NOTAS METODOLÓGICAS PARA A CONSTITUIÇÃO DO SENTIDO DE INDIVÍDUO-REFERENTE E O ESPELHAMENTO DO CONSUMO

June 4, 2017 | Autor: P. Bandeira de Melo | Categoria: Media Studies, Identity (Culture), Culture
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NOTAS METODOLÓGICAS PARA A CONSTITUIÇÃO DO SENTIDO DE INDIVÍDUO-REFERENTE E O ESPELHAMENTO DO CONSUMO Patricia Bandeira de Melo1 Resumo: O objetivo do artigo é discutir o referencial teórico-metodológico inicial para a elaboração do conceito de indivíduo-referente. A relevância conceitual emergiu em pesquisas empíricas em que se identificou uma lacuna explicativa acerca de modelos de inúmeras práticas sociais, em particular as do universo do consumo. A intenção é trazer as primeiras respostas para a pergunta: que princípios qualificam indivíduos situados socialmente em uma posição de destaque na mídia como referentes para outras pessoas, interferindo na formação de suas identidades, conduzindo-as a aquisição de bens, a modificação de hábitos, a alteração nos corpos e a mudanças nas formas de pensamento? Palavras-chave: indivíduo-referente, método, cultura de consumo, mídia. Introdução Em que medida é possível pensar em modelos de práticas de consumo que influenciam os indivíduos em seu estilo de vida, desde a forma de vestir até a forma de pensar? O artigo discute a elaboração sociológica do conceito de indivíduoreferente2, discutindo o referencial teórico-metodológico para a identificação e sistematização de seus princípios e suas relações com a cultura de consumo na modernidade. Tal questão tem como base de sustentação não apenas uma teoria das formas simbólicas, mas também se reflete em uma teoria das práticas, cujo diálogo traz subsídios necessários à interpretação da complexa relação entre percepção, apreciação e ação, tão cara às vertentes das teorias social e sociológica que se debruçam sobre o problema da ação. A intenção é de identificar os princípios que qualificam indivíduos situados socialmente em uma posição de destaque nas narrativas midiáticas como referentes para outros indivíduos, conduzindo-os a preferência de determinados tipos de bens, a modificação de hábitos, a alteração dos seus corpos e às possíveis mudanças nos estilos de pensamento acerca do mundo sociocultural no qual se encontram inseridos. 1

Fundação Joaquim Nabuco. E-mail: [email protected]. A ideia sobre indivíduo-referente emergiu durante a execução da pesquisa “Juventudes, consumo cultural e políticas públicas”, concluída em 2013, na Fundaj, sob a coordenação da socióloga Ana Hazin de Alencar. A partir desse estudo, inicia-se outra pesquisa, intitulada “Para uma Sistematização do Conceito de Indivíduo-referente”, e que se propõe à elaboração do conceito proposto. Agradeço a Rodrigo Vieira de Assis por sua revisão e apoio. 2

