NOTAS SOBRE AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA DE AMARTYA SEN EM A IDEIA DE JUSTIÇA

May 31, 2017 | Autor: J. Da Costa Valad... | Categoria: Human Rights Law, Philosophy Of Law, Justice, Amartya Sen, Theory of Justice
Share Embed


Descrição do Produto

NOTAS SOBRE AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA DE AMARTYA SEN EM A IDEIA DE JUSTIÇA

Jeferson da Costa Valadares Doutorando (UFRJ/Capes) [email protected]

Abstract: This article has the task to present some notes on the concept of justice

developed by the economist and Indian philosopher Amartya Sen, in the context of his work The idea of justice. Specifically, it will be to undertake a systematic reconstruction and analysis of Part I - The demands of justice. These data suggested the argumentative strategy of the author in defense of justice that can not do without specific requirements (whose fundamental concepts are philosophical and economic in constant dialogue) for its effectiveness.

Keywords: Philosophy of Law; Amartya Sen; Theory of Justice.

Resumo: O presente artigo tem como tarefa apresentar algumas notas sobre a concepção

de justiça desenvolvida pelo economista e filósofo indiano Amartya Sen, no contexto de sua obra A ideia de justiça. Especificamente, proceder-se-á a uma reconstrução e análise sistemática da parte I – As exigências da justiça. Evidenciando, portanto, a estratégia argumentativa do autor na defesa de uma justiça que não pode prescindir de exigências específicas (cujos conceitos fundamentais são filosóficos e econômicos em diálogo constante) para sua efetivação.

Palavras-chave: Filosofia do Direito; Amartya Sen; Teoria da Justiça.

1

§ 1. – Introdução

Filósofos do direito, frequentemente, colocam a seguinte questão central em suas investigações: o que é a Justiça? Muitas e conhecidas respostas já lhes foram atribuídas ao longo de quase dois milênios de investigação e atividade filosófica. Ocorre, contudo, que uma resposta que satisfaça em sua completude o conceito de Justiça é tarefa hodierna ainda em aberto por parte de filósofos, juristas e intelectuais envolvidos com o tema. Uma das atribuições da filosofia é investigar os fundamentos da realidade. Deste modo, perguntar sobre os fundamentos dos nossos direitos, da justiça é, de certa forma, responder e construir uma concepção de Justiça. Se a filosofia é, igualmente, uma disciplina de base para os teóricos da Justiça, e, se Amartya Sen – autor por nós aqui a ser tratado – desenvolve sua teoria da justiça buscando fundamentos essencialmente na filosofia, muito embora dialogando com elementos fortes da economia, cabe-nos a tarefa de proceder em nossa análise filosófica de duas formas, conforme o método apresentado por Laurence Bonjour e Ann Baker, a saber, nossa tarefa restringe-se a clarificar e justificar os argumentos (ou conceitos) apresentados por Sen na Parte I de sua obra A ideia de justiça. Para (BAKER; BONJOUR, 2010, p. 22) “clarificar” e “justificar” são atividades, habilidades centrais na investigação filosófica, i.e., no método filosófico. O pensamento filosófico é composto por duas habilidades mais básicas (clarificar e justificar). Em primeiro lugar, clarificar é o mesmo que tornar uma alegação mais clara e precisa, alterando, se for o caso, a sua alegação original para torná-la mais precisa e clara, para que seja mais razoavelmente discutida. Em segundo lugar, justificar é o mesmo que oferecer de maneira lógica, razões que satisfaçam, i.e., algum critério de verdade a esses argumentos de alegações anteriormente clarificados. O que se pretende clarificar e justificar neste trabalho são as alegações de Sen na Parte I de seu livro. Tais alegações dizem respeito ‘as exigências da justiça’, no contexto de sua concepção de uma teoria da justiça. Nossa tarefa, precipuamente, concentra-se na apresentação dos argumentos oferecidos por Sen que tornam sua teoria um sistema alternativo e coerente às inúmeras teorias da justiça presentes na literatura e reflexão sobre a justiça no cenário contemporâneo. As reflexões de Sen ultrapassam a dimensão meramente acadêmica na busca da constituição da ideia de justiça. O autor apresenta seus argumentos em uma 2

