Notas sobre preconceito de classe e políticas sociais no Brasil

June 1, 2017 | Autor: J. Andrade Costa | Categoria: Políticas Públicas, Psicologia Social, Teoría Crítica, Preconceito
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL











José Fernando Andrade Costa









"Notas sobre preconceito de classe e políticas sociais no Brasil"











Trabalho final da disciplina: "Preconceito, indivíduo e cultura"





Docente: José Leon Crochik













Outubro de 2014




Título: "Notas sobre preconceito de classe e políticas sociais no Brasil"



Autor: José Fernando Andrade Costa

Número USP: 8857171



O objetivo deste ensaio é apresentar uma reflexão a respeito do
preconceito de classe e as políticas sociais no Brasil. A opção por tratar
o tema do preconceito a partir da concepção de preconceito de classe, e não
relativamente às suas manifestações contra minorias tradicionais (negros,
homossexuais, deficientes etc.), se deve à necessidade de pôr em discussão
esse tipo específico de desrespeito social no âmbito das políticas sociais
no Brasil, em especial a política de assistência social. Evidentemente não
se trata de menosprezar as outras manifestações do preconceito, mas apenas
de dar destaque a alguns aspectos mais gerais das relações sociais em que
se faz presente a discriminação e opressão (flagrante ou sutil) sem que, no
entanto, esteja diretamente associada a uma característica direta de um
movimento coletivo (como o dos negros, homossexuais etc.) que lutam por
reconhecimento. Neste sentido, em nossa sociedade, o grupo social alvo do
preconceito de classe não é uma minoria, mas ao contrário, é a maioria. São
os despossuídos, os marginalizados, as "classes perigosas". Compõem,
justamente por isso, o público-alvo das políticas de assistência social.

Antes de prosseguir com a reflexão sobre o preconceito de classes e as
políticas de assistência, cabe pontuar o lugar que o conceito de classe
social adquire em nossa reflexão teórica. Este conceito é comumente
associado à teoria marxista como ponto de partida para explicar as
contradições fundamentais do modo de produção capitalista[1]. No entanto, o
caráter excessivamente mecanicista e funcionalista do marxismo e suas
vertentes tem recebido críticas no debate sociológico há algum tempo.
Ocorre que Marx não foi o único teórico das classes sociais e, para Jessé
de Souza (2005), não é nem mesmo o mais criativo e atual neste tema. A
interpretação de Max Weber, por exemplo, acrescenta à "situação de classe"
da economia política marxiana o componente da "situação estamental" para
dar conta de características das relações marcadas pela valorização social
da "honra". Mas, para Souza (2005), é Bourdieu quem oferece a interpretação
mais precisa para definir as relações de classe social na
contemporaneidade. Isto porque

De Marx ele retira a tese da determinação de classe do
comportamento humano em sociedade. De Weber, a noção da
bidimensionalidade da estratificação social sob o capitalismo,
substituindo o aspecto da honra pelo tema do prestígio associado
ao conhecimento, ou "capital cultural", como ele prefere. Ao
unir ambos os princípios e inter-relacioná-los, ao contrário de
Weber, por exemplo, que cria uma disjuntiva entre a
estratificação por status e pela situação econômica, Bourdieu
constrói uma noção de estratificação social que combina os
aspectos econômicos e sócio-culturais e vincula a situação de
classe a uma "condução da vida" específica. Esta "condução da
vida" representa uma dada atitude em relação ao mundo em todas
as dimensões sociais, não se restringindo, portanto, à subesfera
econômica. Será esta condução da vida específica, ou seja, a
dimensão weberiana do status, que permitirá constituir laços
objetivos de solidariedade, por um lado, e de preconceito, por
outro. Será também esta condução da vida, ou atitude em relação
ao mundo que propiciará a justificação de privilégios ao
permitir que estes "apareçam" como qualidades inatas dos
indivíduos e não como socialmente determinados (Souza, 2005,
p.46).




