Notícias e Silêncios

June 8, 2017 | Autor: Cristina Ponte | Categoria: Media Studies, Children and Media
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Ponte, Cristina (2004). Notícias e Silêncios. A cobertura da Sida no Diário de Notícias e no Correio da Manhã (1981-2000). Porto: Porto Editora

APRESENTAÇÃO 1. SAÚDE E DOENÇA NO DISCURSO JORNALÍSTICO....................................................... 4 2. CONFRONTO DE PARADIGMAS NO CAMPO DA SAÚDE ............................................. 9 3. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO VIH/SIDA .................................................................13 4. COBERTURAS JORNALÍSTICAS DO VIH/SIDA ..............................................................21 5. A SITUAÇÃO DA SÍNDROMA EM PORTUGAL E NO MUNDO (1980-2000) ...............26 6. DISCURSOS E SILÊNCIOS SOBRE SEROPOSITIVOS NA IMPRENSA PORTUGUESA ...........................................................................................................................................30 METODOLOGIA E CORPUS DE TRABALHO .....................................................................................32 CATEGORIAS DE REPRESENTAÇÃO DE ACTORES SOCIAIS .............................................................36 REPRESENTAÇÃO DE EVENTOS SOCIAIS .......................................................................................39 REPRESENTAÇÕES DE TEMPO E DE LUGAR ...................................................................................42 ESTILOS E IDENTIDADES ..............................................................................................................43 ANÁLISE DE DADOS .....................................................................................................................44 DIÁRIO DE NOTÍCIAS ...................................................................................................................45 CORREIO DA MANHÃ ..................................................................................................................56 7. PESSOAS SEROPOSITIVAS EM IMAGENS ......................................................................68 IMAGENS QUE SE REPETEM ..........................................................................................................69 QUE SEROPOSITIVOS APARECEM NAS IMAGENS? .........................................................................71 O QUE DIZEM AS LEGENDAS?.......................................................................................................74 8. METÁFORAS E REPRESENTAÇÕES DA DOENÇA ........................................................76 AS DESIGNAÇÕES ........................................................................................................................76 A QUANTIFICAÇÃO ......................................................................................................................78 A “CAUSA” E A “TRANSMISSÃO” DA SIDA ...................................................................................80 A BATALHA MÉDICA....................................................................................................................81 A BATALHA MORAL .....................................................................................................................82 A SIDA, CÁ DENTRO ....................................................................................................................85 9. OBSERVAÇÕES E CONCLUSÕES FINAIS ........................................................................88

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BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................92

Apresentação Em 1981, apareciam as primeiras notícias, pequenas e discretas, sobre a nova patologia, na imprensa norte-americana. No ano seguinte, a primeira peça do Diário de Notícias tinha como título Cancro nos homossexuais e surgia num espaço de notícias insólitas, o Miramundo. A Sida mostrava, desde logo, não ser apenas uma nova doença, era muito mais do que isso, uma ocasião para se trazerem à cena discursos sobre silêncios e interditos em torno da sexualidade e das formas como é vivida. Apreciar como esses discursos se configuraram nos títulos de imprensa é o propósito desta análise. Os títulos jornalísticos obrigam a uma condensação da informação que, contudo, não pode deixar de sugerir um sentido ao leitor. Mostra-se aqui o poder dessa ‘escrita mínima’ sobre a Sida, sejam sobre situações protagonizadas por pessoas directamente afectadas pela doença, seja pelo modo como referem a síndrome, nomeadamente nos seus primeiros anos, marcando certamente a forma como foi e continua a ser pensada. Esta pesquisa é parte de um Projecto de Investigação do Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ), sobre 20 anos de tratamento jornalístico da Sida, coordenado por Nelson Traquina1. Central nesse Projecto foi a análise longitudinal das peças encontradas, dia após em dia, em dois jornais portugueses, o Diário de Notícias e o Correio da Manhã, tendo sido analisados 5714 recortes de imprensa. O presente estudo inicia-se com elementos de contextualização que contribuem para pensar o tratamento discursivo desta problemática. São eles: linhas de contraste entre cultura científica e cultura jornalística; paradigmas sobre a doença que marcam a história recente da medicina, nomeadamente antes da identificação da Sida; características específicas desta síndroma que vão contribuir para novas formas de pensar esses paradigmas; estudos internacionais sobre o tratamento jornalístico da Sida; breve caracterização da doença em Portugal e no mundo nas últimas duas décadas do século XX.

Projecto POCTI/COM/36218/99, “Elementos para uma teoria da notícia: estudo de caso sobre a análise da mediação jornalística portuguesa de um problema social VIH/Sida”. Equipa de Projecto: Nelson Traquina, Rogério Santos, Cristina Ponte. 1

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Apenas depois de concluída esta pesquisa, acedi ao estudo do investigador brasileiro António Fausto Neto, Comunicação e Mídia Impressa. Estudo sobre a AIDS (Hacker Editores, 1999). É um contributo notável para a caracterização de como esta problemática “se produz e reproduz pelo menos em três corpos: o corpo das suas vítimas, o corpo social (enquanto corpo cultural e simbólico) e o corpo dos media, por ela ‘invadido’ mediante uma ‘disseminação’ que, contudo, recebe junto às leis mediáticas as possibilidades da sua própria inteligibilidade” (1999: 20-21). O autor investiga diferentes falas nos textos jornalísticos, das notícias aos artigos e cartas de leitores: as falas da medicina, da esfera farmacêutica, da administração pública, das confissões religiosas, dos pacientes, da opinião pública, dos media. Na sua análise sobre essas falas nos grandes jornais do Brasil, de 1993 a 1995, conclui pela urgência de serem pensadas “políticas de comunicação que levem em conta, para além dos actuais critérios de actualidade e de anunciabilidade, outras direcções que possam nortear, em termos de sociedade, as pedagogias comunicacionais que orientarão as possibilidades técnicas, políticas e simbólicas” com que se lida com a Sida (idem, p. 150). Agradeço aos Professores Emília Ribeiro Pedro e Carlos A. M. Gouveia, da Faculdade de Letras de Lisboa, os seminários em Análise Crítica do Discurso e Gramática Sistémico-Funcional, em 2000-2001, que muito contribuíram para a exploração metodológica realizada. Agradeço ainda a Marisa Torres da Silva, bolseira deste Projecto, o seu entusiasmo e rigor nesta investigação e a sua análise sobre as imagens jornalísticas de pessoas com Sida, uma das partes deste trabalho.

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1. Saúde e doença no discurso jornalístico Na sua aparente diversidade e novidade, as notícias dão conta de grandes temas e das suas repetições e actualizações. Experiências profundas, como a luta contra a doença e a morte, são alguns desses grandes temas. Como notava um dos primeiros investigadores do jornalismo, Robert Park (1940), ele próprio um antigo jornalista, as novas histórias são velhas histórias, as notícias interessantes não são as absolutamente novas mas as que repetem alguma coisa e, portanto, se articulam com uma expectativa, dando continuidade à grande narrativa continuamente em inscrição. Para perceber como as notícias contribuem para a compreensão quotidiana da realidade, há que ir além dos constrangimentos estruturais da produção da notícia a fim de examinar o seu significado profundo. E os significados profundos das notícias decorrem sobretudo do modo como falam daquilo de que falam. A socióloga norte-americana Dorothy Nelkin (1989: 53-71) explora a “tensão criativa” entre jornalistas e cientistas, numa reflexão com muitos pontos de interesse para a compreensão de confrontos e dificuldades na cobertura jornalística de temas de saúde. As formas de tratamento jornalístico desta e de outras matérias de ciência mostram que repórteres, editores e directores tendem a apresentar os seus problemas sob a forma de mitos ou de dramas sociais: comunidades ameaçadas pelo demónio ou pelo desconhecido, instituições de saúde incapazes, pela sua burocracia, de produzirem respostas eficazes. Uma vez que a maioria do conhecimento comum sobre estas matérias provém do seu tratamento pelos media, são questões sensíveis a configuração dessa informação e dessas imagens, onde a negatividade e o escândalo têm elevado valor noticioso. Com frequência se geram confrontos entre diferentes leituras de situações, com cientistas a acusarem os media da criação de “histerias públicas” e de falsas situações como epidemias de cancros. Para a acusação de que as notícias sobre matérias de risco para a saúde tendem a ser histéricas, sensacionais e confusas, contribuem factores como a ausência de definição de um problema de saúde como "notícia", a preferência por fontes oficiais relativamente a fontes independentes, o interesse daquelas em influenciar os media para protecção da sua imagem. Contribuem também as normas jornalísticas que levam os repórteres a adoptar uma perspectiva polarizada do problema, enfatizando mais o conflito do que o conhecimento, bem como a natureza afirmativa do jornalismo e a sua procura de certezas. A investigadora sublinha ainda os constrangimentos com que opera o jornalismo, como a escassez de espaço 4

e de tempo, e a necessidade de interessar leitores comuns quando se descrevem situações complexas. A importância de um ângulo – um conflito, uma história de interesse humano, um acontecimento dramático – que justifique a notícia é assim imperiosa e, na sua ausência, matérias de saúde pública tendem a permanecer arredadas do foco de atenção dos media. O estudo comparado sobre o tratamento jornalístico de três problemáticas de ciência, com grandes repercussões nas perspectivas sobre saúde e doença (Kitzinger e Reilly, 1997, traduzido com o título Ascensão e Queda de Notícias de Risco, 2002), ilustra de forma clara como estes factores da cultura jornalística interferem no fazer da notícia. Comparando a cobertura jornalística britânica de temas dos anos 90, como o enquadramento jurídico da investigação genética sobre saúde humana, a doença das vacas loucas e a síndroma da falsa memória, as autoras mostram como essas coberturas se diferenciam nos seus ciclos, discursos e silêncios. As variações de conhecimento dos jornalistas relativamente às matérias em foco, os formatos das notícias, os prazos curtos, a autoridade das fontes institucionais, a oposição entre eventos reais e riscos hipotéticos, a necessidade de interesse humano, as heranças culturais e as estruturas de trabalho nos media, foram poderosos factores que condicionaram essas coberturas jornalísticas. Para além de problemas comuns a todo o jornalismo, no campo da ciência colocamse especiais dilemas, dada a complexidade das questões. Um deles é o confronto de interpretações sobre conceitos como objectividade, entre a esfera dos cientistas e dos jornalistas, aponta Nelkin. No jornalismo, objectividade significa equilíbrio, ouvir as partes envolvidas, mas esta definição de objectividade não tem sentido na comunidade científica. Para um cientista, a objectividade exige verificação empírica ou refutação de argumentos pela análise das evidências, através de procedimentos científicos reconhecidos. Enquanto aspectos metodológicos são fundamentais na validação científica de uma matéria, os jornalistas procuram, de preferência, conclusões, resultados concretos e quantificados. Nelkin sublinha também como os dois mundos diferem na apreciação do que é novo. Enquanto os cientistas exigem o seu reconhecimento pela revisão por pares, os jornalistas preocupam-se com as singularidades, o conflito ou aberrações que chamem o interesse do leitor. Nessa cobertura de disputas, tendem a criar polaridades e a sua procura da simplicidade, drama e brevidade exclui o complexo e as nuances, preferidas pelos cientistas. As divergências manifestam-se também nos estilos de comunicação, com os jornalistas muitas vezes a omitirem a documentação necessária e a interpretarem de forma diferente o 5