linguagem acessível, numa prosa notadamente erudita e clara. É patente o seu diálogo com diversos sistemas de pensamento, tanto filosóficos quanto econômicos. Há que se notar o esforço de Sen de destacar e reconstruir um possível e frutuoso debate sobre a justiça que parte de uma tradição – cuja matriz teórica lhe é familiar – da filosofia indiana mais remota. Trata-se de uma complexa narrativa com inúmeros exemplos concretos de construção das bases para justiça que parte de questões concretas. A narrativa de Sen, ainda, conta com o recurso bastante ousado do diálogo com as tradições das literaturas ocidental e oriental. Não obstante seu diálogo mais sistemático com filósofos e economistas, sua busca de unidade dentro de uma pluralidade parte de uma experiência com a literatura. Talvez Sen conceba a literatura como local privilegiado para pensar a natureza e a experiência humanas. A justiça é, por excelência, mutatis mutandis, a radicalização da experiência humana. É delicada a questão. Porém, Sen ao construir sua teoria, deixa claro quais são as exigências para a justiça. Um dado é inquestionável na sua narrativa e metodologia: além da experiência da literatura enquanto narrativa, é a economia o local privilegiado como ponto de partida para os temas concretos atacados por Sen, dentro de uma abordagem filosófica. Em suma, a junção de pensamento econômico com filosofia e literatura fundamenta os argumentos de Sen sobre a justiça. Seu objetivo é construir uma teoria da justiça que seja plural. Deste modo, a Parte I, prima facie, conta com uma estrutura organizacional que dialoga com temas de interesse para a reflexão sobre a justiça. O grande interlocutor de Sen nesse contexto é o filósofo John Rawls. A mencionada parte com seus capítulos e subtemas está disposta da seguinte forma: Parte I: as exigências da justiça; 1. Razão e objetividade: a. Crítica da tradição iluminista; b. Akbar e a necessidade da razão; c. Objetividade e análise arrazoada; d. Adam Smith e o espectador imparcial; e. O alcance da razão; f. A razão, os sentimentos e o iluminismo. 2. Rawls e mais além: a. Justiça como equidade: a abordagem rawlsiana; b. Da equidade à justiça; c. A aplicação dos princípios rawlsianos de justiça; d. Algumas lições positivas da abordagem rawlsiana; e.

Problemas que podem ser efetivamente enfrentados; f.

Dificuldades que necessitam de novas investigações; g. Justitia e justitium. 3. Instituições e pessoa: a. A natureza contingente da escolha institucional; b. Restrições comportamentais através da argumentação contratualista; c. O poder e a necessidade de compensação; d. Instituições como fundamentos. 4. Voz e escolha social: a. A teoria da escolha social como uma abordagem; b. O alcance da teoria da escolha social; c. A 3