A posição social passa a ser justificada por uma ideologia espontânea
que se fundamenta no "mérito" e no esforço pessoal de cada indivíduo. Os
status sociais derivam da posição que cada um ocupa em cada estrato
específico e sua ascensão ou descenso atribui-se ao "desempenho" de cada
sujeito. Constitui-se, deste modo, um padrão de desigualdade sui generis no
contexto de uma sociedade formalmente democrática mas brutalmente desigual.
As classes de cima são capazes de conviver com hierarquização e a
disparidade social, sem remorso, ao passo que às classes de baixo é
imputada a responsabilidade por sua condição de vida e sua inserção
precária no sistema produtivo. Para Souza (2005), a ausência dos
pressupostos mínimos para uma competição bem sucedida na dimensão
econômica, ou seja, na esfera do trabalho e da produção, é que irá
determinar, objetivamente, o não-reconhecimento social e a ausência de auto-
estima das classes marginalizadas, seja na dimensão política, seja na
dimensão social e privada.

A expressão da discriminação social, neste caso, ocorre antes pela
diferenciação entre habitus[2] adquiridos pelo processo de socialização nos
diferentes estratos sociais, do que pelos traços de cor, raça ou
sexualidade. Isto de modo algum nega a existência do preconceito racial e
os demais, ou atenua a perniciosidade dessas violências. Apenas aponta que
na sociedade de classes a força das relações sociais impetra aos indivíduos
um aprendizado pré-reflexivo de disposições, inclinações e esquemas
avaliativos que medeia a "condução da vida" e a personalidade de seu
possuidor em relação aos signos opacos da cultura. Neste sentido, a noção
bourdiesiana de habitus de classe permite compreender que mesmo as escolhas
consideradas mais pessoais e recônditas são frutos de fios invisíveis que
interligam interesses de classe, fração de classe ou, ainda, de posições
relativas em cada campo das práticas sociais (Souza, 2004). E são estes
"fios invisíveis" que interligam e cimentam afinidades e simpatias,
constituindo tanto as redes de solidariedade quanto as manifestações de
rejeição e antipatia calcadas em preconceitos de classe, cor ou gênero
(Souza, 2005).

A relevância atribuída por Jessé de Souza aos aspectos pré-reflexivos
subjacentes que constituem objetivamente as distinções entre indivíduos que
ocupam posições distintas na divisão social do trabalho, contribui para
pensar criticamente o preconceito de classe sem cairmos na tentação de
reproduzirmos as análises marxistas-funcionalistas ou recairmos no puro
subjetivismo. Contudo, apesar desta análise ser bastante fértil para a
compreensão da gramática social da desigualdade brasileira, ela carece de
elementos que expliquem como o preconceito de classe (e em geral) opera
psicologicamente na relação entre o indivíduo particular e cultura em
geral.

O indivíduo é produto e (re)produtor da cultura. O indivíduo se
inscreve na cultura através do processo de socialização, no qual se
transforma e se forma como indivíduo. E este processo responde ao movimento
histórico que lhe é inerente, ou seja, enquanto síntese de continuidade e
ruptura do duplo movimento de emancipação e dominação dos desígnios da
natureza. Para tanto, a experiência e a reflexão são as bases para a
constituição do indivíduo na cultura. O preconceito, por sua vez, se
caracteriza pela ausência ou impedimento de ambas. Mas as raízes
psicológicas do preconceito são ainda mais profundas. Segundo Crochik
(1997), "o preconceito diz respeito a um mecanismo desenvolvido pelo
indivíduo para poder se defender de ameaças imaginárias, e assim é um
falseamento da realidade, a qual o indivíduo foi impedido de enxergar e que
contém elementos que ele gostaria de ter para si, mas que se vê obrigado a
não poder tê-los; quanto maior o desejo de poder se identificar com a
pessoa vítima do preconceito, mais este tem de ser fortalecido" (Crochik,
1997, p.18-9). Este mecanismo é produto da introjeção das normas e valores
da cultura. A psicanálise descreve a formação do superego – a consciência
moral que adquirimos por identificação com as figuras de autoridade (os
pais) – a partir do medo inconsciente de perder o amor e a proteção dos
pais. Deste modo, a criança assume como seu ideal de ego os valores de seus
pais acerca do que é bom e o que é mau, do que deve ser feito e do que não
deve ser feito. À defesa dos valores introjetados pelo ego correspondem,
simultaneamente, o medo e a necessidade de autoridade: medo frente à
punição; necessidade devida ao sentimento de desamparo, de fragilidade.
Neste sentido, uma vez que o preconceito não é inato, o superego representa
a fonte de sua expressão, no nível individual (Crochik, 1997).

