaço político minoritário, anômico. Yersin é grande estrategista. Conhece as tibiezas do ser humano: frágil, contraditório, povoado de precariedades. [Nota número dois] Aquele primeiro encontro com o palhaço3 foi intenso e intensivo. Ele aconteceu entre julho e agosto de 2008, através do ator, diretor e fundador da Escola do Ator Cômico, Mauro Zanatta4. Ele ministraria uma oficina intensiva chamada O Universo do Clown, cujo pré-requisito era já ter tido alguma experiência teatral. Seriam duas semanas, de segunda à sexta-feira, das dezenove às vinte e duas horas. A princípio, o objetivo ao participar da oficina, era conhecer o trabalho de Mauro Zanatta. O interesse nem era tanto o palhaço, pois pouco o conhecia enquanto expressão teatral. Não recordo da presença marcante de nenhum palhaço em minha vida. Talvez tenha visto alguns durante a infância, nos poucos espetáculos de circo que tive a oportunidade de assistir. É possível que minhas lembranças mais remotas estejam relacionadas aos homens vestidos de palhaço, com roupas caricaturais, maquiagens desbotadas e escorridas pelo suor abundante e um tosco nariz vermelho Embora etimologicamente e historicamente existam diferenças entre os termos “clown” e “palhaço”, aqui não levarei em conta essa discussão. Dessa forma, os dois termos são utilizados como sinônimos para designar a mesma coisa. 4 Cf. http://atorcomico.com.br/ 3

que ficavam vendendo balões e doces na entrada do Parque Barigui em Curitiba. Mas essas lembranças não são em nada estimulantes. Pelo contrário, mostram uma condição degradada e até mesmo assustadora. Às vezes chegando ao parque lotado em um domingo de sol, esperávamos durante alguns minutos na fila de carros que se projetava para entrar no estacionamento e eles vinham, de janela em janela, oferecendo aqueles balões sem graça e alguns doces. Aquela situação entristecia, pois não se percebia brincadeira e magia. Somente alguns homens utilizando-se de roupas extravagantes, coloridas e maquiagens mal feitas tentando desesperadamente ganhar algum dinheiro. Ao longe, eles até pareciam ser portadores de diversão, brincadeiras e alegria, mas quando se aproximavam da janela do carro, entravam em uma negociação pela venda dos souvenirs que fazia com que toda a magia desaparecesse. Restando somente um homem, de rosto suado, vestido de forma patética, fala séria e olhos apagados. Foi assim que sem nenhuma grande pretensão em relação ao palhaço, muito mais motivado em conhecer o trabalho de Mauro Zanatta, me inscrevi na oficina. Porém, contra todas as expectativas ela se mostrou como a experiência mais aterrorizante que já tive em relação ao teatro. Nunca poderia imaginar que o meu primeiro encontro com o palhaço seria tão avassalador. Embora já tivesse alguma experiência teatral, a base do curso – a improvisação teatral –, era para mim novidade. Quase todas as propostas constituíam-se em exercícios de improvisação. Porém, esses exercícios demandavam uma entrega desconhecida que ia além da representação de algo. Ela se relacionava com princípios muito mais profundos: a escuta, a entrega ao presente, o risco, a aceitação do jogo, a atenção às sensações corporais e ao espaço... Já no primeiro dia de oficina, Mauro propôs um exercício que se constituía em sair sozinho detrás de uma cortina vermelha, frente a uma plateia formada pelos outros integrantes do grupo que realizavam a oficina. Um após o outro, a proposta era: aguardar o sinal definido por Mauro pela batida de um cajado de madeira no chão, sair detrás da cortina e improvisar uma cena a partir da seguinte questão: Quem sou, o que faço. Entrei em pânico! Sair detrás de uma cortina, sozinho, de frente para uma plateia desconhecida, para responder a uma questão existencial que me deixava em pleno vazio! Meu corpo demonstrava os sintomas do pânico através do coração acelerado, da boca seca, do estômago e dos intestinos que pareciam serpentear em minhas entranhas e dos membros que insistiam em tremer descontroladamente.

[Nota número três] Versa sobre a explicação da escolha Yersin como apelido carinhoso para Yersinia pestis. A terminação –ia de Yersinia, naturalmente remete tal nome a um gênero determinado: o feminino. Porém, fato inegável, Yersin escapa de qualquer dualidade de gênero. É feminino e masculino e todas as nuances existentes entre os dois

extremos

dicotômicos

que

repousam

pretensamente

definitivos.

Não

hierarquizável, não dicotomizável. [Nota número quatro] Inevitável.

