Notas sobre Eduardo de Oliveira e Oliveira (1960-1980)

July 19, 2017 | Autor: Rafael Trapp | Categoria: Sociologia, Intelectuais negros
Share Embed


Descrição do Produto

INTELECTUAIS NEGROS NO BRASIL: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE A PARTIR DE EDUARDO DE OLIVEIRA E OLIVEIRA1 Rafael Petry Trapp2

Introdução O objetivo do presente texto é refletir sobre trajetórias de intelectuais negros no período de formação do Movimento Negro brasileiro contemporâneo, entre os anos 1960 e 1970. A partir de um levantamento historiográfico sobre a temática, vamos problematizar aspectos da trajetória do sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, um personagem histórico fundamental para pensar a figura do intelectual negro no Brasil. A vida e obra de Eduardo de Oliveira e Oliveira, legadas – pela historiografia sociológica brasileira mais geral e mesmo por aquela vinculada aos temas da negritude e relações raciais – praticamente ao esquecimento desde sua morte, em 1980, merecem um tratamento analítico mais acurado.

Intelectuais negros: historiografia Em anos recentes, a historiografia sobre intelectuais negros brasileiros tem produzido alguns trabalhos interessantes. As vidas, obras, aspirações, problemas e dilemas desses personagens históricos passam do esquecimento para compor o quadro mais geral da história intelectual brasileira. O esquecimento aludido é relativo, em termos estritos. Acentuamos esse fato por tratarmos nosso objeto em termos de história intelectual – e não a partir de uma memória social do Movimento Negro brasileiro, por exemplo. Expliquemo-nos. O objeto de estudo ao qual nos referimos diz respeito a um tipo de intelectual específico: o intelectual negro. De forma ainda mais particularizada, nos interessamos por intelectuais negros que viveram e refletiram sobre as questões do negro e do racismo no Brasil da década de 1970. Esse foi um momento-chave, pois se trata do período de formação do moderno Movimento Negro brasileiro. Em 1978, formou-se, em São Paulo, o Movimento Negro Unificado (MNU), expressão política de longos esforços levados a cabo por vários grupos em diversos lugares do Brasil 3. Em torno desses 1

Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), de 13 a 16 de maio de 2015. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. Agradeço a atenta leitura de Flávia Fernandes de Souza a esse texto. 2 Mestre em História pela PUCRS. Atualmente é doutorando em História na UFF, estudando o pensamento de Eduardo de Oliveira e Oliveira. Bolsista de doutorado da FAPERJ. E-mail: [email protected]. 3 Alguns dos melhores textos sobre a história mais geral do Movimento Negro brasileiro são os seguintes: DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Rio de Janeiro, 2007, v. 12, n. 23, p. 100-122; HANCHARD, Michael G. Orfeu e o poder: o movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001; PEREIRA, Amilcar. O “mundo negro”: relações raciais e a constituição

2

grupos e do MNU um conjunto de ativistas negros se destacou pela atividade intelectual, expressa em jornais, artigos, livros e pela circulação no ambiente acadêmico brasileiro. Não vamos, nesse momento, nos ater a uma definição conceitual mais precisa do que seja um “intelectual”, ou ainda um “intelectual negro”. De qualquer forma, assim nomeamos àqueles ativistas do Movimento Negro brasileiro dos anos 1970, ou a ele ligados, que se autodenominavam negros e por tal grupo social lutavam política, cultural e intelectualmente. Entre os intelectuais negros mais importantes, em nossa visão, estão a historiadora Beatriz Nascimento, a ativista e intelectual Lélia González, o escritor e sociólogo Clóvis Moura, o ativista, intelectual e político Abdias Nascimento e o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, nosso personagem principal. Até pouco tempo não havia qualquer estudo realmente abrangente e aprofundado sobre a história desses intelectuais negros no Brasil. Esse silêncio historiográfico foi quebrado em 2011 pelo livro Terms of Inclusion, Black Intellectuals in Twentieth-Century Brazil 4 , da historiadora argentina Paulina Alberto. Originalmente tese de doutorado em História defendida na Universidade da Pensilvânia, o livro se debruça sobre a história de organizações de ativistas e intelectuais negros em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, de 1920 a 1980. Paulina Alberto está atenta aos modos como esses ativistas e intelectuais negros brasileiros pensaram e negociaram a inclusão dos negros, em termos de cidadania, política e cultura, nos quadros mais amplos da Nação brasileira no pós-abolição e no decorrer do século XX. Assim, a autora analisa desde os intelectuais atuantes na Imprensa Negra paulista dos anos 1920, passando pelas políticas do Estado Novo em relação ao negro, a consolidação da ideologia da “Democracia Racial”, até chegar, no último capítulo do livro, “Decolonization”, ao período de formação do Movimento Negro contemporâneo. Nesse momento, a autora traça um panorama do contexto de organizações como o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) e a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (SINBA), do Rio de Janeiro, e o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN), de São Paulo5. Em que pese a qualidade do trabalho, Paulina pouco analisa as produções

do movimento negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas/FAPERJ, 2013. Sobre o MNU, conferir especialmente HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Editora da UNESP, 2006, p. 341-406; Um dos documentos históricos mais importantes está no livro de história oral Histórias do Movimento Negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC (Rio de Janeiro: Pallas/FGV, 2007), organizado por Amilcar Pereira e Verena Alberti. 4 ALBERTO, Paulina. Terms of Inclusion: black intellectuals in twentieth-century Brazil. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2011. 5 Sobre a SINBA, ver SILVA, J. da . Jornal SINBA: a África na construção identitária brasileira dos anos 1970. In: PEREIRA, Amauri Mendes; SILVA, Joselina da. (Orgs.). O Movimento negro brasileiro: escritos sobre os sentidos de