léxico usado no contexto científico. Por exemplo, os cientistas usam o termo "epidemia" para descrever um conjunto de incidentes superior ao seu grau normal (se o normal for zero, epidemia poderá ser seis casos, tecnicamente). Para o público comum e para o jornalista, uma epidemia tem implicações muito mais alarmantes – sugere milhares de casos. Também há diferenças nas definições de "provas", com a aceitação pelos jornalistas, como prova credível, de informação circunstancial de casos individuais. Nesses e noutros usos da linguagem, a imprensa desempenha um papel na apreensão da informação seleccionada e carrega consigo enquadramentos interpretativos. Os termos usados para descrever um evento e as percepções que fornecem podem, indirectamente, apontar o culpado: é diferente apresentar um dado caso como acidente ou incidente. Escreve Nelkin (1989: 65-6): “O uso selectivo dos adjectivos pode trivializar um evento ou torná-lo mais importante; pode marginalizar certos grupos e dar mais poder a outros, pode definir uma questão como um problema ou reduzi-la a um acontecimento de rotina.” Também Deborah Lupton (1994) refere como características marcantes das notícias de saúde a forte influência de fontes oficiais, publicações médicas e “celebridades” com prestígio, e aponta o uso de estatísticas e quantificações como um dos principais traços no enquadramento destas notícias, a par de outros dispositivos retóricos, como paralelismos e aliterações. Apreciando

como

os

media

norte-americanos

apresentam

problemáticas

internacionais, como a morte, a guerra, a doença ou a fome, Susan Moeller (1999: 57-69) nota que as epidemias que receberam maior atenção mediática nem sempre foram as mais graves, para a região onde ocorreram ou a nível do globo. Às questões sobre a pouca cobertura da estimativa da Organização Mundial de Saúde de que 3.2 milhões de crianças morrem anualmente por diarreia antes de atingirem os cinco anos, ou de que 2 milhões de pessoas morrem de tuberculose todos os anos ou ainda de que 27.000 crianças americanas contraem sarampo, a resposta silenciada dos media é justificada pela “fadiga de compaixão” dos seus auditórios. Raramente aparecem nos títulos tragédias que se possam prever, doenças que tenham cura ou vacinas e que causam vítimas por falta de investimento. O melhor factor é a indicação de que um qualquer desastre horrível se espalha e coloca em perigo uma população demograficamente semelhante à da audiência daqueles meios de comunicação, branca e de classe média: “se certas pessoas não são infectadas nem morrem,

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isso não é notícia”. As notícias de doenças que entram para as primeiras páginas são as que rompem a fadiga da compaixão, as raras e as física e psicologicamente mais próximas. Os media norte-americanos cobrem as epidemias como cobrem outros tipos de crise: por uma cobertura estereotipada, uma linguagem sensacionalista e referências ao país. A base cultural para essa cobertura é a ansiedade americana sobre a falta de controlo sobre o que se supunha ser controlável. Nesse imaginário cultural, a doença e a morte deveriam ser controladas, as instituições científicas e governamentais deveriam ser capazes de assegurar a saúde pública. Quando ocorre uma epidemia, quando aparentemente se partem os mecanismos de controlo, as histórias dos media assentam no medo do público. Apesar da diversidade biológica e geográfica dos contextos, as narrativas partilham a referência ao medo e ao horror. Nos primeiros dias, em todos os meios as peças tendem a seguir a pirâmide invertida, dando factos mas não indo além do quem, o quê, onde e quando. Mais tarde entram o como e o porquê, através de fontes oficiais. Depois, a cobertura torna-se mais narrativa, com a criação de protagonistas, vítimas e antagonistas, suspense e conflito. O jornalismo raso das primeiras notícias dá lugar a narrativas mais ricas em simbolismo e retórica. Elementos dramáticos e trágicos são sublinhados por um foco em pessoas, por uma linguagem mais vivida, por metáforas. Em geral, poucas narrativas dão mais do que notas periféricas sobre as causas sociais, culturais ou políticas da epidemia. Outros aspectos do tom são a violência da epidemia e a sua incidência social e geográfica em função dos americanos, bem como o recurso a metáforas familiares na sua descrição: ficção científica, animais predadores, crime, detectives, mistério, analogia com outras doenças, com a memória perdurável da praga e sua composição mítica no Antigo Testamento. Nas imagens fotográficas das doenças, Moeller registou como padrões: imagens de laboratórios e de ciência; insectos ou animais como transportadores de vírus; médicos e civis com máscaras, para marcar o contágio; imagens de vítimas e das suas feridas; imagens de mortos e de funerais; esforço de limpeza, no final. A maioria são imagens descritivas e de confrontação (com o sujeito a olhar a câmara e desta maneira o leitor), sobretudo na imprensa. Encontrou uma preferência por imagens com poucas pessoas, onde a acção ou emoção são mais perceptíveis e que também ilustram melhor a luta individual contra o mal; europeus e americanos aparecem mais como indivíduos singulares, enquanto outros grupos

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étnicos atingidos são mais fotografados em grupo. Imagem bem frequente é a de crianças atingidas pela doença, ao colo de mulheres. Ainda sobre imagens, interessa-nos a reflexão de Susan Sontag (1984) sobre as doenças metaforizadas que habitam a imaginação colectiva. A investigadora norte-americana observa que as doenças mais aterradoras são as que parecem não só letais mas também mais desumanizantes. Recorda as fantasias sobre os modos como a infecção pelo vírus da raiva transformava a pessoa em animal enfurecido, ou como os sintomas da cólera (diarreia, vómitos) prenunciavam já a decomposição do corpo. Pelo contrário, faz notar como uma doença como a poliomielite, que afectava o corpo mas não a carne nem a cara, não se fazia acompanhar de repulsa. Como escreve, a reacção relativamente correcta, não metafórica, face à poliomielite deve-se em parte ao estatuto privilegiado da cara, marcante para a nossa avaliação da beleza e da deterioração física. Destaca ainda que as mutações da cara não são todas repulsivas: as que mais o são parecem uma mutação para a animalidade, como a cara do leproso, ou algum tipo de putrefacção, como a cara de um doente com sífilis. As marcas na cara de um leproso, de um doente com sífilis ou de um seropositivo em fase terminal são sinais de uma mutação progressiva, de uma decomposição, de algo orgânico. Tudo isto leva Sontag a concluir que as doenças mais temidas não são apenas as mortais mas as que transformam o corpo em algo de alienante.

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2. Confronto de paradigmas no campo da saúde Também para analisar o discurso das notícias sobre esta problemática é importante ter presente modos de pensar a doença nas esferas da medicina e da ciência e que transbordam para o discurso social. Este será assim um outro contributo para apreciarmos as metáforas com que esta doença se apresenta no discurso dos jornais. A sociologia da medicina mostra como este campo de saber tem sido marcado por diferentes paradigmas, alguns dos quais tendem a permanecer no espaço discursivo da medicina e na linguagem quotidiana mesmo depois de terem sido relegados para plano secundário pela comunidade médica, pela emergência de novos paradigmas científicos. No século XX, a teoria dos germes tornou-se a explicação popular dominante para a causa de doenças. Esse paradigma, escreve Cristiana Bastos (2002: 183-184), ajudou a libertar doentes, médicos e populações de doutrinas que, com referências morais, comportamentais, religiosas ou de qualquer outra esfera da acção humana, culpabilizavam o enfermo pela sua enfermidade. Assim, “com o pensamento bacteriológico, os agentes da doença deixavam de estar relacionados com elementos morais e difusos e, correlativamente, a acção contra a doença deixava de passar por orações ou purificações, remetendo-se para o desenvolvimento do conhecimento específico e de medidas contra os agentes microscópicos” (Bastos, idem). Apesar desta teoria ser ainda dominante, o seu domínio tem-se alterado e complementado por teorias do meio ambiente, outras perspectivas de vida, medicinas alternativas e outros enquadramentos explicativos, considera Peter Conrad 1999: 229-230). Contudo, esse paradigma continua com forte imagem popular e pauta inúmeros discursos sobre saúde e doença. Conrad sublinha como a teoria dos germes sustenta o pensamento médico e público sobre a doença, por três considerações fundamentais e inter-relacionadas: a doutrina de uma etiologia específica; o foco no contexto interno sobre o contexto externo; a metáfora do corpo como máquina. A doutrina da etiologia específica considera que todas as doenças têm um agente específico, que pode ser identificado, seja germe ou vírus. Esta crença não se restringe a doenças infecciosas, passou mesmo para outras doenças, de que é reflexo a procura da causa do cancro. O foco no contexto interno substituiu a visão dominante da doença até ao século XIX, que era encarada como desequilíbrio ou desarmonia entre a pessoa doente e o meio. 9

Com a teoria dos germes, o foco clínico virou-se inteiramente para o contexto interno: como é que os micróbios afectam as células e os tecidos para provocarem doenças. O contexto externo tornou-se secundário para a compreensão das causas das doenças. A consideração do corpo como máquina decorre da orientação mecanicista, de que o corpo é feito de partes reparáveis e substituíveis, onde o funcionamento problemático de algumas pode ser identificado e corrigido. A metáfora da máquina manifesta-se noutras intervenções clínicas, incluindo transplantes de órgãos, substituições, próteses e suplementos para processos biológicos. Sem pôr em causa a sua eficácia, o investigador britânico faz notar como essa metáfora pode criar a ilusão de que, se o corpo for tratado como uma máquina, o problema será resolvido, quando muitas vezes a dificuldade de origem permanece e novos problemas são criados. Manifestações destas características com ressonância cultural nas práticas e nos discursos sobre a medicina são os processos de descontextualização e de desvalorização do papel do ambiente, a produção de intervenções médicas espectaculares e a pouca revelação sobre o destino das populações. Tornaram-se a explicação mais popular para o que nos preocupa, sublinha Conrad, que vinca a necessidade de se explicar as realidades sociais das doenças e dos comportamentos em vez de seguir essas “miragens”. Nas vésperas da emergência da epidemia da Sida, aquelas três grandes considerações estavam particularmente vincadas no campo da medicina, que apresentava de si uma imagem optimista, proveniente sobretudo dos Estados Unidos, recorda Cristiana Bastos. Nos finais dos anos 60, a erradicação do vírus da varíola constituiu uma viragem, marcada pelo declínio da atenção à especialidade da Infecciologia. Em 1969, o responsável norte-americano pela pasta da Saúde comunicava ao Congresso ser tempo de "fechar o livro das doenças infecciosas", declarava ganha a guerra contra essas epidemias e transferia os recursos nacionais para problemas crónicos, como o cancro e as doenças cardíacas. A própria Organização Mundial de Saúde partilhava esse optimismo ao definir o século XXI como meta para um progresso definitivo, traduzido no slogan “Saúde para todos no Ano 2000”. Era realçada a melhoria na saúde humana, e escamoteada a desigual distribuição da mortalidade, mobilidade e acesso a cuidados médicos. Suscitavam menor atenção as referências ao possível aumento de novas enfermidades de carácter degenerativo, ambientais, ligadas ao stress ou de etiologia desconhecida. Tudo estava sob controlo e tudo se resumia a ampliar os conhecimentos médicos para, como tinha acontecido com as 10

