Notas sobre o hedonismo de Cálicles no Górgias de Platão

June 19, 2017 | Autor: Q. Felipe da Silva | Categoria: Philosophy, Plato, Platão, Hedonism, Filosofia
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NOTAS SOBRE O HEDONISMO DE CÁLICLES NO GÓRGIAS DE PLATÃO Quesidonis Felipe da Silva

Pretendo abordar nestas notas a doutrina do hedonismo defendida pela personagem Cálicles no diálogo Górgias. Minha abordagem terá como objetivo principal mostrar que durante o diálogo com Sócrates, Cálicles reformula por três vezes sua doutrina hedonista, primeiro sob a forma de um hedonismo genérico, segundo sob a forma de um hedonismo categórico e, por fim, sob a forma de um hedonismo moderado. Essas constantes reformulações se dão por efeito do discurso dialógico, diante das constantes contradições que suas formulações são levadas a admitir. Por fim, visito a unidade e compatibilidade dessas formulações sob a forma de um hedonismo qualitativo que seria diferente do hedonismo apresentado no diálogo Protágoras por Sócrates. A entrada de Cálicles como interlocutor de Sócrates se dá no momento de embaraço de Polo, quando esse se vê forçado a admitir que, sendo que sofrer injustiças é melhor que cometê-las, então: i) se desejo ajudar um amigo devo auxiliar em sua condenação, caso ele tenha cometido uma injustiça e ii) se quero prejudicar um inimigo devo impedir, de todas as formas, que ele sofra qualquer punição. Cálicles entra no diálogo incrédulo da seriedade de Sócrates, e sua entrada marca uma mudança significativa no tom de todo o restante da 1

obra. Isso porque Cálicles faz o papel do personagem recalcitrante , se opondo não só a tese moral de Sócrates (cometer injustiça é pior do que sofrê-la), mas também ao próprio filosofar. A oposição entre as personagens Sócrates e Cálicles é marcante. Sócrates identifica a si mesmo como representante da filosofia e a Cálicles como representante do povo, sempre pronto a mudar seu discurso de acordo com as veleidades desse povo, ao passo que a filosofia jamais mudaria seu discurso (481c4-482c3). A resposta de Cálicles a essa colocação de Sócrates trará à tona a constituição e desfecho,

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Outro personagem aparentemente recalcitrante será Trasímaco, ele se apresentará no primeiro livro da República defendendo a tese segunda a qual a justiça é a vontade do soberano. Com esse personagem podem ser traçados diversos paralelos tanto entre sua tese de justiça e a de Cálicles mas, em especial, na forma pela qual as duas personagens são retratadas: Trasímaco, entra no diálogo de forma violenta mas, aos poucos, se deixa levar pela argumentação do filósofo, ao passo que Cálicles aceita de maneira pacífica mas que, antes do fim do argumento, se retira da discussão.

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segundo ele, dos dois primeiros “Atos ” do diálogo: as disputas com Górgias e Polo, as quais retorno brevemente.

I.

O diálogo Górgias é, segundo a tradição, acerca da natureza da retórica. Em todo o 1º “Ato” vemos Górgias dar a definição da retórica como a arte de produzir, através do discurso, determinadas crenças no ouvinte ou no auditório; sendo universal, seria então a mais importante de todas as artes já que de nada adiantaria ter conhecimento do que é melhor e não ser capaz de fazer os homens admitirem esse melhor. A refutação de Sócrates será dizer que, sem a pretensão de conhecer o bom e o mau, a retórica só produziria a aparência de bom ou mau através do discurso, servindo assim para quaisquer fins, sejam bons ou maus. Górgias admite isso, mas nega que a retórica em si tenha qualquer culpa com relação a possíveis maus usos, sobrando tão somente ao usuário à culpa da sua má utilização. Assim, seria aceitável que Górgias admitisse que o rétor desconhecesse o justo e o injusto, coisa que Górgias não faz; ao contrário, Górgias sustentará que o rétor conhece sim o justo e o injusto, restando a Sócrates refutá-lo ao dizer que (i) quem tem conhecimento do justo não pode agir de maneira injusta - ao que Górgias consente - e (ii) se quem domina a arte da retórica conhece o justo e o injusto, e por isso não poderia agir de maneira injusta, como então os portadores dessa “arte” poderiam utilizá-la de maneira injusta? Grosso modo, o argumento de Sócrates leva Górgias a ter de admitir, para escapar à refutação, teses escandalosas com relação ao bom e ao mau e a utilidade da retórica, algo 3

que ele não faz por pudor .