O

contágio

acaba

por

constituir

potentes

minoridades

monstruosas. “Um tipo – ou um indivíduo – nada mais é do que uma estabilização, um fechamento momentâneo da infinita monstruosidade que cada força guarda em si mesma e em suas relações com outras forças. A monstruosidade assim definida não é uma exceção do indivíduo, mas sua própria natureza” (LAZZARATO, 2006, p.57). Monstruosidades

menores.

Grupamentos

anômicos,

oprimidos,

revoltados.

Minoridades moleculares que escapam à força centralizadora do Estado, dos lugarescomuns, dos espaços definidos e estáticos. [Nota número cinco] Aceitar a proposta: contágio e contato em um movimento respiratório: inspirar, expirar....

[Nota número seis] Figura 1. O mez da grippe5 As imagens presentes no texto são trechos editados e adaptados do livro, O Mez da grippe, de Valêncio Xavier. O livro é um grande dispositivo em que Valêncio brinca com ficção e realidade através de fragmentos, imagens, textos e recortes que tratam do tumultuoso fim da Primeira Guerra Mundial em 1918, da grande Pandemia causada pela Gripe Espanhola no mesmo ano e de eventos cotidianos e burgueses da cidade de Curitiba perpassada por esses acontecimentos. Trata-se de um texto retalhado, texto-retalho combinando textos-trapos, imagens-trapos. Segundo Capela (2014, p.234): “Um material

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[Nota número sete] Eis que ela surge ao longe! Bailando com minúsculas castanholas adornadas por caveirinhas sorridentes vejo-a chegando com alarde e lânguida sensualidade. É ela sim! É ela, La Hespanhola!!! [Nota número oito] Quando não havia mais como evitar fui para trás da cortina. Não consigo lembrar exatamente o que fiz. Sem perceber, nem mesmo havia esperado o sinal da batida do cajado de Mauro Zanatta no chão, indicando que a cena deveria iniciar. Entrei antes. Ele interveio, dizendo que havia entrado antes e pedindo para que recomeçasse. Na segunda vez já consegui ouvir o sinal indicando que eu deveria entrar, mas não conseguia dar continuidade a nenhuma das ideias que meus pensamentos propunham quando em frente à plateia. Fracassei. Tentei mais algumas vezes, mas não consegui. Talvez pela primeira vez na vida eu tenha fracassado abertamente. Todos perceberam meu fracasso, inclusive eu. Alguns entenderam o motivo de meu fracasso, inclusive Mauro. Eu não entendi. Demoraria a entender, pois o entendimento daquele fracasso exigia que eu deixasse de tentar compreendê-lo pelo caminho da razão e do intelecto e passasse a tentar entendê-lo pela experiência do contágio no corpo. Terminei o exercício triste, envergonhado e com raiva daquele professor que havia me exposto daquela forma, covarde e fria. Através de um método violento e agressivo. Era somente o primeiro dia de curso e não tinha vontade nenhuma de continuar. Estava arrasado e desmotivado. Não me sentia acolhido. De importância nenhuma o palhaço rapidamente tinha ganhado ares de uma grande frustração. Porém, ao contrário do que pode parecer, existia algo naquela condição degradante de estar exposto, fracassado e pisoteado que me motivava. Não era uma motivação masoquista, mas uma vontade de saber o que significava aquilo. Para onde aquela oficina me levaria? O que era o palhaço e como descobri-lo em mim? Quem eu era quando estava em cena daquele jeito, fracassado e destruído? De que maneira encontrar pertencimento naquela situação? Terminei as longas duas semanas de curso em meio a esses questionamentos, decepções, fracassos e dificuldades. Sem entender o que tudo aquilo significava. Porém,

cuja variedade e poder de disseminação estão em sintonia com a profusão de tipos, linhas, machas e texturas. Resulta um conjunto pouco afeito a qualquer classificação taxonômica, incômodo pelo que mostra de incompletude e inacabamento, de heterogêneo e lacunar [...]”.