3

intelectuais dos próprios ativistas negros, ou mesmo a discussão sobre o papel do intelectual negro, presente, como veremos, na reflexão de Eduardo de Oliveira e Oliveira. O único intelectual negro mais constante nas páginas do livro é Abdias Nascimento. Este último é, aliás, talvez o único intelectual negro a quem se tem dedicado maior atenção, por parte da historiografia e mesmo do Movimento Negro. A trajetória do ativista, teatrólogo, artista, intelectual e político Abdias do Nascimento (1914-2011) – cuja atuação se confunde com os principais momentos de praticamente toda a história do ativismo negro no Brasil – é objeto de dezenas de artigos, dissertações, teses e alguns livros. Sua alcunha tornou-se, inclusive, nome de prêmio6, comenda pública7 e viaduto8. Poderíamos citar dezenas de artigos e capítulos de livros, mas cremos serem os trabalhos mais relevantes, do ponto de vista da abrangência da análise, as dissertações na área de sociologia Abdias do Nascimento: a trajetória de um negro revoltado (19141968), de Márcio Macedo (2005) e O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento, de André Luis Pereira (2011); com destaque, ainda, para a biografia escrita por Sandra Almada, Abdias Nascimento (2009). Contudo, para o período – e debate – que nos interessa, qual seja os anos 1960-70, há pouca reflexão de maior vigor9. Além de Abdias, outros ativistas negros atuantes nos anos 1970 adquiriram certa projeção na literatura sobre negritude e racismo. Nesse sentido, os nomes de Lélia Gonzalez (1935-1994), Beatriz Nascimento (1942-1995) e Clóvis Moura (1925-2003) podem ser destacados. Sobre Lélia Gonzalez, ativista negra, intelectual, feminista, professora da PUC-Rio, há uma produção mais consistente. A trajetória de Lélia, uma liderança frequentemente lembrada e que, a exemplo de Abdias do Nascimento, dá nome a um prêmio10, é objeto de estudo das dissertações Relações raciais, gênero e movimentos sociais: o pensamento de Lélia Gonzalez (1970-1990), da cientista social Elisabeth Viana (2006) e Enegrecendo o feminismo ou feminilizando a raça: narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez (1970-1990), da historiadora Raquel Barreto (2005). Além desses textos, há a biografia Lélia Gonzalez, por Alex Ratts e Flavia Rios democracia e justiça social no Brasil. Belo Horizonte: Nandyala, 2009. Sobre o CECAN ver SILVA, Joana M. F. da. Centro de Cultura e Arte Negra – CECAN. São Paulo: Selo Negro, 2012 (Retratos do Brasil Negro). 6 Trata-se do “Prêmio Jornalista Abdias do Nascimento”, concedido, a partir de 2011, pela Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Rio de Janeiro e outras entidades. 7 “Comenda Senador Abdias Nascimento”, instituída em 2013 pelo Senado Federal brasileiro. 8 Em 2014, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou a designação do novo viaduto sobre a Avenida Pinheiro Borda, próxima ao Estádio Beira-Rio, como “Viaduto Abdias Nascimento”. 9 Exemplo nesse sentido é a dissertação em sociologia Construindo o (auto)exílio: trajetória de Abdias do Nascimento nos Estados Unidos (1968-1981), de autoria de Tulio Custodio. 10 Trata-se do “Prêmio Lélia Gonzalez – Protagonismo de Organizações de Mulheres Negras”, entregue desde 2010 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo da Bahia.

4

(2010), e a dissertação (no prelo) Revisitando os percursos intelectuais de Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, da historiadora Ires Britto (2012). A trajetória da historiadora e ativista Beatriz Nascimento, por sua vez, foi, até o momento contemplada por alguns poucos trabalhos. A despeito da importância de seus estudos sobre quilombos e sua interlocução com o Movimento Negro e o meio acadêmico brasileiro, apenas a referida dissertação (ainda não disponível) de Ires Brito e alguns textos do cientista social Alex Ratts se debruçaram sobre a obra de Beatriz11. A rigor, Ratts tem realizado um belo trabalho nesse sentido, haja vista ter organizado o livro Eu sou Atlântica: Sobre a Trajetória de Vida de Beatriz Nascimento (2007), que reúne vários textos de Beatriz e conta com uma bela introdução sobre a vida e obra dessa intelectual12. Sobre o sociólogo, escritor e ativista Clóvis Moura há alguns trabalhos. Sua importância perante os estudos sobre intelectuais e mobilização negra no Brasil foi salientada nas dissertações de Érika Mesquita, Clóvis Moura: uma visão crítica da história social brasileira (2002), de Fábio Nogueira de Oliveira, Clóvis Moura e a Sociologia da Práxis Negra (2009) e de Gustavo Orsolon de Souza, “Rebeliões da Senzala”: diálogos, memória e legado de um intelectual brasileiro (2013), além da coletânea O Negro no Brasil: estudos em homenagem a Clóvis Moura, organizada por Luiz Sávio de Almeida, quando da morte de Clóvis Moura, em 2003. Para além das questões referidas, essa breve apresentação historiográfica sobre o que tem se produzido sobre intelectuais negros nos leva, nesse momento, a um ponto em comum, a saber: todos os personagens históricos considerados, com a possível exceção de Abdias Nascimento, faziam parte da rede de interlocutores e amigos de Eduardo de Oliveira e Oliveira, nosso objeto de estudo. Seguindo os mesmos passos do levantamento historiográfico realizado acima, veremos, na próxima seção, o que a historiografia sociológica brasileira mais afeita aos temas da negritude e racismo disse (ou não disse) sobre Eduardo de Oliveira e Oliveira. Queremos, na realidade, começar a levantar algumas questões sobre a obra, mas também sobre o relativo esquecimento a que se destinou Eduardo na sociologia do negro no Brasil.

11

Na realidade, desde 2011 uma tese vem sendo desenvolvida no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos do CEAO/UFBA, de autoria do cientista social Wagner Vinhas Batista. De acordo com informações extraídas de seu currículo Lattes, o título da tese é “Lugar de Negros: um estudo sobre o pensamento de Beatriz Nascimento”. Apesar disso, o autor ainda não publicou nenhum texto de maior fôlego sobre o tema. Recentemente, em conversa pelo Facebook, Wagner assegurou que a tese estará defendida no primeiro semestre de 2015. 12 O autor tem outros textos sobre Beatriz. São os artigos “Trajetórias intelectuais negras: as rotas de Beatriz Nascimento” (2006) e “A trajetória intelectual ativista de Beatriz Nascimento” (2005).