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Adoto a divisão proposta por Daniel Lopes em sua tradução do diálogo. Sua divisão é baseada em certa semelhança entre o diálogo e as peças de tragédia grega. Para cada uma das personagens que fazem o papel de interlocutores de Sócrates atribuiríamos um “Ato”, sendo a divisão: Prólogo: 447a1-449c8 1º Ato: Sócrates vs. Górgias: 449c9-461b2 2º Ato: Sócrates vs. Polo: 461b3-481b5 3º Ato: Sócrates vs. Cálicles: 481b6-522eb Êxodo: Mito Final: 523a1-527e7 Cf. LOPES, Daniel. Górgias de Platão. São Paulo: Perspectiva e Fapesp, 2011. 3

Ele teria de admitir que o professor de retórica não se preocupa com o justo e o injusto, mas tão somente com a técnica da retórica, contrariando aquilo que havia dito anteriormente com relação à retórica ser concernente ao justo e ao injusto (454b), algo que não faz por pudor. Curiosamente, no diálogo Mênon, a personagem homônima dirá que Górgias nunca esteve preocupado em ensinar o justo e o injusto, mas tão somente a técnica da retórica (95b9-c5).

Será essa a colocação de Polo logo no início de sua participação como interlocutor de Sócrates. Ele alegará simplesmente uma impostura de Sócrates ao levar Górgias, indelicadamente, a pontos em que só teses escandalosas poderiam salvá-lo. Polo se mostrará durante todo o 2º “Ato”, um interlocutor inabilitado para o diálogo. Desde o primeiro momento, quando pergunta a Sócrates de qual tipo de arte ele crê ser a retórica, já mostra sua incapacidade de lidar com a discussão filosófica. Com relação à retórica, Sócrates fará a distinção entre dois tipos distintos de atividades: por um lado aquelas que chamará propriamente de artes, que podem ser tanto corretivas quanto regulativas, aplicadas ou a alma ou ao corpo. Sendo justiça e legislação as artes corretiva e regulativa, respectivamente, aplicadas à alma e medicina e ginásticas as artes aplicadas ao corpo. Ora, a essas artes Sócrates oporá a lisonja, sendo a retórica e a sofística aplicadas à alma e a 4

culinária e as indumentárias ao corpo . Deste modo a retórica, longe de ser uma arte, será apenas fonte de deleite, como a culinária, sem trazer benefício algum à alma. Como ficaria desta forma a tese geral de que a retórica traria um bem ao seu usuário, porque lhe permitira fazer o que quisesse, como os tiranos, segundo o próprio Polo? Admitindo-se a 5

gramática filosófica platônica, então diremos que quem tem poder pode fazer aquilo que quer, e quem quer só pode de fato querer o seu bem, que é o seu fim; quem age injustamente não faz o que quer porque age contra seu próprio bem e seu fim, e faz isso por lhe parecer um bem sem de fato o ser. O verdadeiro poder, longe de ser o dos tiranos, seria então o de fazer e querer aquilo que é realmente o bom e o justo. Sendo a retórica uma lisonja, não lida com o bom e o justo, mas apenas com o empírico, para agradar as multidões, não sendo deste modo fonte de poder ou do bom para seu usuário, mas tão somente um deleite. O fim do 2º “Ato” se dá com a entrada de Cálicles na discussão. É interessante perceber que Cálicles atribui a Polo o mesmo motivo para a derrota que esse havia atribuído a Górgias: o constrangimento de ter de assumir aquilo que realmente pensaria (482e2). Esse sentimento de vergonha ou pudor que impeliu tanto Górgias quanto Polo a se contradizerem será entendido por Cálicles como verdadeiro motivo da refutação de ambos, 4

Duas coisas se fazem notar com relação a essa distinção: (i) de algum modo, determinar culinária e indumentária, por serem as formas contrapostas de lisonja à medicina e à ginástica, como lisonjas corretiva e regulativa, não seria algo imediatamente correto já que, apesar de ocuparem as mesmas posições com relação ao corpo, não exercem essas funções de correção e nem de regulação mas, tão somente a de deleite, (ii) da mesma forma, a retórica e a sofística com relação à alma, sendo que Sócrates admite uma certa unidade das duas, o que tornaria a distinção ainda mais desnecessária. 5

Um dos tópicos cômicos do diálogo é a incapacidade de Polo de entender a gramática filosófica na qual Sócrates opera seu argumento.

não a forma do argumento de Sócrates; e, caso Polo tivesse assumido suas próprias posições ele não haveria sido refutado. A marca constitutiva do próximo “Ato” inteiro será que Cálicles assume de inicio, não se incomodar com sentimentos como vergonha, defendendo suas teses independente do quão escandalosas elas possam parecer.

II.