Apesar de o preconceito dizer mais do preconceituoso do que de sua
vítima, esta não é totalmente independente daquele. O preconceito se vale
dos estereótipos fornecidos pela cultura e, em geral, se dirige contra
grupos fragilizados. Os estereótipos favorecem a deturpação da realidade,
criando cisões baseadas na distinção de grupos a partir de características
parciais ou que sequer tenham alguma verdade. O processo de reprodução dos
estereótipos pela indústria cultural produz também um efeito ao nível do
pensamento, tornando-o, em alguma medida, também estereotipado. Por sua
vez, a estereotipia do pensamento se apoia na ideologia e exclui a reflexão
crítica sobre a realidade, favorecendo o preconceito cultural. A ideologia,
entendida aqui como justificativa para qualquer tipo de dominação, também é
um produto da cultura. Ela "encobre a dominação desnecessária para a
autoconservação da humanidade e, como se exerce na forma de dominação (da
consciência e da vontade humanas), se contrapõe a uma consciência crítica
que denuncia a cisão entre a forma pela qual os homens se organizam e as
suas necessidades" (Crochik, 1997, p.33).

A dominação, no entanto, não é inerente ao homem. Ela advém do
processo de luta contra as vicissitudes da natureza que buscava livrar o
homem do medo da destruição. Este processo é o próprio movimento do
esclarecimento: "no sentido mais amplo do progresso do pensamento, o
esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo
e investi-los na posição de senhores" (Adorno & Horkheimer, 1985, p.17). O
esclarecimento visa, portanto, a liberdade; sua característica é o
desencantamento do mundo sob o desígnio da razão e será, portanto, o
progresso da razão que conduzirá à emancipação. Conhecer emancipa porque o
conhecimento traz consigo o domínio da realidade. No entanto, como apontam
Adorno e Horkheimer (1985), o esclarecimento porta sua autodestruição. O
progresso do esclarecimento caminha com a regressão à dominação. Pois todo
ato de conhecer é um ato de dominação. Com o aumento da produtividade
econômica alcançou-se ao mesmo tempo as condições para um mundo mais justo
e as bases para a regressão à barbárie. O indivíduo desaparece frente ao
aparelho técnico que ele produz, que dele se autonomiza e passa a decidir
sobre seu comportamento. Aliena-se das coisas que produz e de si mesmo,
enquanto homem:

o preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com
relação aos objetos dominados; com a coisificação do espírito,
as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as
relações de cada indivíduo consigo mesmo. Ele se reduz a um
ponto nodal das reações e funções convencionais que se esperam
dele como algo objetivo. O animismo havia dotado a coisa de uma
alma, o industrialismo coisifica as almas. O aparelho econômico,
antes mesmo do planejamento total, já provê espontaneamente as
mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento dos
homens. A partir do momento em que as mercadorias, com o fim do
livre intercâmbio, perderam todas suas qualidades econômicas
salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma
paralisia sobre a vida da sociedade em todos os aspectos (Adorno
& Horkheimer, 1985, p.35).