5

Eduardo de Oliveira e Oliveira Nascido na cidade do Rio de Janeiro em 1924, Eduardo de Oliveira e Oliveira 13 foi um ativista negro, músico, teatrólogo, publicitário, professor, e, sobretudo, sociólogo. Em meados dos anos 1950 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde se radicou. Em 1960, foi aprovado para o curso noturno de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP), concluído no ano de 1964. Em 1968, iniciou a pós-graduação em sociologia na USP, sob a orientação inicial de Ruy Coelho e, posteriormente, de João Baptista Borges Pereira. A trajetória de Eduardo no mestrado arrastou-se por praticamente toda a década de 1970. Entre 1972 e 1974 foi bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP), e entre 1976 e 1977 tornou-se talvez o primeiro estudante negro do Brasil a receber uma bolsa de mestrado da Fundação Ford. Na realidade, ao longo da década de 1970, Eduardo desempenhou várias atividades diferentes. Organizou exposições sobre o negro no Museu de Arte de São Paulo, em 1973; viajou, entre novembro de 1974 e janeiro de 1975, aos Estados Unidos, aos encargos do Institute of International Education, onde fez pesquisas e várias palestras sobre o tema negro no Brasil; em 1977 organizou o primeiro evento feito por negros na USP, a Quinzena do Negro da USP, do qual participaram vários de seus interlocutores, como Beatriz Nascimento e Clóvis Moura. No mesmo ano, em conjunto com Beatriz e Clóvis, Eduardo organizou o simpósio “Brasil negro”, na reunião anual da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência, realizada na PUC-SP. No primeiro semestre de 1979, foi contratado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), instituição na qual lecionou sociologia e trabalhou para a implementação de um núcleo de estudos sobre o negro no Brasil. Contudo, em meados do primeiro semestre de 1980, Eduardo desligou-se de suas atividades na UFSCAR. Ao longo dos últimos meses daquele ano, Eduardo passou a sofrer transtornos mentais, quadro que o fez definhar fisicamente. Em 20 de dezembro de 1980 foi encontrado morto em seu apartamento na cidade de São Paulo14. 13

Seu verdadeiro nome era Eduardo de Oliveira. Para se distinguir de outro ativista e intelectual negro da época, o poeta e político paulista Eduardo de Oliveira, o sociólogo passou, a partir dos anos 1970, a usar a alcunha de Eduardo de Oliveira e Oliveira. 14 Há certa inconclusão quanto aos motivos da morte de Eduardo, ou de como ela deve – ou pode – ser interpretada. A versão mais conhecida é a de um suicídio. Em entrevista realizada com Bárbara Marruecos, filha de um dos maiores amigos pessoais de Eduardo, Diego Marruecos (já falecido), em 20/12/14, aquela relatou com riqueza de detalhes os últimos momentos de sua vida. Segundo seu relato, nos últimos meses de 1980 o sociólogo passou a sofrer de algo como uma mania de perseguição ou síndrome de pânico, por motivos ignorados. Por essa razão, caiu em uma depressão, que fez como que ficasse recluso em seu apartamento e não mais se alimentasse, o que debilitou severamente seu organismo, levando-o, em poucos meses, ao óbito. Sua interpretação era de que a morte poderia ser considerada um

6

Em brevíssimas linhas, essa é a trajetória profissional e acadêmica de Eduardo. A par dessas informações elementares, imagina-se que poderia haver estudos sobre a trajetória e pensamento desse personagem histórico. Contudo, uma procura na conhecida Plataforma Lattes, na ferramenta de busca, oferece apenas quatro nomes de pesquisadores, além do meu. São os seguintes: Flávio Santiago, graduado e mestre em educação pela UFSCAR, escreveu, em 2010, uma monografia de graduação intitulada Potencialidades Pedagógicas para a Educação das Relações Étnico-Raciais em imagens integrantes da Coleção Professor Eduardo de Oliveira e Oliveira15. O texto trabalha com algumas fotos constantes no acervo de Eduardo presente na UFSCAR – acervo sobre o qual falaremos logo em seguida. Outro nome é o da historiadora Monica Grin, professora de História da UFRJ, que publicou, em 2002, um artigo chamado Modernidade, identidade e suicídio: o “judeu” Stefan Zweig e o “mulato” Eduardo de Oliveira e Oliveira16. Voltaremos mais adiante a esse texto. Os outros dois nomes são os de Maria Cristina Hayashi e Vera Guimarães, autoras do Inventário Analítico da Coleção “Eduardo de Oliveira e Oliveira”, publicado em 1984 pela Editora da UFSCAR, com patrocínio do governo do Estado de São Paulo. Trata-se do inventário feito a partir do espólio material dos livros, artigos, cartas, fotografias, fragmentos da tese (não defendida) em sociologia na USP, entre outros documentos de Eduardo, doados pela família à UFSCAR em 1982. O Inventário reúne os mais de 2200 itens do acervo de Eduardo, que documentam a maior parte de sua trajetória intelectual. Seu prefácio é da autoria de Antonio Candido, amigo de Eduardo. Entretanto, o fato de haver poucos resultados na busca da Plataforma Lattes não quer dizer que inexistam outros textos sobre Eduardo, ou que ao menos citem aspectos ou fragmentos de sua trajetória. Exemplo disso é Gilda de Mello e Souza, ex-esposa de Antonio Candido e também amiga de Eduardo, que publicou um artigo denominado Homenagem a Eduardo de Oliveira e Oliveira, na revista Novos Estudos Cebrap, em 198117. É esse um escrito acurado, sociologicamente falando, suicídio, tendo em vista a impressão de que seu estado de saúde – e de saúde mental – assinalava uma desistência em relação à vida. Bárbara ressaltou, contudo, que Eduardo não morreu abandonado, pois ela mesma, e seu grande amigo, Diego Marruecos, o assistiram até o derradeiro momento. Todavia, Tasso Gadzanis, também amigo de Eduardo, relatou-me, em 26/06/14, baseado em suas conversas pessoais com o sociólogo, que sua morte foi uma escolha consciente, racional, de alguém que tinha se desiludido com o mundo e decidido abandoná-lo. Tasso corroborou a maior parte dos elementos relatados por Bárbara Marruecos (são amigos), mas enfatizou também o peso do racismo na vida de Eduardo. 15 Em contato feito através do Facebook, em outubro de 2013, Flávio Santiago gentilmente cedeu-me o texto de sua monografia. 16 Cf. GRIN, Monica. Modernidade, identidade e suicídio: o “judeu” Stefan Zweig e o “mulato” Eduardo de Oliveira e Oliveira. Topoi, Rio de Janeiro, p. 201-20, dez. 2002. 17 Esse mesmo artigo foi recentemente publicado no livro A palavra afiada (São Paulo: Editora Ouro sobre Azul, 2014), organizado por Walnice Galvão, reunindo dezenas de artigos, cartas e entrevistas concedidas por Gilda durante sua carreira acadêmica.