distância entre o transcendental e o comparativo; d. A abordagem transcendental é suficiente?; e. A abordagem transcendental é necessária?; f. Juízos comparativos identificam a transcendência?; g. A escolha social como estrutura argumentativa; h. A dependência mútua entre reforma institucional e mudança comportamental. 5. Imparcialidade e objetividade: a. Imparcialidade, compreensão e objetividade; b. Emaranhamentos, linguagem e comunicação; c. Argumentação pública e objetividade; d. Diferentes domínios de imparcialidade. 6. Imparcialidades fechada e aberta: a. A posição original e os limites do contratualismo; b. Cidadãos de um estado e de outros; c. Smith e Rawls; d. Sobre a interpretação rawlsiana de Smith; e. Limitações da “posição original”; f. Negligência na exclusão e justiça global; g. Incoerência na inclusão e plasticidade do grupo focal; h. Imparcialidade fechada e paroquialismo. Essa, portanto, é a estrutura da Parte I da ideia de justiça de Sen. Como mencionado anteriormente, seu principal interlocutor é Rawls. Mas, Adam Smith é um autor do qual Sen extrai inúmeras ideias e trava profícuo diálogo. Vale notar que alguns aspectos da teoria da justiça de Rawls é utilizada por Sen, à guisa de críticas de supostos pontos fracos na sua concepção de justiça. Trata-se de uma refinada crítica que justifica o conhecimento de Sen da doutrina e do pensamento de Rawls sobre o tema. Há algo de curioso na apropriação de Sen das teorias filosóficas e econômicas. Chama-nos a atenção o fato do autor dialogar com autores cujas abordagens são quase que um contraponto a outra, e.g., autores como Condorcet, Karl Marx, Adam Smith; Jeremy Bentham, Mary Wollstonecraft e John Stuart Mill. São, na verdade, representantes de um pensamento comparativo (numa versão diferente dos autores iluministas) e inovador, conforme entende Sen. Um outro bloco de autores e pensamento com o qual Sen dialoga é Kant, Thomas Hobbes, Jonh Locke e Jean-Jacques Rousseau; autores que, grosso modo, na visão de Sen, representam um modelo contratualista. De modo geral, Sen apresenta uma teoria da justiça que ele mesmo classifica como sendo uma teoria no sentido amplo. Significa que o seu objetivo visa esclarecer o modo pelo qual pode se proceder no enfrentamento das questões que dizem respeito à melhoria da justiça e ao afastamento da injustiça. Não é o objetivo de Sen oferecer soluções que versem exatamente sobre a natureza de uma justiça perfeita – por isso talvez, não lhe caberia a pergunta o que é a justiça, frequentemente utilizada por filósofos do direito – mas cabe-lhe a tarefa de construir uma teoria da justiça que difira substancialmente das teorias dominantes na filosofia moral e política contemporânea. A 4

teoria da justiça elaborada por Sen difere das demais teorias contemporâneas em três aspectos que exigem uma atenção específica. Quais sejam: (i) uma teoria da justiça que possa servir como base de argumentação racional no domínio prático precisa incluir alguns modos de julgar a maneira pela qual se pode reduzir a injustiça e promover a justiça; (ii) uma teoria da justiça deve ser plural. A questão é notar que pode haver comparações nas quais as considerações conflitantes não estejam completamente resolvidas pelo simples fato de haver argumentos arrazoados. Há que se ter essencialmente argumentos arrazoados, contudo, uma pluralidade de resultados oriundos do uso do raciocínio argumentativo, i.e., deve haver razões distintas de justiça, que sobrevivam ao exame crítico que resultam de conclusões divergentes; (iii) o uso de uma contribuição comparativa na justiça pode superar e contribuir para uma abordagem alternativa às teorias contratualistas. Neste terceiro ponto, é patente a crítica de Sen à teoria da justiça de Rawls que é focada predominantemente em como estabelecer “instituições justas”, ao passo que a justiça, para Sen, está fundamentalmente conectada ao modus vivendi das pessoas, i.e., como as pessoas vivem; não apenas preocupado com a natureza das instituições que as cercam. Em suma, a teoria da justiça de Sen tem como foco, fundamentalmente, a vida real, o que significa em termos abrangentes numa abordagem centrada no que ele chama de “perspectiva das capacidades”. Ora, trata-se de uma compreensão da justiça traduzida em termos de vida humana e liberdades que as pessoas respectivamente podem exercer. Sen não descarta a hipótese de seu principal interlocutor Rawls, na constituição de uma justiça focada em instituições justas. Ao contrário, ele se utiliza profundamente dessas teses propondo algo novo enquanto teoria. Como bem salientado, o escopo da discussão sobre a justiça é a vida, a liberdade, as capacidades das pessoas envolvidas; também as instituições no sentido de aprimoramento e melhoramento da justiça. Sen não rejeita o ensejo de Rawls ao que aparentemente se pode perceber ao longo do exame de sua construção de uma ideia de justiça. Há que se notar a perspectiva de Sen como teórico da justiça. Ele parte de uma perspectiva plural, cuja importância quanto à argumentação racional pública, a democracia e a justiça global estão presentes; sua reconstrução da ideia de razão, tendo como ponto de partida o Iluminismo europeu – mesmo apontando para elementos de razoabilidade elevada e constituída em autores bem pontuais da filosofia indiana – como herança global; discute a importância e a centralidade do lugar da razão na construção da justiça, apontando críticas suficientemente consistentes. O que falta na teoria de Sen, 5

