Notas sobre o estatuto ambíguo dos cachorros no sertão cearense

September 2, 2017 | Autor: Jorge Luan Teixeira | Categoria: Pastoralism (Social Anthropology), Sertão, Rural Anthropology
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NOTAS SOBRE O ESTATUTO AMBÍGUO DOS CACHORROS NO SERTÃO CEARENSE 1 Jorge Luan Rodrigues Teixeira (PPGAS/MN/UFRJ) 2 "You got to be crazy, gotta have a real need,/ Got to sleep on your toes, and when you're on the street/ Got to be able to pick out the easy meat with your eyes closed./ Then moving in silently down wind and out of sight/ You got to strike when the moment is right without thinking" -Dogs, Pink Floyd

INTRODUÇÃO Sempre fica algo importante fora dos nossos trabalhos acadêmicos. Por mais sentido que vejamos em incluir esses ou aqueles materiais, ou a dimensão da tese, do artigo, etc é impeditiva, ou tratar de tais assuntos, por mais sentido que fizesse, fugiria do escopo daquilo a que nos propusemos. Neste artigo, a minha intenção é fazer uma primeira e pequena formulação sobre alguns dados que não puderam ser incluídos na dissertação (TEIXEIRA, 2014), embora as conexões entre o que é aqui discutido e o que foi antes apresentado sejam muitas, como se verá. O artigo tem como base uma pesquisa de campo realizada durante o primeiro semestre de 2013 no município de Catarina (no Sertão dos Inhamuns, Ceará) entre moradores 3. Desde então, fiz outras rápidas visitas à região estudada, ocasiões essas em                                                                                                                 1   Trabalho apresentado na Oficina "Mexendo com criação: (des)fazendo pessoas, casas, vizinhanças, territórios, nomes e negócios", realizada entre os dias 14 e 15 de Agosto de 2014 no Museu Nacional. Agradeço aos comentários recebidos na ocasião, que não foram incorporados neste texto. Os erros e as omissões são, portanto, de minha inteira responsabilidade.   2  Aluno do Doutorado em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ). Mestre em Antropologia Social pelo mesmo programa. Bacharel em Ciências Sociais pela UFC. Pesquisador vinculado ao núcleo de Antropologia da Política (NuAP).   3   Em resumo, poderíamos dizer que moradores são trabalhadores rurais que moram "na terra dos outros" e "pastoram o alheio", não sendo nem donos da casa em que residem e nem da terra em que plantam. Com frequência, o morador paga uma proporção da produção agrícola ao patrão (quando é a metade, fala-se em meia). Ser morador não está no mesmo estatuto que ser "agricultor", "trabalhador rural" ou mesmo profissional (um pedreiro, um mecânico, etc), pois a morada é uma condição, como já havia observado Moacir Palmeira pensando sobre essa relação na Zona da Mata pernambucana: "Antes de pedir morada ou entre uma morada e outra, o trabalhador não é morador. É só quando estabelece um 'contrato' particular que o liga a um senhor de engenho particular [um patrão, um fazendeiro, no sertão cearense], isto é, é só quando se põe em relação com, que o trabalhador potencial se torna um morador" (PALMEIRA, 1977, p.104). Nos Inhamuns, e nos sertões cearenses como um todo, o morador pode ser também vaqueiro. Nesse caso, ele é remunerado ou na sorte (uma proporção dos animais nascidos, um

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que passei a centrar mais atenção sobre o tema aqui discutido. Outros dados apresentados se referem a observações feitas nos municípios de Saboeiro e Acopiara entre moradores e pequenos proprietários rurais 4. Por razões que ficarão claras ao longo do artigo, alguns nomes das pessoas implicadas foram alterados com a intenção de guardar o máximo possível o seu anonimato. Cachorros. Mas por que eles? Porque são praticamente onipresentes no Sertão cearense: é difícil encontrar uma casa que não os tenha ou que nunca tenha possuído um. E se em alguma delas não há e nunca houve, bastará olhar ao redor para se dar conta que algum vizinho será dono de um cachorro. E por que os cachorros, ao invés de outros animais com maior centralidade econômica, social e até mesmo histórica, como os bois, os equinos, os caprinos, os ovinos, os suínos? Figura aparentemente de menor importância e até mesmo banalizada pelos nossos olhos urbanos acostumados a cruzar com eles nas ruas, nos parques, nos condomínios, etc, os cachorros são, no sertão cearense, uma via para se pensar não só sobre aqueles animais citados acima, mas também sobre o estatuto do humano - e, para além disso, sobre as relações dos homens com os animais e dos homens uns com os outros. Se digo isso é porque os sertanejos com quem convivi e convivo têm um lugar particular para os animais na sua ordenação do mundo - e que povo não tem? Em pelo menos três aspectos o interesse antropológico pelos animais é produtivo no estudo do sertão nordestino. (1) Ao falarem sobre o estatuto do animal, os sertanejos, falam, explicitamente ou não, sobre o seu estatuto e o seu lugar no mundo (INGOLD, 1994). (2) O Sertão nordestino foi colonizado por criadores de gado bovino vindos da faixa litorânea do território brasileiro, combatendo os indígenas, estabelecendo fazendas ao longo dos rios com o fim de alimentar as bocas da Zona da Mata com aquilo que os senhores de engenho optaram por não produzir pelo bem do negócio da cana-de-açúcar (CAPISTRANO DE ABREU, 1988; MENEZES, 1995; GIRÃO, 1986). Essa centralidade econômica dos animais de criação é inconteste ainda hoje tanto para os proprietários quanto para os moradores, como se verá. Não é exagero                                                                                                                 quarto ou um quinto, é sua), ou em dinheiro (o salário, que nunca é um salário mínimo). Nos tempos bons, quando não há Seca, o vaqueiro prefere ser remunerado na sorte, pois ela permite a formação de um capital vivo que poderá ser utilizado com os mais diversos fins: da compra de uma mota à construção de uma casa própria.   4  O primeiro município também faz parte da microregião do Sertão dos Inhamuns, sendo vizinho tanto de Acopiara quanto de Catarina. Os dados sobre Acopiara, minha cidade natal, foram "acumulados" ao longo da minha vivência ali. A minha inserção em Saboeiro, por sua vez, se deve ao fato de que minha família paterna possui uma propriedade rural numa região nas "extremas" com Catarina.  

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dizer que, no Sertão, uma cabeça de gado não é apenas um cabeça de gado, é um investimento incerto em razão das Secas, mas relativamente recompensador nos bons anos - uma única rês são todos os séculos de pecuária extensiva no Nordeste brasileiro. (3) Os animais, e esse é quase um corolário do ponto anterior, permitem falar sobre as relações dos homens entre si, dada a importância a eles conferida e a sua presença no cotidiano sertanejo. Esse ponto ficará mais claro com o que se segue, mas indicações nesse sentido estão presentes em trabalhos como os de John Campbell (1964) e de Michael Herzfeld (1988). Na próxima seção deste artigo, apresento e discuto uma das categorias usadas pelos sertanejos para se referirem aos animais. Nessa parte do trabalho, retomarei algumas discussões presentes na minha dissertação, fazendo também referência à Seca que, no ano de 2013, assolava o Sertão nordestino. Na sessão seguinte, penso sobre o lugar ocupado pela caça na vida dos sertanejos, moradores ou não. Por fim, retomando alguns apontamentos da sessão anterior, me volto ao pastoreio sertanejo - um "pastoreio" que é tanto dos animais quanto dos vizinhos, dos parentes, etc. Os cachorros ou são o fio condutor, ou são protagonistas de algumas das histórias contadas. A eles e ao que os circula, então. O LUGAR DOS BICHO BRUTO Um dos clichês das representações do Sertão nordestino, mas também uma das suas maiores tragédias: a Seca. Do momento em que pisei os pés em Catarina - era fevereiro de 2013 - ao momento em que de lá saí, a estiagem era o assunto privilegiado na mesa do almoço, nos alpendres das casas, nos jogos de rifa e nas mesas de bar. E como não? Os relatos contavam de um conhecido criador do município que, certamente, perdera mais de cem cabeças do seu rebanho. O pasto morto, os mandacarus (queimados para alimentar o rebanho) e os outros artifícios alimentares escasseando e insuficientes, os sacos de resíduo (torta de algodão), farelo de soja (para as vacas leiteiras) e milho caríssimos. Com sorte, o gado poderia ficar "na folha" (i.e., comendo nas mangas, nas matas, na caatinga) por algum tempo. Houve os produtores que optassem pela "cama de frango" como solução para alimentar o rebanho. O que era feito contra a vontade (e o olfato) dos criadores e daqueles que ou comiam a carne, ou tinham o desprazer de cruzar com os caminhões que as levavam para os municípios. 3    

  Fotografia 1: "Devia chover umeno pra fazer água nos açudes e pasto pros bichim..." Foto: Jorge Luan Teixeira

Para além do alimento, a água. Faltava água nos açudes e muito estavam secos ou com água imprópria para o consumo humano e animal. Se as cisternas das casas e os carros-pipa do Exército Brasileiro representavam uma solução para os homens, não era esse o caso para o gado e a criação 5. Os sertanejos observavam todos os dias o céu e as matas procurando sinais e fazendo piadas sobre a situação: "Não tem uma garra de nuvem no céu que dê para fazer uma currulepe [uma sandália de couro] para um soim [um sagui]", "Não tem milho nessas roças que engasgue um sibito [um pequeno pássaro]", "Ainda bem que não choveu: só ia enlamear o carro".