A circulação das mercadorias, na sociedade capitalista, submete tudo à
sua lógica de acumulação e reprodução. A reificação do pensamento dificulta
que ele se pense a si próprio. Os indivíduos deixam de reconhecerem-se como
membros do gênero humano, renunciando a si mesmos. O esclarecimento
disciplina o pensamento; reduz o mundo todo ao princípio do cálculo
matemático. Assim, na sociedade de classes, o esclarecimento abdica de
realizar-se plenamente.

O esclarecimento é totalitário, como todo sistema. Uma das
consequências da reificação do pensamento é a extensão a toda a sociedade,
tornando o mundo um "mundo administrado" tecnicamente. Sob a racionalidade
instrumental, a administração da vida social se reflete tanto na indústria
quanto no Estado. Observaremos adiante que a racionalidade instrumental é
marcante na gestão das políticas sociais. Antes, contudo, convém fazer uma
breve digressão para apontar alguns exemplos do preconceito de classe
extraídos do nosso cotidiano.

O primeiro caso refere-se ao efeito surpresa, por assim dizer, da
aprovação de uma emenda constitucional em abril de 2013, que ficou
conhecida como "PEC das empregadas domésticas". Algo que pareceria simples,
que é a correção de uma aporia jurídica relativamente aos direitos
trabalhistas no Brasil, para que as "empregadas" domésticas tenham
garantido seus direitos trabalhistas, como quaisquer outros trabalhadores
formais no país. Este segmento profissional, no entanto, situa-se no âmago
das distinções de classe social, pois evidentemente as (agora sim)
"empregadas" domésticas pertencem aos estratos mais baixos da pirâmide
sócio-econômica, enquanto quem as emprega pertence aos setores abastados. O
que chama a atenção não é o descompasso de décadas na Consolidação das Leis
Trabalhistas, no que tange ao serviço doméstico, mas sim as reações de
protesto contra a aprovação da lei. O caso emblemático, que vale a pena
recuperar aqui, foi publicado pela ex-colunista do jornal Folha de S.
Paulo, Danuza Leão, em 24 de março de 2013. O texto intitulado "A PEC das
empregadas" (Leão, 2013) aparentemente pretende alertar para o risco de que
gere desemprego de muitas empregadas domésticas, uma vez que o empregador é
uma pessoa física e não uma empresa e, portanto, terá mais dificuldades
para arcar com os encargos trabalhistas previstos em lei. A autora
prossegue comparando pela superfície países desenvolvidos como a França e
os Estados Unidos, sem considerar a perspectiva do direito a ter direitos
das empregadas. O texto de Leão foi rapidamente interpretado e denunciado
em outros meios de comunicação de massa como "revolta da patroa", sendo
acusada de reproduzir argumentos dos senhores escravocratas do século XIX,
de que a liberdade seria prejudicial aos próprios escravos.

O segundo caso chama a atenção pela espontaneidade. Tornou-se hábito
as pessoas utilizarem seus aparelhos eletrônicos conectados às redes de
internet para compartilharem imagens e comentários de situações
corriqueiras do cotidiano. Em um desses momentos, enquanto aguardava para
embarcar em seu voo em um aeroporto do Rio de Janeiro, uma professora
universitária postou numa rede social uma foto de um homem, trajado de
bermuda e camiseta regata que embarcaria no mesmo avião que ela, com a
seguinte pergunta: "aeroporto ou rodoviária?". A ironia da professora, que
depois se referiu ao homem como "Mr. Rodoviária", repercutiu pelas redes
sociais e em matérias de jornais de grande circulação. Um colunista do
jornal Estado de São Paulo comentou que "uma parte importante da sociedade
brasileira incomoda-se com a novidade de um mercado de massa que nivelou o
jogo via acesso quase universal ao consumo. Os incomodados não são os super-
ricos, que continuam inalcançáveis. A aproximação dos que vêm de trás
perturba quem já estava no meio e se sente igualado ou até superado por
quem chegou agora e já quer sentar na janelinha" (Toledo, 2014). Após a
repercussão negativa e diversas acusações de preconceito, a professora
pediu desculpas ao homem retratado – um advogado mineiro que voltava de
férias – e logo depois encerrou sua conta na rede social.