entretanto, é a apresentação sistemática de critérios de justiça ou de tomadas de decisão do ponto de vista concreto, não obstante toda a sua crítica sistemática aos seus principais interlocutores. De forma bastante notória, Sen é considerado um intelectual profundo. Um acadêmico aberto ao diálogo com áreas distintas do conhecimento humano. É patente que seu frequente diálogo com correntes da filosofia contemporânea analítica (Sen tem uma abertura de diálogo bem pontual, especialmente com Quine) e com intelectuais e teóricos da economia estão no bojo de sua discussão sobre o papel e a importância de se construir uma teoria da justiça plural e eficaz. Em suma, Sen aprofunda-se e apropria-se de pelo menos três dimensões do saber para discutir sobre a justiça e suas implicações práticas: a economia, a filosofia e a literatura. Curiosamente, o direito – cuja importância deveria aparecer num lugar de destaque, Sen parece abordá-lo de modo incipiente, causando estranheza nos mais aficionados ao tema – é por Sen tratado de modo secundário. Ou será que como sua própria noção de justiça, o direito não estaria subjacente numa proposta inovadora, centrada na ideia de justiça? Ao que tudo indica, a proposta de Sen é essencialmente com a justiça e não com questões especificamente procedimentais de uma possível aplicação da justiça no complexo contexto do direito. Ao final do livro, entretanto, discute alguns aspectos dos direitos humanos, mas nada ainda tão sistemático e como preocupação exatamente dependente da arquitetônica teórica sobre a justiça. § 2. – As exigências da justiça

O que são as exigências da justiça no contexto da ideia de justiça de Amartya Sen? É uma questão central na Parte I que tentaremos expor e apresentar neste texto. Logo na introdução de A ideia de justiça, Sen apresenta um exemplo histórico que pode, de algum modo, e por via negativa, responder preliminarmente a questão levantada. O exemplo oferecido é do Lorde Mansfield, que segundo Sen, foi um poderoso juiz inglês do século XVIII. Esse ofereceu um famoso conselho a um governador colonial que fora recém-nomeado. O conselho consistia no seguinte: “considere o que você acha que a justiça exige e decida de modo apropriado. Mas nunca apresente suas razões, pois seu julgamento provavelmente estará certo, mas suas razões sem dúvida estarão erradas.” (SEN, 2011, p. 35). Na opinião de Sen, o que Lorde Mansfield faz, não passa de um 6

bom conselho, contudo sem a garantia de que a coisa certa seja feita. Para um governo discreto, tal conselho pode funcionar, mas sem assegurar que as pessoas afetadas possam de fato perceber que a justiça está sendo feita. Ora, essa ideia preliminar sobre o que a justiça exige demonstra claramente que Sen preocupa-se e exige (no caso a sua concepção de justiça) de fundamentação e racionalidade nas decisões. Ademais, as exigências da justiça não podem ser reduzidas à mera opinião ou “achismo” infundado. A razão deve, em última instância, influenciar os diagnósticos sobre a justiça e a injustiça. Portanto, o conselho ao governador apresentado por Mansfield não satisfaz as exigências da justiça do ponto de vista da abordagem de Sen. Posta essa questão preliminar tratada por Sen na introdução, cabe-nos, de maneira sumária, apresentar os principais argumentos de Sen que estruturam a Parte I do seu livro. Discutir questões referentes às exigências da justiça é tarefa detalhada empreendida por Sen. Sobretudo porque todo o desenvolvimento do seu pensamento acerca de uma teoria da justiça, i.e., ideia de justiça está conectado com a mencionada parte inicial, na qual, prima facie, exige-se de uma consistente e coerente teoria da justiça, alguns pressupostos fundamentais. Dividiremos esta análise em seis questões, que correspondem, grosso modo, aos seis capítulos da mencionada Parte I. É claro que Sen opera dentro de um detalhamento de assuntos que não serão tratados neste trabalho; destacaremos os principais argumentos de Sen em consonância com sua arquitetônica teórica da justiça. Em primeiro lugar, há que se concordar que há uma exigência geral, a saber, o conjunto: razão e objetividade que é subdividido em inúmeras questões. A ideia geral, contudo, deste conjunto de argumentos consiste em apresentar a importância e certos problemas que a razão pode trazer para a formulação de uma ideia ou teoria da justiça. Ao lado da discussão sobre a razão no debate de argumentos arrazoados está a objetividade. Por seu turno, é aspecto importante na estruturação da justiça que tem relação direta com escolhas parciais e imparciais. Sen pondera e analisa de maneira clara as implicações positivas e negativas do uso da razão nesse contexto. Para tanto, serve-se de uma crítica da tradição iluminista. Essa crítica incide na tradição do iluminismo europeu, que sempre defendeu o uso lúcido da razão como primordial aliado no desejo de tornar a sociedade melhor. Então a razão é instrumento para o melhoramento da sociedade, o contraponto imediato era a ausência de racionalidade no debate e transformação qualitativa da sociedade. Em contrapartida, a excessiva 7