No universo de possíveis tendências conceituais, a discussão teórica empreende uma reflexão sobre concepções que relacionam a comunicação, o consumo e a ação para aproximação aos indivíduos que, pela visibilidade midiática, influenciam a audiência com vistas ora à assemelhação com o outro, ora à sua negação. A estes atores3 influentes é que chamo de indivíduos-referente. Para isso, a composição do conceito transita entre a abordagem da sociologia da cultura relativa à comunicação e ao consumo; os estudos de linguagem acerca da relação significante-significado; e elaboração da economia política acerca da dinâmica entre valor de uso e valor de troca dos sentidos inerentes à produção simbólica. Esses campos ladrilharam o caminho para entender a função da mídia na formação de identidades e nas práticas dos indivíduos. Nesse estudo, a mídia é entendida como o conjunto de narrativas jornalísticas, publicitárias e de entretenimento sobre o consumo e o uso de bens. A exposição aos meios de comunicação tem uma relevante função de interferir nas formas de ver e pensar acerca das coisas do mundo, operando tanto sobre a dimensão objetiva quanto subjetiva do ator. De um modo geral, os indivíduos são vulneráveis ao processo persuasivo das narrativas midiáticas porque suas posições são, muitas vezes, de observadores passivos de uma persistente publicidade que define comportamentos aceitáveis, condições de distinção social e elementos que se incorporam aos indivíduos, como se dessem sentido às suas identidades na estrutura social. Além disso, as representações midiáticas adquirem papel ativo no controle social, na estabilidade e na mudança, mostrando – nas narrativas jornalísticas, de telenovela, de filmes ou de entretenimento – as várias versões do indivíduo em busca de distinção: pelo carro, pelas roupas, pelo corpo, pelos objetos vinculados e constitutivos de uma forma determinada e tida como legítima de ser, na tentativa de aproximação aos indivíduos-referente. Verificou-se empiricamente a percepção que determinados atores passaram a ter daqueles a quem rotulo de indivíduos-referente, a ponto de se deixarem influenciar em vários aspectos de suas vidas. É verdade que o indivíduo é regularmente subestimado em sua capacidade de desentrançar as teias que o condicionam. Nesse sentido, é fundamental esclarecer que acredito na capacidade 3

Ator é utilizado aqui no sentido sociológico análogo àquele de indivíduo, que inclui e ao mesmo tempo vai além do sentido da ocupação profissional de pessoas especializadas na arte da interpretação teatral. O que não quer dizer que eles, os atores de televisão, teatro e cinema, também não sejam – pois muitas vezes são – indivíduos-referentes.

relativa de autodeterminação de cada um. Há uma teia que encadeia a percepção dos indivíduos acerca de experiências próprias ou mediadas. Essas experiências, porém, adentram as práticas dos atores, muitas vezes, sem que seja traduzível em discurso consciente, ou seja, sem que haja um vocabulário disponível que lhes permita afirmar: “eu vejo em X a referência para as roupas que compro, para a plástica que faço, para a decisão que tomo”. Como afirma Domingues (1999, p. 42), “em situações que são claramente mediadas pela linguagem, nosso conhecimento pode ir além e mais profundamente do que somos capazes de expressar linguisticamente”. No cerne da cultura de consumo, a construção do conceito de indivíduoreferente – atores de telenovela, autoridades econômicas e políticas, mulheres bonitas, homens elegantes – possibilita analisar o fato de que é a pessoa e não a coisa que se torna referência para o outro, embora esse indivíduo legitime as coisas que o qualificam como referente. É, pois, uma classificação de indivíduo, e não apenas das coisas, que nos interessa a partir da fundamentação do conceito que norteia toda a minha reflexão. Para o campo interdisciplinar já citado, o trabalho pretende contribuir para construir e ordenar um conceito que servirá como categoria analítica em pesquisas empíricas futuras que tenham a influência da mídia sobre o indivíduo como unidade de análise. A discussão parte da congruência teórica dentro do complexo relacional entre percepção (o consumo da mídia), apreciação (processo de identificação ou negação do significado) e ação (a busca pela assemelhação ou a negação pela diferenciação), na qual o indivíduo-referente é variável determinante. Para tanto, é preciso avançar na fundamentação teórica desse conceito. A pesquisa que constitui a elaboração do conceito pretende atender a quatro propósitos: i. identificar os princípios de funcionamento do indivíduo-referente, encadeando consistentemente as contribuições de vários autores relacionados ao tema; ii. ordenar os princípios de funcionamento do indivíduo-referente; iii. articular os princípios de funcionamento do indivíduo-referente no complexo relacional da cultura de consumo na modernidade. Nesse artigo, faço uma discussão preliminar, concentrando-me nos primeiros aspectos teórico-metodológicos do estudo em andamento, sobretudo no que tange ao primeiro propósito já citado. Desse modo, atenho-me a apresentar o caminho metodológico escolhido e as questões embrionárias que já emergiram na pesquisa para a constituição de um