7

pela sensibilidade da autora em relação aos dilemas da questão racial e da vida dos negros no Brasil, e de como esses dilemas teriam sido decisivos para o desfecho trágico da vida de Eduardo. Outro texto é de autoria da ativista negra e filósofa Iray Carone, intitulado A flama surda de um olhar, publicado no livro Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (2002), livro que contém, aliás, uma singela dedicatória a Eduardo de Oliveira e Oliveira18. O texto, que consiste em uma homenagem póstuma, é o único existente a abordar aspectos mais gerais da vida e principalmente da obra de Eduardo. Ainda que não aprofunde as questões levantadas, a autora discute alguns dos principais elementos do pensamento de Eduardo contidos, respectivamente, nos esparsos textos de sua tese de mestrado em Sociologia na USP (que tinha como título [provisório] Ideologia racial: estudo de relações raciais) e na resenha O Mulato, um obstáculo epistemológico, publicada em 1974 na revista Argumento. Além desses dois últimos, os textos que de alguma forma abordam a obra de Eduardo de Oliveira e Oliveira o fazem se reportando justamente à supracitada resenha publicada em 1974. São os artigos de Monica Grin, antes mencionado, no qual a autora analisa os paradoxos da modernidade racial brasileira frente aos imperativos das modernidades europeia e norteamericana, tomando como exemplo as vidas perturbadas e trágicas de Stefan Zweig (“judeu”) e Eduardo de Oliveira e Oliveira (“mulato”)19; o artigo da antropóloga Ana Lúcia Valente, As políticas de ação afirmativa e o obstáculo epistemológico (2002), no qual se avaliza a argumentação de Eduardo sobre o mulato como “obstáculo epistemológico”, tendo em vista as definições de cunho político frente às ações afirmativas no Brasil contemporâneo20. A autora versa sobre os contínuos dilemas da construção da identidade negra em um país no qual o “mulato” tem vez. Ainda, o texto escrito pela antropóloga Olívia Mª Gomes da Cunha, Depois da festa: movimentos negros e “políticas de identidade” no Brasil (2000)21, que analisa aspectos da política negra de identidade em relação às especificidades e dilemas das relações raciais no Brasil. Olívia Cunha traz à discussão algumas contribuições de Eduardo, tais como a necessidade política de 18

À altura da “Dedicatória”, nas primeiras páginas do livro, lê-se: “Ao sociólogo e militante negro Eduardo de Oliveira e Oliveira, in memorian”. In: BENTO, Maria A. da S. (Org.). Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002. 19 A rigor, em sua tese em Ciência Política, defendida no IUPERJ, Monica Grin já havia elaborado uma discussão nesse sentido. Conferir O Desafio Multiculturalista: A Economia Política das Percepções Raciais, 2001, p. 04-12. 20 Ana Lúcia Valente foi orientanda no mestrado, entre 1982 e 1984, do mesmo orientador do mestrado de Eduardo, a saber, o antropólogo João Baptista Borges Pereira. 21 CUNHA, Olivia. M. Depois da Festa: movimentos negros e políticas de identidade no Brasil. In: Escobar, Arturo; Danigno, Evelina; Alvarez, Sonia (Orgs.). Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos: novas leituras. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000, p. 333-382.

8

polarização das relações raciais brasileiras – oriunda da resenha O mulato... – e o lugar social e político que seria devido aos intelectuais negros, através de um “compromisso intelectual” como a “causa” do negro – reflexão advinda do artigo Etnia e compromisso intelectual, de 1977. Nesse mesmo sentido está o artigo de Alex Ratts, Corpos negros educados: notas acerca do movimento negro de base acadêmica (2011), no qual faz uma leitura, assim como Olívia Cunha, de alguns elementos dos textos disponíveis de Eduardo em relação ao contexto mais geral dos intelectuais negros do período dos anos 1970, referindo-se a Beatriz Nascimento e Lelia Gonzalez. Uma minuciosa pesquisa bibliográfica, somada a uma exaustiva busca feita através do Google, não encontra mais nenhum texto digno de menção sobre Eduardo de Oliveira e Oliveira. Na realidade, se localizam esparsas referências em obras (livros, artigos, blogs, etc.) de pessoas ou temas relacionados a Eduardo. Assim, seu nome – e pouco mais do que isso – se encontra em alguns textos sobre a Associação Cultural do Negro, do qual participou em sua última fase22, sobre o CECAN, do qual foi um dos fundadores 23 e ao lado do nome de Thereza Santos, com quem escreveu a peça de teatro E agora falamos nós..., em 197224. Apesar disso, é forçoso reconhecer que Eduardo é verbete na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, de Nei Lopes25, no livro Quem é quem na negritude brasileira, de seu homônimo, o poeta e político negro Eduardo de Oliveira 26 e em alguns momentos no livro de história oral Histórias do Movimento Negro no Brasil (2007)27. Podemos afirmar, a partir desse breve exame do que já se produziu sobre Eduardo, que, a despeito da qualidade dos textos já escritos, ainda não foi realizada uma reflexão de maior fôlego sobre esse intelectual. Seu arquivo pessoal, depositado na Unidade Especial de Informação e Memória da UFSCAR, é praticamente inexplorado. A rigor, pode-se afirmar que o contexto dessa rede de intelectuais negros envolta com o tema – e a luta – do negro nos anos 1970, tais como Eduardo, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, e mesmo Abdias do Nascimento, ainda não foi devidamente explorado. Tal quadro é ainda mais incompreensível pelo fato de Eduardo, Beatriz e Clóvis possuírem acervos pessoais inventariados em arquivos no Rio e em São Paulo28. 22

SILVA, Mário A. M. da. Fazer história, fazer sentido: Associação Cultural do Negro (1954-1964). SILVA, Joana, op. cit. 24 Conferir, por exemplo: http://www.seppir.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2012/12/morre-tereza-santos-1930-2012guerreira-da-cultura-negra. 25 LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004, p. 48. 26 OLIVEIRA, Eduardo de. Quem é quem na negritude brasileira. São Paulo: Ed. Congresso Nacional Afro-brasileiro, 1998, p. 20. 27 Cf. ALBERTI e PEREIRA, op. cit. 28 O acervo de Beatriz do Nascimento está no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. O acervo de Clóvis Moura está no Centro de Documentação e Memória da UNESP, em São Paulo. O acervo de Abdias do Nascimento está aos encargos 23

9

Na próxima seção, falaremos sobre o arquivo pessoal de Eduardo na UFSCAR e faremos um apanhado de alguns de seus principais textos e do contexto no qual foram pensados e escritos. Trata-se de uma apresentação, a qual não se pretende exaustiva. Na etapa conclusiva, tendo em vista as potencialidades analíticas apresentadas, lançamos indagações sobre o [aparente] desinteresse no estudo do pensamento de Eduardo de Oliveira e Oliveira.

