Notas sobre um “dizer humano” – fragmentos e reverberações na/da política dos afetos.

July 4, 2017 | Autor: Carlos Queiroz | Categoria: Epistemologia, Filosofia da Ciência, Linguagem
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?> CLIMACOM CULTURA CIENTÍFICA ‐ PESQUISA, JORNALISMO E ARTE | ANO 02 ‐ VOLUME 02

Notas sobre um “dizer humano” – fragmentos e reverberações na/da política dos afetos DIZER‐INCERTO Ao receber o convite para falar sobre “como problematizar o humano na relação com as mudanças climáticas”, não consegui mais parar de pensar naquilo que me fez eco: como problematizar o humano… Foi essa a entrada ou a “jogada” que resolvi fazer no I Encontro da Sub‐ Rede Divulgação Científica e Mudanças Climática, que aconteceu durante a exposição Aparições realizada no MIS‐Campinas. Inicialmente, pensei em fazer uma apresentação mais formal, a partir daquilo que tenho desenvolvido nos Grupos de Pesquisa e Laboratório que coordeno[1]. Mas logo esse planejamento duro foi desfeito. Ao mesmo tempo, percebi, quase intuitivamente, que o modo como organizo meus escritos e falas passa, necessariamente, por um estado de receptividade, que seria uma espécie de possibilidade política de ser afetado por tudo aquilo que acontece no evento antes de minha apresentação. Permiti, portanto, a configuração de um estado de “agenciamento” em que o contato com as demais falas me puseram a dúvida, me puseram a pensar que talvez eu estivesse incorrendo na armadilha de fazer uma fala meramente informativa, um dizer‐informativo. Então me permiti e resolvi compartilhar – ao invés de informar – aquilo que tem se configurado para nós, dos Grupos de Pesquisa Rasuras e Grafias, como afeto e como mobilização, e que vai desde os aspectos conceituais e metodológicos, mas que passa também pelos aspectos da sensibilidade em face de algo que denominamos: “a potência criativa da linguagem na estética‐política das imagens”.

Dito de outro modo, tomamos o mundo como uma potência criadora e criativa para suas – muitas – grafias e dizeres. Isso seria, por assim dizer, tomar o humano como nos termos do poeta Manoel de Barros (2013), o humano como “esticador de horizontes”. Nesse movimento, tenho compreendido e incorporado dentro do meu lugar conceitual de origem, a Geografia, a perspectiva que toma como possibilidade analítica quaisquer obras da cultura, pois as entendemos como gestos políticos de ação no mundo (VATTIMO, 1992), e que estão por realizar, de alguma forma, uma “grafia” do espaço. Preocupa‐nos, portanto, o dizer espacializado e, nem tanto, a ideia de um espaço que diz. Nas palavras da geógrafa inglesa Doreen Massey, o modo como imaginamos o espaço produz ou promove, por sua vez, uma imaginação do político que lhe é correspondente. Em suas palavras, a imaginação espacial “afeta o modo como entendemos a globalização, como abordamos as cidades e desenvolvemos e praticamos um sentido de lugar” (MASSEY, 2008, p. 15). Nosso esforço de investigação diz respeito à tentativa de buscar entender os desdobramentos dessa política do olhar que ora se constitui diante daquilo que tem sido considerado como “as novas políticas da espacialidade” (MASSEY, 2008). As chamadas “mudanças climáticas”, por exemplo, é uma delas. Mas antes, é importante destacar o quão revolucionário é, se pensarmos numa ciência fortemente assentada no viés materialista e economicista, cogitar algo nos termos de uma “imaginação espacial” e seus desdobramentos na efetividade do político. Estamos, portanto, diante de um cenário conceitual contemporâneo que toma a efetividade da linguagem e da sensibilidade como mediadoras da imaginação e da experiência (LYOTARD, 2013; PELLEJERO, 2009; RANCIÈRE, 2009, 2014), ou seja, do nosso modo de nos colocarmos no mundo e, ao mesmo tempo, constituí‐lo. Dito isso, penso ser importante evidenciar, nos termos dessa nossa aposta política, os “fragmentos e tempos incertos” que me foram trazidos, antes mesmo do início do evento; quando ainda à caminho do hotel, algumas memórias me vieram e me fizeram pensar em como os “modos de dizer” agenciam pensamento, linguagem e sensibilidade. Como um humano que diz, não poderia deixar de considerar tais aspectos. Penso também que todos aqueles que ali estavam, na ocasião do encontro da sub‐rede, de alguma maneira partilhavam do mesmo gesto: o de inventar outros “modos de dizer e sentir”. E foi assim que eu comecei a pensar no “humano”, como um… Passar por estradas Que nunca é, simplesmente,

Materialidade. Há sempre Um sorriso e uma lágrima Que escapam Que ficam no aqui Apenas esperando O tempo sublimado E, paradoxalmente, Uma chegada Que é, também,  partida Ou ainda… …Um humano que não se contenta, um humano perenizado pela inquietude, a exemplo do que fala Gonçalo Tavares em diálogo com Bachelard, quando diz que: Descer ao porão é sonhar Devemos olhar para a linguagem Como se olha para um objecto – para uma mesa, por exemplo E ver, por vezes, a linguagem de baixo para cima […] Observar depois um perfil da palavra Depois outro; Ver os sapatos da palavra e o seu chapéu A sua nuca e o seu rosto. Porque pensar Também é mudar de posição relativamente À própria linguagem. Não olhar sempre da mesma maneira para as palavras.