                                                                                                                5   Gado é como os sertanejos se referem aos bovinos, enquanto criação (ou miunça, mais raramente) é usado para se referir aos caprinos e aos ovinos.   4    

Nessa situação, duas frases eram repetidas com alguma frequência pelas mais diversas pessoas: (1) "Hoje em dia não tem mais Seca pra gente [o povo], não: só tem Seca pros bruto" e (2) "Se chovesse umeno pra fazer pasto e água pros bichim beber já tava bom demais..." Ao significado particular dessas frases me voltarei adiante. "Bichim", "bruto": bicho bruto. É assim que os sertanejos se referem aos animais. Na verdade, "animais" não é lá a melhor palavra. Ao falarem em animais ou animal, eles estarão se referindo aos equinos: cavalos, burros, jumentos. Assim, se alguém diz que Fulano foi para a rua (a cidade) de animal, entenda-se que ele foi montado ou em um cavalo, ou em um burro, ou em um jumento. Daqui em diante, preferirei usar bichos ou brutos para me referir aos coletivos animais. Para os leitores, o uso de "Bicho" talvez seja de entendimento mais fácil, na medida em que a palavra é comumente usada em sentido análogo ao de "Animal". O sentido de "bruto", contudo, parece mais difícil de assimilar. Assim, de tanto ouvir as pessoas falaram bicho bruto, um dia resolvi perguntar a que eles se referiam com a expressão - o que é bicho bruto? A minha suposição era de que tal categoria se referisse unicamente aos bichos de criação e domésticos - afinal, era com eles que se usava a expressão na maior parte do tempo. Tratava-se, evidentemente, de uma pergunta inusitada e, aos ouvidos dos interlocutores, óbvia: era como perguntar, talvez, por que uma nuvem se chama "nuvem". A diferença, como me seria dito, estava associada ao humano: enquanto o humano é batizado, o bruto é pagão, não tem batismo. Não por acaso, as crianças que morriam antes de serem batizadas costumavam, em algumas propriedades, ser enterradas em um local à parte, um "cemitério dos anjinhos". Bruto equivale a pagão, em certo sentido; mas a semelhança entre bichos e crianças se deixa ver em outra marca característica dos brutos: ao contrário do ser humano, o bruto não tem entendimento - e a melhor tradução para o termo seria "razão". Esse lado da semelhança ficaria explícito numa observação feita por Antônia, uma senhora muita engajada nas atividades da Igreja Católica e nos grupos de oração da localidade em que vive: "Ô, meu Deus, mande chuva. Se não pra nós, que não tem merecimento, pelo menos pras criança e pros bruto". Os adultos não têm "merecimento" da piedade divina como têm as crianças e os brutos porque não são inocentes, porque saíram de um estado de inocência - próprio da falta de entendimento - para outro de conhecimento das coisas do mundo, para o pecado. Mayblin (2010, p.6) observou nesse fato o paradoxo moral constituinte do cristianismo, que se fundaria na perfeição do divino e na imperfeição do humano: como 5    

preservar a inocência (e ser digno de merecimento, nos termos de Antônia) e a distância dos valores mundanos ("as coisas do mundo" e do "Inimigo", o Cão) ao mesmo tempo em que se vive uma "vida produtiva", casando, tendo filhos e lutando (COMERFORD, 1999; TEIXEIRA, 2014) para que a família não passe precisão? Se, na criação dos filhos, o parentesco passa por um processo de se tornar, vir a ser (CARSTEN, 1996, p.12), em que o trabalho, a educação, o cuidado e a alimentação são fundamentais, esse processo

"temporalmente

estendido"

(SAHLINS,

2011)

coincide

com

o

desenvolvimento do entendimento das crianças, visa torná-las "entendidas" 6. Entendimento também carrega outro sentido correlato que é importante para o que é discutido neste artigo. Ter entendimento é conhecer e respeitar códigos sociais e morais e uma certa etiqueta no trato com os outros 7. E, nesse sentido, os bichos são realmente brutos: não se submetem à vontade humana, seja a dos donos ou não. Os brutos têm a sua própria agência, a sua "capacidade de movimento" (INGOLD, 1994), que, não raro, escapa às intenções e à agência humanas 8. Pedro Sobrinho, o morador para quem havia feito a pergunta sobre o significado de "bicho bruto", me daria uma outra interpretação dias depois. Tendo ido visitá-lo, Sobrinho e eu fomos a uma capoeira para trazer as ovelhas de volta para o curral em que dormem (o motivo se verá adiante), mas um carneirinho parecia não estar disposto a voltar: ele encontrou um buraco na cerca e escapuliu para dentro da mata. Sobrinho retirou algumas estacas e entrou na mata para tangê-lo de volta à capoeira, mas o bicho acabou passando pelo                                                                                                                 6   É nesse sentido que podemos entender as observações de Beatriz Heredia e Afrânio Garcia Jr. sobre a organização da casa dos agricultores por eles estudados. A autora observa: "O filho, quando bebê, dorme com o pai, mas na medida em que vai crescendo, e esse crescimento é reconhecido, ocorre um paulatino e progressivo afastamento até vir a ocupar um quarto diferente ao dos pais, como é o caso do filho mais velho da família que analisamos [grifo meu] (1979, p.95). Uma das interlocutoras de Garcia Jr., ao explicar a repartição dos cômodos da sua casa, comenta: "[Família pouca é] Dois, três. Por exemplo, o senhor com sua senhora, né, aparece um menininho é três. Enquanto for novinho, dorme no quarto. Quando ficar sabidinho, bota prouto canto pra dormir, né?" [grifo meu] (1983, p.166). O "afastamento progressivo" é fruto do desenvolvimento do entendimento do filho ("ficar sabidinho") e parte daquele processo do parentesco a que Janet Carsten se refere.   7   No Ceará, e talvez no Nordeste brasileiro como um todo, quando uma pessoa é ríspida, ignorante, etc., costuma-se dizer, numa reclamação: "Ô, bicho [pessoa] bruto!" Do mesmo modo, retomando o que foi dito acima, pode-se e costuma-se dizer que essa pessoa é um "jumento batizado": grosso, grosseiro, sem trato, portanto. Um jumento que se fez humano, gente, pelo batismo.   8   Ao me referir a uma agência animal, aos bichos como sujeitos não necessariamente sujeitos à vontade humana, estou pensando com Tim Ingold sobre a "consciência" dos animais: "Like us, it [o animal] is responsible for its actions, habing caused them to happen, even though it lacks our human ability to render an account of its performance, whether beforehand as a plan or retrospectively as a report. This view requires us to adopt a view of consciousness and creativity quite different from that entailed in Cartesian rationalism, and accepted equally by critics of Descartes who would attribute rationality to animals. Consciousness is no longer to be seen as a capacity to generate thoughts, but as a process or movement, of which thoughts are an inessential by-product" (INGOLD, 1994, p.9).

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buraco, ao invés de entrar nele. Com a tentativa frustrada, e esboçando um sorriso,

  Fotografia 2: Lutando com quem não tem entendimento. Foto: Jorge Luan Teixeira

Sobrinho olhou para mim e disse: "A gente chama bruto é por isso. Não tem entendimento, ficava muito mais fácil ele passar aqui, eu abri a cerca para ele passar e ele foi direto". Não por acaso, João Cabral de Melo Neto, num poema que compara as cabras (e os homens) do Nordeste as do Mediterrâneo, se pergunta: "Quem encontrou cabra que fosse/ animal de sociedade?/ Tal o cão, o gato, o cavalo,/ diletos do homem e da arte? " (2008, p.232). Não é a cabra, como muitos me diriam, o bicho que mais dá dor de cabeça e mais exige atenção do criador? Não é ela, mesmo quando segue (ou finge seguir) os desígnios do homem, o "reduzido irredutível,/ o inconformado conformista"? O entendimento é, pois, uma das características que desenha a fronteira entre a humanidade e a animalidade, mas uma ressalva fundamental precisa ser feita. Com base numa cosmovisão cristã compartilhada pelos sertanejos, homem e bruto são criações de Deus, que tudo fez e ordenou segundo a sua vontade para que funcionasse. Assim, se o homem é "aquilo que ele pensar em fazer" (como me diria Sival, um morador), se tem um entendimento latu sensu, o bruto tem um entendimento para aquilo que é, para aquilo que foi designado. É a defesa dada a todos os seres por Deus, como observaria Fabião das Queimadas (1848-1928), poeta e rabequeiro potiguar, no "Romance do Boi 7    