Pensamento de Eduardo de Oliveira e Oliveira: esboço Se durante os mais de trinta anos decorrentes desde sua morte houve relativamente pouco interesse em uma abordagem mais ampla da trajetória de Eduardo, isso não deve ser creditado à falta de fontes. O acervo pessoal e o Inventário Analítico... estão disponíveis na UFSCAR há precisamente trinta anos. Na “Nota de Apresentação” do inventário pode-se ler a seguinte descrição: Essa Coleção é constituída por um conjunto de documentos de natureza diversa, que retratam não só aspectos da vida privada e pública, como também o contexto histórico da atuação de Eduardo de Oliveira e Oliveira. Foi alocada no Arquivo de História Contemporânea por sua família, desde outubro de 1982, possuindo cerca de 2200 documentos29.

Trata-se de um conjunto expressivo de documentos. Dos textos sobre Eduardo que apresentamos mais acima, todavia, somente os de Flávio Santiago e Iray Carone utilizam e citam o dito Inventário. Isso nos induz a pensar que somente essas duas pessoas fizeram trabalho de arquivo no acervo em São Carlos que tenha redundado em uma publicação sobre o sociólogo. Visto que o trabalho de Santiago não se debruça sobre aspectos específicos da obra de Eduardo, podemos afirmar com segurança que o texto de Carone é a única produção, em trinta anos de história da coleção de Eduardo na UFSCAR, a utilizar-se desse arquivo de forma razoavelmente sistemática30. A partir disso, pode-se dizer que, se não Eduardo, pelo menos seu acervo pessoal é praticamente esquecido/ignorado.

do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros (IPEAFRO) no Rio de Janeiro o qual, atualmente, se encontra, por motivos financeiros, com acesso restrito. 29 GUIMARÃES, V.; HAYASHI, M. Inventário analítico da coleção “Eduardo de Oliveira e Oliveira”. São Carlos: Arquivo de História Contemporânea/Secretaria da Cultura de São Paulo, 1984, p. 3. 30 Faz-se mister, todavia, reconhecer o fato de que pode ter eventualmente havido trabalho de pesquisa no arquivo sem que, contudo, isso tenha resultado em publicação ou outro tipo de menção textual. Possuímos informações (através de relato dos funcionários do Arquivo UEIM-UFSCAR) de que pelo menos dois intelectuais negros realizaram (ou realizam) pesquisas no acervo de Eduardo de Oliveira e Oliveira. São eles: o ativista e sociólogo Ivair Augusto Alves dos Santos (conheceu Eduardo ainda em São Carlos na década de 1970) e o historiador Flávio dos Santos Gomes, professor no departamento de História da UFRJ.

10

No Inventário estão arrolados vários tipos de documentos. Entre os mais importantes, em nossa avaliação, estão as cerca de 300 cartas (recebidas e enviadas), que atestam a imensa e variada rede de relações de Eduardo, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos – mas há presença expressiva também de interlocutores da França, Argentina e Senegal, entre outros países; sua biblioteca pessoal, que contém mais de 500 livros, muitos dos quais marcados com incontáveis observações de leitura 31 ; e a série de produção intelectual, a qual reúne dezenas de artigos, conferências, resenhas, cadernos de estudo, além dos relatórios de pesquisa – à FAPESP e à Fundação Ford – e as anotações e esboços dos capítulos de sua inconclusa tese32 de mestrado em Sociologia na USP, material este que constitui a parte mais numerosa de documentos. Vamos a ele. É preciso dizer que Eduardo, na verdade, publicou poucos textos. Esses, por sua vez, são de difícil acesso ao leitor não especializado, e mesmo a acadêmicos/pesquisadores. O único escrito razoavelmente bem conhecido é mesmo O mulato, um obstáculo epistemológico, publicado na revista Argumento, em 1974. Deixemos de lado, por ora, as apropriações e interpretações sobre esse pequeno, mas seminal texto, e ouçamos uma definição do próprio autor: Uma crítica à tese do historiador norte-americano Carl Degler, Nem Preto nem Branco – Escravidão e Relações Raciais no Brasil e nos Estados Unidos, (Nova York, 1971) de que as relações raciais no Brasil se diferenciariam daquelas dos Estados Unidos porque elas não são, como nos EUA, “oposições polares”, devido à existência da categoria intermediária que é a do “mulato” 33.

Seu texto mais conhecido, portanto, é uma resenha. Apesar disso, Eduardo avança em algumas questões que levam a discussão para além dos limites de uma resenha. O sociólogo sugere que a “saída de emergência do mulato” (“mulatto escape hatch”), que para Degler é o elemento que constitui a especificidade das relações raciais no Brasil, seria na realidade uma “armadilha preparada”, tendo em vista as possibilidades políticas dos negros se identificarem a partir de um eixo ou categoria comuns – em uma palavra, como negros. O outro texto “disponível” – diga-se, que pode ser consultado além-arquivo – é o artigo Etnia e compromisso intelectual, de 1977, que se encontra publicado no Caderno de Estudos da 2ª Semana de Estudos Sobre o Negro na Formação Social Brasileira, realizada na Universidade 31

Exemplo nesse sentido é o exemplar do livro Neither Black Nor White (1971), de Carl Degler, objeto da resenha O mulato, um obstáculo epistemológico. 32 Aparentemente, naquela época – década de 1970 – o texto final exigido para o mestrado em sociologia na USP era chamado de “tese”. Por ainda não dispormos de informações suficientes para melhor aclarar esse detalhe, respeitamos a documentação original. 33 Currículo de Eduardo de Oliveira e Oliveira, 1975, s. l., s. p. Grifos do autor. Coleção Eduardo de Oliveira e Oliveira: UEIM-UFSCAR.