(Gonçalo Tavares, 2013)   DIZER‐SENSÍVEL Interessa‐me, portanto, aquilo que escapa, que se configura como um duplo que é e não é, que pode e não pode, ao mesmo tempo. É uma aposta no dizer‐sensível, a exemplo daquele contido na poética de Manoel de Barros quando diz que: tudo aquilo que não nos leva a coisa nenhuma serve para a poesia. tudo aquilo que a nossa civilização rejeita pisa e mija em cima serve para poesia (do livro “Matéria de Poesia”) Isso ficou fortemente marcado em mim quando, na apresentação do Prof. Leandro Belinaso Guimarães, ele fala de um livro que achou no lixo. Ao se dispor e ao considerar o lixo, Leandro fez‐se estado de poesia. Ou seja, fez‐se diante daquilo que foi “jogado fora”. Talvez isso só tenha sido possível na medida em que se viu o mundo para além da sua materialidade, a partir do seu horizonte sensível posto em vibração. Esse, talvez, seja nosso maior desafio, principalmente se pensarmos num contexto de mundo que nos coloca diante de palavras e imagens que povoam os muitos horizontes que nos cercam, “informando” mais e “entoando” menos. O fato é que talvez estejamos nós obedientes demais a elas, palavras e imagens que autorizam, sedutoramente, “o que podemos” e “como podemos”. É o tal do “lirismo bem comportado” de que fala Manoel Bandeira (Poética). Por isso aposto numa “gramática‐desobediente”, que busca promover rasuras e rupturas nos entendimentos de mundo já consolidados. Ela nos “autoriza” a inventar, a ficcionar cosmologias e imaginações de toda a ordem. E o modo como resolvi fazer isso tem amparo conceitual e imaginativo, e seria importante compartilhar aqui: – Primeiro, em Jacques Rancière (2009), quando ele diz que “Escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação”. – Segundo, em Clarice Lispector (1998), quando diz que: “Bem atrás do pensamento tem um fundo musical Mas, ainda mais atrás, há o coração batendo Assim o mais profundo pensamento É um coração batendo”

Entre o coração batendo e um sensível como campo de possibilidade, ou seja, campo político, acalenta‐me também a perspectiva de Bachelard, quando fala que a imaginação é a “potência maior da natureza humana” (BACHELARD, 1993, p. 18). E se, para ele, o ato poético é a “chama do ser na imaginação”, então me vem a questão: o que temos apagado, o que temos silenciado, o que temos negligenciado diante do nosso “dizer o mundo”? Ainda com Bachelard, temos que a imaginação é “[…] uma dádiva da consciência ingênua. Em sua expressão, é linguagem criança” (BACHELARD, 1993, p. 4). Parafraseando (Bachelard), seria o mesmo que dizer assim: Tornar imprevisível a palavra, o pensamento, a linguagem, (a Geografia, a Comunicação, a Ciência) não seria um ato de liberdade? Que encanto a imaginação poética Encontra para zombar de censuras! Antigamente, codificavam licenças. Mas a poesia Ao colocar a liberdade no próprio corpo da linguagem Passa então a se constituir como um fenômeno de liberdade. (Adaptado de Bachelard, 1993) E tem sido libertador reconhecer a escrita, a linguagem e o fazer científico como “um produto direto do coração” (BACHELARD, 1993, p. 2), que se assume como uma imaginação criadora: Bachelard diz que “não há poesia se não houver criação” (BACHELARD, 1993, p. 15) e porque não dizer: não há Geografia, Ciência, Arte, Vida, Humano, se não houver criação.   DIZER‐OUVIR Gostaria de ressaltar que essa aposta não é a instituição de um marcador de poder, um ato normativo, mas, sim, o delineamento de

um horizonte, ainda que anuviado, de possibilidades. É um alento, é um modo carinhoso de dizer:  — Filho? — Sim, pai. — Lembra‐se que eu lhe dizia para inventar histórias? Pois invente uma agora. —Não tenho força. — Tente. — Pior que não saber contar histórias, pai, …é não ter ninguém a quem as contar. — Eu escuto a sua história (Mia Couto, 2009) É diante desse cenário – “não saber contar histórias e não ter ninguém a quem contar” – que eu chego em meu último apontamento sobre o dizer‐poesia.   DIZER‐POESIA O que pode o humano? O que pode um humano?   O que pode um Dois Três ?   E o que não pode um, Pode três?   Pode dizer com afeto?