Mão de Pau" 9, uma das mais conhecidas histórias do cancioneiro popular nordestino: "Sei que não tenho razão,/ Mas sempre quero falá,/ Porque além d'eu estar preso/ Querem me assassinar.../ Vossamercês não ignorem;/ A defesa é naturá" [grifo meu] (CÂMARA CASCUDO, 2005, p.122). "Natural" no sentido de que "Para tudo [todos os seres] Deus deixou uma defesa": a defesa é parte do ser animal, ser bruto. O touro é grosseiro, forte, corredor (mas nem tanto) e tem os chifres como defesa. O tatu é rápido e dificílimo de se seguir quando se embrenha na mata. O (tatu) peba, por sua vez, é cavador: se entra no seu buraco, apenas pás, picaretas, disposição e paciência para pegálo. A onça é uma exímia caçadora, mas não tem o faro tão apurado quanto os cachorros, que são capazes de perder um rastro e encontrá-lo novamente depois de um tempo. Os cachorros, que também são muito amigos e companheiros dos homens. CAÇANDO "Caçar" é uma palavra cujo uso no Sertão ultrapassa o sentido da caça de animais. Caçar, latu sensu, é procurar, buscar. Se alguém pergunta algo como "Onde está a chave?", uma resposta possível seria "Espera aí, eu vou caçar pra você". E a caça de animais é, de fato, procurar, buscar, vasculhar as matas atrás de algum sinal que indique a passagem ou a permanência de algum bicho; mas, por vezes, nem é preciso caçar naquele sentido citado acima, pois os sinais são vistos, algo naturalmente, quando se está caminhando na mata no curso de outra atividade: um galho quebrado numa "vareda", um ajuntamento de folhas secas que indica o local onde um veado se espoja, uma abelha repentinamente ganhando altitude (indicando a presença de uma colméia por perto), o buraco de um tatu ou peba encontrado por acaso, a carcaça de um bicho morto, etc. Ninguém é caçador como é morador, pedreiro ou trabalhador rural. E se assim é, é porque, como observado por Oswaldo Lamartine nos idos da década de 1950, "[...] a caça ocupa na vida do sertanejo seridoense [Rio Grande do Norte] uma atividade meramente ocasional. [...] Difícil esbarrar em nossos dias, na caatinga seridoense, com um sertanejo que viva da espigarda [sic]" (1980, p.187). Não se trata, pois, de uma atuação em tempo integral: ninguém é caçador todo o tempo e/ou retira da caça e da sua venda o grosso da alimentação familiar, como é o caso com alguns pescadores                                                                                                                 9   Ariano Suassuna também se apropriou da história do Mão de Pau para honrar o próprio pai, "morto, mas não desonrado". O poema seria mais tarde musicado (SUASSUNA & NÓBREGA, 2002).   8    

sertanejos. Será por isso que, no Nordeste brasileiro como um todo, a caça recebeu, quando muito, observações tímidas por parte dos etnógrafos? À noite, sentado em algum alpendre e olhando o tempo, os moradores da Zona Rural darão notícia de que são caçadores esses que estão passando. E isso não porque, necessariamente, se conheça os indivíduos em questão - e alguns podem, de fato, ser socialmente reconhecidos como (bons) "caçadores" -, mas porque há indicações que são lidas. Um caçador pode caçar sozinho, mas é mais comum que o faça acompanhado de outros caçadores: eles "dão uma volta", como dizem alguns. Se estão à procura de um animal de grande porte, certamente trarão consigo espingardas de chumbo ou cartucho (é como são diferenciadas). Como, às vezes, têm que percorrer distâncias consideráveis, eles farão o caminho ou em motocicletas, ou montados em algum animal. Há outro indício - talvez o principal deles: os cachorros. Os cachorros serão levados pelos caçadores ou em caixotes de plástico amarrados na traseira das motocicletas, ou, quando a distância é menor, entre o motoqueiro e o passageiro, que carrega o bicho. Nem toda caça se faz com cachorros. Oswaldo Lamartine observa que é geralmente na caça por perseguição que eles são usados, citando uma série de características, físicas ou não, que indicam se um bicho é bom na caça (1980, p.190192). No geral, não se usa, por exemplo, cachorros na caça aos veados, mas, mesmo assim, há situações em que eles podem ser utilizados. Quando dois caçadores (tio e sobrinho) balearam um veado, o bicho disparou correndo, mas deixou um rastro de sangue pela mata. Quando parava, o maior ajuntamento de sangue indicava isso aos perseguidores. Como não conseguiram encontrá-lo, os dois voltaram às pressas para a casa do vaqueiro da propriedade em que a caça acontecia para pegar o seu cachorro. Sobre uma motocicleta, o animal foi colocado entre os dois e eles voltaram para a mata, mas não obtiveram sucesso: nem sinal do veado. Enquanto a ação se desenrolava, o vaqueiro (irmão de um dos caçadores e pai do outro) fazia um churrasco com a carne de um veado morto há poucos dias: até o fígado e o coração foram comidos. Em um canto do alpendre, três das patas do animal estavam amarradas por um arame às ripas do telhado. Ao encontrar na mata os sinais da passagem de um veado, o caçador monta uma espera. "Espera" porque é a paciência do sertanejo que será exercitada: ele ficará relativamente imóvel em um local escondido aguardando a chegada do bicho. Comumente, a espera é montada com um caçador atrepado numa árvore - há quem arme redes entre os galhos, há quem encontre formas de colocar uma cadeira entre eles 9    

, que ficará à espreita do bicho. Recentemente, Lúcio, um caçador do município de Saboeiro, me diria que os dois últimos anos foram bons para a caça do veado, pois se tratavam de anos de Seca. Com a escassez de poças de água e a secagem dos açudes, os bichos teriam menos opções para matar a sede, facilitando o serviço. O momento do disparo é motivo de atenção e tensão. Como Lúcio e Astor (um dos seus filhos) me diriam, não há caçador que não trema mais do que vara verde no momento do primeiro veado, do primeiro tiro. Uma anedota contada pelo primeiro fala de um caçador que, sobre uma rede numa espera, tremeu tanto na hora do disparo que sua calça e botas caíram no chão. Pedro Sobrinho (que aposentou os seus dias de caça), por sua vez, me diz que o ideal para o caçador é estar vestido com uma camisa vermelha. A cor chama a atenção do bicho, o que faz com que o caçador tenha a oportunidade de efetuar o disparo, mas essa técnica passa longe de ser unanimidade: há quem deboche dessa possibilidade. E há quem se vanglorie por sua capacidade de disparar bem. Astor conta sobre uma vez em que estava trabalhando na roça com outros companheiros quando "um velho" lá presente se vangloriou por ter acertado um veado a quarenta e cinco braças de distância dele. Astor assumiu um tom sério (ele mentia) e disse que isso não era nada: ele mesmo havia acertado um com mais do dobro da distância. Caçando tatus ou onças, a situação se processa de forma diferente: aqui os cachorros, os reconhecidos como "bons de caça", são de maior utilidade, como Silvino me falaria: "Caçada de noite eu vou lhe explicar mais ou menos como é. Quando o cachorro é bom, você senta na mata e até se deita. O cachorro vai caçar por conta, você fica lá. Quando ele trabalhar acuado é que você vai". São os bichos os que procuram, os que caçam, são os seus latidos a forma de comunicação, a indicação de que algo foi encontrado. É então que os caçadores seguem os animais. Logo, se um cachorro é "latidor", se late por e para qualquer coisa, ele não é bom. Esse era o problema de um dos cachorros de Ronaldo, filho de Pedro Sobrinho. Sabendo disso, Silvino, que mora em um terreno vizinho ao deles, deu uma indicação por outro filho de Sobrinho, que passara naquele dia em sua casa: seria preciso "fazer uma cruz" esfregando alho no focinho do bicho 10. Assim ele deixaria de ser latidor.

                                                                                                                10   O alho parece ser um remédio caseiro, uma "meizinha", comum nesses casos. Lamartine observa que esfregar alho no corpo do cachorro também pode livrá-lo da caipora, que podia açoitar os cães nas caçadas (LAMARTINE, 1980, p.209).  