algo havia mudado. Ainda de forma confusa, múltipla e descentrada, o palhaço, através de Mauro Zanatta, havia me contagiado. [Nota número nove] Eu agora vejo um corpo humano que se escora no muro úmido e pedregoso da rua escura e fria. Por debaixo dos trapos que recobrem algumas partes suas, posso ver as inúmeras manchas avermelhadas que se espalham por sua pele. Através delas eu sei que ali, Yersin já se faz presente. Já se agenciou àquele ser. Semeou o contágio e agora, silenciosamente, prolifera-se pelo interior das carnes. Sei que logo fará com que essas manchas tornem-se escuras. A cabeça começará a ferver e então, o corpo será tomado por uma fadiga atroz. Seus fluídos, descontrolados, começarão a galopar através de seu corpo. O olho vermelho, incendiado e depois vítreo; a língua que sufoca, enorme e grossa, primeiro branca, depois vermelha e depois preta, como que carbonífera e rachada, tudo isso anunciando uma tempestade orgânica sem precedentes. No meio das manchas surgirão pontos mais ardentes, ao redor desses pontos a pele se ergue em pelotas como bolhas de ar sob a epiderme de uma lava, e essas bolhas são cercadas por círculos, o último dos quais, como um anel de Saturno ao redor do astro em plena incandescência, indica o limite extremo de um bubão. Através deles o organismo descarregará ou sua podridão interior ou, conforme o caso, sua vida (ARTAUD, 2006). Estranha relação essa... Yersin prolifera-se degradando. Contagia destruindo de forma avassaladora. Corpos. Yersin sabe que tem a capacidade de promover uma mudança substancial nos quadros psíquico, político e social de uma cidade, além de proliferar-se pelos corpos biológicos. Alastrando-se, contagiando sem limites previsíveis e ameaçando a ordem pública com seus sintomas e estabelecendo um regime caótico. Impedindo qualquer discernimento e levando a uma ação impensável, mas plena de sentido dentro da situação que se expressa. Nessa situação é possível perceber como o contágio psíquico e social é também pleno de urgência assim como o contágio biológico causado por Yersin. A velocidade de propagação dela, transmitindo-se de corpo a corpo e levandoos ao colapso, parece ter seu correlato na velocidade de propagação do contágio social que se estabelece não só na relação entre os corpos enquanto entidades biológicas, como também na relação subjetiva entre eles. Aos poucos esse contágio social vai ganhando força, pois se biologicamente Yersin causa uma série de sintomas e consequências orgânicas definidas e constantes, sua atuação social e psíquica é muito

mais plural, podendo ganhar múltiplas variações de acordo com as experiências individuais, vividas e imaginárias, de cada um que é por ela afetado. “Os últimos vivos se exasperam: o filho, até então submisso e virtuoso, mata o pai; o casto sodomiza seus parentes. O libertino torna-se puro. O avarento joga seu ouro aos punhados pela janela...” (ARTAUD, 2006, p.20). [Nota número dez] [...] O palhaço não tem rótulos, ele não é necessariamente ‘puro’, anjo ou demônio, masculino ou feminino [...]; não podemos querer enquadrar o palhaço. Ele tem a mesma capacidade de ser e se transformar que a criança possui sem, no entanto, ser infantilóide. Ele é tudo e nada. O tudo, que num momento de pausa para o olhar o público [...], vira nada (PUCETTI, 2009, p.121).

[Nota número onze] Apareceu em 1918, foi chamada de gripe e aos poucos ganhou uma denominação mais específica: Gripe Espanhola. Não porque tenha surgido na Espanha, mas sim porque o país foi o primeiro a admitir abertamente o surto e alarmar verdadeiramente o planeta. Somente lá, oito milhões de pessoas ficaram doentes (IAMARINO, 2009). O contágio surgia silenciosamente. La Hespanhola começava a mexer suas castanholas e iniciava uma forte dor de cabeça. Os olhos começavam a arder. Até aí os sintomas eram de uma gripe comum, sem motivos para alarde. Eis que vinham os calafrios e você ia para a cama, enrolado em cobertores. Mas não havia nem manta nem cobertor que conseguisse aquecê-lo. Você adormecia sem repousar, delirando e tendo pesadelos à medida que a febre aumentava. E quando você começava a despertar, entrando num estado de semiconsciência, seus músculos doíam e sua cabeça latejava. Isso podia durar alguns dias, ou algumas horas, mas nada parecia conseguir deter o progresso da doença. Seu rosto assumia um tom castanho arroxeado escuro. Você começava a tossir sangue. Seus pés ficavam pretos. Por último, quando o fim já estava próximo, você sentia uma terrível falta de ar. Uma saliva tingida de sangue saía de sua boca. Seus pulmões enchiam-se de um líquido avermelhado (KOLATA, 2002). Enquanto uma gripe comum mata menos de 0,1% dos doentes, essa matava até 2,5%. A soma de mortos no planeta pode ter chegado a cem milhões de pessoas. Faltavam caixões para enterrar as pessoas, e em muitos lugares os velórios eram limitados a