O terceiro caso, mais recente e de menor repercussão, diz respeito a
uma ideia já bastante conhecida, mas que foi formalmente assumida pela
Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Ponta Grossa (PR) ao
propor aos candidatos a cargos do Legislativo a defesa da "suspensão do
direito ao voto para beneficiários de qualquer programa de transferência de
renda, nas esferas municipal, estadual ou federal" (Arruda, 2014). Além de
inconstitucional esta medida é curiosa por ter sido impetrada por uma
associação do comércio contra programas de transferência de renda do
Estado. No entanto, a motivação para tal ação tem um cunho político, ou
seja, é uma tentativa ingênua de impedir que os setores pobres da sociedade
possam decidir sobre o processo eleitoral. Neste sentido, chegamos ao
último caso, ainda mais recente, ocorrido logo após a divulgação do
resultado das eleições do dia 05 de outubro de 2014.

Mais uma vez, na jovem democracia brasileira, as eleições para o cargo
de presidente da república será decidido em um segundo turno de votação. E
novamente a polarização se dá entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Observou-se uma nítida
polarização entre as unidades da federação em que os candidatos destes
partidos foram mais votados, sendo a predominância do PT no Norte e
Nordeste do país, enquanto o PSDB foi o mais votado no Centro-oeste,
Sudeste e Sul. Em decorrência deste fato, e do acirramento da disputa
eleitoral até a próxima votação, repercutiram nas redes sociais mensagens
de ódio dirigidas aos nordestinos[3], tais como: "a prova de que nordestino
é vagabundo é quando entraram em pânico com boato de que o bolsa família ia
acabar, haahaha, escórias..."; "a maioria do povo que votou na dilma é do
norte/nordeste e tudo isso por medo de perder o bolsa família , pobre é uma
merda mesmo kk"; "é isso aì, pobres e negros que votem no PT, agora com
Marina fora do jogo nao necessitamos mais de votos de miseráveis, queremos
votos de pessoas de qualidade"; "Alguém separa o nordeste desse país por
favor!". Este tipo de discriminação não é novidade, infelizmente. Ele opera
uma generalização estereotipada dos nordestinos como sujeitos pobres e
preguiçosos que vivem às expensas do programa Bolsa Família. Mas a
desigualdade social não é jamais colocada em questão, pelo contrário, é
escamoteada pela ideologia para justificar a dominação de classe e a
negação de direitos.

O que subsiste em comum a todos os exemplos citados é a intolerância à
mudança no padrão das relações de classe, por mais ínfima que seja. De
fato, houve uma ligeira mudança no panorama geral da situação econômica dos
brasileiros na última década. Isto não significa que tenha havido qualquer
modificação das classes sociais fundamentais, que continuam a ser a
burguesia e o proletariado. Propaga-se, no entanto, com ares de revolução,
a ascensão de milhões de pessoas antes marginalmente incluídas na sociedade
à esfera do consumo: a famigerada ascensão de uma "nova classe média". A
análise crítica desse fenômeno mostra que houve, na verdade, uma ampliação
e reconfiguração da classe trabalhadora com o avanço do projeto neoliberal
(Chauí, 2013).

Desde que se assistiu no início da década passada a eleição de Lula da
Silva no cargo de presidente da república, o debate sobre a questão da
desigualdade social brasileira alcançou um novo patamar na agenda pública.
Ainda que não caiba analisar aqui os efeitos e as condições do surgimento
do fenômeno que ficou conhecido como "lulismo", faz-se necessário mencionar
que entre os resultados gerais da chamada "era Lula" se destacam o
enfrentamento da pobreza por meio do aumento no investimento em políticas
sociais.