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A expressão "trabalhar acuado" dá conta do papel desempenhado pelo cachorro na perseguição (ou na proteção do caçador, como se verá). Trabalhar acuado é avançar rapidamente, é cercar a caça de forma que ela não possa se movimentar, é latir de forma ameaçadora e atacar se necessário. A imobilidade da presa dá a chance para que o caçador tome uma atitude, seja ela qual for. Ou cavar, no caso de um tatu ou peba, ou disparar, no caso de uma onça. As onças

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, exímias comedoras de criação, são uma espécie de constante

inconstante no Sertão cearense. Os moradores sabem que elas existem e sabem em que áreas elas podem ser encontradas (geralmente, nas serras), mas não é lá algo que se veja com facilidade 12. A esposa de Damião, morador de um terreno em Catarina e caçador, conta que, morando em uma serra de Saboeiro durante a infância, ouvia vez por outra os "miados" das onças. Damião, seu marido, já pegou uma onça. Ele conta com empolgação do momento em que, na companhia de outros caçadores, os cachorros acuaram uma onça em cima de uma árvore, mas eles não traziam nenhuma arma consigo: não haviam saído à procura de veados ou mesmo da onça. Com o animal acuado, um dos presentes correu até a casa de uma propriedade vizinha onde sabia haver uma .12. Um disparo calou os "esturros" do bicho - esturros que fazem tremer a terra, dizem os que já cruzaram com um desses felinos -, que caiu ao chão. Os cachorros foram providenciais inclusive para a segurança dos caçadores, mas há muitos cachorros "moles", medrosos. Damião conta que depois de morto o bicho, outras pessoas chegaram para ver o cadáver. Um cachorro que também chegou, ele me conta às gargalhadas, sentiu tanto medo ao ver a onça que ficou chorando e "se cagou" ali mesmo. Pedro Sobrinho foi outro desses que cruzou com uma onça, mas sem qualquer cachorro ou arma de fogo. A história, conhecida no sítio em que ocorreu e nas redondezas dele, é motivo de risadas e zombaria até hoje. Depois de um dia de trabalho na roça, os homens seguiram o caminho para casa serra acima (uma estrada relativamente movimentada). Sobrinho se demorou e fez, logo depois, o mesmo caminho, mas sozinho. A única "arma" que carregava era uma roçadeira (uma foice                                                                                                                 11  A existência das onças nos Inhamuns se deixa ver no nome do principal rio cearense, que nasce e corre por municípios dessa região fazendo um caminho que vai terminar na divisa entre os municípios de Aracati e Fortim, litoral leste cearense. Jaguaribe, em tupi, significa "Rio das Onças".   12  Eu mesmo, natural do sertão cearense, já vi alguns couros da onça parda (uma das espécies da região), a "vermelha", usados como enfeite de casas e estabelecimentos. Num deles, via-se também o buraco do tiro que a vitimou.  

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menor), usada no trabalho. Duas onças (ele supõe que um dos bichos fosse a mãe e o outro um filhote) saíram da mata cruzando a estrada. O morador, com medo, "alarmou": gritou. E gritou tão enlouquecidamente que os bichos se assustaram e correram para a mata novamente. O "alarme" foi ouvido em cima da serra, na casa dos trabalhadores que o acompanhavam. Ao chegar lá, eles perguntaram se Sobrinho havia ouvido os gritos, mas o morador, desconfiado, disse não ter ouvido nada. Algum tempo depois, agora já rindo da situação, ele confessou o ocorrido para os colegas e familiares. Esse valor atribuído aos cachorros também se deixaria ver numa história contada por Silvino sobre um período em que morou em um sítio de um município vizinho: Eram cachorro valente [o seu e o de Abel Teixeira]! Eu tinha uma foto do meu, rapaz, não sei pra onde foi... Era um meu e outro dele. [...] Eu morava mais ele [ou seja, era morador de Abel] lá no [sítio] Cipó [...], eu era o vaqueiro dele, da criação, do gado, de tudo. Aí os cachorro acuaram a onça, nós até comemo ela, é gostoso demais 13. Aí foi, um vei que morava aqui dentro da serra chamado Tonho Cabeludo, um vei caçador... Aí soube da parêa de cachorro, aí foi pra comprar. Chegou lá e disse: 'Eu dou uma novilha de vaca na parêa de cachorro. Tanto dou a novilha como dou o dinheiro'. Aí Abel Teixeira disse: 'Rapaz, eu não vendo o meu, não... Agora se o cumpadre Silvino quiser vender o dele... Ele é um rapaz pobre, ele precisa'. Digo: Rapaz, precisar de dinheiro, qualquer um precisa, mas... Naquela época, uma novilha de vaca era lá seus quinhentos contos, se muito fosse. Eu digo: Mas o dinheiro da metade – que ele dava a novilha nos dois, com certeza pra um ele só dava a metade do valor –, mas esse dinheiro aí não compensa o cachorro meu, não, eu ganho muito mais com ele. Cachorro que era bom de tatu, bom de tudo no mundo, digo: Eu preciso de um cachorro desses, porque eu caço de noite sozinho na mata e eu tando mais ele na mata eu tenho certeza que uma onça não me come, porque ele não me deixa só, ele me ajuda, se eu não correr, ele me ajuda. Aí o vei voltou [para casa], o vei doido pra comprar o cachorro! Esse cachorro, eu truxe ele pra cá, ele morreu naquela casa ali [aponta para uma casa em que já morou]. Cachorrim pequeno, não era grandão, não, o bicho era que nem um lobo, ele: ele tinha as pá [a parte superior da cernelha, os "ombros" dianteiros] baixa e os quarto [a garupa, os quadris] alto. Cachorrim que você não dava nada por ele, mas era uma fera. Acuou duas onça antes de morrer. E tatu foi uns pouco [ou seja, muitos].

O tema da compra frustrada dos cachorros de caça não é incomum, segundo uma história que foi contada a Oswaldo Lamartine à respeito de uma negociação feita                                                                                                                 13   Esse não é o único caso de caçadores que comeram uma onça: Damião e seus companheiros também comeram a onça que mataram. Mas há que se ter cuidado, pois nem sempre é uma boa ideia comer a carne desses animais. Silvino me conta às gargalhadas sobre uma vez em que um irmão seu matou um gato do mato (um felino pouco maior do que um gato doméstico). Levando o bicho para casa, sua irmã disse que iria comê-lo. O problema é que o bicho era fêmea e estava no cio: "no cio" porque o irmão viu o outro gato, que acompanhava o bicho alvejado, mas que conseguiu fugir. A mãe aconselhou a filha a não comer o gato do mato, mas não houve jeito. Logo depois da refeição, a irmã de Silvino começou a se coçar e a ficar inquieta. Se o bicho não estivesse no cio, me conta ele, isso não teria ocorrido.  

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por Cazuza Sátiro (1829-1911), um conhecido matador de onças da fronteira entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Estando no Piauí para comprar gado, ele presenciou o cachorro de um vaqueiro matar uma onça no campo. Caçador que era, Cazuza procurou o vaqueiro para comprar Cambráia, o cachorro, pelo preço que fosse (entregava até a sua montaria, voltando à pé para a Paraíba), mas o seu dono disse: "O sinhô tá vendo a terra e o céu...? Pois pode ter dinheiro prá fazê uma ruma que vá batê nas nuvem; mas não tem dinheiro que pague Cambráia..." (LAMARTINE, 1980, p.186). Também Silvino e Abel se recusaram a vender seus cachorros. Abel não era um "rapaz pobre" (mesma expressão usada por Lamartine para se referir ao vaqueiro da história por ele contada), mas Silvino era: o dinheiro poderia lhe ser muito útil; mas mesmo assim o morador recusou. O cálculo por ele realizado não envolvia apenas a quantidade de dinheiro oferecida pelo comprador ("duzentos e cinquenta contos") e os tatus e os pebas que o cachorro lhe renderia se permanecesse consigo, mas também a segurança proporcionada pelo bicho: estando com ele, onça não lhe mataria. Também Domauro, vaqueiro do sítio Ingazeira, em Catarina, recusou R$ 100,00 em troca do seu cachorro um bicho forte e musculoso, esbranquiçado e com manchas pretas pelo corpo. A atividade desses caçadores é ilegal (proibida, "dá cadeia") e é assim reconhecida por eles, que, quando podem, evitam andar armados pelas estradas e, sobretudo, ir à rua com elas. As "tatuzeiras" (armadilhas para tatus que são colocadas dentro dos seus buracos) também podem ser uma fonte de problema se apreendidas pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). E é ao IBAMA que Damião se refere ao me alertar sobre as proibições que recaem sobre os caçadores e sobre os pescadores em período de defeso: Damião: O caçador... é proibido caçar, mas o cabra querendo tirar a carteira [de caçador], tira também [assim como é o caso com os pescadores]. Luan: Tira também? Sabia não... Damião: Pois tira. Aí a carteira do caçador é o seguinte: você tira, você tem direito de caçar até na propriedade do IBAMA. Só que tem a bitola do tamanho da caça que você matar, o tipo da caça que você matar, você não pode matar... Por exemplo, se você vai pegar um tatu, tem a bitola de você pegar o tamanho do tatu, de você pegar e você poder comer, né? Você não pode é tar vendendo, né? Se você pegar, é pra comer. Aí se você coisar [capturar, matar] menos do que aquilo, você não pode, que tem a medida certa. Luan: Nunca se interessou em fazer, não? Damião: É porque sai caro! Sai dois mil e tanto. Sai caro. Porque ali é assinado pelo IBAMA, né? Por exemplo, você vai lá pra Aiuaba [outro município dos Inhamuns]... é a mesma coisa de uma moto dessas, se ela não tiver em dias, a polícia pode tomar. Aí a carteira do caçador, se você tiver, o

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IBAMA lhe pega se você vier com a caça, aí ele vai olhar se você tá legal o tamanho da caça.