minutos, tamanha a procura. Ainda existem muitos mistérios e indefinições em relação à Gripe Espanhola. Por exemplo, até hoje não se sabe como a doença se espalhou tão rapidamente – em questão de dois meses o mundo inteiro foi atingido – em uma época em que as viagens ainda não eram tão globalizadas, nem tão fáceis – e tão rapidamente como surgiu, ela desapareceu. Deixando somente o som enigmático e contagiante de suas pequenas castanholas adornadas por caveiras. [Nota número doze] Agenciamentos de contágio por onde se estabelece o devir-animal do homem. Uniões heterogêneas. Horizontais. Matilhas. Bandos anômicos. Proliferação ruidosa e caótica. Sem início nem fim. Eis que, momentaneamente, uma figura se destaca do bando. Nisso, Deleuze e Guattari (1997) me cutucam e, indicando convictamente a figura destacada, sussurram em uníssono: “Olha, é o anômalo... É com ele que se estabelece o pacto, a aliança... A aliança ou o pacto são a forma de expressão, para uma infecção ou uma epidemia que são forma de conteúdo. O anômalo não é nem indivíduo nem espécie, ele abriga apenas afectos, não comporta nem sentimentos familiares ou subjetivados, nem características específicas ou significativas. Tanto as ternuras quanto as classificações humanas lhe são estrangeiras. É algo que transborda. Fervilhante, espumante, estendendo-se como uma doença infecciosa, esse horror sem nome”. Ouço atentamente e logo percebo: Yersin... La Hespanhola... O palhaço... São anômalos! É com eles, através deles que se estabelece o pacto para que o contágio se dissemine pelos corpos, avassalador! Vejo Deleuze e Guattari (1997) anuindo com o semblante sério, e complementando: “o anômalo é um fenômeno de borda. Não é um centro, mas é a linha que envolve ou é a extrema dimensão em função da qual se pode contar as outras, todas aquelas que constituem a matilha em tal momento. [...] Ele não só bordeja cada multiplicidade cuja estabilidade temporária ou local ele determina, com a dimensão máxima provisória; ele não só é a condição da aliança necessária ao devir; como conduz as transformações de devir ou as passagens de multiplicidades cada vez mais longe na linha de fuga”. [Nota número treze] Yersinia pestis, audaz Yersin.... Tu és muito perspicaz! Agora percebo como conclamaste para sua guerra animais muito característicos! São todos animais de

matilha. Animais que fazem multiplicidade e devir (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p.22). Animais bando. Escolheu-os na mais bem pensada estratégia de proliferação. Ah, Yersin.... Conclamaste os ratos e as pulgas e através deles é que tens saltado como uma acrobata, de corpo em corpo, de espécie em espécie. Já não há uma distinção, devir animal: bactéria-pulga-rato-humano. Todos um só no contágio que se extravasa e flui como um rio caudaloso de águas revoltas. [Nota número quatorze]

[...] O estado do pestífero que morre sem destruição da matéria, tendo em si todos os estigmas de um mal absoluto e quase abstrato, é idêntico ao estado do ator integralmente penetrado e transtornado por seus sentimentos, sem nenhum proveito para a realidade. Tudo no aspecto físico do ator, assim como no do pestífero, mostra que a vida reagiu ao paroxismo e, no entanto, nada aconteceu. Entre o pestífero que corre gritando em busca de suas imagens e o ator que persegue sua sensibilidade; entre o vivo que se compõe das personagens que em outras circunstâncias nunca teria pensado em imaginar, e que as realiza no meio de um público de cadáveres e de alienados delirantes, e o poeta que inventa personagens intempestivamente e as entrega a um público igualmente inerte ou delirante, há outras analogias que explicam as únicas verdade que importam e que põem a ação do teatro e a da peste no plano de uma verdadeira epidemia (ARTAUD, 2006, p.20-21 – grifo meu).

[Nota número quinze]

[Nota número dezesseis] Sim, devo afirmar que fui contagiado pelo palhaço. Sinto-o em meu corpo... Algo naquela traumática experiência na oficina com Mauro Zanatta havia tomado conta de mim e agora evoluía dubiamente em meu corpo. Inicialmente nem percebi. Por um lado eu havia terminado a oficina desiludido, mas não era só isso. Meu fracasso havia motivado uma busca. Havia uma potência naquela condição fracassada do palhaço que me cativara. E ressignificando agora essa sensação, Barthes (2003, p.16 – grifo meu) vem conversar comigo... Ele vem afirmar-me que: [...] o mundo submete toda empresa a uma alternativa: a do êxito ou do fracasso, da vitória ou da derrota. Professo outra lógica: sou simultaneamente e contraditoriamente feliz e infeliz: “ter êxito” ou “fracassar” têm para mim apenas sentidos contingentes, passageiros (o que não impede que meus pesares e meus desejos sejam violentos); o que me anima, de modo surdo e obstinado, não é tático: aceito e afirmo, fora do verdadeiro e do falso, [...]; vivo apartado de toda finalidade, vivo segundo o acaso [...]. Confrontado com a aventura (com o que me acontece), não saio nem vencedor nem vencido: sou trágico.

