NOTAS SOBRE A LIBERDADE DO INDIVÍDUO PERANTE A DEMOCRACIA COMO O GOVERNO DE OUTRO

May 18, 2017 | Autor: Andrea Faggion | Categoria: Isaiah Berlin, Filosofía Política, John Finnis, Filosofia do Direito, Benjamin Constant, Democracia
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NOTAS SOBRE A LIBERDADE DO INDIVÍDUO PERANTE A DEMOCRACIA COMO O GOVERNO DE OUTRO ANDREA FAGGION PROFESSORA ASSOCIADA DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA. DOUTORA EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, COM PÓS-DOUTORADO PELA MESMA UNIVERSIDADE E PELA UNIVERSITY OF COLORADO AT BOULDER.

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as breves notas que se seguem, esboço um argumento em prol da legítima autoridade de um governo democrático, ao mesmo tempo em que sugiro que haveria boas razões para demandar-

mos que um governo democrático seja tão limitado quanto qualquer outra forma de governo.

AUTORIDADE POLÍTICA Antes de abordarmos diretamente algumas questões relativas à democracia, convém lidarmos com um ponto que antecede discussões sobre justificativa e legitimidade de qualquer forma de governo que venha a conquistar nossa preferência. John Finnis o formula muito bem: “Como qualquer pessoa humana pode ter autoridade para requerer que alguém escolha o que, de outro modo, não teria escolhido?” (FINNIS, 2011, p. 231). A mesma interrogação se coloca quando, em vez de uma pessoa, temos um grupo majoritário de pessoas requerendo que o grupo minoritário faça determinada escolha. O problema da autoridade, o chamemos assim, não é dissolvido pela simples ampliação do número de pessoas que exerce a autoridade. Por isso, antes de refletirmos sobre as razões para a autoridade ser exercida por um grupo que atenda o critério quantitativo de formar a maioria, temos que providenciar algumas razões para a existência da própria autoridade. Como se nota na formulação da questão posta acima, o conceito de autoridade remete-nos a uma razão suficiente para agirmos de dada maneira ou acreditarmos em algo, mesmo quando, sem a autoridade, não veríamos uma boa razão para agirmos ou acreditarmos assim, ou até mesmo quando, na ausência da autoridade, teríamos preferido agir ou acreditar de outra forma (FINNIS, 2011, pp. 233-234). Seguindo Joseph Raz, Finnis diz que tratamos algo ou alguém como tendo autoridade quando consideramos esse algo ou alguém como capaz de nos oferecer uma razão excludente: “Isto é, uma razão para julgar ou agir na ausência de razões compreendidas, ou [uma razão] para desconsiderar ao menos algumas razões que são compreendidas e relevantes, e, na ausência da razão excludente, bastariam para justificar que se procedesse de algum outro modo” (FINNIS, 2011, p. 234). Essa análise do conceito de autori-

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dade não é um preciosismo, mas um passo fundamental para que compreendamos qualquer argumento sobre autoridade política. É evidente que, no sentido delimitado acima, reconhecemos muitas autoridades. Pensemos, como exemplo, na autoridade que reconhecemos em um dicionário para nos dizer o significado ou a ortografia correta de dada palavra; ou ainda na autoridade que atribuímos a um mapamúndi para nos dizer a localização de certo país. O que está em questão neste trabalho, porém, é por que eu acataria os comandos de outra pessoa ou grupo de pessoas como razões para fazer ou deixar de fazer algo, quando não vejo outras boas razões para isso, ou como razões para desconsiderar algumas outras razões que, de fato, vejo para agir de modo contrário ao comandado. É disso que se trata no problema da autoridade, que agora qualificaremos como “política”. Infelizmente, não temos espaço para um aprofundamento da questão. Na verdade, esse problema – tão central para a filosofia política – já foi objeto de tratamento por tantas teorias diferentes ao longo da história que, seguramente, um livro todo poderia ser escrito apenas delineando algumas das principais respostas a ele. Naturalmente, muitas dessas respostas nos remetem aos vícios e imperfeições da natureza humana: o ser humano tem falhas cognitivas que o impedem de saber o que deveria ser feito e falhas volitivas que o impedem de procurar fazer o que ele sabe que deveria ser feito. Daí que, seguindo essa linha de raciocínio, surja a autoridade para guiar aqueles que não conseguem distinguir por si mesmos o que é certo e/ou para impor sanções contra aqueles que prefiram deixar de fazer o que é certo quando lhes é conveniente. Alguns argumentos mais complexos apontam também, por exemplo, para supostas falhas inerentes à própria coordenação racional, pois, na ausência da autoridade, segue o argumento, seria sempre mais vantajoso para o agente beneficiar-se de restrições autoimpostas pelos demais, que seguiriam regras, enquanto ele mesmo violaria essas regras. Trata-se do famoso problema do carona (ver, por exemplo, HART, 1955, p. 185). A posição de Finnis, porém, parece mais interessante, na medida em que sustenta que quanto maiores forem as habilidades e a inteligência dos membros de um grupo, e quanto mais eles estiverem compro-