11

Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Esse evento foi organizado em algumas ocasiões na década de 1970 pelo Grupo André Rebouças, que reunia alguns estudantes negros da UFF. Em 1977, o grupo contou com a presença de alguns interlocutores de Eduardo, entre eles Beatriz Nascimento e Carlos Hasenbalg. Sobre esse texto, Oliveira e Oliveira pontua: Este trabalho enquadra-se dentro de preocupações que têm por base uma Sociologia da Cultura, e particularmente da Cultura Brasileira. Na medida em que se faz necessário “descolonizar” o negro brasileiro, quando para sua liberação e progresso se faz necessário uma mudança, e como “mudar é mudar culturalmente, por um conjunto de valores que lhe são dados por sua cultura”, é preciso que a conheçamos, a critiquemos e a renovemos, para encontrar os meios que nos conduzem à ação necessária34.

Nesse texto, o autor discorre sobre alguns temas-chave de sua reflexão teórica, como a posição do negro, historicamente subalternizado, frente à atividade intelectual; a ideia de uma “sociologia negra”, que seria “como um passo positivo para o estabelecimento de definições básicas; conceitos e construções teóricas que utilizem as experiências e história dos afrobrasileiros”35; e a constatação de que o [intelectual] negro brasileiro “não está lidando com um assunto (é preciso que ele saiba) mas com uma causa”36. Esse mesmo artigo foi apresentado por Eduardo na Quinzena do Negro na USP e no I Congresso das Culturas Negras das Américas, em Cali, na Colômbia, ambos em 1977 – neste último participou também Abdias Nascimento37. Outro texto fundamental é aquele que foi apresentado por Eduardo na reunião anual da SBPC realizada em São Paulo, em 1977, que tem por título De uma ciência Para e não tanto Sobre o negro. Nessa ocasião organizou, em parceria com Beatriz Nascimento e Clóvis Moura, o simpósio “Brasil Negro”, que reuniu dezenas de intelectuais na PUC-SP. O texto comunga de alguns princípios de Etnia e compromisso intelectual. Segundo o autor:

O título encerra uma preocupação teórica básica: da adequação ou não da sociologia geral (considerando-se desde sua origem Comteana até o materialismo dialético mais recente) na abordagem do problema do negro: ou esta requer uma formulação paralela a esta sociologia, englobando-a, e que pode ser denominada de “sociologia negra”?38

34

Caderno de Estudos. Niterói: 2ª Semana de Estudos Sobre o Negro na Formação Social Brasileira/UFF, 1977, p. 22. Grifos no original. 35 Idem, p. 26 36 Idem, p. 27. Grifos no original. 37 Abdias, em seu relato sobre sua participação no evento em Cali, omite a presença de Eduardo no mesmo. Cf. NASCIMENTO, Abdias do. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1980, p. 152-160. 38 De uma ciência Para e não tanto Sobre o negro, s. l., 1977, p. 1. Coleção Eduardo de Oliveira e Oliveira: UEIMUFSCAR.

12

Fazendo críticas ao marxismo, Eduardo pontua que “as análises tradicionais da sociologia devem ser seriamente questionadas em sua relevância com relação aos estudos sobre negros”, devendo ser propostos “modelos alternativos de análise”39. Assim, haveria de se “prover à gente negra condições de começar a construir um pensamento, baseado em uma análise que conduza a um compromisso com sua busca de identidade”40. Eduardo lança bases para uma perspectiva pragmática de estudos das questões e aspirações dos negros brasileiros. Entretanto, para isso seria necessário uma “descolonização das ciências sociais”41, que conseguisse destas o compromisso de uma genuína identificação com as classes e grupos oprimidos. Pós-colonialismo avant la lettre? Há ainda mais de uma dezena de outros textos, menores, que consistem em artigos publicados em jornais ou coletâneas, resenhas, textos de conferências, cartas publicadas em jornais, etc. Selecionamos acima apenas uma amostra do que tomamos como mais significativo para a discussão inicialmente proposta sobre intelectuais negros no período da década de 1970. É forçoso afirmar, ainda, que os textos acima apresentados devem ser vistos em consonância com as perspectivas teórico-analíticas que Eduardo vinha desenvolvendo ao longo dos anos 1970 em seu mestrado na USP. Tudo leva a crer que o texto da tese estava praticamente pronto quando dos acontecimentos que levaram à sua morte, nos últimos meses do ano de 1980. Sobre o trabalho que vinha realizando, ele escreveria o seguinte em seu currículo, em 1975: “no presente momento estou escrevendo minha tese sobre Relações Raciais no Brasil, em um esforço de demonstrar a presença no Brasil de uma quase universal negritude e personalidade negra”42. O título de seu projeto de pesquisa, apresentado à USP em 1971, era Ideologia racial, estudo de relações raciais; no esboço de seu planejamento dos capítulos da tese, redigido em meados de 1979, já havia mudado para História e Consciência de Raça43. Em poucas palavras, podemos dizer que a proposta de Eduardo pretendia delinear um campo ideológico – e histórico – do negro em São Paulo ao longo do século XX, fazendo-o “se não de uma perspectiva subjetiva, pelo menos levando em consideração o fato de o pesquisador identificar-se

39

Idem, p. 5. Idem, p. 9. 41 Idem, p. 10. 42 Currículo de Eduardo de Oliveira e Oliveira, 1975, s. l., s. p. Coleção Eduardo de Oliveira e Oliveira: UEIMUFSCAR. 43 Esboço dos títulos e subtítulos de tese. Texto escrito à mão. Coleção Eduardo de Oliveira e Oliveira: UEIMUFSCAR. 40

13

com o grupo estudado”44. O autor (sujeito) considerava-se profundamente implicado com o objeto. Tendo em vista as contribuições da sociologia uspiana sobre o negro, como as obras de Florestan Fernandes e Roger Bastide, e pensando a partir do conceito e da problemática da “ideologia”, Eduardo realizou, na cidade de São Paulo, intenso trabalho de campo, com entrevistas, testes psicológicos, análise de jornais negros, etc. Conduziu tal empresa no meio negro no qual estava inserido, tomando contato tanto com ativistas negros quanto com pessoas ordinárias. A tese, como sabemos, não chegou a ser defendida. Não estão claros os motivos pelos quais a escrita da mesma se arrastou por quase dez anos. Também somos cautelosos, no atual estágio da pesquisa, em dizer que haveria uma conexão entre esse arrastar-se e as questões envolvendo sua vida – e sua morte. De qualquer forma, temos à disposição, no arquivo em São Carlos, os relatórios, cadernos de anotação e esboços de capítulos do dito texto, que somam mais de mil páginas. Trata-se de um intrincado e instigante quebra-cabeça.