conceito substantivo, e não apenas descritivo, do que chamo indivíduo-referente. Os autores mobilizados não são estudados por si mesmos, mas, para além de conflitos teórico-metodológicos entre suas obras, pelos contributos que conduzem à constituição metodológica dos princípios estruturantes do conceito proposto. A lógica teórica e conceituação em ciências sociais Em sua reflexão metodológica acerca da lógica de constituição da teoria em ciências sociais, Alexander (1991) defende sua posição neofuncionalista como sendo uma abertura da teoria funcionalista ao tema do conflito, antes posto em suspenso por essa tradição. O seu convite desloca o debate acerca dos extremos indivíduo-estrutura, dando ao pesquisador o aval para pensar em interfaces que conectem os dois lados da polaridade. Logo, não é preciso escolher uma direção a partir de uma bússola teórica: é fundamental refletir que a construção de um conceito não deve redundar na negação de outras construções conceituais. Em sua argumentação, Alexander (1991) destaca a importância de uma teoria que desenvolva uma lógica teórica tão importante quanto uma lógica empírica. Com base na sua perspectiva, o que emerge como conceito – o indivíduo-referente – advém da lógica empírica das mediações discursivas entre os meios de comunicação e os indivíduos. Na composição de um conceito substantivo, trazendo recheio ao seu contorno, é necessário elaborar o “irremediável caráter interpretativo e hermenêutico” da sociologia (ALEXANDER, 1991, p. 40), a partir do recurso aos estudos de linguagem e ao pós-estruturalismo. O indivíduo só pode ser entendido em função de sua incorporação a forças coletivas, ou seja, ele é coletivamente estruturado. A lógica teórica em sociologia requer um esforço em mostrar que teorias coletivistas podem teorizar acerca do condicionamento estrutural da ação e do indivíduo e, ao mesmo tempo, da agência individual como condicionante que dinamiza a estrutura. Metodologicamente, contudo, como identificar, a partir desse debate, os meandros do que chamo indivíduo-referente? Nesse momento, a parte descritiva pode ser sintetizada da seguinte maneira: em nível individual, a subjetividade de cada um determina as suas ações; em nível social, a consciência objetiva de classe ou das frações de classe é que determina o indivíduo. Pensando nisso, esse indivíduo-referente que age sobre o imaginário do indivíduo comum é um elemento estrutural que o interpela, mas é na sua ação e em suas práticas que de fato expressa ou não esse condicionamento.

Como Alexander (1991), embora eu reconheça o ambiente capitalista como força motriz da desigualdade e da alienação, acredito que esse determinismo econômico apaga a proeminência cultural que, tal como as condições materiais de existência, também opera sobre as mentes individuais e sobre a subjetividade coletivamente partilhada. O determinismo econômico, tão frequente nas abordagens econômicas e marxistas ortodoxas, conduz à redução da possibilidade de autonomia do indivíduo e ao esquecimento da força da estrutura cultural sobre as suas ações. Essa força cultural ajuda a explicar a dimensão emocional ou afetiva das ações humanas, em sentido que muitos teóricos dimensionam como da irracionalidade – aquela irracionalidade que, reduzida, parece afeita apenas às ações tidas como irrefletidas4. Aqui, essa ação fundada em sentimento não é periférica ou desimportante como quis fazer crer o projeto iluminista. Ela está embebida em mistificação e transcendência, porque imersa em um “[...] mundo que tem irremediavelmente uma dimensão mística” (ALEXANDER et al., 1993, p. 10). Por isso, inevitavelmente o estudo aqui apresentado ingressa na dimensão simbólica, sobretudo naquilo que o simbólico tem de inexato e ambíguo – ora o simbólico é estruturante, porque ordena a lógica para a apreensão do mundo, ora é estruturado, porque é a sociedade que define os códigos e signos pertinentes a cada significante social. Assim, o recheio que constitui o sentido de indivíduo-referente é um apanhado de símbolos e, como tal, é flexível, ambíguo, detentor de caráter emotivo e impulsionador (PENNA, 1992). Deste modo, o estudo de índices, significantes ou ícones segue a lógica teórica da sociologia cultural em seu mandamento de estudar códigos, narrativas e símbolos que perpassam e subscrevem a sociedade (ALEXANDER et al., 1993). Isso é um convite à imaginação social: estudar como as pessoas dão sentido às suas vidas, investindo em atitudes carregadas de sentimento para dar significado às suas posições sociais a partir da referência do outro – mas não qualquer outro, e sim aquele que se apresenta justificado midiaticamente como parâmetro a ser seguido para a obtenção de reconhecimento e distinção. A posição