Apesar de a Assistência Social ter sido assegurada como direito desde
a promulgação da Constituição Federal em 1988, sua implementação ainda não
se deu efetivamente. Relegada ao papel de "gerenciamento da pobreza", a
política de assistência perde seu caráter de direito social e permanece
associada ao assistencialismo de "boa vontade", "caridade" dos "bem
intencionados" para com os mais pobres. Na última década, contudo, o
aparato institucional da Assistência fortaleceu-se vertiginosamente. O
crescimento dos programas sociais foi acompanhado pelo aumento e
aprimoramento dos mecanismos de controle destes programas, a fim de prover
indicadores sociais com maior rapidez e eficiência. O "Cadastro Único para
Programas Sociais" (CadÚnico), por exemplo, é o instrumento padronizado de
coleta de dados e informações sobre as famílias de baixa renda para
inclusão nos programas sociais governamentais. Embora seja fundamental para
efetivação, viabilização e avaliação da gestão da política de assistência
em todo o território nacional, o processo de cadastramento acaba adquirindo
uma relativa autonomia sobre seus objetivos. Assim, grande parte do
trabalho dos agentes da assistência social passa a ser a atualização do
cadastro e de seus derivados. De acordo com Ansara & Dantas (2010), em meio
às exigências burocráticas e às demandas concretas da população, os
trabalhadores da assistência tendem a perder de vista a dimensão política
de sua prática cotidiana e a noção de direito e cidadania em sua relação
com as comunidades atendidas. Dentre os desafios do trabalho, "destaca-se a
relação clientelista e paternalista que permeia as iniciativas do poder
público. Diante de tantas solicitações, os agentes externos (trabalhadores)
já não compreendem mais quais são suas atribuições. Sentem-se pressionados
a resolver os problemas no âmbito pessoal e a 'fazer pelos outros', uma vez
que representam o poder público" (Ansara & Dantas, 2010, p.100).

Neste processo de evolução das estratégias de enfrentamento à pobreza,
esta começa a perder sua dimensão de "questão social" – que diz respeito
aos direitos e a dignidade como princípios reguladores da sociedade – para
se fixar como problema a ser administrado tecnicamente, ou então como
problema humanitário que interpela a consciência moral de cada um
(Kowarick, 2009). Reverter a figura ainda muito presente do pobre como "não-
cidadão" para que ele seja reconhecido e possa se reconhecer como sujeito
de direitos, nesta sociedade economicamente injusta, é uma tarefa árdua mas
que necessariamente passa pela politização do debate sobre a desigualdade
brasileira e da construção de meios de fortalecimento da cidadania em
contextos de vulnerabilidade. E isto necessariamente envolve a construção,
efetivação e aperfeiçoamento de políticas públicas sociais. Neste sentido,
"embora saibamos que escapa às políticas sociais, às suas capacidades,
desenho e objetivos reverter níveis tão elevados de desigualdade, como os
encontrados no Brasil, não podemos duvidar das virtualidades possíveis
dessas políticas. Elas, por serem contraditórias, podem ser possibilidade
de construção de direitos e iniciativas de 'contradesmanche' de uma ordem
injusta e desigual" (Yazbek, 2012, p.319).

E um dos desafios que se colocam às políticas sociais para que cumpra
seu objetivo precípuo de diminuir a desigualdade é o de desenvolver
estratégias para enfrentar os efeitos deletérios do preconceito, em todas
suas expressões, principalmente a de classe. Não basta apenas fomentar
programas de transferência de renda e cobrar condicionalidades da população
atendida; por esta via milhões de famílias saem da miséria extrema para
inserirem-se no consumo precário. É preciso desvelar os mecanismos que
sustentam a injustiça e criar condições para a transformação progressiva
dos habitus de classe que dificultam o reconhecimento social e a auto-
estima dos setores mais marginalizados da classe trabalhadora. Isto passa
necessariamente pela recuperação da dignidade humana nas políticas sociais
e pelo fortalecimento dos espaços de participação democrática. Mas também
passa pela reflexão crítica da experiência de participar e do que significa
"ser gente" nas políticas públicas.