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metidos com propósitos comuns, mais a autoridade pode ser requerida (FINNIS, 2011, p. 231). Tal alegação deixa de parecer paradoxal quando se pressupõe que a razoabilidade não determina sempre uma única saída para um problema de coordenação, de tal forma que um dilema pode se apresentar não apenas na escolha entre a realização de um fim egoísta e o desempenho de uma ação conforme uma norma de conduta aceita, mas também na escolha entre diferentes modos de realizarmos um fim e de concretizarmos diversos valores. Em outras palavras, uma posição como a de Finnis pressupõe não um relativismo ou um ceticismo, mas um pluralismo de valores, de tal forma que não se poderia afirmar que, diante de cada conflito humano, haveria sempre uma e apenas uma solução correta para esse conflito: “Para a maioria, ainda que não para todos esses problemas de coordenação, há, em cada caso, duas ou mais soluções disponíveis, razoáveis e apropriadas, nenhuma das quais, contudo, equivaleria a uma solução a menos que fosse adotada à exclusão das outras soluções disponíveis, razoáveis e apropriadas para esse problema” (FINNIS, 2011, p. 233).1 Em suma, em certas situações possíveis, diferentes pesos precisariam ser atribuídos a diferentes soluções disponíveis, razoáveis e apropriadas, fazendo uma prevalecer sobre outra, sendo que não haveria, inerentemente à própria razoabilidade prática, uma escala objetiva a determinar uma relação hierárquica entre essas diferentes alternativas. Assim sendo, nem sempre, mas em determinados casos, seja lá como o problema fosse resolvido, algum valor seria comprometido ou algum projeto razoável seria inviabilizado, sendo que nenhum desses valores concorrentes teria precedência natural sobre o outro. Daí que uma autoridade como fonte de razão excludente precisaria entrar em cena para fazer a balança pender para uma das alternativas, a fim de que o problema não restasse permanentemente insolúvel.

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Em uma linha de raciocínio similar, Robert Alexy, por exemplo, argumenta que o discurso legal institucionalizado, assim como a própria atividade legislativa, se faz necessário dada a fraqueza do discurso prático geral, fraqueza esta que consiste no fato de que as regras e formas dos procedimentos de decisão da racionalidade prática geral, “em muitos casos, não levam a resultado algum” e, nos casos em que levam a um resultado, “de modo algum garantem certeza conclusiva” (ALEXY, 1989, p. 287).

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Portanto, a justificativa da autoridade, nessa linha argumentativa que apenas esboçamos, depende da exclusão da tese segundo a qual todo e qualquer problema de coordenação seria suscetível a uma solução correta ou, ao menos, a uma solução objetivamente mais razoável e apropriada que as demais soluções disponíveis. Outro pressuposto, naturalmente, é que problemas de coordenação demandam uma solução de tal forma que a vida em sociedade seria menos frutífera ou até impossível se cada membro da sociedade tomasse suas próprias decisões, sem coordenar suas ações com os demais. Nesse cenário, a autoridade surge como substituto da virtualmente impossível unanimidade: “Precisa haver ou unanimidade ou autoridade. Não há outras possibilidades” (FINNIS, 2011, p. 232).