Para Damião, a caça guarda um estatuto similar ao do tráfego com veículos que não estão "em dias", que não estão com a sua situação regularizada: os dois são ilegais. E se não compensa pagar tão caro pela "carteira de caçador" é em parte pelo já observado: o caráter esporádico da caça no Sertão nordestino. O perigo de "ser pego" passa pela tráfego nas estradas com a caça, com os armamentos e/ou com armadilhas, mas também há a possibilidade das denúncias, como me alertaria um pequeno proprietário e criador residente em um sítio de Catarina. Mas aqui é preciso dar um passo atrás para dar dois à frente. Os caçadores não são figuras muito bem vistas por alguns proprietários e por outros moradores do Sertão. Muitas vezes - para não dizer "geralmente" -, eles caçam nas matas das propriedades sem pedir permissão aos seus donos, o que pode acarretar grandes prejuízos. Uma das razões dessa aversão aos caçadores tem a ver com o que alguns deles fazem com as cercas e com as cancelas das propriedades: as primeiras são desmanchadas para que possam passar, as segundas muitas vezes são deixadas abertas, o que facilita o tráfego de animais de criação para fora dos terrenos ou para dentro de áreas em que não podem entrar. Quando a cerca é de estacote, a "cerca de pau amarrado", os caçadores retiram três ou quatro estacas da terra e abrem uma passagem. Quando a cerca é de arame, tiram alguns dos grampos que prendem o arame às estacas, enrolam os fios desamarrados em outros acima ou abaixo e passam. Quando a cerca é de lombo, passam por cima, o que é um mal menor, ainda que com isso as varas, tecidas horizontalmente entre as estacas, baixem, permitindo a passagem de bichos "inconformados conformistas", como as cabras do Moxotó e do Mediterrâneo. Essa é uma "conduta infeliz", me diria Miguel da Bia, um dos protagonistas da próxima sessão. Foi por isso que, reunidos no alpendre da casa de Evaldo, Miguel e outros lamentariam a inexistência de denúncias contra os caçadores. As falas foram provocadas pela passagem de motociclistas (e de um cachorro levado com eles) que foram identificados como caçadores: Evaldo: Aí vai e se soca nas propriedade alheia. A bagaceira que houver, o dono é que aguenta. Se aparecesse uma orde séria, aí o cabra num aguentava a pisada. Miguel: Rapaz, agora os cabra não acabaram com isso [com a caça] porque não quiseram acabar ainda... Porque... o cabra denunciar um caçador assim pro IBAMA, ele tá morto. Tá morto: ele não se sai mais nunca.

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[...] Miguel: Tem um escritório do IBAMA lá em Acopiara. Se o cabra quiser denunciar é só ir lá, se quiser lascar um caçador. É só ir lá. Arrume duas prova ou três e pode denunciar, que o cabra vai pagar uma multa meia grande...

A ausência de fiscalização (representada pelo IBAMA), de uma "orde séria", faria com que em Catarina - ao contrário de outros municípios, como Arneiroz, nos Inhamuns - as coisas corressem frouxas, como se diz. Bastava reunir provas e ter disposição de ir à Acopiara para "lascar um caçador", para "botar na cadeia um magote". Se as pessoas não faziam isso, julgaria Evaldo em outro momento, era com a desculpa de que "precisam do povo". O caçador é, muitas vezes, um vizinho, um conhecido e mesmo um parente (da própria pessoa ou de alguém que ela conheça) de quem se pode precisar em algum momento. Por "precisar do povo" de diversas formas, para evitar indisposições, não se denuncia - era o que Evaldo acreditava. Os caçadores têm um estatuto ambíguo, portanto. Se a caça é uma forma de conseguir colocar uma "mistura" (carne) diferente na mesa; se o paladar de alguns sertanejos é afeito à carne de tatus, pebas e veados; se caçar é também uma atividade prazerosa, uma forma de sociabilidade e de diversão, as atividades dos caçadores são vistas por uma diversidade de agentes como nocivas para a criação e para os negócios, mas também como uma evidência da "maldade do povo", que parece querer "acabar com tudo" (com os bichos). Se os caçadores têm esse estatuto ambíguo, também o tem os cachorros, sejam eles os de caça ou não. Brutos que são, os cachorros não tem entendimento e, por vezes, não são "animais de sociedade", não respeitam códigos morais e sociais. Os cachorros têm agência própria, mas uma agência que está, ou deveria estar, sob o controle dos seus donos, caçadores ou não. Circulando pelas estradas e pelas matas das propriedades, os caçadores levam seus cachorros, como observado. Os bichos andam levados pelos seus donos, mas também se movimentam por conta própria. É aqui que mora grande parte do perigo representado por esses bichos. A presença de um cachorro junto com os motociclistas que passavam pela estrada foi um dos indícios para se supor que eles fossem caçadores, mas, naquele dia em particular, os cachorros já eram o assunto da conversa no alpendre de Evaldo. PASTORANDO 15    

Assim como ocorre com a palavra "caçar", "pastorar" (uma corruptela de "pastorear") diz respeito a muitas práticas diferentes. Pastorar é observar, é estar atento e apto para realizar uma ação que seja necessária, impedindo que algo indesejado ocorra. Assim, alguém pode "pastorar" a fervura do leite para que ele não derrame, mas também a estrada (para dar conta da passagem de alguém), uma cancela (para impedir que algum bicho passe) ou o rebanho (para impedir que algo de mau lhe ocorra). Existe uma máxima, um "dizer", no Sertão nordestino que sintetiza o que se segue. Ele é citado aqui nas palavras de Oswaldo Lamartine, mas já havia ouvido as pessoas dizerem algumas vezes que "Homem que bebe e joga/ Mulher que errou uma vez/ Cachorro que pega bode/ Coitadinho desses três" (1980, p.218). Aquele viciado no jogo e na bebida dificilmente largará os dois e pode ter sérios problemas de saúde e financeiros, além de ter maior probabilidade de brigar com outras pessoas em decorrência da bebida. A mulher que "errou uma vez" ("A mulher que deu uma vez", na versão que conhecia desse adágio) também está em maus lençóis: ser "corno" pode levar um homem (marido ou pai) às últimas consequências e/ou, no caso de mulheres solteiras e virgens, desonrar à família. Fatos conhecidos da moralidade e do senso comum sertanejos; mas também é do senso comum que o cachorro que uma vez tenha, comprovadamente, matado ou "sangrado" uma criação jamais parará de fazer isso, trazendo sérios prejuízos para o seu dono e/ou para os donos dos bichos atacados. Como diria um morador presente na conversa que é o mote desta seção, "Cachorro que pega criação, é matar. Cachorro que pega criação, ele não deixa nunca". É bem verdade que os cachorros são muitas vezes úteis no pastoreio e, sobretudo, ao campear. Assim como um dono de casa "pastora" a sua residência e a sua família para que ela não seja roubada, também o faz o cachorro. Dormindo na casa dos moradores e escrevendo tarde da noite, muitas vezes ouvi os cachorros das casas latindo insistentemente. No dia seguinte, o ocorrido não escaparia aos comentários dos seus donos, que se perguntariam sobre o que teria acontecido. Às vezes, os latidos eram motivados por um bicho (como um tatu) ou outro cachorro que passou pelas redondezas, mas também por um motociclista. Assim, poderíamos dizer que os cachorros são também agentes nas práticas de mapeamento (COMERFORD, 2003; TEIXEIRA, 2014) as quais os sertanejos se dedicam e são submetidos cotidianamente. Se eles não podem dizer o que ocorreu, se não podem saudar o passante e lhe oferecer um café, alarmam, "dão a notícia" para o seu dono de que algo incomum está 16    

acontecendo; mas como agentes sem entendimento, como bicho bruto, os cachorros podem tomar uma má atitude contra os passantes no curso dessas atividades de mapeamento. Um morador com quem convivi sempre repreendia aos gritos os seus cachorros e mesmo os dos vizinhos quando eles latiam e avançavam sobre as pessoas que utilizavam a estrada que ladeava as casas da localidade. Certa vez, um dos cachorros chegou a derrubar um motociclista 14. Quando um vaqueiro campeia acompanhado do seu cachorro, o bicho reedita aquilo que faz na caça (sobretudo com as onças): trabalha acuado, corre e acua o gado aos latidos e morde o bicho, impedindo que ele avance sobre o vaqueiro ou que corra. "O cachorro é mais vaqueiro que o vaqueiro", me diriam Sival e Bastiana, sua esposa. Mesmo nas perseguições, os cachorros seguem de perto o cavaleiro na direção do boi fujão. Quando Sival perseguiu um boi e caiu num açude com ele e o cavalo, o cachorro atuou decisivamente: "Oh, cachorro bom, Antônio Novo [o morador em cuja casa eu costumava me hospedar]! Eu pegado no chifre do boi, na hora que ele botava a venta fora d’água, o cachorro pegava". Em outro dia no campo, o cachorro impediu que um touro bravo que andava dando trabalho aos vaqueiros fizesse mal maior ao cavaleiro ou ao seu animal: "Ô, bicho que ajuda um homem é um cachorro!", ao que Novo respondeu: "Ajuda. Cachorro bom de luta [com o gado] ajuda demais..." O problema é que nem sempre os cachorros "ajudam o homem", ou ajudam todos os homens, na sua luta com a criação e com o gado. Em uma tarde de abril de 2013, cheguei à casa de Evaldo. Os homens reunidos no alpendre e sentados em cadeiras de couro conversando. Muitos deles eram das redondezas - o morador que me acompanhava, por exemplo - e até da mesma propriedade, mas esse não era o caso de um deles, que estava sentado ao meu lado direito: Miguel da Bia, um chapéu na cabeça, cara de nem tantos amigos, a chave da moto na mão e o veículo parado sob a algaroba que sombreia o terreiro da casa. Miguel da Bia vinha de relativamente longe, do sítio Monte Alegre. Sua visita era confessadamente interessada, como nos revelaria depois de alguns minutos de conversa sobre a Seca e as expectativas de chuva:                                                                                                                 14   E nem sempre é necessário que os cachorros assumam uma postura agressiva ("estranhem" alguém) para com os passantes ou com as visitas para que eles sejam repreendidos. Ao visitar as casas de moradores, seus cachorros vinham muitas vezes ao meu encontro. Imediatamente, imaginando que os bichos me perturbavam, eles eram repreendidos aos gritos e com pancadas. Com os cachorros, no sertão, não há um tratamento ameno, muito carinho, etc: cachorro é criado "no cacete" e, comumente, comendo os restos da comida e ossos.  