Pode fazer, corpo ereto? Pode querer, meio incerto?   Mas   Quem pode? Quem diz? Quem faz? Quem quer? Quem quer o que? Um dizer outro Atravessado, provocado:   – Pelo rasgo do verbo – Pelo choro do substantivo – Pelo silêncio do adjetivo   – Pelo ensejo da palavra quando hesita E se precipita:   – Num hífen, numa vírgula, num ponto: Fora do lugar   Ali nasce o fazer‐sentido Quando compreendido como o Fazer‐sentir Um fazer‐sentir inventivo Comprometido com

A potência criativa Que está no efetivamente aberto   No rascunho No fragmento Na rasura No que “jogamos fora”   DIZER‐LINGUAGEM O tópico anterior deveria ser último movimento de minha fala, mas não poderia. Ao revisar meu texto, outras companhias se fizeram presentes e me puseram a pensar sobre o dizer‐linguagem e, mais ainda, sobre o que fazemos com isso. Primeiro, considero importante evidenciar que tem sido cada vez mais difícil o pensar em linguagem dissociado de experiência. Segundo, a quase impossibilidade de tomar, nesse sentido, linguagem‐experiência que não seja entendida nos termos da “desobediência” (SKLIAR, 2014; LARROSA, 2015). Para Carlos Skliar, a linguagem desobedece quando: Já não há o que dizer e se anuncia aos ventos o nome do mundo, um mundo desvairado que se move e se enreda no próprio som de sua falácia, até cair exausto; quando o ar é pouco e a palavra que descreve o ar é mais nula ainda (SKLIAR, 2014, p. 15). Mas tão importante quanto a sua própria desobediência, é o fato da linguagem, enquanto uma forma estabelecida de estética‐política, se permitir ser desobedecida. Talvez nem seja uma permissão e sim uma tomada de poder daqueles que fazem dela seu lugar de liberdade e emancipação. Daqueles que ora desconfiam, ora desconhecem e, por isso mesmo, fazem atuar o indefinido como efetiva abertura do possível, dos possíveis. Se a língua (os dizeres e suas grafias) não desobedecesse e não fosse desobedecida, enfatiza Skliar (2014, 17), “não haveria filosofia, nem arte, nem amor, nem silêncio, nem mundo, nem nada”. Do mesmo modo, Jorge Larrosa (2015) fala de como ele tem se engajado diante do desafio de pensar em “como deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferente do que vimos sendo” (LARROSA, 2015, p. 5).

Ao fazer isso, o autor coloca “a experiência e não a verdade” (LARROSA, 2015, p. 5) como aquilo que dá sentido aos nossos atos estético‐políticos. Em suas palavras, A vida, como experiência, é relação: com o mundo, com a linguagem, com o pensamento, com os outros, com nós mesmos, com o que se diz e o que se pensa, com o que dizemos e o que pensamos, com que somos e o que fazemos, com o que já estamos deixando de ser. A vida é a experiência da vida (LARROSA, 2015, p. 74). Nestes termos, problematizar o humano, penso, passa necessariamente pelo problematizar a vida enquanto atributo do dizer, enquanto atributo da conexão linguagem‐experiência: Dizer‐Vida… Que cala e sente Que fica e vai Que faz e deixa fazer Que inventa e cria Que nasce e faz nascer Como? É possível? São perguntas recorrentes. Elas me chegam a todo o momento por meio daqueles que tem a certeza como sua cartilha. Como? É possível? Por muito tempo pensei no sim como resposta. Nem havia percebido que ao fazer isso, ao dar essa resposta, estava criando outro tipo de aprisionamento, outro caminho a ser seguido. Não quero isso. De modo algum. Como? É possível? A resposta eu tirei de Larrosa: não e talvez… A pergunta “de que outro modo” Não pode ser outra coisa que uma abertura. Para o que não sabemos. Para o que não depende de nosso saber Nem de nosso poder Nem de nossa vontade. Para o que só pode se indeterminar Com um quem sabe, Como um talvez.

(LARROSA, 2015)   REFERÊNCIAS AGAMBEM, G. O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. BACHELARD, G. A Poética do Espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2013. COUTO, M. Antes de Nascer o Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. LARROSA, J. Tremores: escritos sobre a experiência. Trad. Cristina Antunes e João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. LISPECTOR, C. Água Viva. Rio de Janeira: Rocco, 1998. LYOTARD, F. O pós‐moderno. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2013. MASSEY, D. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Trad. Hilda Pareto Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. PELLEJERO, E. A Postulação da Realidade: filosofia, literatura, política. Trad. Susana Guerra. Lisboa: Vendaval, 2009. RANCIÈRE, J. A Partilha do Sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009. ______. O Espectador Emancipado. Trad. Ivone C. Beneditte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. TAVARES, G. Atlas do Corpo e da Imaginação: teoria, fragmentos e imagens. Alfragide, PT: Caminho, 2013. SKLIAR, C. Desobedecer a Linguagem: educar. Trad. Giane Lessa. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. VATTIMO, G. A Sociedade Transparente. Trad. Hossein Shooja e Isabel Santos. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.   Recebido em: 20/07/2015 Aceito em: 20/07/2015

[1] Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Professor Permanente do Programa de Pós‐Graduação em Geografia na UfesGrupo de Pesquisa RASURAS – Imaginação

Espacial,

Poéticas

e

Cultura

Visual

(https://www.facebook.com/pesquisarasuras) e GRAFIAS – Laboratório de Geografia Criativa.

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