O argumento de Cálicles começa com a distinção entre aquilo que é mais vergonhoso segundo a lei e segundo a natureza. Segundo a lei o mais vergonhoso seria cometer injustiças, ao passo que segundo a natureza seria sofrê-la. As leis, promulgadas pelos homens, seriam formas da massa impedir que aqueles melhores, mais fortes e superiores, por natureza possuíssem aquilo que devem possuir, a despeito dos mais fracos e inferiores (482b-483d). Essa tese da origem das leis e da justiça aparece novamente na República, exposta no segundo livro pela boca de Glauco como parte das opiniões a respeito da justiça, atribuída por Glauco à própria maioria, que Sócrates deveria refutar para defender a justiça em si, independe das consequências que advenham aos homens (Rep. II, 358e3-359b5). Sócrates começa sua refutação promovendo a identificação do melhor com o mais forte e depois com o superior; a massa, formada por aqueles mais fracos, está em maior número que os mais fortes, e por estarem em maior número serão também mais fortes, portanto melhores, portanto superiores; então as leis da massa é que devem ser observadas, por serem o justo por natureza. Claro que Cálicles não admite essa refutação, sempre acusando Sócrates de apenas promover jogos de palavras (489b8). O próprio Sócrates vai tentar reformular essa identidade de Cálicles, dizendo ser o melhor o mais inteligente, o que Cálicles amplia ao dizer que o melhor deve possuir mais; afirmações essas levadas ao absurdo por Sócrates já que, desta forma, o sapateiro deveria ter mais sapatos e o ferreiro mais espadas e assim por diante. A forma do argumento é levada até o momento em que Cálicles admite que seu melhor seja aquele capaz do domínio, em especial, com relação às coisas da cidade, ao que Sócrates pergunta se antes não deveria haver o domínio de si mesmo. Temos então a primeira formulação do hedonismo por Cálicles: “o homem que pretende ter uma vida correta deve permitir que seus próprios apetites dilatem ao máximo e não refreá-los, e, uma vez supradilatados, ser suficiente para servi-lhes com coragem e inteligência, e satisfazer o apetite sempre que lhe advier” (491e-492a). Neste ponto do diálogo a posição hedonista de

Cálicles fica clara, para ele a felicidade do homem se dá na sua capacidade de permitir seus apetites de aflorar e na sua coragem e inteligência para satisfazê-los, sendo a intemperança uma condição da felicidade. Diante dessa formulação do hedonismo, Sócrates contrapõe a visão de homem intemperante, afirmando que só a temperança permitiria uma satisfação no sentido de um apaziguamento e que, na busca desenfreada o homem só conseguiria uma vida repleta de dores (493e4-8). Mas Cálicles rejeita essa visão situando a satisfação não na conclusão da busca, mas, justamente em seu processo. É aqui que Cálicles muda a forma de sua definição de hedonismo. Até agora ele havia admitido um hedonismo genérico que identificava a felicidade à satisfação dos apetites sem, com isso, se comprometer com determinadas formas de apetites mais problemáticas. Contudo, ele reformula o argumento sob a forma de um hedonismo categórico, admitindo que para viver bem o homem deve satisfazer todos os seus apetites (494c2). Diz ele que os apetites surgem e, da mesma forma que surgem, o homem deveria lhes dar plena vazão, sendo inteligente o suficiente para banir quaisquer obstáculos à sua satisfação. Deste modo, Cálicles vai legitimar a investida de Sócrates no decorrer do diálogo, já que se identifica a boa vida com a satisfação plena de todos os apetites, então a vida de alguém que fica sempre a se coçar ou a dos praticantes do homossexualismo passivo seriam também formas de vida plenas e boas, argumento esse que Sócrates usa contra essa nova formulação do hedonismo. Essa forma de atacar o hedonismo não seria possível se Cálicles não o tivesse reformulado. Diante dessas possibilidades, Cálicles irá admitir que existem apetites piores e melhores, aqui então, sua posição assume a forma de um hedonismo moderado. E, ao admitir a existência de prazeres piores ou melhores, semeia as formas de ataque que Sócrates poderá utilizar para refutar sua posição hedonista, simplesmente atacando a identidade, necessária ao hedonismo, entre bem e agradável, refutação que acabará por 6

fazê-lo se retirar do diálogo .

III.

Essa três formulações do hedonismo, que denominei de hedonismos genérico, categórico e moderado, podem ser as três categorizadas como formulas do hedonismo 6

Para os fins dessas notas, a estrutura completa da refutação não é necessária, mas tão somente que ela parte da distinção entre o prazer e o bom. Para essa distinção era necessário que Cálicles admitisse a existência de prazeres melhores e piores.

qualitativo. Essa forma de hedonismo possui um considerável paralelo com o hedonismo apresentado no diálogo Protágoras de Platão. Neste diálogo, versando a respeito da possibilidade da virtude poder ou não ser ensinada, Sócrates apresentará quatro argumentos com o objetivo de reduzir todas as virtudes a uma única e mesma virtude. O último argumento, de tipo a fortiori, tentará mostrar que se até no hedonismo, doutrina declaradamente não racional, é possível encontrar elementos da razão para bem conduzi-la, tanto mais na coragem, virtude à qual Protágoras não conseguia ver elementos das outras virtudes como a sabedoria. O que possibilitou que essa versão do hedonismo fosse racionalizada era a possibilidade tanto de uma indexação temporal quando de uma quantificação dos prazeres obtidos. No caso de Cálicles, esse argumento não teria forma de utilização já que os prazeres deveriam ser satisfeitos de acordo com sua fluidez, sendo eles qualitativamente diferentes. A única forma que permitiu a refutação foi justamente o processo de variação na definição do hedonismo que Cálicles promoveu, sem a qual Sócrates não poderia ter feito a distinção que fez, e assim, diferenciar prazer e bem.

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