doenças infecciosas, “desvendar o mistério” que certas doenças ainda mantinham, casos do cancro ou da arteriosclerose. Com a irrupção da epidemia da Sida a perturbar este cenário, a vanguarda da pesquisa médica norte-americana, situada na luta contra o cancro, lamentava que muito dinheiro tivesse sido desviado para cuidar dos atingidos pela nova doença, recorda Cristiana Bastos. Enquanto doença de causas ainda por determinar, e no contexto do pensamento médico atrás apontado sobre a concepção de doença – etiologia específica, foco no contexto interno e metáfora do corpo como máquina –, o cancro apresentava-se como um fortíssimo campo de batalha também discursiva, povoada por metáforas militares. Declarada a “guerra ao cancro”, a força da sua representação bélica enquadrava a direcção da pesquisa e a sua abordagem clínica. Como escreve Cristiana Bastos, tratar a medicina como guerra, as suas doenças e seus agentes como inimigos e a prática clínica como uma sucessão de batalhas, é fazer-se valer de um conjunto de metáforas bem instaladas neste campo de intervenção humana, bem adaptadas ao ethos pragmático da medicina. Nos seus ensaios sobre a doença e as suas metáforas, inicialmente escritos a partir da sua vivência de pessoa com cancro, Susan Sontag analisa como, ciclicamente, novas doenças se caracterizam como metáforas da morte e como essas metáforas são culturalmente afectadas. Nos anos mais recentes, o cancro perdeu parte do seu estigma devido ao aparecimento da Sida, uma doença cuja capacidade de estigmatizar, de gerar identidades deterioradas, ainda é maior: “toda a sociedade, ao que parece, precisa de identificar uma determinada doença com o próprio mal, uma doença que torne culpadas as suas vítimas; porém, é difícil obcecar-se por mais do que uma”. Também para esta pesquisa tem relevo a estreita ligação entre a batalha contra a doença e a batalha social. Como sublinha Susan Sontag (1984: 97), a metáfora da batalha contra a doença cobre uma nova credibilidade e precisão quando se passou a considerar que o invasor não era a doença mas o microorganismo que a produz. Desde então, as metáforas militares marcam cada vez mais todos os aspectos da descrição de uma dada situação médica. A doença é vista como uma invasão de organismos estranhos, face à qual o corpo responde com as suas próprias operações militares. Mas esta metáfora faz-se com frequência acompanhar de uma outra, bem mais grosseira: a metáfora da doença como invasora da sociedade. “O aproveitamento da guerra para mobilizar ideologicamente as massas conferiu eficácia à ideia 11

da guerra como metáfora para todo o tipo de campanhas curativas cujos fins sejam a derrota do inimigo, sejam elas as guerras contra a droga ou a pobreza”. Mais: “essas batalhas sociais contra a doença não se limitam a um apelo para que se preste maior atenção ou se disponibilize mais dinheiro para a pesquisa. A metáfora militar serve para descrever uma doença particularmente temida como se teme o estrangeiro, o outro, como o inimigo da guerra moderna, e é mínima a distância que vai entre denominar a doença e acusar o doente, por muito que este seja considerado como vítima” (destaques da autora). Esta investigadora norte-americana sublinha também importantes variações na genealogia das doenças, que se podem orientar por duas metáforas, a metáfora da invasão e a metáfora da poluição. Enquanto a primeira descreve o microprocesso, a segunda impõe-se quando se foca a transmissão da doença e há, neste caso, reminiscências com a sífilis, como a transmissão através de fluxos sanguíneos ou sexuais de indivíduos afectados ou por produtos sanguíneos contaminados. Neste sentido, as metáforas militares para descrever a Sida são diferentes das metáforas do cancro. Enquanto no cancro, a metáfora escamoteia o problema da sua causa e só funciona a partir do momento em que há mutação das células e sua circulação no interior do corpo, na descrição da Sida o inimigo é aquele que causa a enfermidade, um agente infeccioso que vem do exterior.

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3. A construção discursiva do VIH/Sida O modo como a Sida é percebida, conceptualizada, imaginada, pesquisada e financiada faz dela a mais política de todas as doenças (Altman, 1986). A própria designação da Sida, síndroma da imunodeficiência humana adquirida, diz já muito sobre si mesma, observa Rosana Lima Soares (2001). Em primeiro lugar, é uma síndroma (do grego syndromé), termo que expressa o significado de concurso, ou seja, a circunstância de se encontrarem juntas duas ou mais coisas. Assim, o paciente de Sida está numa circunstância em que vários factores concorrem para o levar à morte. A imunodeficiência humana refere a incapacidade do sistema imunológico humano cumprir as suas funções. O termo "adquirida" refere-se à forma pela qual se instala essa imunodeficiência – através de um retrovírus, o VIH. Susan Sontag (1984: 114-115) destaca a particularidade de a Sida ser a primeira grande doença conhecida pela sua sigla e faz notar como a condição chamada sida carece de fronteiras naturais, por assim dizer. A identidade desta doença foi desenhada para fins de investigação e para controlo por parte do corpo médico e de outras burocracias e, sob a designação de Sida, reúnem-se “critérios de definição de controlo” ou “critérios empíricos”: infecção por VIH somada à presença de uma ou mais doenças compreendidas na lista elaborada pelo principal gestor das definições de doenças dos Estados Unidos. Ou seja, o que se que entende de forma corrente por Sida é o ultimo dos três estádios, sendo o primeiro a infecção por efeito do vírus e os primeiros sinais de que o sistema imunológico está afectado, e o segundo estádio o período latente até à manifestação dos sintomas. Este quadro da doença, que a aprecia enquanto processo de amadurecimento que culmina numa fase terminal, trouxe alguns paradoxos às formas de pensar a medicina. Recorrendo a medicina a estas metáforas da botânica e da zoologia, esse olhar médico faz com que o desenvolvimento e a evolução da Sida sejam considerados como a norma, como a regra. Como escreve Sontag, a consequência de se pensar que todos os que acolhem o vírus cairão doentes faz com que quem tenha teste positivo seja considerado uma pessoa com Sida, mesmo que ainda não a tenha, segundo a definição dos três estádios. Será uma questão de tempo, como qualquer sentença de morte. A partir desse momento, estar infectado 13

significa estar doente. Esta leitura recusa a ideia da medicina clínica, que distingue infectado de doente – o corpo humano acolhe muitas infecções – e vai substitui-la por uma ideia biomédica, que ressuscita a lógica da mácula e que torna contraditória a situação de alguém poder estar infectado e saudável ao mesmo tempo. Recorda também Rogério Santos (2002) na sua pesquisa sobre jornalistas e fontes de informação que, apesar da distinção entre Sida e VIH, com muita frequência nas notícias se fala do “vírus da Sida” e que, por uma abordagem reducionista realizada pelos primeiros microbiologistas – que entendiam a doença como tendo um único agente causador –, se reduziu o âmbito da patologia e se recusou assim uma perspectiva multifactorial, ao contrário do que era prática com outras doenças como o cancro, doenças cardiovasculares ou de degenerescência do sistema nervoso. Uma das pistas para a análise de discurso sobre esta doença será, partindo desta distinção dos três períodos, e com base nas considerações de Lakoff e Johnson (1980) sobre o papel das metáforas na sustentação de linguagens, de formas e pensamento e de acção, apreciar se essa distinção está presente ou se a designação singular Sida actua como metonímia desse quadro mais geral, e ainda como essa designação aparece enquanto metáfora ontológica. Uma das metáforas ontológicas mais óbvias é a especificação de um objecto físico, teoria ou doença enquanto pessoa, o que permite compreender uma vasta variedade de experiências em termos de motivações, características e actividades humanas, sendo um dos seus traços dessa personificação a sua construção como antagonista, a que nos opomos e combatemos. No seu estudo sobre as metáforas que acompanham a Sida, Susan Sontag faz notar ainda como a sua representação inicial lhe atribuía uma causa única, quando na realidade é uma condição médica. Sendo privilegiada a atenção à transmissão por via sexual desta doença, ela era considerada como uma calamidade que a pessoa infectada procurara. Tal suscita um juízo mais severo que outras vias de transmissão, sobretudo porque se entende que a Sida é uma doença devida à perversão sexual. “Uma doença infecciosa cuja via de transmissão mais importante é de tipo sexual põe em xeque, forçosamente, quem tem vidas sexuais mais activas – e é fácil pensar nela como castigo”, escreve Sontag, que recorda também como doenças infecciosas com marca sexual sempre inspiraram medo de contágio e provocaram curiosas fantasias de transmissão por vias não venéreas em lugares públicos. 14

A peste será a principal metáfora da epidemia da Sida, usada metaforicamente como a pior de todas as calamidades, o mal, o Flagelo. Sontag nota também que uma versão corrente sobre as epidemias como a sífilis, historicamente ancoradas, a situavam sempre como doença estrangeira. Mas, como escreve, o que poderia parecer um traço sobre a inviabilidade do chauvinismo revela uma verdade mais importante: a existência de um vínculo entre a maneira de imaginar uma doença e de imaginar o estrangeiro, o outro. Para os norteamericanos, a Sida nasceu no “continente negro” e passou para o Haiti. A conexão subliminar que se estabelece com as ideias de um passado primitivo e tantas hipóteses de transmissão por animais não podem deixar de infundir uma nova vida a um grupo conhecido de estereótipos sobre a animalidade, a vida sexual e os negros. Há assim terreno para muitas crenças ocultas em torno da Sida, muitas delas cristalizadas nos discursos médico e científico, especialmente no início da epidemia. Grimshaw (1997, in Allan, 2002: 122-123) dá conta de crenças populares concorrentes quanto à sua origem: 

Origem endógena: a crença de que o indivíduo tem características ou tendências inatas que o levam a ficar doente (a identificação de todos os primeiros casos entre homens homossexuais sugeria que a homossexualidade era causa da Sida).



Origem exógena: a crença de que a doença está camuflada no meio ambiente, “à espera para atacar”, liga-se a crenças antigas de que as doenças se propagam como miasmas no ar, fora do controlo humano.



Responsabilidade pessoal: a crença de que o comportamento de uma pessoa pode facilitar ou tornar inevitável que venha a adoecer. No caso do VIH, ela sustenta as diferenças entre vítimas "inocentes" (crianças, hemofílicos) e vítimas "culpadas", como os gay, os consumidores de drogas injectáveis, as prostitutas, as pessoas promíscuas.



Castigo divino: a crença de que as acções que supostamente infringem valores morais fundamentais parecem suscitar o castigo divino. A Sida é considerada como castigo divino pela transgressão contra certas prescrições bíblicas sobre homossexualidade e promiscuidade.

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A forma como a Sida se foi caracterizando ao longo da sua história já indica esse percurso: em primeiro lugar, o advento social da doença, no início dos anos 80, deu-se em torno da categoria "grupo de risco". Em 1988, identificavam-se nos Estados Unidos diferentes estádios no desenvolvimento das preocupações culturais com a Sida, recorda Elisabeth Bird (2003: 154-155): 

De 1981-85, a atenção registou uma evolução lenta, o problema aparecia como gays a infectarem-se uns aos outros, havia pouca circulação fora da comunidade;



De Junho de 1985 a Dezembro de 1986, com o anúncio da doença e a posterior morte de Rock Hudson, houve uma viragem na consciência nacional norte-americana.



De Dezembro de 1986 a 1987, a percepção passou a ser marcada pela ameaça a "todos nós". As mulheres tornaram-se mais centrais nas histórias sobre Sida, com cientistas e médicos a falarem da "actividade sexual masculina" e de "mulheres promíscuas".