Considerações finais Depois de termos passado em revista a historiografia sobre os intelectuais negros brasileiros do contexto da mobilização política negra dos anos 1970, a historiografia sobre Eduardo de Oliveira e Oliveira, e de termos apresentado alguns de seus principais textos e ideias, podemos finalmente perguntar: por que não houve, ao longo de mais de três décadas, um interesse, intelectual e mesmo político, mais substantivo em torno do pensamento de Eduardo de Oliveira e Oliveira? Como vimos, não podemos atribuir essa lacuna historiográfica nem à escassez de fontes sobre sua trajetória nem às especificidades de seu pensamento, que se mostra, mesmo em uma breve revista, tal como fizemos, original e sofisticado, ainda que fragmentado – ou fragmentário. Uma razão prosaica, e até mesmo óbvia, deve ser enfatizada novamente: Eduardo não publicou praticamente nada, e o que publicou se encontra em locais de difícil acesso45. Esse é um fator muito importante, mas não é tudo. 44

Relatório de atividades para o exame de qualificação do curso de sociologia na F.F.L.C.H. da USP, 1974, p. 1. Coleção Eduardo de Oliveira e Oliveira: UEIM-UFSCAR. 45 A revista Argumento (na qual está a resenha O mulato...), por exemplo, só se encontra em coleções de bibliotecas universitárias e em sebos virtuais. O Caderno de Estudos da 2ª Semana de Estudos Sobre o Negro na Formação Social Brasileira, onde está publicado o artigo Etnia e compromisso intelectual, só está disponível, até onde foi possível averiguar, no acervo da Biblioteca Central do Gragoatá, na UFF, em Niterói (em péssimo estado de conservação), na biblioteca do extinto Centro de Estudos Afro-Asiáticos, na Universidade Cândido Mendes, no centro do Rio de Janeiro, e no acervo de Beatriz Nascimento no Arquivo Nacional, nessa mesma cidade, ambos em bom estado de conservação.

14

Se estivéssemos tratando da história da Sociologia brasileira mais geral, seria, até certo ponto, compreensível que pouco tenha se falado sobre Eduardo, um intelectual negro sem nada relevante publicado – seu desprestígio poderia ser creditado àquele que recai sobre a maior parte dos intelectuais negros no Brasil, com a exceção, talvez, de Abdias do Nascimento. O que é menos aceitável – e/ou mais intrigante – é que a própria sociologia das relações raciais e a intelligentsia negra no Brasil quase não tenham dado atenção a Eduardo. Não queremos tecer loas a nosso objeto ou a nossas ideias, mas compreender de fato a lógica histórica da produção desse silêncio. A par dessas inquietações, consideramos que a questão pode começar a ser pensada a partir de fatores tanto internos quanto externos à trajetória pessoal e intelectual de Eduardo de Oliveira e Oliveira. No que diz respeito aos ditos fatores internos, elencamos três possíveis elementos, a saber: 1) Problemática do mulato: intelectualmente falando, Eduardo ficou conhecido – quando o foi – pelo seu texto O mulato, um obstáculo epistemológico. Pelo menos um texto relaciona, ainda que sob ordem simbólica, o desconforto de Eduardo com a figura social do mulato em sua expressão tanto intelectual quanto pessoal, ou seja, o laço entre os dilemas da miscigenação com a ideia da morte – no caso, com a ideia – e o fato – do suicídio46. Contudo, existem outras referências que apontam uma relação – diríamos, concreta – entre os dois aspectos – “dilemas do mulato” e “morte”47. Como uma possível combinação desses fatores foi vista naquele contexto dos anos 1970, e nas décadas seguintes, pelos ativistas do Movimento Negro brasileiro? Qual a relação entre a 46

Cf. GRIN, 2002. Beatriz Nascimento afirma: “A luta do negro não está sendo fácil no Brasil, está levando muita gente ao hospício e eu sei disso [...] O Eduardo de Oliveira e Oliveira é um exemplo típico. Uma pessoa incrível, sabendo posicionar todas as coisas com clareza e precisão, foi um dividido entre a função cômoda de um professor de Universidade e militante de tempo integral. Acabou ficando isolado dez dias em casa, ninguém o procurou e ele, que já estava com problemas mentais, morreu de fome, de abandono”. NASCIMENTO, Beatriz. Depoimento. In: COSTA, Haroldo (Org.). Fala crioulo. Rio de Janeiro: Record, 1982, p. 197 [Na segunda edição desse mesmo livro (2009), o depoimento de Beatriz não foi incluído, e o prefácio de Jorge Amado movido para o final do livro]; O depoimento do antropólogo Peter Fry, amigo de Eduardo nos anos 1970, presente na tese de Monica Grin (2001) diz o seguinte: “[...] Em nossas conversas, Peter Fry lembraria o crescente afastamento dos amigos de Eduardo de Oliveira (seu verdadeiro nome) diante de sua obsessão pela má consciência dos que não assumiam a ‘raça’ como identidade. Chegou-se a sugerir que o suicídio de Eduardo de Oliveira e Oliveira parecia uma corroboração do isolamento ‘imposto’ pelos seus amigos, como relata Peter Fry”. In: GRIN, 2001, p. 4. No artigo supracitado dessa autora, a mesma nota aparece sem a última frase (Cf. GRIN, 2002, p. 217, nota 10); O sociólogo José de Souza Martins relata o seguinte: “Desiludido com o oportunismo e a precedência das aspirações de ascensão social e de branqueamento dos negros que o cercavam no projeto da Casa Verde, Eduardo suicidou-se, deixando-se morrer de fome e sede, trancado em seu apartamento, a alguns passos da velha Faculdade de Filosofia”. In: Luiz Pereira e sua circunstância: entrevista com José de Souza Martins. Tempo Social, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 211-76, jun. 2010; o ativista e intelectual negro Hamilton Cardoso escreveu, em 1991: “O meu irmão Airton (fale rápido!) B. Cardoso, ao meu lado era invisível. E continua. Ele está morto e é um cadáver, belo e leve, como o do Eduardo de Oliveira e Oliveira, o sociólogo que dizem, suicidou-se porque não agüentou, mestiço, a tortura de ser negro e refletir sobre si mesmo e viver entre e, nos Dois Mundos”. Carta escrita por Hamilton por ocasião da visita de Nelson Mandela ao Brasil. Disponível em: http://arquivo.geledes.org.br/atlantico-negro/hamilton-bernardescardoso. Acesso em 30/01/15. 47