da

mediação

midiática

na

sociedade

contemporânea

é

determinante sobre o sentimento coletivo acerca das coisas do mundo. Entretanto, a 4

Irrefletido não deve ser compreendido como pré-flexivo, acepção própria do pensamento bourdieusiano. Enquanto o irrefletido remete ao “feito sem pensar” que muitas vezes redunda em erro, o pré-reflexivo de Bourdieu remete à prática incorporada do indivíduo produzida pelo habitus, sendo o indivíduo uma “agência reflexiva e um corpo socializado pré-reflexivo” (ASSIS, 2015, p. 90).

influência dos meios de comunicação sobre os indivíduos não é suficiente nesse propósito, sendo necessário recorrer à dimensão dos sentidos, ou seja, dando substância ao conceito que trago à baila ao definir que existe, na estrutura cultural, ícones rotulados de indivíduo-referente. Por isso, o método escolhido é interpretativo e a comprensão dos sentimentos que impulsionam as ações são variáveis importantes e não supérfluas no interior das motivações das práticas humanas. Ainda que Alexander desabilite Bourdieu e seu conceito de habitus para dar luz ao seu procedimento metodológico, por considerar que o teórico francês desloca as experiências das emoções para o corpo e desvia a atenção do poder simbólico para os seus determinantes objetivos (ALEXANDER et al, 1993), discordo do sociólogo norte-americano no seguinte aspecto: acho que a ideia de habitus bourdieusiana contribui para a compreensão do indivíduo na estrutura social e a interpretação de suas práticas para dar sentido à sua existência e à sua posição diferencial em relação a outras posições estruturadas no mundo (BOURDIEU, 2008), ou seja, naquilo que o simbólico é estruturante e estruturado. Assim, teoricamente engajada nessa proposta metodológica, é fundamental adentrar as emoções que permeiam as ações sociais dos indivíduos que escolhem agir interessadamente – mesmo que muitas vezes não se deem conta daquilo que move suas intenções – para serem associados ao paradigma escolhido como referência de ação. Embora não considere necessário indicar qual a ponte metodológica entre Alexander e Bourdieu, posso basicamente assinalar que é na reflexividade que ambos entram em contato. A mídia tem o potencial tecnológico de promover compartilhamentos de sentido acerca das coisas do mundo. É na linguagem que os indivíduos compreendem a si e ao mundo em que vivem: as representações coletivas presentes nos discursos são mediações que aproximam o indivíduo à realidade, e a realidade passa a ser compreendida como um espaço de luta pela sua própria definição significativa, em que participam, de maneira latente, os especialistas da produção simbólica e os meios de comunicação modernos. As narrativas são formas de interpretação da experiência humana, e seu conteúdo possui um conjunto de referências que nos interpelam, e com as quais não seria possível ter contato se não fosse pela experiência mediada. Essa reflexividade discursiva constatada por Alexander pode ser traduzida na compreensão de Bourdieu de que o real é relacional, ou seja, que o sentido da realidade é construído num processo reflexivo de representações coletivas que, produzidas e medidas por

meios cujos interesses são diversos, podem tanto se confrontarem, causando rupturas e clivagens no simbólico, quanto se associarem de modo a fortalecer e legitimar determinado sentido da própria existência em uma estrutura social. Ambos trabalham com a perspectiva hermenêutica para explicar as precondições da vida social. Segundo Penna: Toda discussão sobre o lugar ou função dos níveis ideais (representação, simbólico) remete à sua relação com a realidade, questão de grande complexidade. É impossível “atingir um real social anterior à sua simbolização” (Ricoeur, 1980, p. 35), pois a materialidade não pode ser tomada em si mesma, devendo necessariamente passar pela subjetividade (ideias, representações, referenciais culturais) (PENNA, 1992, p. 59).