A trajectória da transformação do conceito de "risco" em "vulnerabilidade", ocorrida sobretudo nos anos 90, é uma abordagem interessante para se pensar as questões da Sida e as suas campanhas de prevenção enquanto construções sociais. Seguindo a periodização de J. Mann e D. Tarantola (1996), a investigadora brasileira Rosana Lima Soares apresenta os primeiros 15 anos da epidemia divididos em 3 períodos: 

Período da descoberta, de 1981-84, quando se falava em factores de risco associáveis à então nova doença que, rapidamente, deixaram de ser categorias analíticas abstractas para se transformarem em categorias concretas associadas a agrupamentos sociais específicos, os chamados grupos de risco;



Período das primeiras respostas, de 1985 a 88, momento em que a Sida já não se restringia a fronteiras geográficas, étnicas ou sociais específicas, e se configurava como uma pandemia e, portanto, não mais sustentava a concepção de "grupos de risco". Em seu lugar, surgiu a expressão “comportamentos de risco”, um avanço em relação ao conceito anterior mas,

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ainda assim, atribuindo ao "indivíduo" a responsabilização pela prevenção ou não em relação à doença. 

Período actual (de 1989 a 1996, ano de publicação da obra de Mann e Tarantela), em que o conceito de vulnerabilidade, amplamente difundido na América Latina nos anos 70, é retomado com novo significado, a susceptibilidade dos indivíduos ou grupos sociais a agravos ou riscos em relação a doenças. A vulnerabilidade passa a ser definida a partir de três planos interdependentes de determinação: o comportamento pessoal (ou vulnerabilidade pessoal), o contexto social (ou vulnerabilidade social) e programas de prevenção (vulnerabilidade pragmática). Em relação a esse período, destaca-se a resposta, que a vulnerabilidade procura dar, à necessidade de extrapolar a tradicional abordagem comportamentalista das estratégias individuais de redução de risco, de ir além do conceito epidemiológico de risco (que opõe os "grupos de risco", ou pessoas com "comportamentos de risco" à população em geral), central na maioria das estratégias de prevenção e controlo da epidemia mas problemático e contraditório do ponto de vista operacional e conceptual.

Rosana Lima Soares faz notar como, a partir da identidade de "grupo de risco", se estabeleceu a maioria dos preconceitos que se tornaram elementos fundamentais para a transformação da Sida em epidemia, já que a doença parecia estar sempre associada a comportamentos considerados socialmente "desviantes". A Sida foi marcada como uma doença moral, adjectivando a morte do portador do VIH por códigos socialmente construídos. Em consonância com as próprias expectativas da sociedade, a ciência identificava anti-corpos do vírus VIH no organismo de pessoas que podiam facilmente ser delimitadas dentro de um "grupo" com determinados códigos de comportamento. Como escreve, “estava firmado o preconceito, o terror e o isolamento, esquecendo-se que, no entanto, os grupos humanos não vivem isolados nem são imóveis. Dava-se muito mais atenção ao contágio pelo VIH via drogas intravenosas ou relações homossexuais e esqueceuse um modo comum de transmissão, a transfusão de sangue contaminado” (Lima Soares, 2001: 84).

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A síndroma foi identificada em 1981. Em 1983 o agente responsável por ela foi isolado pela primeira vez. Em 1984, a demonstração do papel causal desse agente na Sida foi aceite por toda a comunidade científica. Em 1985, surgiram os primeiros testes comerciais de detecção. A rapidez desse avanço conseguiu gerar a crença de que a luta contra a Sida seria uma guerra relâmpago, rapidamente ganha. Hoje, trava-se uma “guerra de posição” nas palavras de Montagnier (1995), citadas pela investigadora brasileira. O percurso desta síndroma causava alguma estranheza. Escreve Lima Soares (2001: 85-86): Em primeiro lugar, afirmou-se que só afectava homossexuais. De seguida, surgiu a história dos macacos africanos que teriam transmitido o vírus aos humanos. Depois, os consumidores de drogas começaram a ser infectados. Até esse momento, apenas grupos considerados marginais, fora-da-lei, desviantes, tinham sido atingidos. Sedimentava-se o estigma de "grupos de risco": pessoas que possuíssem determinados comportamentos estariam mais sujeitas à infecção pelo VIH. Mas eis que surgem novas descobertas: o vírus é encontrado em mulheres heterossexuais, em crianças. E outra síndroma foi criada – a do pânico. As pessoas interrogavam-se se faziam ou não parte dos tais "grupos de risco"; contavam com quantos parceiros já tinham tido relações sexuais, se algum deles teria sido "de risco". (…) A Sida tornou-se sinónimo de medo, vergonha e pecado. Tornou-se uma doença moral antes mesmo de ser mortal.

Pelas suas características singulares, a Sida pode ser caracterizada como uma doença que pode mudar ideias e padrões de comportamento, que obriga a repensar valores e conceitos, a questionar posturas e concepções. Para Lima Soares (2001: 89-91): Associando sexo, sangue e morte, a Sida trouxe à superfície medos ancestrais e revelou a própria fragilidade das sociedades contemporâneas em relação ao divergente. Os inúmeros preconceitos em relação à Sida e ao portador de VIH explicitaram os preconceitos que a sociedade tem em relação a pessoas. A combinação desses elementos, por si só, já é motivadora de mudanças e questionamentos: pode-se agir em relação à Sida como se ela não existisse - isolando os por ela afectados de forma concreta, em "asilos" - ou de forma simbólica (pelas estruturas sociais) - ou pode-se criar novas formas de relações humanas e concepções sobre a vida e a morte, por meio dela.. (…) Como nenhuma outra doença, a Sida reúne dois termos de uma equação complexa: a sexualidade e a morte. É ela mesma a materialização dessa sexualidade que mata. Em seu caso, literalmente. (…) Todo o repertório sobre a sexualidade, os nomes feios, os palavrões, a troça, fazem parte dessa zona proibida e impenetrável, a menos que se transgrida a lei ou que se o diga nos locais e horários permitidos. (...) Nesse mundo dos não-ditos, dos malditos e dos mal-entendidos é que se inscreve também a Sida. Por estar tão inseparavelmente ligada à sexualidade, dela não se pode dizer.

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A pesquisa crítica da cobertura da Sida nos media britânicos sugere que estes contribuíram para a criação de um clima hostil em torno da doença e dos que foram por ela afectados. A desumanização de pessoas com a doença foi particularmente notória no caso dos homossexuais masculinos, onde surgiu como praga gay, colocando-os fora do grande público, mas o mesmo também aconteceu com os haitianos e africanos, em certos momentos. Essa distância é particularmente conseguida pela identificação e interpelação dos media a uma imaginária unidade da família nacional que é ao mesmo tempo branca e heterossexual (Watney, 1997, in Allan, 2002). Para Stuart Allan (2002), que aprecia a cobertura da Sida no quadro de situações de pânico moral vividas na sociedade britânica nas últimas duas décadas, talvez a dimensão mais insidiosa da metáfora da praga seja o modo como contribuiu para a normalização de uma dicotomia ideológica entre estranhos, infra-humanos, os outros, e todos os demais, nos primeiros tempos de afirmação da doença. Presente nos principais jornais, a dicotomia nós/eles teve como consequência a recusa de ver como histórias em torno de homossexuais e consumidores de drogas injectáveis podiam interessar as suas audiências. A epidemia em crescendo suscitou muito menos atenção do que outras novas doenças, como a doença do legionário, que recebiam entretanto grande cobertura. O discurso da Sida está repleto de metáforas militares e da ficção científica, está estreitamente ligado a uma imputação de culpa, a grupos de risco, a estilos de vida e comportamentos não seguros, de sujeitos fracos, indulgentes e delinquentes, ao sexo desviante e perverso. O uso de metáforas bélicas está presente na linguagem da Sida muito para além da descrição dos estados de perda e devastação associados à experiência da crise, escreve Cristiana Bastos, que sublinha como na naturalização da guerra como actividade da biologia, da saúde e da terapêutica reside um dos problemas cognitivos associados não apenas à representação da Sida e de outras doenças infecciosas, mas também às formas de intervenção que para estas se desenham. Neste quadro, “guerra" é o paradigma central de que tudo o mais deriva: a acção contra a Sida é conhecida como luta global, designando não apenas o confronto entre a humanidade e a epidemia mas estendendo-se às referências clínicas e quotidianas sobre a doença. A Sida é caracterizada como resultado da acção de um vírus inimigo e traiçoeiro, o VIH, que invade e ataca o corpo humano de formas insidiosas, instalando-se e corroendo os 19

"mecanismos de defesa". Derrotadas as "sentinelas", fica o corpo sem protecção contra os "inimigos". Por consequência, as terapias para a Sida são concebidas como contra-armas de uma microscópica guerra biológica. Mas a guerra não era a única forma, nem necessariamente a melhor, para obter resultados relevantes para a questão da Sida, escreve Cristiana Bastos (2002: 18), em balanço de duas décadas de contacto com a doença: As experiências clínicas de base comunitária e a criatividade do movimento das pessoas com SIDA contrastam com a guerra contra a SIDA promovida pela instituição médica. A resposta à epidemia que melhor parece ter funcionado não foi a que os generais criaram mas a que levaram a cabo aqueles que nem a tal exército estavam associados. Não se tratou da erradicação clássica nem das estratégias de quarentena ou de cordão sanitário. Tratou-se de uma espécie de subversão dos próprios termos da luta militar contra o vírus invasor. Ao afirmar a possibilidade de viver com a SIDA e o VIH, algumas pessoas com SIDA definiram implicitamente os termos de um novo paradigma. Ao criarem a identidade da pessoa com SIDA desafiaram as expectativas sobre a sua morte pelo facto de terem continuado a viver, de terem prevenido mais infecções, de terem adoptado uma alimentação mais equilibrada, de terem pressionado as agências biomédicas para haver mais investigação e melhores medicamentos, e de terem feito da infecção pelo VIH uma condição crónica (...). Fizeram aumentar as possibilidades de coexistência com um vírus que se mostrou resistente aos primeiros "contra-ataques".

É precisamente por esta orientação que decidimos prestar atenção aos modos como o discurso jornalístico silenciou ou deu voz a novos quadros de vivência com a doença, partindo de experiências e de tomadas de posição de pessoas seropositivas e de organizações que lutaram pelos seus direitos.