confiança na razão oriunda da tradição iluminista contribuiu para inúmeras atrocidades no mundo assim chamado de pós-iluminista (SEN, 2011, p. 65). Assim, de per si, Sen estabelece os limites da razão iluminista no âmbito da busca por melhorias na sociedade que, em última instância, são questões de justiça. Uma série de questionamentos – realizados por Sen – auxiliam na busca da real compreensão do papel da razão na constituição da justiça. “Qual é a justificação última, se houver alguma, para recorrer à razão? A razão é apreciada como uma boa ferramenta, e, se é uma boa ferramenta, serve para buscar o quê? Ou a razão é sua própria justificação, e, se esse for o caso, como ela difere das crenças cegas e inquestionáveis? ” (SEN, 2011, p. 66). A preocupação sobre o lugar na razão no exercício argumentativo no tocante a justiça é fundamental para Sen, como fica nítido no argumento mencionado. Trata-se de um questionamento basilar. A resposta é construída ao longo de toda a obra. Mas, de antemão, a centralidade da racionalidade ainda é e será a melhor alternativa para a ide a de justiça. Conexo ao questionamento sobre o papel da razão, Sen dialoga com a tradição indiana – na qual faz notar uma ação e o uso da razão por parte de Akbar, imperador indiano – no sentido de mostrar que a Índia na sua experiência remota já possuía, ainda que de modo bem particular, a noção de racionalidade à moda do iluminismo europeu. Segundo Sen (2011, p. 69), Akbar considerava a razão suprema, uma vez que, mesmo quando a questionamos, precisamos dar razões para o questionamento. Ora, oferecer razões e argumentar racionalmente é fundamental na teoria da justiça de Sen, pelo fato de que a razão ou a busca pela razão é determinante no comportamento humano sobre os conceitos de bom e justo, bem como na aceitação de direitos e deveres legais. Na sequência, a objetividade tem implicação no contexto de uma análise arrazoada. Sen estabelece que razão e emoção desempenham papeis complementares na reflexão humana, portanto não podendo ser em hipótese alguma descartados. Ao contrário, tomados em conjunto, conforme alertará a tradição cujos nomes são Hume e Smith. A questão da objetividade tal qual tratada por Sen diz respeito à possibilidade de uma argumentação com base na razão. O conjunto argumentativo diz que “o argumento a favor da análise arrazoada não depende de que esta seja uma via infalível para acertar (ela pode não existir), mas de que seja tão objetiva quanto for razoavelmente possível.” (SEN, 2011, p. 71). A análise arrazoada que consiste em argumentos racionais, também aplica-se de modo basilar nos juízos éticos. Porque na análise arrazoada – diz Sen – estão presentes as exigências da objetividade. Ser objetivo, ou ter um argumento 8