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  Fotografia 3: Pastorando a estrada. Foto: Jorge Luan Teixeira  

Miguel: Rapaz, eu ando é caçano uns cachorro pegador de criação, mas já rodei por todo canto hoje e não achei o desgraçado que pegou minhas ovelha hoje ainda. Pedro: Pegou hoje, Miguel? Miguel: Pegou hoje... Pedro: De dia?! Miguel: De dia. Pedro: Foi mesmo, rapaz?! Miguel: Esturdia, na Semana Santa, mataram seis de dia... Pedro: Rapaz... Miguel: Aí hoje deram outra botada. Aí eu matei um, atirei outro, baleei, mas o peste não morreu, eu matei ele hoje [se refere a cachorros que atacaram em outro dia, na Semana Santa]. Era do Firmino ali. Aí eu conversando, a mulher disse: 'Não, ele chegou baleado aqui mesmo, mas num morreu, não. Se você quiser matar, eu mando pegar pra cê matar, porque quando ele melhorar ele vai de novo', E vai mesmo, pois pegue essa peste que eu vou matar agora. Fui e matei. Aí ando caçando o outro, que o que pegou hoje é um vermêi, do fio do lombo arroxeado, quase preto. Cachorro novo, não é cachorro vei, não, cachorro novo: um frangão de cachorro, mas é um bicho graúdo, mais ou menos do tamanho daquele ali. Mas já cacei nessas casas... Vim por o Alto Alegre, fui lá no Edmilson do finado Chicô Vei, voltei, peguei as casas do Fechado aqui, corrigi tudo e não encontrei o desgraçado. Eu não sei se ele é daqui, do lado das Marrecas, de onde é, não: sei que dei o tiro de longe demais e eu vi ele direitinho, porque era num baixio, como daqui naquele poste de lá. Aí quando ele correu, afinou a carreira [ganhou velocidade], eu corri pra porteira onde ele ia passar, mas ele passou de mim com mais de trinta braças, mas correndo, eu atirei, não dava pra pegar mesmo, não... E só chumbo na espingarda. Tivesse uma bala, talvez ainda tivesse [matado]...

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O que fez Miguel da Bia sair de seu terreno e tomar as estradas foi a necessidade de encontrar o cachorro que atacou uma ovelha sua naquele dia. A filha e a mulher viram o bicho atacar a criação e alertaram o marido, que correu com a espingarda para matar o animal. Se "a gente só conhece as pessoa andando", como diria Antônio Novo em outra ocasião, o caminhar, a movimentação, é uma forma de conhecimento também porque, parando nas casas dos conhecidos (como fez Miguel), as pessoas se inteiram das novidades e fazem conhecer as suas intenções e problemas. Foi circulando e conversando, "corrigindo as casas", que o criador reconheceu o cachorro que há um mês atrás havia matado seis das suas ovelhas. A dona, como é de praxe, não colocou empecilhos para a solução normalmente encontrada nessas situações: ela não só permitiu que o cachorro fosse morto por Miguel como apresentou e defendeu que essa era a melhor atitude a ser tomada. Evaldo destacaria o mesmo: "Eu pissuindo um cachorro, ele pegando criação, eu fico com raiva é se o dono da criação não matar logo. Não tem conversa, não", com o que Miguel concordaria, dizendo que não haveria nenhum problema se um criador matasse um cachorro seu que tivesse pegado uma criação. O fato de Miguel ter, quase imediatamente, descrito em pormenores o cachorro que viu atacar a sua ovelha é revelador: assim como os deslocamentos e as localizações territoriais das pessoas são mapeados, assim como as pessoas são aparentadas

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uma

na outra, também o são os cachorros, que podem ser conectados, relacionados, a uma pessoa, a uma casa 16. Alguém, presente no alpendre, poderia reconhecer o "frangão de cachorro" como sendo de um vizinho ou de uma pessoa conhecida. Não por acaso, Evaldo disse logo em seguida que os dois cachorros que possuía haviam adoecido e                                                                                                                 15   Tratei brevemente das práticas de aparentamento na dissertação (TEIXEIRA, 2014). Aparentar é lançar mão de uma série de vínculos e pertenças a coletividades familiares com o intuito de se fazer conhecer, localizar, ou de passar a conhecer alguém - ou mesmo para, numa situação de interação, tornar conhecida uma pessoa de quem se fala. "Miguel da Bia", por exemplo, é um nome aparentado: Bia é a mãe de Miguel. Tal qual no Sertão Pernambucano, nos Inhamuns o parentesco é um dos idiomas para o conhecimento e a localização dos agentes, e embora na situação por mim estudada não esteja em jogo a produção de mapas genealógicos, poderíamos dizer que também aqui "The genealogical framework provides paths for both connecting and disconnecting people in many virtual directions [...] Kinship knowledge functions here as a guide, allowing the person to move around safely in territories where social relations are more or less recognized" (MARQUES, 2014, p.729).   16   Os bichos de criação podem ser aparentados com alguma frequência. Se há características físicas das pessoas que indicam que elas são de uma alguma família, a ferragem dos bovinos e as marcas na orelha da criação também indicam que esses bichos pertencem a alguém. Do mesmo modo que uma pessoa pode aparentar alguém ao contar uma história, também pode aparentar os bichos ou um com outro, ou com um antigo dono seu: "A bezerra da Sabiá [uma vaca]", "Aquele touro que foi do Luiz [o antigo dono]".  

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morrido há algum tempo, e Pedro apontou a diferença entre os bichos da sua casa e aquele descrito por Miguel: "Rapaz, ali em nós, nós tem um bocado, mas é dois rajado e um branco." Um cachorro não é apenas um cachorro, ele é o cachorro de alguém

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uma pessoa que deve ser responsabilizada pelos atos daquele de quem é dono. Foi isso que a mulher de Firmino fez, foi isso que Evaldo e o próprio Miguel disseram que fariam; mas nem sempre esse é o caso: nem todos os donos querem matar ou se desfazer dos seus cachorros. Miguel conta outra história e os seus desenvolvimentos para ilustrar essa conduta errada: Mas tem gente que não quer matar, não. Num ano desse, os cachorro deram [atacaram] numa criação minha lá. Um do Tonho, um do Zé Evilásio e outro do François. Aí... mataram sete lá numa boca de noite. Aí no outro dia eu fui na casa deles lá. Os menino se deram por pronto para matar logo, mas o vei Tonho Gomes botou logo foi uma briga pra fora. Nem matava o cachorro, nem pagava nem um centavo. Não, seu Tonho Gomes, o senhor pode criar seu cachorro, o senhor tá dizendo que não vai pagar a criação, mas o senhor vai pagar a criação e vai ser bem pago, não vai ser barata, não. Aí voltei pra casa, peguei a moto e fui pra rua. Aí ele foi pra rua também [no mesmo dia]. Aí, por lá, não sei quem foi que disse a ele que me viu conversando com o delegado na delegacia, aí o vei voltou cedo: 12 horas ele já tava em casa pra matar o cachorro. Mas pegou o cachorro e mandou trazer cá pra trás daquela casa vea da finada Paizinha ali, pra matar ali pra ninguém saber que ele tinha matado. Aí tinha um rapazim que morava mais eu, Né Filho. Aí ele tava trabalhando ao Osvaldo da Marluce - trocando um dia [de serviço] mais ele -, aí quando ele vinha foi na hora que os cabra ia levando o cachorro pra trás da casa vea pra matar, aí ele disse: 'Hei, Miguel, o vei disse que não matava o cachorro, não, mas matou foi cedo: de umas doze e meia pra uma hora eu vinha da roça. Mas levaram lá pra trás da casa vea da Paizinha, pra matar lá pra você num saber que eles tinham matado', digo: Foi?, 'Foi', Não, mas se ele não matasse eu achava melhor, que o negócio já tava bem arrumado pra ele: pra ele pagar as sete criação e se responsabilizar por aquelas que sumisse daquele dia pra frente.