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4. Coberturas jornalísticas do VIH/SIDA Por ser algo novo (onde há um antes bem definido), a SIDA mostrou-se exemplar para pensar o jornalismo como discurso. Rosana Lima Soares (2001: 19). A primeira notícia de um grande meio de comunicação social sobre uma nova patologia surgiu no New York Times, numa notícia discreta na página 20, a 3 de Julho de 1981. A continuada indicação, nas revistas científicas de medicina, de que se estava perante uma epidemia não mereceu, contudo, a atenção da grande imprensa nos tempos seguintes. Esse silêncio foi interrompido em Maio de 1983, quando um editorial de uma revista médica afirmava que a Sida podia passar para a população inteira por "um estreito contacto de rotina". Ou seja, secundarizada enquanto doença homossexual, a atenção dos media cresceu quando se foi além da comunidade gay. No mesmo período, no Reino Unido, jornalistas consideravam estar apenas a fazer o seu trabalho profissional quando noticiavam resistências ao contacto com pessoas infectadas por parte de outras pessoas. A mensagem recorrente era de que a Sida era contagiosa e que a homossexualidade era uma via de contágio. Em meados de 1984, o conteúdo incidiu no debate sobre a novidade ou não da Sida, e as diferenças nos vírus. No ano seguinte, a maioria das peças reportava controvérsias em torno de quem era o culpado pela Sida, com muitos a acusarem as vítimas e a usarem expressões como portadores de Sida ou suspeitos de Sida (Allan, 2002: 131). Este quadro começou a modificar-se com a morte de Rock Hudson, em Outubro de 1985. O final desse ano regista uma subida acelerada de peças, momento que também coincide com a primeira declaração do Presidente norte-americano, Ronald Reagan, tinha então a epidemia 4 anos. Este período constituiu um ponto crítico na viragem de atenção para com a doença. No Reino Unido, enquanto a imprensa de referência procedia a uma revisão do enquadramento como praga gay, os jornais populares mantiveram-no mais tempo e usaram termos claramente homofóbicos no caso Hudson (Allan, 2002: 134). Estas formas de cobertura ajudaram a construir um sentido da Sida como um problema "dos outros". Comum também foi a tendência para diferenciar vítimas "inocentes" e "culpadas", notória entre diferentes estilos de reportar consoante a pessoa que contraiu a 21

síndroma: hemofílicos, pessoas que receberam transfusões de sangue contaminado, crianças e idosos recebiam cobertura mais calorosa do que aqueles envolvidos em práticas "ilícitas" ou não naturais (Lupton, 1994; Allan, 2002). Para uma maior atenção a pessoas envolvidas directamente com a doença teve grande importância a forte intervenção de activistas, gays e lésbicas, que suscitou formas de reportar mais sensitivas na segunda metade dos anos 80. Contudo, a atenção a esta doença entrava em declínio e no final da década de 80, era vista como história de rotina e demasiado deprimente. Nas palavras de Moeller (1999), atingia-se a “fadiga da compaixão”. Os activistas procuraram recolocá-la na agenda pública aquando da primeira Guerra do Golfo, em 1991. Mas nesse ano, a 7 de Novembro, a declaração de Magic Johnson de que era seropositivo terá constituído o factor singular mais significativo que afectou a consciência e preocupação pública com a Sida. Esta cobertura convoca também velhos mitos urbanos do contágio, com antecedentes noutras doenças também marcadas pela sexualidade, como a sífilis e a gonorreia. Logo em 1982, recorda Elisabeth Bird (2003), surgiu a história do gay que teria contagiado o seu parceiro; em 1986, a forma de contágio mais comum era a da mulher infectada que ameaçava transmitir indiscriminadamente o vírus por via sexual. Os jornais, sobretudo os populares, reportavam estas situações como lenda ou como história interessante, mesmo se não confirmada. Hoje, o temor do contágio da Sida está assimilado, terá sido substituído por outros horrores, como o terrorismo e o medo das armas químicas e bacteriológicas. Bird não estranha a ocorrência destas histórias nos media, uma vez que considera que as notícias são construções que reflectem e reforçam certas ansiedades e preocupações culturais, por vagas sucessivas (como na criminalidade juvenil ou abuso sexual de crianças, por exemplo), sem correspondência com mudanças concretas da proporção da sua ocorrência. Também salienta a importância, para o tratamento factual desses mitos, de formas sustentadas na produção da objectividade. Num caso que analisa, a notícia da transmissão intencional do vírus por uma mulher, as “provas” foram uma carta manuscrita chegada à redacção e a gravação telefónica de uma voz feminina que afirmava ter transmitido o vírus a dezenas de homens. Sem nome próprio, essa figura assinava como Viúva Negra. Foi esta informação que construiu a "evidência objectiva", a carta e a gravação foram usadas como base para citações directas; com base nestes materiais, "pessoas da rua" foram 22

encorajadas a comentar a ameaça, o perfil da mulher foi traçado a partir de descrições possíveis; as opiniões da polícia, de psicólogos e outros especialistas deram sustentáculo à verosimilhança. Mais tarde, seria demonstrado ter sido esta história uma construção de uma jovem que desejava dessa forma chamar a atenção para a doença, após a morte de um grande amigo. No seu estudo sobre o discurso jornalístico produzido na Folha de São Paulo sobre esta doença, Lima Soares assinala que, de Setembro de 1987 a Dezembro de 1996, o jornal publicou 7074 matérias que, de alguma forma, faziam referência à Sida, número muitíssimo superior ao encontrado nos dois jornais portugueses deste estudo, como veremos. A primeira notícia sobre Sida no jornal brasileiro saiu a 3 de Junho de 1983, quase dois anos depois da primeira referência no New York Times. A descoberta do agente causador da Sida foi bastante posterior ao aparecimento dos primeiros casos registados no final da década de 70, início da década de 80. O que se destaca nessas primeiras peças é que, apesar de então o desconhecimento científico ainda ser grande em relação à doença, alguns elementos, que permanecem nas matérias até aos dias de hoje, começam a ser aí cristalizados. Entre eles, destacam-se as referências aos homossexuais e consumidores de drogas; o tom alarmista das matérias demonstrando que a ciência – que tudo sabe – não sabia sobre a doença e, de início, nem sobre o seu agente transmissor; a ideia de que a doença "se espalhava" pelo mundo; a imagem da doença como um "mal a ser combatido". No seu estudo qualitativo do discurso jornalístico sobre esta matéria, centrado nos anos de 1994 e 1995, num total das 31 peças da uma amostra aleatória – uma peça de domingo mais uma peça de dia variável de semana – Lima Soares trabalha as seguintes categorias temáticas: 

Estado (legislação, Saúde pública, convénios médicos)



Ciência (descobertas científicas, informações médicas, medicamentos, testes de novos remédios)



Pessoas (seropositivos, homossexuais, pessoas afectadas ou não-afectadas pela Sida, directa ou indirectamente)



Questões sociais (grupos organizados, eventos, pesquisas sociológicas, drogas)

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A análise qualitativa sublinha que os temas mais recorrentes foram convénios, drogas, políticas públicas e homossexualidade, alguns mesmo com clara continuidade. Não apareceu uma única matéria sobre campanhas de prevenção. Nos discursos de três grandes temas – Estado, Ciência e Homossexualidade –, sublinha-se a oposição bem/mal, compondo doença e doente por imagens de pecado e dano, com a ciência como redentora desses males, capaz de curar e salvar. A estrutura básica do discurso da Sida reveste-se assim de configurações imaginárias relacionadas com o domínio do religioso e do místico. Ao apreciar de que formas o mundo entra em contacto com a questão da Sida por meio dos jornais (como está ela escrita), como é que os discursos instituídos entram em contacto com a questão da Sida (como se referem a ela) e o que dizem esses discursos instituídos, Lima Soares tece as seguintes observações: - Os títulos apresentam-se com manchetes, no tempo presente, modo indicativo, num tom assertivo afirmativo. Este grau de certeza nem sempre se confirma na leitura das matérias. - Nas categorias de pessoa, espaço e tempo, com pequenas variações, domina o uso da terceira pessoa (singular ou plural), que confere objectividade e neutralidade; o espaço dominante é o do "lá", o tempo é o presente e o passado. - Os discursos instituídos chamados a configurar o discurso da Sida são o discurso médico, o discurso da ciência, o discurso do estado (que engloba o discurso jurídico e o político) e o discurso social (que engloba discurso moral). Outros discursos, secundários, são o literário, o religioso, o mediático, o sociológico, o estético e o empresarial. - O discurso médico e o discurso científico aparecem mais nas matérias directamente ligadas à Sida (prevenção, descobertas, pesquisas), com nomes de pesquisadores, depoimentos e dados quantitativos. O discurso do estado parece sempre querer impor a lei e a ordem, chamar ao bom funcionamento da sociedade, pela intervenção directa ou por mudanças na legislação. O discurso social engloba manifestações de organizações não governamentais e grupos organizados, com reivindicações ou defesa de moral. - As imagens do grupo temático Estado compõem o próprio discurso do poder, em relação à Sida e em geral. No que refere sobre convénios e às políticas em relação a drogas e saúde pública, fica claro que o Estado deve intervir como aquele que ordena e submete. Em relação à Sida, a imagem principal associada ao Estado é controlo: o Estado define, garante, cancela, atende, cede, introduz, resolve... 24

- No grupo temático Ciência, predominam imagens associadas ao discurso religioso, como busca, encontro, salvação, esperança. Também se reconhece o papel tradicional da ciência como aquela que realiza descobertas e supera desafios, dominando a natureza. Em relação à Sida, a principal imagem associada à ciência é de cura. A ciência alerta, age, combate, bloqueia, realiza, faz, descobre, publica... - No grupo temático da homossexualidade, o discurso prevalecente é o discurso moral e em relação à Sida a principal imagem associada aos homossexuais é a de culpa. São aqueles que são presos, falsificam, mantiveram, relacionam-se, contaminam, são condenados... Em relação à Sida, destaca ainda que esta aparece em muitas matérias que não têm directamente a ver com ela. Estas são indicações que nos servirão de comparação com o que iremos encontrar nomeadamente nos títulos das peças dos dois jornais portugueses.

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5. A situação da síndroma em Portugal e no mundo (1980-2000) Segundo os dados do Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis (CVEDT) do Instituto Nacional de Saúde português, que regista os casos de Sida e os casos positivos de VIH, até 31 de Dezembro de 2003, encontravam-se notificados 23.374 casos de infecção VIH/Sida em Portugal, nos diferentes estádios de infecção. Estes incluem casos de Sida – fase mais tardia e estabelecida da doença –, PA (portadores assintomáticos) – fase inicial da infecção que pode durar vários anos sem sintomas – e CTR (Complexo Relacionado com Sida), ou seja, uma fase intermédia da infecção em que podem aparecer aumentos ganglionares, febrículas e outros sintomas. Desde 1983 até 2003, foram notificados 10.724 casos de Sida, 10.555 casos de infecção por VIH assintomáticos e 2095 casos classificados como CTR. Uma vez que existe, em Portugal como noutros países, uma possível notificação inferior de casos face ao real e também pela impossibilidade, até ao momento, de fazer um rastreio exaustivo do vírus na população, entidades como a ONUSIDA fazem estimativas segundo modelos matemáticos para estimar o número de casos entre a população. Segundo dados da ONUSIDA, estima-se que haja entre 30 a 50 mil casos de pessoas infectadas pelo VIH em Portugal. Em todos os estádios de infecção, a maioria dos casos apresentados de forma acumulada ou apenas como novos casos notificados num dado período de tempo, em geral um ano, corresponde a infecções em toxicodependentes, seguindo-se as infecções por transmissão sexual heterossexual, as infecções por transmissão sexual homossexual masculina e as infecções devidas às restantes formas de transmissão. No que diz respeito aos casos de Sida, é possível constatar, porém, desde o ano 2000, um aumento proporcional do número de casos de transmissão heterossexual e a diminuição proporcional dos casos associados à toxicodependência, bem como uma maior frequência de casos em grupos etários superiores aos 55 anos. A categoria de transmissão heterossexual constituiu 30,1% do total dos casos notificados em 1999, 33% em 2000, 36% em 2001, 43,3% em 2002 e 47,5% em 2003, enquanto que os toxicodependentes corresponderam a 58,5% em 1999, 56,4% em 2000, 53,4% em 2001, 47,4% em 2002 e 40,9% em 2003. Deste modo, verifica-se que nos anos mais recentes a principal categoria de transmissão ocorre por via heterossexual.