A chegada ao real ocorre através dos signos que lhe dão sentido. Do contrário, acessá-lo seria uma tarefa desprovida de significação, um amontoado de coisas sobre as quais não se pode falar ou refletir. Assim, é impossível compreender a dimensão ontológica do mundo sem ter como base de orientação uma epistemologia que preencha de sentido o próprio universo das coisas que se apresentam aos nossos olhos, às quais somente podem ser interpretadas por uma hermenêutica dos sistemas de classificação cultural. Essa construção de sentido é fruto da disputa simbólica da vida cotidiana, no intuito de impor, um grupo sobre o outro, o que as coisas são, quando na verdade não é o que são, mas como um grupo detentor de poder simbólico as representa (PENNA, 1992; GEERTZ, 2008). As pesquisas teóricas empiricamente informadas não têm um campo sistematizado, contando com uma espécie de diário de campo a partir de relatos coletados espontaneamente ao longo da pesquisa, em momentos em que os dados teóricos exigem dados empíricos. É característico de pesquisas qualitativas cuja significância não resida em replicação sistemática de um achado para que sejam validadas (PETERS, 2006). Essa perspectiva empiricamente orientada antecipa a construção de ferramentas metodológicas para as ciências sociais, ou, como diz Alexander et al. (1993), o que existe (ou deve existir) são investigações guiadas pela busca de tipificações empíricas de visões de mundo particulares, promessas de que se pode encontrar certos fenômenos que já estão lá, no mundo empírico.

A escolha do objeto Como um novo conceito não chega sem um contexto histórico que o prenuncie, é fundamental o recurso às contribuições teóricas que se configurem na etiologia do conceito de indivíduo-referente. A escolha do objeto de pesquisa não advém da neutralidade nem do pesquisador e nem tampouco da ciência. Ainda alinhada à sociologia pensada por Alexander et al. (1993), defendo que os objetos alçados à condição de investigação são selecionados de acordo com as escolhas teoricamente esquadrinhadas. Logo, a categoria na qual estou trabalhando para constituir de sentido, ou seja, formar seu conceito, decorre de uma decisão científica menos afeita à ciência positivista: é, antes, uma suposição decorrente da observação empírica que conduz a minha escolha metodológica, “empurrando a análise social para perto ou para longe da „cultura‟ e, de fato, determinando que tipo de interpretação da cultura acabará por prevalecer” (ALEXANDER et al, 1993, p. 10). Estou convencida de que o refinamento de conceitos pode contribuir para a análise da estrutura cultural. O mundo empírico requisita da teoria esse constante ir e vir entre os dois mundos, como um conferente numa sala de produção, que deve passear seus olhos atentos entre o modelo e a manufatura. Como desdobramento reflexivo de pesquisas empíricas, é possível pensar em muitos exemplos quando se ingressa no campo político, onde alguns indivíduos incorporam perfis arquetípicos coletivamente reconhecidos, a quem se ama ou se odeia. Saddam Hussein, Margareth Tacher, Getúlio Vargas e Lula são relacionados a símbolos compartilhados e emoções decorrentes que ilustram as narrativas midiáticas: medo, austeridade, populismo e carisma. Esses indivíduos emergem como signos de uma relação entre dois vetores: significante e significado. A mídia é, para inúmeros sociólogos, o lócus onde a realidade social é (interessadamente) documentada, sendo uma fonte de investigação, por suas narrativas estruturadas que empoderam as representações coletivas de forma hierarquizada. Reconhecimento e desempenho: o que o referente oferece ao outro Situo entre a ideia de estilização e estetização do consumo – tomando como referência a ideia de estilização da vida de Bourdieu (2008) e da noção de moda (que pressupõe o estilo e a estética) –, a construção embrionária do sentido do que chamo de indivíduo-referente. O conceito ajuda a tornar mais sofisticados os estudos sobre a mediação e a relação entre a percepção e as práticas do indivíduo em