arrazoado é de algum modo, basear o pensamento sobre questões de justiça e injustiça em razões objetivas. Para tanto, Sen retoma com certo otimismo uma abordagem de Adam Smith sobre o espectador imparcial. Para Smith na visão de Sen, nossas opiniões devem ser vistas de uma “certa distância” porque motivada pelo simples objetivo de analisar não apenas a influência do interesse pelo benefício próprio, mas também o impacto da tradição e do costume arraigados. Em suma, a melhor maneira de alcançar e construir uma teoria da justiça é pelo alcance da razão. Tal alcance da razão é o conjunto argumentativo arrazoado e plural. O caminho, i.e., a busca da razão deve unirse aos sentimentos, não concedendo aos instintos um status puro, i.e., os instintos são analisados pela razão e nunca terão a palavra final. Em segundo lugar, há que se considerar a retomada, por parte de Sen, de alguns teóricos da justiça. Em particular, trata-se do principal interlocutor de Sen, no contexto das exigências da justiça em discussão: Rawls e mais além. Neste tema que tomamos como sendo um dos pilares das exigências da justiça, Sen dedica-se essencialmente a elaborar uma crítica à teoria da justiça de John Rawls. A abordagem rawsiana consiste na ideia fundamental de que a justiça tem de ser vista com relação às exigências da equidade. Mas, pergunta Sen: – o que é então a equidade? Em síntese, deve ser uma exigência de evitar vieses em nossas avaliações levando em conta os interesses e as preocupações dos outros também, a necessidade de evitarmos ser influenciados por nossos respectivos interesses pelo próprio benefício, ou por nossas prioridades pessoais ou preconceitos. (SEN, 2011, p. 84). Enfim, é uma noção ampla de imparcialidade. Enquanto exigência da justiça, a imparcialidade é fundamental. Ao continuar a análise dos argumentos de Rawls, Sen mostra a relevância da teoria de Rawls na compreensão dos aspectos da justiça. Afirma que a teoria original de Rawls desempenhou um papel enorme em nos fazer compreender os vários aspectos da ideia de justiça, e mesmo que essa teoria tenha de ser abandonada, deve-se reconhecer a importância desta reflexão no âmbito da filosofia política. Em seguida, ele discute e expõe alguns dos princípios de justiça de Rawls, tais como o da prioridade da liberdade e o da obrigação institucional. Para Sen – que discute amplamente alguns aspectos da teoria de Rawls – nessa teoria da justiça, um lugar importante é concedido à erradicação da pobreza (tema aliás de notória preocupação de Sen, sobretudo via experiência com a índia) mediada quanto à privação de bens primários; tal enfoque foi decisivo nas análises de políticas públicas para a real remoção da pobreza. 9

Em terceiro lugar, no âmbito da discussão sobre as exigências da justiça, Sen apresenta dois temas: instituições e pessoas. É sabido que ambos foram tratados indiretamente quando esse empreendeu sua reflexão sobre Rawls e mais além. Trata-se na verdade de uma continuidade, i.e., desdobramento do assunto anteriormente tratado, embora o foco fosse em outras questões. Sobre os meios e as formas de promover a justiça na sociedade, Sen logo no início de sua reflexão sobre as instituições e as pessoas, cita um particular e obscuro exemplo da história do pensamento indiano, revelando-nos assim mais uma vez sua erudição. O exemplo é sobre o pensamento de Ashoka sobre a justiça social que produziu avanços consideráveis na administração pública no tocante ao domínio do comportamento moral, da ética social e na promoção da justiça, após suposta conversão moral e política. Uma vez que esse fora imperador vitorioso e cometera muitas barbaridades contra um território ainda não conquistado na Índia. Ora, Sen retoma esse exemplo particular da história da Índia para mostrar que a ação de Ashoka tinha um compromisso com a justiça social, com o bem-estar das pessoas e suas liberdades (SEN, 2011, p. 106). Na opinião de Sen, toda teoria da justiça deve reservar um lugar primordial para as instituições. Tendo como consequência uma explicação plausível da justiça mediante a escolha das instituições. Significa que as instituições não podem deixar de ser um elemento central em qualquer teoria da justiça que se queira construir. “Temos que procurar instituições – afirma Sen – que promovam a justiça, em vez de tratar as instituições como manifestações em si da justiça, o que refletiria uma espécie de visão institucionalmente fundamentalista” (SEN, 2011, p. 112). A reflexão de Sen quanto às instituições é fornecida do ponto de vista objetivo. Mas, ele não apresenta quais seriam esses critérios pela busca e a constituição de instituições que promovam a justiça. O contraponto é notório com as teorias que sustentam que há instituições que funcionariam como uma “instância” da justiça. E, arremata, que na verdade, dentro de uma perspectiva puramente institucional não há, pelo menos do ponto de vista formal, nenhuma história de justiça além do estabelecimento das instituições justas. Em quarto lugar, no mencionado âmbito das exigências da justiça, Sen trata da voz e da escolha social. Como já conhecido de Sen na obra em questão, cada assunto é tratado com uma questão preliminar que tenha relação com a história da Índia mais remota. Neste caso, trata-se de uma passagem do imperador Alexandre, o Grande, pela Índia. Alexandre trava um diálogo com um grupo de filósofos jainistas. Tais filósofos 10