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O quadro seguinte exprime a evolução, por ano, dos casos de Sida notificados em Portugal.

Ano 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003

Casos notificados 0 0 18 30 47 109 154 226 246 385 465 610 692 898 895 874 1013 1124 975 1069 894

Fonte: CVEDT

Segundo as estatísticas do Centro Europeu para a Vigilância Epidemiológica da Sida de Paris, divulgadas em 2000 pelo Instituto Nacional de Saúde, Portugal apresentou a maior taxa de incidência de Sida (número de casos de Sida diagnosticados, por milhão de habitantes) da União Europeia, com 104,2 casos por milhão de habitantes – um número bastante mais elevado que a taxa de incidência europeia de 22,5 casos. Aliás, no período entre 1992 e 1998, a taxa de incidência na União Europeia decresceu 45%, mas apenas em Portugal se verificou um acréscimo dessa taxa, que quase duplicou. Analisando os dados do CVEDT do ponto de vista da sua distribuição pelo sexo (masculino ou feminino) e pelo grupo etário, conclui-se que grande percentagem dos casos corresponde ao sexo masculino (83,1%) e às idades compreendidas entre os 20 e os 49 anos (86%). As crianças entre os 0 meses e os 14 anos constituem apenas 0,9% dos casos. Da observação dos números oficiais, também se pode constatar que se registaram óbitos em 80% dos casos notificados associados à hemofilia, 57,8% dos casos relativos ao 27

comportamento homossexual associado à toxicodependência e 53,7% dos casos que referem a toxicodependência com factor de risco. Segundo o relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) de Dezembro de 2001, foram notificados em toda a Europa 251.021 casos de Sida. Espanha, França e Itália são os países que apresentam um maior número de casos, ao contrário da Alemanha e do Reino Unido. Estima-se que existam, no final de 2003, entre 520 e 680 mil infectados pelo VIH/Sida na Europa Ocidental e entre 1,2 e 1,8 milhões na Europa Oriental e na Ásia Central. Em 2001, Portugal ultrapassava o número de casos de SIDA em relação aos outros países da Europa com dimensões semelhantes, como a Bélgica ou a Holanda. O consumo de drogas injectáveis é o principal meio de transmissão do VIH/Sida na Europa Ocidental, mas, na Europa Oriental, os casos contraídos através da transmissão homossexual são também muito elevados. Grande parte dos casos de Sida surge nos homens entre os 15 e os 49 anos de idade. Contudo, em países como a Roménia, a Sida tem grande prevalência no grupo etário dos 0 aos 14 anos. Aliás, a Roménia é o país europeu onde a Sida tem maior expressão junto das mulheres. Espanha e Portugal são os países da Europa Ocidental onde foram maiores, até ao ano de 2001, os casos de transmissão através do uso de drogas endovenosas. No total do espaço europeu, estes valores apenas são encontrados em países do Leste, como a Polónia, a Macedónia ou a Ucrânia. De acordo com as estimativas da OMS e da ONUSIDA para o final de 2003, existem em todo o mundo entre 34 e 46 milhões de pessoas infectadas pelo VIH/Sida. Um oitavo desses casos, cerca de 5 milhões, contraiu o vírus apenas em 2003; desses 5 milhões, 800 mil são crianças. Prevê-se que, até ao final de 2003, a Sida tenha causado entre 2,5 e 3,5 milhões de óbitos. Os dados indicam ainda que a mortalidade devida ao VIH está a aumentar de forma preocupante entre as mulheres. Aliás, actualmente, o número de mulheres infectadas em todo o mundo é quase igual ao dos homens. Em 2001, calcula-se que 17,6 milhões de mulheres, com idades compreendidas entre os 15 e os 49 anos, estivessem seropositivas. Em termos geográficos, a África subsariana é a zona que tem mais portadores do vírus, somando um total de 28,1 milhões de infectados, seguindo-se o Sudeste Asiático, com 6,1 milhões de casos, a América Latina (1,8 milhões), a Europa Oriental e a Ásia Central, o Extremo Oriente e Pacífico (1 milhão) e a América do Norte (940 mil). Esta última é a região do mundo industrializado onde existe um maior número de portadores do VIH, 28

ultrapassando a Europa Ocidental. O Norte de África e Médio Oriente tem um número de portadores do vírus relativamente baixo (440 mil) e a Austrália e a Nova Zelândia, com 15 mil casos, são as regiões do mundo onde o VIH tem uma menor taxa de incidência do vírus. Na América do Norte, as formas de infecção seguem o padrão de outros países industrializados, onde a homossexualidade é a via mais importante de transmissão do vírus, seguida do uso de drogas injectáveis e da heterossexualidade. Na África subsariana, na América Latina e no Norte de África e Médio Oriente, a infecção contraída por via heterossexual é predominante. Como notas para o nosso estudo, registamos como nos anos que se seguiram ao final das peças recolhidas nos dois jornais portugueses, em 2000, cresceu notoriamente em Portugal o número de casos transmitidos por via heterossexual, atingindo quase metade dos casos notificados, subida essa que foi acompanhada do decréscimo da transmissão associada à toxicodependência. Registamos também que, em 2000, Portugal era o país da União Europeia com maior taxa de incidência da Sida, a atingir sobretudo uma população do sexo masculino entre os 20 e os 49 anos, sendo nessa altura muito baixa a percentagem que correspondia a crianças infectadas. Enquanto isto, à escala mundial, os dados indicam que o número de pessoas atingidas pelo vírus disparou nos últimos anos e que o número de mulheres infectadas em todo o mundo tende a aproximar-se dos homens. É com todos estes cenários presentes – relações tencionais entre cientistas e jornalistas, confronto de paradigmas da saúde e da doença, construção discursiva da síndroma VIH/Sida, sua cobertura jornalística e situação da síndroma em Portugal e no mundo – que passamos agora a apreciar como as pessoas seropositivas tiveram lugar nestes dois jornais portugueses, de 1981 a 2000.

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6. Discursos e silêncios sobre seropositivos na imprensa portuguesa A decisão de apreciar como aparecem as pessoas directamente afectadas pelo vírus tem como base o reconhecimento de que, noutros países, as primeiras identidades sublinhadas dos seus portadores (homossexuais, toxicodependentes) marcaram preconceitos e dicotomias que permaneceram na consideração desta doença, como vimos. Para apreciarmos o que aconteceu nos dois jornais portugueses no que se refere ao modo como pessoas directamente afectadas surgiram nos títulos das peças jornalísticas, começamos por dar conta de resultados da Análise de Conteúdo coordenada por Nelson Traquina2, e do estudo sobre relações entre fontes e jornalistas que tomou esta cobertura jornalística como terreno de investigação, realizado por Rogério Santos (2002) na sua tese de doutoramento e parte integrante também deste Projecto. Na Análise de Conteúdo às 6714 peças dos dois jornais, 2684 do Diário de Notícias e 3030 do Correio da Manhã destacou-se a variação na distribuição de peças pelos dois jornais, no período analisado, bem visível no Gráfico 1:

350 300 250 200 150 100 50 0 98 20 00

96

94

92

90

88

86

DN CM

84

82

Nº de peças

Gráfico 1

Anos

Podemos assim observar que os dois jornais apresentam semelhanças na distribuição temporal do número de peças publicado, coincidindo na maioria dos anos o acréscimo ou 2

Nelson Traquina, Marisa Torres da Silva e Vanda Calado, A problemática VIH/Sida como notícia: Elementos para uma teoria da notícia (no prelo).

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diminuição do número de peças. O Gráfico I torna ainda visível como, a partir de 1994, baixou o número de peças, após a fase inicial de subida de atenção, que atinge o pico em 1987, e se mantém elevada nos anos seguintes. De notar que no cômputo geral, esta cobertura jornalística é marcada esmagadoramente pelo género Notícia. Esse género corresponde a 77% das peças saídas no Diário de Notícias e a 93% das peças do Correio da Manhã. No DN, o género reportagem corresponde a 9% das peças, o artigo de opinião a 4% e a entrevista apenas a 2%. Relevante pelo que sugere de um “imaginário” muito próximo na forma de avaliar a noticiabilidade deste tema, traduzido no quase constante movimento de ascensão e de declínio de atenção nos dois jornais, estes números não dão conta, contudo, de diferenças, como a assinatura, com o Diário de Notícias a ter várias peças de reportagem com a mesma autoria, a significar um acompanhamento da problemática pelo mesmo jornalista. Também entre as conclusões da análise de conteúdo às peças recolhidas nos dois jornais portugueses (ver Traquina et al., no prelo), se identifica um valor notícia aparentemente deslocado na cobertura jornalística de um tema de saúde pública, a infracção. A par da proximidade, do factor tempo, da notoriedade, da relevância, da controvérsia, da quantidade e do insólito, foi identificado este valor notícia associado ao desvio e ao crime. A análise qualitativa do discurso dos títulos vai mostrar a forte presença desse valor notícia, em peças onde uma “seringa com sangue contaminado” serve de arma para crimes urbanos e se esbatem as fronteiras entre a doença e a marginalidade social. Como mostra também essa análise de conteúdo, o principal tema tratado nas notícias foi a história biomédica, de combate à doença e procura incessante da sua cura, o que se insere no paradigma da ciência e da medicina de pensar a luta contra a doença como guerra travada por médicos e cientistas contra o inimigo instalado nos corpos das pessoas afectadas. Pretendemos pela atenção aos títulos que envolvem pessoas directamente afectadas pela síndrome, também averiguar se se manifesta a “identidade da pessoa com Sida” que se envolve nos processos de decisão, desafia as expectativas de morte e luta contra a discriminação e que é reconhecida como uma das marcas de novas formas de intervenção social neste campo. Procuramos apreciar de que formas aparecem pessoas referenciadas como seropositivas, como se dão ou não a conhecer, a que espaços são associadas, que expressão tem a sua voz. Pretendemos também verificar como se registaram os discursos instituídos (Lima 31