diferentes universos. A título de exemplo, em pesquisas empíricas anteriores, alguns depoimentos indicam a moda como afirmação de identidade, conforme relato de vários indivíduos sobre a necessidade de “andar arrumadinho”, “usar roupa de marca”, “esconder a idade”, “ter coisas” que os coloque numa determinada posição social. Como diz Miceli (1972, p. 251), o ideal de imitação que se constrói conduz a um “[...] modo peculiar de exibir os símbolos do estilo de vida hegemônico”. O espaço midiático é o espaço da expressão discursiva da indústria cultural, capaz de expandir a dimensão imagética da relação com os bens (ROCHA, 2002), representando

e

atribuindo

sentido

aos

estilos

de

vida,

estruturados

hierarquicamente segundo a hierarquia social dos bens (BOURDIEU, 2008). Atua, portanto, como espaço de difusão e manutenção da própria estrutura de desigualdade das práticas cotidianas de consumo, legitimando certos grupos em detrimento de outros. Logo, esse espaço introduz nos receptores das narrativas midiáticas disposições, produtoras do habitus, marcadas pela busca de sucesso, prazer e reconhecimento. Entendo habitus como um “[...] principio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação [...] de tais práticas [...]” (BOURDIEU, 2008, p. 162). Logo, o habitus consiste num sistema de disposições duráveis que foram interiorizadas pelo indivíduo no processo de consumo midiático (percepções), seguido pelo processo de identificação ou negação (apreciações) e pela busca pela assemelhação ou a negação pela diferenciação (ações). É esse universo que se discute aqui. A ênfase nos constrangimentos e no repertório de ações possíveis, a partir do conceito de habitus, conduz a se pensar apenas numa gama de regularidades ou formas de comportamentos esperados. Assim, o habitus está no corpo, expresso de modo incorporado e também em percepções e ações. O mundo social está inscrito no indivíduo, dando a ele um esquema de possíveis ações para guiá-los em certas circunstâncias. Portanto, o habitus não se mostra em si mesmo, pois somente pode ser apreendido a partir da interpretação reflexiva dos seus produtos, ou seja, das práticas efetivamente propelidas pelos indivíduos no espaço social. Entretanto, ainda que a ênfase bourdieusiana confira ao habitus a ideia de disposições incorporadas e percepções expressas na forma de falar, pensar e sentir, o sociólogo também concede ao habitus a condição de disposição transponível. Bourdieu considera a possibilidade de transformação do habitus nas inúmeras