DEMOCRACIA E LIBERDADE Uma vez que, em prol da sequência do argumento, se admita que a autoridade política se faz necessária, deparamo-nos com o seguinte problema: autoridade de quem? Afinal, mesmo que uma sociedade humana, por mais benevolentes e virtuosos que sejamos, demande uma autoridade para excluir soluções concorrentes para problemas de coordenação, disso não se segue que algum ser humano ou grupo de seres humanos seja especialmente designado para exercer essa autoridade. No máximo, poderíamos derivar da resposta ao problema da autoridade política algumas exigências para que alguém, um grupo ou uma configuração de pessoas se qualificasse a exercer essa autoridade – por exemplo, a própria capacidade de solucionar problemas de coordenação. Em geral, considera-se que o fato de nenhum ser humano ou grupo de seres humanos ser natural e qualitativamente distinto dos demais em matéria de direito de exercer autoridade recomenda o princípio meramente quantitativo da maioria. Como diz John Rawls a esse respeito: “Se permitíssemos a regra da minoria, não haveria qualquer critério óbvio para selecionarmos qual minoria deveria decidir e a igualdade seria violada” (RAWLS, 1999, p. 313). Todavia, isso não significa que a autoridade deva ser exercida sem limites, mesmo quando exercida pela maioria. Podemos falar em dois

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tipos de limites à autoridade política. O primeiro é formal. Diz respeito aos procedimentos que devem ser observados para que a vontade da maioria conte como tal. Regras para convocação de assembleias e contagem de votos são exemplos de restrições formais a serem respeitadas para que decisões majoritárias sejam válidas. Já o segundo tipo de limite é material ou substancial, pois diz respeito a certas decisões que não poderiam ser tomadas pela autoridade política, mesmo que ela seguisse todas as regras e procedimentos formais cabíveis. Trata-se de uma área dentro da qual a autoridade política ficaria inabilitada. A ideia de um limite substancial à autoridade política remete-nos a um dos sentidos clássicos de liberdade política: a liberdade negativa. Quanto maior a área dentro da qual a autoridade política não está habilitada para decidir, maior a área em que a decisão cabe, exclusivamente, a cada indivíduo, sem interferência de outrem. A liberdade política positiva, por sua vez, seria a própria participação no governo: o autogoverno (ver BERLIN, 1969). Poderíamos, então, pensar que ganhos em liberdade positiva, ocasionados pela democracia, poderiam compensar perdas em liberdade negativa, de tal forma que, em governos democráticos, não faria muito sentido recomendarmos limites substanciais à autoridade política. No entanto, há boas razões para acreditarmos que sairíamos perdendo caso negociássemos assim com nossa liberdade negativa, permitindo que a autoridade política fosse exercida mesmo onde ela não fosse demonstrada como essencial para resolução de problemas de coordenação. Algumas dessas boas razões podem ser delineadas com ajuda da transcrição de uma palestra de Benjamin Constant proferida em Paris, em 1819, com o título “A Liberdade dos Antigos comparada com aquela dos Modernos”. A liberdade dos antigos a que Constant se refere diz respeito justamente à participação política do cidadão, ou seja, trata-se do exercício do voto, da deliberação na esfera pública, da formação de alianças, e assim por diante. Já a liberdade dos modernos cobre basicamente o que entendemos por liberdade negativa, com o reconhecimento de direitos tais como aqueles à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à livre associação, à liberdade de ir e vir, à livre iniciativa econômi-