Soares, 2002) que se referem aos seropositivos: o discurso de especialistas, da medicina e da ciência; o discurso do Estado a impor a lei e a ordem social, onde se inclui a actuação das forças da ordem, fontes policiais, tribunais; o discurso social, com manifestações de grupos organizados, em prol de direitos de cidadania ou de defesa da moral e costumes. Como deu conta Rogério Santos (2002) na sua tese de doutoramento sobre relações entre fontes de informação e jornalistas no contexto desta problemática, estudo também integrante desta investigação, estes 20 anos de cobertura foram marcados por pesos diferentes das várias fontes: o peso fundamental das fontes biomédicas nos primeiros anos, cede o seu lugar de fonte legitimada ao Grupo de Trabalho da Sida (GTS) e à Comissão Nacional de Luta contra a Sida (CNLCS) a partir de 1985. No pólo das organizações não governamentais, destaca o envolvimento científico e político da Associação Portuguesa de Hemofílicos (APH) e o surgimento de várias ONG ligadas à questão da Sida, criadas nos finais dos anos 80. Faz notar que o seu registo jurídico decorre num momento de forte intensidade nas acções colectivas e de oposição à agência governamental, a viragem dos anos 80 para os 90. O pico de participação sucede num arco de tempo compreendido entre 1991 e 1996, escreve, considerando que a partir de 1997 perderam o sentido da inovação na mobilização de agentes sociais e que entraram na rotina de procedimentos. Metodologia e corpus de trabalho O estudo qualitativo sobre títulos e imagens das peças jornalísticas segue uma metodologia de análise que evidencia como os discursos dos textos – escritos e visuais – constroem as situações sociais e as pessoas nelas envolvidas, como beneficiam ou apoiam uns indivíduos, grupos ou instituições em detrimento de outros, reproduzindo por isso relações de poder, como se referem continuamente a outros discursos, sobrepondo-se numa inter-relação complexa. É seguindo as orientações da Análise Crítica do Discurso (van Dijk, 1988; Fowler, 1991; Fairclough, 1995, 2003) que procuraremos responder às perguntas sobre como foram “pessoas seropositivas” tratadas nesses espaços de maior visibilidade da página. Na análise crítica do discurso, o foco está na estrutura, no estilo e nos traços persuasivos dos textos, mais do que na sua representatividade estatística. A ênfase assenta na procura de padrões de consistência e de diferenças no conteúdo e nas formas dos relatos, visando identificar traços partilhados, a sua função e consequências. Procura-se assim identificar padrões recorrentes na descrição de coisas, acções, eventos, pessoas, bem como o 32

léxico usado para apresentar questões e que pode levar a que matérias diferentes sejam apresentadas como instâncias de uma mesma situação. Interessa também tanto aquilo que é dito como aquilo que não é dito porque se pressupõe que todos estão de acordo, como sublinha Teun van Dijk (1988). A apreciação de pessoas seropositivas como protagonistas dos textos associa-se também à análise das imagens em que aparecem, mesmo que sob outro tópico, e aos textos de opinião que contenham referências à situação de seropositividade. Pessoas seropositivas aparecem apenas em 1983 como protagonistas das peças jornalísticas nos jornais portugueses. Nos 20 anos analisados, surgem nessa posição em 263 peças do Diário de Notícias e em 272 peças do Correio da Manhã, correspondendo respectivamente a 9% e 8% do total das peças recolhidas, com o peso esmagador da notícia, como vimos. No Diário de Notícias, foram encontradas 169 notícias e 26 reportagens, no Correio da Manhã, 199 notícias e 3 reportagens. Foram ainda recolhidas para este sub-corpus peças em que pessoas seropositivas eram colocadas como figuras secundárias, mas com referência directa; peças sobre ONGs como protagonistas, a fim de verificar da sua visibilidade em estruturas organizadas que batalharam contra a discriminação e a invisibilidade da doença; peças em cujo título entravam palavras conotadas com orientação homossexual (homossexuais, gays). Dadas as características da recolha de peças para esta pesquisa – por recorte e não por página – não foi possível ter em conta a sua localização na página ou que peças de proximidade estavam ou não relacionadas com elas. A apreciação do aspecto da peça restringe-se por isso ao fragmento, constituído na maioria por peças de poucos parágrafos. Como já sublinhámos, os títulos foram considerados como elemento central da análise das peças, pela sua visibilidade e condensação de sentido. Como apontam estudos de recepção, os títulos têm muito mais leitura do que os textos (aponta-se uma relação de 5 para 1), constituindo por isso um “texto” mínimo de informação. Os seus constrangimentos espaciais implicam, por outro lado, uma escrita de grande condensação, com frequente omissão de formas verbais. A dimensão do corpo de letra escolhido e a dimensão da horizontalidade com que se apresenta na página (quanto mais colunas ocupar mais destacado se apresenta) constituem elementos gráficos com sentido dramático. Trabalhámos, num primeiro nível, os títulos das peças observando que eventos referem e as situações em que colocam seropositivos. Para isto, foram tidas em conta 33

variações na identidade das pessoas presentes, consoante a idade – distinguindo crianças de adultos –, o género (masculino, feminino), o sujeito (singular e colectivo), o estatuto social (figuras públicas, pessoas anónimas), a orientação sexual (referência à homossexualidade). A partir desta primeira pesquisa, fomos ver o género jornalístico em que se apresenta a peça e o espaço onde é colocada no jornal, marcas também da configuração da pessoa portadora da síndroma. Finalmente, ouvimos jornalistas que trabalharam nesta cobertura e debatemos com eles os resultados encontrados. Na análise textual aos títulos, utilizamos categorias da gramática sistémico-funcional de Halliday, a partir de Thompson (1996)3. Trata-se de uma gramática sistémica porque assenta na ideia de que a linguagem consiste num conjunto de sistemas, oferecendo cada um escolhas nos modos de expressar significados, e funcional porque privilegia o estudo da linguagem a partir dos seus usos. Se na vida corrente, a maior parte do uso da linguagem se faz sem atenção consciente, isso não acontece em situações que requerem produções linguísticas complexas, como é o caso dos títulos jornalísticos, textos mínimos em dimensão mas que não podem deixar de expressar significados. É a dimensão funcional dos títulos e a dimensão sistémica das suas escolhas semânticas que esta gramática permite explorar de forma exaustiva, tornando visíveis padrões de escolhas de significado que poderão escapar numa leitura superficial. Um dos focos desta gramática é a atenção ao modo de representação pela linguagem dos acontecimentos do mundo, sejam eventos da natureza ou acontecimentos sociais. Estes últimos reúnem elementos como formas de actividade, pessoas (com os seus sentimentos, crenças, histórias), relações sociais e formas institucionais, objectos, meios, tempos e lugares, linguagem e outras formas de expressão. A análise visa identificar que elementos de um dado evento social estão presentes num texto que o refere, que elementos estão ausentes e que elementos têm maior destaque; como se apresentam: por uma configuração concreta, generalizada ou abstracta; por que ordem se apresentam e o que lhe é acrescentado: explicações e legitimação (como razões, causas, finalidades) e avaliações. Para analisar como a linguagem é usada para exprimir um conteúdo ou acção material é central o conceito da transitividade, a base linguística da representação. A transitividade permite estabelecer relações e identificar que lugares ocupam os diferentes Foram também utilizados apontamentos do Seminário de Mestrado em Análise Crítica do Discurso, ministrado pelo Professor Carlos A. M. Gouveia, da Faculdade de Letras de Lisboa, em 2000-2001. 3

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participantes: quem/o quê é o agente da acção (o seu sujeito lógico), que acção é representada, quem/o quê é afectado pela acção. Para além destes processos materiais, Halliday (in Fowler, 1991) define ainda como alvo da transitividade os processos mentais experimentados por um sujeito (como percepcionar, pensar e sentir afectos e emoções), verbais (exprimir-se pela fala), comportamentais e relacionais (relação do sujeito com atributos e símbolos). Outro foco desta gramática vai para a função interpessoal. Esta função interpessoal orienta-se para o modo como os textos, falados ou escritos, expressam os comentários de quem fala ou escreve, as suas atitudes e avaliações. Como discurso da ordem da informação, o discurso jornalístico é marcado pela formulação de afirmações mas estas podem variar de intensidade, entre a certeza absoluta e graus crescentes de incerteza, numa hierarquia de credibilidade, (entre ser um facto que X... e ser possível que X...). As modalizações, as marcas com que o falante assinala o seu enunciado a fim de indicar a sua relação com o conteúdo do mesmo, salientam a subjectividade. Uma escrita que se esforça por dar uma imagem de objectividade tende a minimizar as expressões modais. São também indicadores da função interpessoal os pronomes e adjectivos demonstrativos e os advérbios, que organizam o espaço a partir de um ponto central. Enquanto o espaço varia entre a proximidade e a distância das pessoas da enunciação, o tempo dos acontecimentos e do desenrolar da história diferem do tempo linguístico, que tem o seu centro no presente da instância da fala. Da conjugação destes parâmetros se estabelece a distinção entre uma relação de proximidade entre enunciador e enunciação, que cria no enunciatário as categorias do eu-aqui-agora e o seu oposto, a relação de distanciamento (ele-láentão). A terceira atenção desta gramática vai para a função textual, que exprime as anteriores em textos capazes de os carregar de significados. Diz respeito à organização simbólica do acontecimento: é diferente apresentar um dado acontecimento exprimindo-o pela voz activa ou pela passiva; iniciar a sua textualização pela informação principal em primeiro lugar ou antecedê-la por comentários ou marcação das circunstâncias da sua ocorrência; recorrer a unidades nominais (nominalizações), que apontam um carácter estático, para descrever contextos, quando poderiam ser expressos por unidades verbais. A atenção vai também para aspectos lexicais, como a reclassificação do termo, promovendo uma nova perspectiva para os leitores, como acontece com os neologismos; a sobre-

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lexicalização, que sinaliza áreas de grande preocupação na experiência e nos valores do grupo que a gera; o posicionamento dos adjectivos e de outros modificadores. Apresentam-se de seguida, no âmbito desta gramática, categorias de análise centradas na representação de actores sociais, quem intervém e como intervém nos acontecimentos sociais, e ainda referências de tempo e lugar. Acrescentam-se a cada categoria títulos recolhidos dos dois jornais, como ilustração. As categorias de representação de actores sociais (van Leeuwen, 1997) utilizadas neste trabalho foram: 1) inclusão/exclusão; 2) diferenciação e indeterminação; 3) formas de nomeação e atributos; 4) referências genéricas e específicas, abstractas e concretas. As categorias de representação de acontecimentos sociais foram: 5) processos materiais; 6) processos verbais; 7) processos mentais; 8) processos relacionais; 9) processos comportamentais; 10) marcas de tempo e de lugar. Sendo o registo esperado dos títulos jornalísticos o tom assertivo e factual, que constrói um autor desprovido de subjectividade, teve-se em atenção a ocorrência de momentos contrários a esse registo esperado, ou seja, a ocorrência de processos de intensificação de sentidos, formas de avaliação e ainda variações no grau de asserção, entre certeza e probabilidade. Categorias de representação de actores sociais Inclusão/exclusão. Para van Leeuwen (1997: 180), a atenção à exclusão é um aspecto importante a ter presente na análise crítica do discurso, uma vez que algumas das exclusões não deixam marcas na representação. Se tivermos em conta as 6714 das peças reunidas nesta investigação sobre a cobertura jornalística do VIH/Sida nos dois jornais portugueses, a primeira constatação é a da exclusão de pessoas seropositivas como protagonistas da maioria das peças, pela sua supressão total ou colocação em lugar secundário. Apreciando apenas as peças onde foram considerados como “actores principais”, verificamos, como seria de esperar, que estão na maioria dos seus títulos. A inclusão de um “quem” é a situação mais comum em títulos informativos, de notícias breves, o género jornalístico mais frequente. Por exemplo, no título [1] o seropositivo está incluído, como sujeito anónimo mas identificável pela sua profissão (médico). A ausência explícita de sujeitos ocorre em títulos metafóricos e simbólicos, como no título [2], sobretudo em géneros jornalísticos de opinião ou em peças de reportagem. 36