interações do indivíduo nos espaços sociais em que circula ou em circunstâncias em que é interpelado, como ocorre rotineiramente pelos discursos midiáticos. Nessa maleabilidade, o indivíduo pode incorporar atitudes daquele que elege como referente para as ações e formas de pensamento. Isso pode ser tomado como um problema de ordem social e política, por exemplo, via o debate acerca dos efeitos existenciais que os indivíduos produzidos em um contexto de desigualdade de acesso e de sucesso estão expostos. Se a ideologia do desempenho e a disciplina corporal e cognitiva constituem um consenso transclassista generalizado e aceito como definidores da aquisição da posição social e do salário consequente – ou seja, adquirida a qualificação, a consequência “natural” é a conquista de uma identidade respeitada e, por sua vez, o reconhecimento social, elevando, por conseguinte, a autoestima do indivíduo (SOUZA, 2012) – a “imitação do outro” pode ser uma via de acesso à distinção e à afirmação de um estilo de vida tido como legítimo de ser vivido. Se, por não deter as precondições para a qualificação, não se pode obter a posição e o salário pertinentes, será que a imitação do estilo de vida funciona para aproximar indivíduos no campo de disputas por elementos distintivos? Para quem não consegue “vencer na vida” ou vence de forma precária, o sentimento de fracasso talvez possa ser atenuado pelo reconhecimento do valor heurístico do desempenho das classes dominantes, que, nos casos em que é representada fragorosamente pela mídia, pode promover, na disputa no campo de forças, um sentido positivo de desejo de ser como o outro. Se, de um lado, como diz Souza (2012), a reação dos excluídos pode ser de ressentimento ou abertamente uma ação marginal, por outro, pode ser de reconhecimento e de imitação. Para que se entenda essa discussão, é importante compreender em que consiste a ideologia do desempenho: é o princípio dissimulado de reconhecimento do outro a partir de sua qualificação, posição social e salário, e que escamoteia o acesso diferenciado de classes ou frações de classe aos bens ou meios culturais disponíveis para a aquisição das condições de disputa no mercado. A categoria “trabalho”, segundo Souza (2012), emerge como a asseguradora de identidade, autoestima e reconhecimento social, algo que, na lógica ideológica do desempenho, somente é dado aos que vencem na vida por mérito próprio. Uma dona de casa, exemplifica Souza (2012), não detém uma identidade autônoma: fora do mercado de trabalho, ela não esta habilitada à disputa legítima de

sua própria identidade e reconhecimento social, o que, muito provavelmente, atinge a sua autoestima. Para resolver isso, ela tem acesso ao status social derivado de sua família ou de seu marido: “ela se torna, neste sentido, dependente de critérios adscritivos, já que no contexto meritocrático da „ideologia do desempenho‟ ela não possuiria valor autônomo” (SOUZA, 2012, p. 170). Essa adscrição é uma incorporação do outro que lhe emerge como referente. Por isso, o indivíduoreferente é uma categoria orientada à compreensão da produção social de hierarquias simbólicas, da legitimidade de especificidades culturais e do gosto. Notas finais, notas preliminares A orientação da sociedade capitalista para o estímulo ao consumo sem controle parece construir um ideal de felicidade essencialmente atrelado ao dinheiro e à posse de bens (ROCHA, 2011). Essa sociedade molda um arquétipo de indivíduo cujo foco é o processo de distinção social pelo consumo material e cultural e pela obtenção do prazer ilimitado. Em nome de posição social e estilo de vida como elementos de seu capital simbólico, o indivíduo, possuidor de um habitus, expressa em suas práticas os sentidos de pertencimento a um dado grupo social. A exposição à mídia tem uma relevante função de interferir nas formas de ver e pensar sobre as coisas do mundo, operando tanto sobre a dimensão objetiva quanto subjetiva do ator. Em geral, os indivíduos são vulneráveis ao processo persuasivo das narrativas midiáticas porque suas posições são, muitas vezes, de observadores lenientes de uma persistente publicidade que define comportamentos aceitáveis, condições de distinção social e elementos que se incorporam aos indivíduos, como se dessem sentido às suas identidades na estrutura social. Além disso, as representações midiáticas adquirem papel ativo no controle social, na estabilidade e na mudança, mostrando as várias versões do indivíduo em busca de distinção: pelo carro, pelas roupas, pelo corpo, pelos objetos vinculados a esse ser, na tentativa de aproximação aos indivíduos-referente (MELO; ASSIS, 2014). A mídia está na origem dessa cultura de consumo, indicando as condições de possibilidade de seu discurso ativar no indivíduo, como efeito inesperado de sentido, a busca por assemelhação a outros que julga distintos para exibir poder ou ocupar espaços de distinção. Algumas formas de consumo demarcam a que campo social se pertence, pois é um processo de distinção que se situa na modernidade, uma “epidemia” de consumo da qual parece difícil esquivar-se. O estilo de vida é