Passeando desequilibrado entre êxito e fracasso, vitória e derrota, na tragicidade cômica daquele fracasso eu passei a aproximar-me do palhaço. Assistia a espetáculos, lia e pesquisava sobre a história de grandes palhaços, mas ainda não havia entendido o que se passara naquele primeiro encontro. A experiência havia me colocado em crise. Eu queria aproximar-me daquele ser estranho que o palhaço simbolizava para mim, mas também sentia certa repulsa e medo. Eu ainda não identificara quem era o palhaço e lentamente o contágio do palhaço tomou conta de mim. Passou a germinar em meu corpo. Estabeleceu uma aliança em minhas entranhas

e constituiu uma multiplicidade em expansão através de minhas vísceras, desejos e olhares. Por vezes, em alguma ação cotidiana, eu tinha no meu corpo a visita do palhaço pelas memórias daquela primeira oficina. Eu ainda não era um palhaço, mas ele já circulava em meu sangue, parasitava meus tecidos, músculos e por vezes partículas suas vinham aconchegar-se também em meu cérebro. Ele começava a sussurrar sua existência em mim. [Nota número dezessete] E não seria em encontros contagiosos que o corpo entra em crise, desestabiliza-se, finca-se no presente e invade a zona da incerteza e criação? [Nota número dezoito]

[...] Leo [Léo Bassi, grande palhaço italiano] saiu pelo mundo com sua técnica e sua fonte insaciável de conhecimento. Apresentou-se nas ruas do Leste Europeu, América, África e Ásia. Observou faquires, encantadores de serpentes, hipnotizadores de praça pública, mágicos xamânicos. De cada um absorveu uma técnica e tirou um aprendizado para construir tudo que ele é hoje. É um filósofo e um estrategista capaz de elaborar teorias e pensamentos altamente sofisticados e transgressores, e um fenômeno de comunicação capaz de manipular a emoção das pessoas e de, literalmente, tocar o terror. Trocou o figurino de palhaço por um terno preto normal, com óculos de aro grosso e uma maleta tipo 007. Sem nenhuma maquiagem criou um personagem identificável em qualquer lugar do mundo. Pode ser confundido com um político, um empresário ou um investidor da bolsa de valores de Nova Iorque. Seja o que for, transmite a imagem de um homem com muito poder e ao mesmo tempo conservador. Porém, o que se revela por trás dessa faceta de homem sério, macho alfa, é um louco transgressor, quase um psicopata capaz de transpor limites e provocar reações como medo, frustração, nojo, susto e gargalhadas nervosas. Tudo isso apoiado num único princípio fundamental, que é o abandono total da dignidade diante do público em nome da exposição dos nossos Instintos Ocultos, nome que dá ao espetáculo que apresenta (LIBAR, 2008, p.173).

[Nota número dezenove] Resistência.

E não seria o contágio a propagação de redes de resistência? Redes que insistem em aprisionar a vida, o corpo e o pensamento. O contágio enquanto condição de liberação de uma vida minoritária, potente. [Nota número vinte: referências] ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução de Teixeira Coelho. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BARTHES, Roland. S/Z. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CAPELA, Carlos Eduardo Schmidt. A coisa, alguma, engripada. In: BORBA, Maria Salete (Org.). Contatos e Contágios: escrituras sobre Valêncio Xavier. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997. IAMARINO, Atila. O que foi a gripe espanhola em 1918. 7 mai. 2009. Disponível em: http://scienceblogs.com.br/rainha/2009/05/o_que_foi_a_gripe_espanhola_em/. Acesso em: 15 ago. 2014. KOLATA, Gina. Gripe: a história da pandemia de 1918. Tradução de Carlos A. Fonseca. São Paulo: Record, 2002. LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. LIBAR, Marcio. A nobre arte do palhaço. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2008. PUCCETTI, Ricardo. No caminho do palhaço. In: Revista do Lume. Campinas, nº7, p.119-124, jul/2009. XAVIER, Valêncio. O Mez da Grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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