15

mobilização negra dos anos 1970 com o tema da miscigenação, ou da figura social – e mesmo concreta – do mulato? Tudo indica que essa é uma questão geral importante48. 2) Problemática do suicídio: essa questão, muito delicada, é parcialmente derivada da anterior. Além de Eduardo, pelo menos outros dois intelectuais negros importantes do contexto dos anos 1970 estiveram envolvidos, e passaram a estar associados, de formas diferentes, com o suicídio. Hamilton Cardoso, contemporâneo e interlocutor de Eduardo, matou-se em 1999 49 . Finalmente, Neuza Santos Souza, psicanalista e ativista negra, suicidou-se em 2008, por motivos ignorados50. Infeliz coincidência? Talvez. Porém, é preciso analisar essa questão, posto que, pelo menos em interpretações sobre a trajetória de Eduardo, ela já foi aventada como importante. 3) Problemática da homossexualidade: Eduardo era homossexual e teria sido discriminado no “meio negro” por essa razão. Trata-se de uma questão difícil, tão mais complicada pelo caráter subjetivo inerente tanto aos dilemas de sua vivência quanto a seu tratamento empírico, pelo pesquisador. Contudo, existem pistas. A atriz negra Thereza Santos afirma em sua autobiografia que Eduardo foi discriminado pelos brancos por ser negro e pelos negros pela sua opção sexual51. Há, também, uma carta enviada para o irmão de Eduardo, Evandro de Oliveira, escrita por Ivan Gabriel, ativista negro e gay, ligado ao Grupo Adé-Dudu (na língua iorubá, “homossexual negro), da Bahia, datada de 1983, dando conta de que esse grupo pretendia escrever um grande trabalho sobre a vida e a obra de Eduardo. Ainda que não se refira a Eduardo como homossexual, podemos ver que esse grupo estava atento à sua atuação político-intelectual52. Com relação aos fatores externos, algumas hipóteses podem ser levantadas provisoriamente. Além do fato de Eduardo quase não ter publicado e de não ter concluído e defendido seu mestrado

48

Um depoimento de Oracy Nogueira é revelador nesse sentido: “O saudoso Eduardo de Oliveira e Oliveira, que foi um dos mais brilhantes alunos de pós-graduação que conheci na Universidade de São Paulo e, ao mesmo tempo, um ardoroso ativista do movimento negro, sempre que estava numa roda em que havia pessoas com ligeiras marcas africanas – docentes ou estudantes – costumava testá-las, com o ar irônico que o caracterizava, envolvendo-os na frase: - ‘Nós, os mulatos...’ (Ele era mulato.), ou então substituía ‘mulatos’ por ‘negros’: - ‘Nós, os negros...’. O resultado, em geral, era uma situação de desconforto para as pessoas visadas e para as testemunhas”. NOGUEIRA, Oracy. Ainda a identificação por categorias de cor, no Brasil. Folha de São Paulo. São Paulo: 19 de fevereiro de 1984, 1º Caderno, p. 3. 49 Hamilton Cardoso (1953-1999) é outro intelectual negro e interlocutor importante de Eduardo. Sobre Hamilton cf. OLIVEIRA, Fábio N.; RIOS, Flávia. Consciência negra e socialismo: mobilização racial e redes socialistas na trajetória de Hamilton Cardoso (1953-1999). Contemporânea, São Carlos, v. 4, n. 2, p. 507-530, jul./dez. 2014. 50 Cf. http://leliagonzalez-informa.blogspot.com.br/p/neusa-santos-souza.html. 51 Cf. SANTOS, Thereza. Malunga Thereza Santos. São Carlos: Edufscar, 2008, p. 81-82. 52 Citamos um excerto da carta de Ivan Gabriel: “Deixe-me agora que eu me apresente, meu nome é Ivan Gabriel, militante do movimento negro e movimento homossexual. Tenho contato com um grupo baiano denominado Adé-Dudu (que em Iorubá quer dizer, homossexual negro), este grupo pretende elaborar um grande trabalho sobre Eduardo O. Oliveira [...]. O trabalho de Eduardo tem um valor insondável e não pode jamais cair no esquecimento [...].” Essa carta, bem como outros documentos, me foi gentilmente cedida (cópia) pela sobrinha de Eduardo, a Sra. Elbe Oliveira.

16

na USP, pode ter havido, ao longo dos anos 1970-80, um descompasso entre o ativismo negro, pelo menos em São Paulo, e a sociologia acadêmica – da qual Eduardo fosse talvez a encarnação mais genuína, ou seja, a do intelectual-acadêmico em sentido estrito. Também, é no mínimo intrigante que a UFSCAR, que tem um dos Neabs mais importantes do Brasil, um dos mais interessantes acervos históricos sobre o Movimento Negro brasileiro – além de Eduardo, lá estão os documentos de Ivair Augusto dos Santos, Thereza Santos e da Associação Cultural do Negro –, e que teve em seus quadros uma Petronilha Gonçalves Silva53, não tenha, ao longo de trinta anos, desenvolvido, sob sua alçada, praticamente nenhum trabalho de maior vulto sobre Eduardo de Oliveira e Oliveira. Essas questões que nos propomos pensar são propostas baseadas em escolhas, feitas entre muitas outras possibilidades que podem, ainda, por sua vez, se desdobrar em outras problemáticas – e que podem, também, desmentir nossas hipóteses. Elas são complexas e não devem ser vistas separadamente. Em uma palavra, são históricas. Nossas sugestões de pesquisa são baseadas, unicamente, nas evidências documentais disponíveis. Assim, ao trabalho com as evidências propomos uma arqueologia dos silêncios, ou genealogia dos esquecimentos.

53

Doutora em Educação pela UFRGS, Petronilha fez sólida carreira como docente e pesquisadora na UFSCAR. É autora do parecer apresentado ao Conselho Nacional de Educação, em 2003, que instituiu as diretrizes para educação de relações raciais na educação brasileira.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.