influenciado pelos meios de comunicação, que receitam como se vestir, o que ostentar para validar o seu lugar de fala (MELO, 2009). A ideia de agir coletivamente para “fazer parte” conduz a sentimentos como alegria, raiva, entusiasmo, desespero e paixões, que somente acontecem porque há uma conexão entre quem age e quem imita, estando o imitador na expectativa de atingir um patamar assemelhado de distinção no espaço social que ele acredita que o imitado – o indivíduo-referente – dispõe (WEBER, 1973). Em que pese a existência de conexões evidentes entre o ator social que se expressa midiaticamente e aquele que lhe atribui sentido como referente, um termo pode estar relacionado a contextos históricos diferentes, de modo que situações semelhantes, em momentos distintos da história, podem confundir a substância do conceito. É o que acontece, por exemplo, com conceitos como classe social, burguesia, ideologia. Por isso, o conceito de indivíduo-referente não pode ser apenas descrito, como até o momento foi possível fazer, mas é preciso ainda o procedimento técnico para que se realizem as seguintes etapas: a) delimitação da unidade conceitual; b) seleção de conceitos fundamentais relacionados temporal e espacialmente; c) substantivação, com a enunciação do significado do conceito; e d) especificação, com a descrição de suas dimensões, aspectos e possíveis ambiguidades (MENDONÇA, 1985). Nesse sentido, não há respostas, mas questões a serem esclarecidas a partir da proposição de Mendonça (1985) e Hegenberg (1974): i. O termo escolhido designa com clareza o indivíduo a ser representado?; ii. O conceito tem um único significado nas ciências sociais?; iii. O conceito pode ser aplicado numa perspectiva temporal ou espacial e manter o mesmo sentido? Há conceitos que competem entre si pela representação da coisa representada. Não é distinto com o conceito de indivíduo-referente, e o trabalho prossegue no intuito de identificar as definições em competição, as que vão contribuir para ajustar o conceito, dar-lhe substância e, enfim, submetê-lo de fato à crítica. Referências5: ALEXANDER, J.C. Sobre Theoretical Logic in Sociology: Objetivos Intelectuales y Contexto Histórico y Biográfico. Acta Sociologica, 1991, v. IV, n. 2-3. 5

Todas as citações diretas feitas a partir de textos originais em inglês ou espanhol foram traduzidas por mim.

______. et al. Risking Enchantment: Theory and Method in Cultural Studies. In: Culture: the Newsletter of the Sociology of Culture. 8, 1: 10-14, 1993. Disponível em: research.yale.edu/ccs/alexander/articles/. Acesso em: 10 ago. 2010. ASSIS, R. V. Para uma sociologia das visões de mundo: esboço de uma teoria praxiológica da cultura. Rio de Janeiro: IESP/UERJ, dissertação de mestrado, 2015. BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre: Zouk, 2008. DOMINGUES, J.M. Criatividade social, subjetividade coletiva e a modernidade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa,1999. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. HEGENBERG, L. Definições: termos teóricos e significado. São Paulo: Cultrix,1974. MENDONÇA, N.D. O uso dos conceitos. Bagé: FAT/FunBa, 1985. MELO, P.B. A epidemia do consumo, o hedonismo e o dinheiro como distinção: o que a mídia tem a ver com isso? Recife: Terça Psi, Conselho Regional de Psicologia, 2009. ______.; ASSIS, R.V. Mídia, consumo e crime na juventude: a construção de um traçado teórico. Revista Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 151-164, Jan./Abr., 2014. MICELI, S. A noite da madrinha. São Paulo: Perspectiva, 1972. PENNA, M. O que faz ser nordestino: Identidades sociais, interesses e o “escândalo” Erundina. São Paulo: Cortez,1992. PETERS, G. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu. Brasília: UnB, dissertação de mestrado, 2006. ROCHA, M.E.M. Pobreza e cultura de consumo em São Miguel dos Milagres. Maceió: EDUFAL, 2002. _______. Consumo traz felicidade? A publicidade no centro da cultura. Revista Comunicação, Mídia e Consumo. São Paulo, v.8, n.23, p.161-179, nov., 2011. SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia da política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. WEBER, M. Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 1973.

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