A pobreza é um produto das contradições sociais e jamais um dado fixo,
natural. Tampouco as classes sociais são imutáveis ou insuperáveis. Antes
de tudo, são uma práxis, "um fazer-se histórico" (Chauí, 2013, p.130). A
humanidade já desenvolveu as condições materiais para emancipar-se do reino
da necessidade, falta agora libertar-se do aprisionamento que ela própria
criou e que reproduz sem se dar conta. Esta continua sendo nossa tarefa
(histórica). Ter consciência dela é o que nos permite manter a esperança em
um futuro melhor.




Referências

Adorno, T. W. & Horkheimer, M. (1985) Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (reimpressão 2006).

Ansara, S.; Dantas, B. (2010) Intervenções psicossociais na comunidade:
desafios e práticas. Revista Psicologia & Sociedade. v.22, n.1.

Arruda, R. (2014, 10 de setembro de) Associação propõe suspender voto de
quem recebe Bolsa Família. O Estado de S. Paulo, [São Paulo]. Disponível
online em: < http://politica.estadao.com.br/blogs/roldao-arruda/associacao-
propoe-suspender-voto-de-quem-recebe-bolsa-familia/ >. Recuperado em
06/10/2014.

Chauí, M. (2013) Uma nova classe trabalhadora. In: Sader, E. (org.) 10 anos
de governos pós-liberais: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo.

Crochik, J. L. (1997) Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Robe.

Kowarick, L. (2009) Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica
e civil, São Paulo: Editora 34.

Leão, D. (2013, 24 de março de) A PEC das empregadas. Folha de S. Paulo,
[São Paulo]. Disponível online em: <
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/100238-a-pec-das-
empregadas.shtml >. Recuperado em 06/10/2014.

Souza, J. (2004) A gramática social da desigualdade brasileira. Revista
Brasileira de Ciências Sociais. v.19, n.54.

Souza, J. (2005) Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira. Lua Nova:
Revista de Cultura e Política. n.65.

Toledo, J. R. (2014, 10 de fevereiro de) Aeroporto ou Rodoviária? O Estado
de S. Paulo, [São Paulo]. Disponível em: <
http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,aeroporto-ou-rodoviaria-
imp-,1128612 >. Recuperado em 06/10/2014.

Yazbek, M. C. (2012) Pobreza no Brasil contemporâneo e formas de seu
enfrentamento. Revista Serviço Social e Sociedade. n.110.

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[1] Em Marx temos duas classes fundamentais e antagônicas: a burguesia e o
proletariado. A primeira detém os meios privados de produção material e a
segunda representa a força produtiva. Há ainda uma classe intermediária, a
pequena burguesia, ou classe média, que tem o papel estrutural de
reprodução da ideologia dominante.
[2] O conceito de habitus, desenvolvido por Bourdieu, designa um sistema
complexo de pré-disposições relativamente estruturadas e irrefletidas que
orientam para a ação social. Jessé de Souza (2004) propõe uma ampliação
deste conceito, para incluir o elemento histórico da formação e
diferenciação (não presente em Bourdieu) dos habitus de classe. Esta
ampliação corresponde ao habitus primário (que corresponde ao padrão
normativo de uma sociedade), secundário (da apropriação dos meios materiais
e imateriais favoráveis à integração social) e precário (que corresponde ao
tipo de disposição de personalidade que não se integra à sociedade ou
somente a integra marginalmente; é o habius da "ralé").
[3] As citações a seguir foram retiradas de frases postadas por usuários
das redes sociais e compiladas no site "essesnordestinos.tumblr.com"
(recuperado em 06/10/2014). Os erros de grafia, concordância, etc.
correspondem à citação ipsis litteris das frases originais.
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