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ca e, talvez, sobretudo, ao direito de não sofrer uso arbitrário de força, por parte de um indivíduo ou de um grupo. Nesta última concepção de liberdade, a moderna, a participação política tem peso mínimo. Diz respeito ao direito de exercer alguma influência sobre o governo, por exemplo, elegendo todos ou alguns oficiais que fazem parte dele. Com isso, a liberdade dos modernos é, acima de tudo, uma liberdade a ser oposta ao governo, qualquer que seja ele, ao passo que a liberdade dos antigos, como Constant mesmo observa, é compatível com a máxima sujeição do indivíduo à sua comunidade (CONSTANT, 1988, loc. 3718 de 4963). Se perguntarmos agora por que deveríamos preferir a liberdade dos modernos à dos antigos, Constant oferece uma lista de motivos pelos quais a liberdade dos antigos nem sequer está disponível para nós como alternativa para escolha. Primeiramente, a liberdade dos antigos requer um pequeno território no qual apenas uma pequena população viva sob a jurisdição de um mesmo governo. O raciocínio é simples: quanto maior o território e a população a caírem sob uma mesma jurisdição, menos as ações de cada cidadão ordinário serão determinantes para as decisões do governo (CONSTANT, 1988, loc. 3760 de 4963). Por exemplo, não importa o quanto um cidadão brasileiro se esforce para “votar com consciência” nas próximas eleições presidenciais, a única certeza que ele pode ter é de que seu voto não mudará o resultado do pleito. Por falarmos no esforço do cidadão por uma participação “consciente”, temos aqui a segunda razão citada por Constant para explicar por que a liberdade dos antigos não está mais disponível para nós: a esmagadora maioria de nós precisa ocupar a maior parte de seu tempo ganhando seu próprio sustento. Não temos escravos para nos darmos ao luxo de passarmos nossos dias debatendo temas de interesse público e procurando informações para qualificarmos nossa participação no debate. A isso se liga a terceira razão: ao contrário da guerra, atividades econômicas mais comuns entre nós, como o comércio, não contam com intervalos de inatividade. Por fim, e também em relação aos pontos anteriores, Constant destaca como as atividades econômicas modernas acabam levando o cidadão comum a ver a participação do governo em sua vida mais como um estorvo do que como qualquer outra coisa: “Toda

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vez que os governos pretendem assumir nossos negócios, eles fazem isso com mais incompetência e a um custo mais alto do que nós teríamos feito” (CONSTANT, 1988, loc. 3769 de 4963). Explorando um pouco mais a última observação de Constant, podemos dizer que a liberdade positiva ou aquela dos antigos exige uma sociedade na qual haja menos independência entre indivíduos no exercício de suas profissões e mais homogeneidade de valores, vínculos de solidariedade, relações de identidade, etc. Se assim for, até que se possa fazer o desenvolvimento histórico retroceder a algo como uma organização social baseada em pequenas cidades-Estado, firmadas, por sua vez, em estreitos laços entre iguais, que se percebem como iguais e, realmente, dependem todos uns dos outros, a troca da liberdade negativa pela liberdade positiva não passa de um engodo. No fim do dia, a despeito de se apresentar sob o nome “democracia”, o governo que interfere em nossas vidas hoje não é o nosso governo. Há que se ter em vista que o “meu” contido nesse “nosso” já foi tão diluído e enfraquecido a ponto de um “nós”, aqui, valer tanto quanto um “eles”. Eis uma relação de alteridade com o governo que o cidadão de uma pequena pólis idealizada não sentiria mesmo.

REFERÊNCIAS ALEXY, R. A Theory of Legal Argumentation: The Theory of Rational Discourse as Theory of Legal Justification. Oxford: Oxford University Press, 1989. BERLIN, I. Liberty. Oxford: Oxford University Press, 1969. CONSTANT, B. “The Liberty of the Ancients compared with that of the Moderns”. In: FONTANA, B. (Ed.) Benjamin Constant: Political Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1988 (versão para Kindle). FINNIS, J. Natural Law and Natural Rights. 2 ed. Oxford: Oxford University Press, 2011. HART, H. L. A. “Are There Any Natural Rights?”. The Philosophical Review, v. 64, n. 2, Apr. 1955, pp. 175-191. RAWLS, J. A Theory of Justice: Revised Edition. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1999.

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