ignoraram solenemente o conquistador. Sem muito bem entender, Alexandre pergunta o por que havia sido ignorado por eles. Logo em seguida vem a resposta: “rei Alexandre, cada homem só pode possuir, da superfície da terra, tanto quanto esta sobre a qual estamos em pé. Você é humano como o resto de nós, ressalvando o fato de estar sempre ocupado e não visar bem algum, viajar tantas milhas distante de sua casa, um incômodo para si mesmo e para os outros! ... Você logo estará morto, e então terá da terra tanto quanto bastará para enterrá-lo.” (SEN, 2011, p. 119). Esse é um exemplo utilizado por Sen para mostrar a possibilidade do diálogo, das diferentes opiniões e que compreender as exigências da justiça não implica em uma atividade, um exercício solitário. Nunca pode ser uma escolha solitária. Na sequência, Sen contextualiza a origem da teoria da escolha social. Ainda como disciplina formal que investigava o método de agregação de juízos individuais de um grupo de diferentes pessoas. O enfoque à teoria da escolha social era centrado no desenvolvimento de uma estrutura para decisões racionais e democráticas. Só no século XX, entretanto, que a teoria da escolha social foi reabilitada por Kenneth Arrow, preocupando-se com as inconsistências do contexto das dificuldades com as decisões coletivas. Ao longo de sua análise, Sen trata da abordagem transcendental da justiça que qualifica como sendo um exercício intelectual atrativo, porém insuficiente em termos comparativos dos diferentes arranjos sociais. Ele a define como não necessária nem suficiente para chegar, e.g., a juízos comparativos de justiça. Há aqui um interessante contraponto com as tradicionais teorias da justiça ou filósofos do direito que se perguntam: “o que é uma sociedade justa? ” Para Sen (2011, p. 137), esse não é um bom ponto de partida para uma teoria da justiça que seja útil. Porque, uma teoria da justiça deve ter algo a dizer sobre as escolhas que de fato são oferecidas, e não apenas nos manter absortos em um mundo imaginado. Por fim, há uma pequena reflexão sobre a questão das mulheres por parte de Sen. No contexto inicial da voz conectada com as escolhas. “O papel das vozes das mulheres pode ser instrumento de prioridade nas políticas públicas, com foco na educação das mulheres como parte da promoção da justiça na sociedade” (SEN, 2011, p. 142). Em quinto lugar, trata-se da imparcialidade e da objetividade. Há diferença substancial em ser imparcial e objetivo? A questão não é saber se há diferença entre ambos, mas de definir cada conceito e verificar sua aplicação na construção de uma teoria da justiça. Sen estabelece como critérios e exigências da justiça a imparcialidade e a objetividade. O exemplo preliminar dessa vez utilizado por Sen é a queda da 11