Depois de aparentar os cachorros que haviam matado sua criação, Miguel se dirigiu até a casa dos seus donos. Se dois deles não colocaram problemas em dar a solução comumente encontrada nessas situações, esse não foi o caso de Tonho Gomes. Quando um cachorro pega uma criação e se reconhece ele como pertencente a alguém, há algumas formas de responder ao problema. A primeira delas é matar o cachorro, mas se o dono se recusar a fazê-lo, ele deverá arcar com o prejuízo do criador (a segunda                                                                                                                 17   Pensando sobre os pastores Sarakatasani da Grécia, John Campbell destacou a significância conferida à pertença familiar aos olhos de pastores não aparentados, o que levaria o autor a afirmar que "In this community an individual cannot exist simply qua individual, he can only be taken account of and evaluated in relation to his family membership [...]" (1964, p.187). Nos dois casos, quem é Ego passa, em parte, por aqueles a quem Ego se conecta ou é conectado - um processo que reconheço como análogo àquele analisado por Carsten (2007) ao tratar sobre o trabalho mnemônico do parentesco em reuniões de adoção.  

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solução). Ora, se "cachorro que pega bode" ou ovelha nunca para de fazer isso - se ele se vicia -, é provável que assim aja novamente, trazendo mais prejuízo ou para o mesmo criador, ou para outros. Como o cachorro é um bruto, como não tem entendimento, o dono não tem culpa do mal feito pelo bicho; mas se o dono não se desfaz do cachorro depois de saber do ocorrido, ele estará assumindo a responsabilidade pelos atos do bicho. Nesse caso, se o prejuízo não se paga com o sangue do cachorro, se paga com o dinheiro do seu dono, e assim também se pagará nas outras vezes em que a criação for atacada. Pedro Sobrinho me contou uma história ocorrida nas redondezas de onde mora que ilustra o mesmo - e demonstra outra solução encontrada pelo dono do bicho assassino: a mudança do animal. Um motivo que faz com que a criação deva, preferencialmente, dormir presa, no curral, e não nas capoeiras e mangas, é a possibilidade dela ser atacada durante a noite por cachorros de caçadores (que, como observado, circulam muito com os bichos) ou de vizinhos. Ao todo, treze criações 18, dormindo no pasto, haviam sido atacadas por cachorros em dias diferentes. E um cachorro "profissional": ele mordeu na "sangria" (no pescoço, "no gogó"), "descobriu a veia", e nem sequer comeu uma parte dos bichos, apenas "sangrou". O filho de Sobrinho ouviu um latido na mata e o reconheceu como sendo do cachorro de Naldo, filho de Evaldo. Um dia, ao ir para a manga ver as ovelhas, o morador se deu conta de que outras duas ovelhas estavam mortas e outras duas muito machucadas - "só vivas". Sobrinho percebeu as pegadas do cachorro ladeando a cerca e também um rastro de botas, indicando, segundo ele, que o dono do bicho ou estava junto no momento do ataque, ou chegou em um momento posterior, impedindo que o cachorro terminasse o serviço com as outras duas ovelhas (alternativa que julgava mais provável) 19.

                                                                                                                18   Sobrinho é vaqueiro da criação sendo remunerado na sorte. No rebanho que dormiu solto estavam, provavelmente, tanto ovelhas suas quanto do patrão.   19   Enquanto fazia a pesquisa de campo, o filho de Sobrinho ria do que o pai fez nos dias seguintes: montou guarda armado pastorando o rebanho, mas não conseguiu pegar nenhum cachorro "no ato". Quando desistiu da vigília, o cachorro atacou novamente.

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  Fotografia 4: O movimento de um "rajado" em uma roça Foto: Jorge Luan Teixeira

  Dias depois, Sobrinho encontrou Naldo, de quem já desconfiava, em uma roça (o terreno do patrão de um faz extrema com o terreno do patrão de outro). Naldo sabia demais sobre o ataque: além de citar o ocorrido precisou o número de cabeças mortas. Aos olhos de Sobrinho, essa era uma evidência quase inconteste de que ou Naldo estava presente, ou que sabia que era o seu cachorro aquele que tinha atacado. Dando uma indireta, Sobrinho disse para Naldo que sabia que o cachorro e o seu dono não eram de longe, mas de perto: mencionou o rastro das botas para comprovar sua teoria. Ao ouvir isso, Naldo teria ficado mais desconfiado do que cachorro em dia de mudança - para mencionar outro "dizer" nordestino no que tange a esses bichos. Curiosamente (ou não), nos dias que se seguiram, o cachorro de Naldo ficou preso em casa: "[A gente] Só ouvia era o latido do bicho amarrado". Quando foi solto, 22    

ele comprovou a veracidade do adágio sertanejo: saiu do terreno em que o dono vive e atacou a criação de Zezé, pequeno proprietário residente em um sítio distante uns poucos quilômetros. A mulher de Zezé o acordou no meio da noite - o cachorro da casa e as próprias ovelhas "alarmaram", alertando os donos sobre o que ocorria -, mas quando o esposo saiu, desarmado, o cachorro já havia matado algumas cabeças. Dias depois desse ataque, o cachorro se dirigiu a outra propriedade durante a noite, atacando as ovelhas de outro criador. Quando se deu conta, o proprietário abriu a porta da casa já com a espingarda em punhos. Eram dois cachorros: um deles foi baleado enquanto pulava a cerca e, ferido, ficou por lá mesmo, o segundo, o de Naldo, fugiu. E se era de Naldo, e não de outro, era justamente porque o criador o viu e o reconheceu como sendo do morador do terreno vizinho. Pela manhã, como é de praxe, ele foi até a casa de Naldo e contou o ocorrido apresentando as duas alternativas citadas acima: ou a criação era paga, ou o cachorro era morto. Nem um, nem outro: Naldo acabou dando o bicho para outra pessoa, residente num sítio distante. Não houve jeito: o cachorro atacou novamente na localidade para a qual havia sido enviado, encontrando, só então, o fim que tem os cachorros que pegam criação. A última solução aqui apresentada é a mais controversa de todas (e se o é, é devido aos efeitos não previstos que pode produzir): a bola. A bola é feita com sebo (ou carne) e veneno (comumente, para ratos). Na surdina, na calada da noite, vai-se até o local desejado (por vezes, o terreiro ou as imediações da casa em que está um cachorro pegador de criação) e as bolas são jogadas. Se a ação cumpriu o desejado, saber-se-á, possivelmente, já no próximo dia quando as notícias, que andam ligeiras, chegarem aos ouvidos de quem jogou as bolas: a morte do(s) cachorro(s) que pega(m) criação, vitimado(s) pelo veneno. Com o faro apurado que tem (afinal, "cachorro é bicho amaldiçoado"), o bicho fareja a bola de longe, caso ela tenha sido colocada contra o vento, e vem para comê-la. O problema é que jogar bolas é quase como descarregar uma arma no escuro: nunca se sabe ao certo quem acabará matando. Um grande criador, entre envergonhado e rindo, me contou sobre um cachorro que engoliu a bola que jogou para depois vomitá-la. Resultado: uma porca do dono da casa, que era seu morador, acabou comendo a armadilha e morreu. Cerca de um ano depois da visita de Miguel da Bia à casa de Evaldo, eu fiquei sabendo por Pedro Sobrinho que, no dia seguinte àquele, as bolas foram a solução encontrada por ele; mas, no julgamento de Sobrinho, o criador teria feito algo muito 23    

errado, pois muitos cachorros "inocentes" também teriam sido envenenados (dentre eles, o do genro de Sobrinho, um cachorro que era usado pelo dono para caçar). Mas é a história de Peteleco e Xenhenhém que revela um aspecto ainda não dito das bolas. A história me foi contado por Wagner, um pequeno proprietário e criador do município de Acopiara. Segundo Wagner, os cachorros da localidade em que mora estavam lhe dando muito prejuízo: nem bem nasciam os borregos, um magote de cachorros da vizinhança já os atacava. Uma cachorra no cio atraía outros cachorros de quase todos os cantos 20. Uma noite, Wagner jogou algumas bolas detrás do curral em que as ovelhas dormem: foi cachorro morrendo de uma ponta à outra dos sítios vizinhos. No dia seguinte, uma pessoa conhecida chegou a sua casa trazendo notícias: "Waguim, pela'mor de Deus, tu matou Peteleco!" Wagner ficou assustado de imediato: Matei um doido, pensou. E quem é esse Peteleco?, "Ômi, é o cachorro da Delane!" A história, contada nos dias seguintes, era motivo de fartas gargalhadas. Delane era uma vizinha de Wagner que gostava do cachorro mais do que tudo na vida: tanto, que o bicho comia do seu prato e dormia na sua cama, um motivo constante de deboche. No dia seguinte, Peteleco foi enterrado pela dona aos prantos. Até Xenhenhém, o gato de outra vizinha, havia sido vitimado. Se era do conhecimento das pessoas da localidade que Wagner havia jogado as bolas - afinal, não era ele o incomodado com a ação dos cachorros? -, elas não tinham nenhuma prova, nenhuma evidência, de que ele havia feito isso, até porque Waguim não admitia o "mal feito" para elas. Quando, visitando sua casa e sentado no seu alpendre, sussurrei o assunto, ele disse imediatamente: "Ômi, pelo amor de Deus, não fale nisso, não! [risos]". "Quem foi que matou Peteleco, Gabriel? Foi você, né?", perguntou, em outro dia, Waguinho para um menino do localidade rural em que vive e que viera com ele para a rua, "Naam... Foi você!", respondeu a criança, ao que Wagner disse: "Eu, não! Você prova? Você não tem prova [risos]". O segredo em torno das bolas e também a acusação, seja ela tácita ou não (como no caso da "indireta" que Sobrinho deu para Naldo), são performados pelos agentes. Assim como há certa "ambiguidade residual" no que tange à identidade do ladrão de ovelhas glendiota (HERZFELD, 1988, p.192), também há dúvida, imprecisão, sobre qual cachorro-dono fez o mal feito, caso o bicho não tenha sido flagrado no ato veja-se, por exemplo, a suspeita que Sobrinho nutria em relação a Naldo. E assim como                                                                                                                 20   Quando um bando de cachorros segue uma cachorra no cio, diz-se que esse coletivo é uma cachorreira.   24    