Bastilha em 14 de julho de 1789, portanto, um exemplo de uma revolução notadamente ocidental. Trava uma discussão com Edmund Burke e Mary Wollstonecraft, que não mencionaremos (SEN, 2011, p. 144-145). Dois pontos merecem destaque: a argumentação pública e objetividade; diferentes domínios de imparcialidade. No caso do primeiro, nota-se que a argumentação e os debates públicos são fundamentais para a busca da justiça. Mais uma vez, as exigências da objetividade ética – afirma Sen – relacionam-se de modo estreito com a capacidade de enfrentamento da argumentação pública aberta, conectando-se diretamente ao caráter imparcial das posições propostas e dos argumentos que as apoiam. No caso da segunda, trata-se de questão preliminar na definição clara de imparcialidade “aberta” e “fechada”. Ora, “imparcialidade fechada” consiste no processo de fazer juízos imparciais que invoca apenas os membros de dada sociedade ou nação, para quem os juízos estão sendo feitos (SEN, 2011, p. 153). Ao passo que, “imparcialidade aberta” é o processo de fazer avaliações imparciais que pode invocar juízos, entre outros, de fora do grupo focal, para se evitar um aspecto paroquial. A próxima exigência da justiça é continuação do tema da imparcialidade dentro do contexto de discussão, grosso modo, com Rawls e Smith. Em sexto lugar, deve-se notar para ama reflexão de continuidade da exigência da justiça como imparcialidade fechada e aberta. Para tanto, Sen preliminarmente, como de costume, discute algumas concepções de Adam Smith sobre a imparcialidade. Trata-se do “espectador imparcial” que difere substancialmente da imparcialidade fechada da “justiça como equidade”. Sen também traz à baila, o pensamento de Kant para a discussão referente à imparcialidade. Passando por essa questão e entrando nos limites do contratualismo em conexão com a posição original, Sen nota que: o procedimento das “posições originais” segregadas, operando como dispositivo isolado, não é propício para garantir um escrutínio que seja adequadamente objetivo das convenções sociais (SEN, 2011, p. 157). Da mesma forma, a estrutura contratualista, na perspectiva da “justiça como equidade”, faz com que Rawls limite as deliberações na posição original para um grupo politicamente segregado cujos membros “nasceram na sociedade em que levam suas vidas”. O argumento de Sen evolui para a relação entre os cidadãos de um estado e de outros. Tema crucial para conexão com direitos humanos. Em suma, uma teoria da imparcialidade que seja confinada exatamente às fronteiras de um Estado soberano prossegue ao longo das linhas de seu território, que naturalmente possui relevância jurídica, mas pode não possuir semelhante perspicácia política ou moral. 12

§ 3. – Considerações finais

Cumpre-nos, de modo breve, elaborar algumas considerações finais. Em primeiro lugar, há que se considerar que não só a leitura da Parte I de A ideia de justiça de Amartya Sen é fonte de enriquecimento intelectual, como a leitura e o exame da obra na sua integralidade nos ajudam a pensar de forma comparativa qual modelo de justiça adotar ou acreditar como sendo o mais plausível e interessante. Em segundo lugar, fica patente que construir uma teoria da justiça é tarefa complexa. A complexidade da teoria da justiça de Sen, prima facie, está ligada as suas exigências da justiça que são critérios e argumentos basilares na estruturação e aplicação da justiça. Em terceiro lugar, é exigido de uma teoria da justiça que tenha compromisso com pelo menos questões conceituais que lhes possibilitem um rigor e consistência. Sen indica a razão, em primeiro lugar; a objetividade, a imparcialidade, as pessoas, i.e., a vida das pessoas, suas capacidades e liberdades; as instituições que promotoras de justiça; as escolhas sociais; um diálogo constante com a filosofia e economia. Enfim, as exigências da justiça são critérios fundamentais, no sentido forte, para a construção de uma teoria da justiça que seja plural e efetiva. § 4. – Referências bibliográficas

BONJOUR, Laurence; BAKER, Ann. Filosofia – textos fundamentais comentados. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. SEN, Amartya. A ideia de justiça. Cia. Das Letras: São Paulo, 2011. (Parte I).

13

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.