a retaliação por parte do criador roubado o denuncia (ibid, ibidem), as pessoas da vizinhança e o(s) dono(s) do(s) cachorro(s) morto(s) não terão problemas em identificar o contra-ataque (as bolas) como uma resposta daquele que fora atacado antes. CONCLUSÃO Retomo aqui a história contada por Miguel da Bia com o intuito de tirar algumas conclusões preliminares à respeito do que a ação dos cachorros e o seu estatuto ambíguo revelam sobre as formas locais de fazer relações. Tanto Miguel quanto Tonho ficaram sabendo sobre as ações um do outro por intermédio de terceiros. Alguém contou a Tonho que viu Miguel conversando com o delegado, mas um trabalhador de Miguel também contou a ele que viu o cachorro sendo morto na surdina, escondido daquele com quem o problema ocorrera. Essa circulação de informações também se deixaria ver nas histórias contadas por Pedro Sobrinho, histórias essas que só lhe diziam respeito parcialmente (o cachorro protagonista delas foi o mesmo que, supostamente, matou a criação de que cuidava). Fiz menção acima à circulação de informações e aos deslocamentos como uma forma de conhecimento. Também mencionei as práticas de mapeamento e aparentamento que acompanham tais movimentações. O que fundamenta, justifica, essas formas de interação é a dispersão geográfica, uma dispersão que não é impeditiva: as pessoas, parentes ou não, vizinhos ou não, se relacionam apesar da e na distância. Mas essas formas de interação e conhecimento também evidenciam algo. Assim como ocorre entre os pastores semi-nômades estudados por Campbell (1964), poderíamos pensar que a circulação dessas informações, histórias (fofocas) e julgamentos evidencia a existência de uma comunidade

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, um coletivo humano que não partilha apenas as

mesmas estradas e cercas, mas também uma série de práticas e valores em comum - um coletivo que, dentre outras coisas, é moral, que compartilha uma gramática moral. Assim, se um cachorro mata uma criação e eu tenho consciência de quem é o seu dono, nada mais justo e acertado do que matá-lo - afinal, cachorro que "pega" uma nunca para                                                                                                                 21   Entre os pastores Sarakatsani, a dispersão dos parentes entre diferentes aldeias contribui para uma rápida circulação das fofocas, das informações. E se ocorre essa circulação é também pela consciência de ser uma "comunidade", por uma espécie de identificação entre as famílias, não obstante toda a hostilidade e competitividade entre elas: "The consciousness of being a community stimulates the circulation of news which is all the more urgent because people do not live in a closely settled community. In its turn the very process of evaluating the conduct of other Sarakatsani is a reaffirmation of the solidarity and indeed of the existence of the community as such" (CAMPBELL, 1964, p.314).  

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de fazer isso. O dono pode morar em uma casa a cem metros do local onde o incidente ocorreu, mas também, como observado nas histórias contadas por Novo, a alguns quilômetros de distância. Um coletivo humano cujas fronteiras (porosas) não são fixas e muito menos contínuas, mas móveis e negociadas cotidianamente: tanto a circulação das pessoas quanto a circulação dos brutos constituem territórios descontínuos. Um coletivo humano (uma comunidade), mas um coletivo em que atuam decisivamente ovinos, caprinos, bovinos, veados, tatus, pebas, onças... E cachorros. "Territórios descontínuos" pela ação do vaqueiro que mora em um terreno, mas vai com periodicidade ver o gado do patrão que está comendo no pasto de outro terreno distante alguns quilômetros. "Territórios descontínuos" pela ação dos caçadores que, reunidos, saem de suas casas e tomam as estradas à noite para, abrindo cercas e escancarando cancelas na surdina, entrar nas matas de propriedades que não lhes pertencem. Mas, também, "territórios descontínuos" que são inventados e afirmados a partir da agência desses cachorros (sejam eles de caçadores ou não) que andam muito e "pegam criação" dos proprietários das vizinhanças. Afirmei na introdução deste artigo que monografias como as de Campbell (1964) e de Herzfeld (1988) contribuem para pensar sobre o que é aqui discutido. Ainda que a relação dos pastores por eles estudados com os bichos de criação (as ovelhas) não seja o foco de seus trabalhos, os seus dados permitem ver como a atuação dos animais (e a atuação que diz respeito a eles) é decisiva para o seu argumento. As ovelhas que cruzam fronteiras e comem no pasto de outros criadores, motivando brigas entre os Sarakatsani; o "roubo da grama" realizado pelos pastores; o roubo das ovelhas, que é comparado ao roubo das noivas. No caso de Glendiot, a comunidade rural estudada por Herzfeld em Creta, as ovelhas são comumente roubadas de pastores de outras localidades com a justificativa de que essa modalidade de roubo tem o poder de fazer amigos e mesmo compadres

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. O conflito, o roubo, produz aproximações e aqui é

                                                                                                                22   "As a solution to the dispute [entre ladrões de ovelhas], the mediators usually propose that one of the principals baptize the child from among the close agnates of the other. This, in fact, was the aggressor's original goal - 'friends' is often a synonym for sindekni - and it may also suit the older man [roubado por um jovem pastor iniciante na "arte"], if he is anxious to store up some useful sources of protection against the all too rapid advance of old age. From the moment of agreement, the principals address each other as sindekne, and are morally bound never to raid each other again. More than that, they are supposed to help each other when yet others raid their flocks, and especially to serve as arotikhtadhes. These men who visit their own sindekni and kin in other villages and 'ask' about the missing animals on behalf of the victims" (HERZFELD, 1988, p.174-5). Ou seja, a ação dos arotikhtadhes também demonstra, como no

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menos importante se elas culminarão em alguma forma de aliança ou não: o que destaco é que essa forma de disputa e atuação também faz relações, também afirma uma "comunidade" (no sentido dado por Campbell) e constitui territórios descontínuos. Mais do que isso, existem códigos que orientam essas formas de atuação e posturas a serem tomadas em relação a elas. Assim, se no roubo de ovelhas há orientações morais que dizem respeito às formas apropriadas de roubar, de quem roubar e de quando roubar (e mesmo de quando é lícito subverter tais orientações), também existem condutas socialmente recomendadas no que tange à ação desses cachorros pegadores de criação. Se o dono do bicho não o mata e nem paga o prejuízo, a disputa é resolvida ou recorrendo a alguma forma de judicialização do caso, ou fazendo uso das bolas. *** Como observado acima, este artigo reúne um material que não foi incluído na dissertação de mestrado, mas também outras observações feitas desde então. O seu caráter fragmentar e a ausência de referências teóricas outras, mas que seriam fundamentais, faz com que ele não passe de um conjunto de "notas" - notas etnográficas que precisam ser melhor trabalhadas e enriquecidas com outras observações. Se enfim tomei a iniciativa de escrevê-lo e se o apresento nessa oficina, é com o intuito de levar essas questões para o debate. Uma última observação. Ainda que os sertanejos classifiquem os animais como bicho bruto, agentes sem entendimento, ao olhar para a conduta "do povo" e para sua brutalidade no trato com os animais, eles não se furtam a dizer, por vezes, que os verdadeiros "brutos" são eles mesmos: "Os bruto somos nós mesmo". Assim como na canção que serve de epígrafe a esse artigo, não nos caberia pensar (seguindo a indicação do parágrafo anterior) em que medida os sertanejos são, eles mesmos, como os cachorros? Quais são as bolas que os sertanejos jogam uns para os outros? Estando atentos ao pastoreio dos cachorros, não estão eles mesmos

                                                                                                                caso de Miguel da Bia, que caminhar é uma forma de (re)conhecer, tomar conhecimento de potenciais ladrões e identificar as ovelhas, no caso dos glendiotas, e os cachorros, no caso do sertão cearense.

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pastorando os vizinhos e os passantes? Desconfiando dos cachorros, não estão desconfiando, ao mesmo tempo, uns dos outros? Talvez, não por acaso a categoria espera - o montar uma espera - seja às vezes usada também para descrever a armadilha, a emboscada, feita por um homem para matar ou surpreender um outro.

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