1. Médico com Sida violava doentes4 2. Amor em tempo de doença5 Activo/passivo. Os sujeitos lógicos activos são sujeitos (individuais, colectivos, organizados, institucionalizados) que protagonizam a acção que vai atingir algo ou alguém. Aqueles que são atingidos por essa acção são sujeitos lógicos passivos. Com frequência, por questões de economia, os sujeitos lógicos activos são elididos do título jornalístico e são os sujeitos afectados pela sua acção que aparecem no início da frase. É o caso de títulos expressos textualmente pela voz passiva. A categoria activo/passivo observa assim quem é representado como agente da acção e quem é afectado por essa acção. Os títulos [1, 3] apresentam sujeitos singulares como agentes lógicos activos e indicam que a acção já ocorreu. Pelo título [4], não sabemos quem foi/é responsável pelo processo do sangue importado, nem onde e quando ocorreu a situação ou quem foi infectado (pelo título sabe-se apenas que atinge um agregado de pessoas). 3. Matou mulher e filho e depois suicidou-se com medo da Sida 6 4. Infectados por sangue importado dos EUA7 Diferenciação e indeterminação. Esta categoria é central na análise dos títulos que envolvem pessoas seropositivas como protagonistas das peças jornalísticas, pois pretendemos diferenciar a forma como aparecem em título sujeitos anónimos, por um lado, e pessoas com notoriedade ou especial vulnerabilidade, por outro. A diferenciação é tanto mais relevante quanto se sabe como esses factores pesam na cultura jornalística. A diferenciação neste caso destaca figuras públicas, pessoas com hemofilia, pessoas homossexuais e crianças, por se considerar pertinente averiguar possíveis tratamentos diferenciados pelo seu estatuto, quadro clínico, orientação sexual e idade. A indeterminação abrange as restantes pessoas anónimas. Por figuras públicas entendem-se sujeitos singulares com notoriedade, por si ou pelas suas relações, e ainda pela sua actividade pública. São com frequência nomeados nos títulos

Diário de Notícias, 11 de Maio de 1987. Notícia breve Diário de Notícias, 1 de Dezembro de 1996. Reportagem inserida em dossier, assinada por Leonor Figueiredo 6 Correio da Manhã, 1987. Notícia breve, com origem em agência ANSA (Itália) 7 Correio da Manhã, 20 de Fevereiro de 1999. Notícia breve, não assinada 4 5

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pela sua identidade única, o nome próprio [5], por identificação relacional com sujeitos de elite [6], ou ainda pela sua actividade ou função de destaque [7]. Em geral, pessoas anónimas apresentam traços de identidade, explícitos ou subentendidos, como a faixa etária [8], o sexo/género [1, 3, 9, 10], a sua actividade [1, 10], nacionalidade [11], posição familiar [3, 12], orientação sexual [13], frequentemente conjugados. Neste conjunto, reúnem-se pessoas anónimas singulares [1, 3, 8-12] e agregados [4, 13]. Há, contudo, títulos onde que estão ausentes quaisquer traços de identidade [14]. 5. Rock Hudson: o gigante na hora da agonia8 6. Ex-criado de Carlos morreu com Sida9 7. Morreu o realizador de “Dança comigo”10 8. Jovem com Sida tenta violações 11 9. Ele disseminou a Sida no mundo12 10. Médica afectada pela Sida põe hospital em tribunal13 11. Espanhol usava seringa como arma 14 12. Infectou o filho com o vírus da Sida15 13. 200 000 homossexuais junto à Casa Branca 16 14. Mordidela transmitiu Sida17 Formas de nomeação e atributos. Como vimos, os actores sociais protagonistas destas peças podem ser referenciados pela sua identidade única (nomes próprios ou funções específicas) ou por atributos de identidade. No uso de nomes próprios, van Leeuwen distingue um uso formal (apelido, com ou sem honoríficos) como no título [15]; semi-formal (nome próprio e apelido), como no título [5] ou informal (apenas o nome próprio), como no título [6], em escolhas que assinalam o grau de distância social para com esse sujeito. Outras escolhas que indicam proximidade para com o sujeito referido são o diminutivo, o artigo Diário de Notícias, 3 de Outubro de 1985 Diário de Notícias, 7 de Outubro de 1985 10 Correio da Manhã, 1993. Notícia breve, não assinada 11 Correio da Manhã, 22 de Novembro de 1997. Notícia, assinada por Eduardo Alcobia (Porto) 12 Correio da Manhã, 5 de Novembro de 1987. Notícia com 14 parágrafos, título a 3 colunas, sobre Gaetan Dugas, uma das primeiras vítimas da Sida registadas oficialmente. 13 Correio da Manhã, 23 de Janeiro de 1990. Notícia não assinada 14 Correio da Manhã, 1994. Notícia breve, não assinada 15 Correio da Manhã, 25 de Abril de 1998. Notícia de agência, breve, não assinada 16 Correio da Manhã, 13 de Outubro de 1987. Notícia de agência, não assinada, com fotografia de manifestação 17 Diário de Notícias, 28 de Outubro de 1995. Secção Síntese, notícia breve, não assinada 8 9

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definido e a substituição do nome próprio por uma designação simbólica e evocativa, realizada com o recurso a aspas, no título [16]. 15. Sida está prestes a vencer “luta” de Costa Ferreira 18 16. A Sida matou “o gigante”19 Referências genéricas e específicas. A referência genérica “apresenta uma visão da realidade onde entidades generalizadas, as classes, constituem o real” (van Leeuwen, 1996: 191). Títulos genéricos, desprovidos de especificações, são raros em ambos os jornais nestas peças cujos protagonistas são pessoas seropositivas. Sendo pequenas notícias a maioria deste subconjunto de peças, são frequentes as referências que apresentam “um mundo específico e concreto, povoado por pessoas, sítios, coisas e acções específicas e concretas” (idem), como se pode ver nos títulos anteriores. Representação de eventos sociais A fim de categorizar os eventos sociais, e seguindo a gramática sistémico-funcional, apreciam-se como as acções sociais envolvem processos, participantes e circunstâncias. Os processos são, em geral, expressos por verbos; os participantes são os agentes ou alvos da acção enunciada nos processos; as circunstâncias indicam elementos adverbiais, como o tempo, o lugar, o motivo, entre outros. Nos tipos de processos, distinguem-se os materiais, verbais, mentais, relacionais e comportamentais. Os processos materiais transitivos têm como participantes chave os agentes (actores lógicos, participantes que produzem um dado efeito material) e os afectados pelas acções daqueles, de forma directa ou indirecta, posições que já identificámos. Estes processos constroem acontecimentos e actos. São, em regra, concretos, dizem respeito a mudanças no mundo material realizadas por sujeitos (pessoas singulares, colectivos, institucionais) que podem ser percebidas, mas podem também construir a experiência por fenómenos abstractos. Nos títulos deste conjunto de peças sobre sujeitos com Sida, o sujeito lógico Sida, a condição pela qual um dado organismo perde totalmente as suas defesas imunitárias, é sobretudo configurada como entidade associada a morte, como no título [16]. Correio da Manhã, 1991. Notícia não assinada. Fonte: Costa Ferreira, seropositivo e presidente do projecto “Amizade”. 19 Correio da Manhã, Outubro de 1985. Notícia não assinada, com fotografia de Rock Hudson 18

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Os processos verbais têm como participante aquele que fala, o falante. Entram aqui os títulos jornalísticos onde a voz de pessoas seropositivas se faz ouvir. Isso acontece em relativamente poucos casos, e mais nos anos mais recentes. A expressão da voz pode ser por citações directas, como no título [18], ou indirectas, como nos títulos [19, 20]. Pode também apresentar-se como diferentes modos de dizer (queixar, acusar), alguns mesmo não necessariamente verbais, que podemos subentender no título [21]. 18. «Vivos, apesar do vírus!»20 19. Infectado com HIV queixa-se à UE 21 20. Hemofílicos acusam Estado de má fé 22 21. Seropositivos franceses relutantes com ficheiro informático 23 Os processos mentais, que ocorrem no mundo interior, têm como participantes o experienciador (um sujeito concreto ou abstracto, singular ou plural) e o fenómeno que experiencia, seja uma acção (pensar, imaginar, acreditar, saber, reconhecer, identificar, gostar, etc.) ou um facto. São correntes a indicação de circunstâncias como o tempo, o lugar, a razão. Para a nossa análise, estes processos são relevantes enquanto indicadores de situações de poder, como também demos conta nos processos anteriores: quem pode agir sobre algo ou alguém; quem pode expressar-se como falante. Os processos mentais envolvem três categorias de experiências/poderes: 1) o poder da afeição, da vontade, como no título [22]; 2) o poder da cognição, de conhecer e saber, que no caso do título [23] carrega de negatividade um acto já de si moralmente condenável; 3) o poder da percepção, exercida pelos sentidos. Quando o experienciador denota entidades não conscientes estamos perante construções simbólicas, como nesta apresentação dos Estados Unidos da América no título [24]. 22. Doente de Sida em fase terminal quer eutanásia 24 23. Sabia que era seropositiva e teve relações com um menor25 Diário de Notícias, 2 de Dezembro de 1994. Tema de abertura, reportagem da enviada especial Leonor Figueiredo 21 Diário de Notícias, 23 de Junho de 1994. Notícia breve, não assinada 22 Correio da Manhã, 18 de Abril de 1995. Chamada de primeira página 23 Diário de Notícias, 20 de Outubro de 1988. Chamada de primeira página 24 Diário de Notícias, 1 de Maio de1997. Notícia breve, secção Lá Fora 25 Diário de Notícias, 16 de Julho de 1996. Notícia breve, secção Vidas (página assinada por Manuel Neto) 20

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24. Drama de «Magic» emociona a América 26 Os processos relacionais estabelecem relações entre conceitos, com o predicador (ser, estar, ter) a sinalizar essa relação. Podem ser atributivos ou identificativos. Os participantes dos processos atributivos são o portador e o atributo que lhe está associado, em orações não reversíveis. O título [25] apresenta um portador singular. 25. “Magic” Johnson tem o vírus da Sida 27 Nos processos identificativos, os participantes são o identificado e o identificador, de ordens diferentes de abstracção e relacionadas simbolicamente [26, 27]. A função destes processos é identificar uma entidade nos termos de outra. O predicador actua neste caso como sinal de igualdade e, por isso, estes processos são reversíveis: 26. Um toxicodependente também é gente 28 27. Rock Hudson: o gigante na hora da agonia 29 Os processos comportamentais constroem o comportamento humano e destacam sujeitos providos de comportamentos mistos, que se aproximam dos processos materiais [10, 23], mentais [28] e verbais [29]: 28. Grávidas com Sida preferiram abortar 30 29. Juiz com Sida ataca indiferença 31 Para além de representações congruentes de processos, também há representações não-congruentes, metafóricas. De reter a diferença entre a representação de processos como processos ou como entidades, o que ocorre nas nominalizações. A transformação de processos em entidades envolve a perda de certos elementos semânticos da oração, como o tempo verbal (passado, presente, futuro), a modalidade (é, pode ser, deveria ser, talvez seja…) e a exclusão de

Diário de Notícias, 9 de Novembro de 1991. Chamada de primeira página, para secção Desporto Diário de Notícias, 8 de Novembro de 1991. Notícia breve, não assinada, com fotografia do desportista em acção. 28 Diário de Notícias, 4 de Maio de 1999. Carta de leitor. 29 Diário de Notícias, 8 de Setembro de 1985. Chamada de primeira página, para Suplemento 30 Correio da Manhã, 25 de Outubro de 1988. Feature da Agência Lusa, assinado por Otília Leitão 31 Diário de Notícias 11 de Julho de, 2000. Reportagem de Fernanda Câncio, enviada especial à Conferência Mundial de Durban. Fotografia destaca o juiz a intervir. 26 27

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participantes. Como sublinha Fairclough (2003: 143), são um recurso para generalizações e abstracções a partir de séries de eventos, como se pode ver nos títulos [30, 31]: 30. A peste cor-de-rosa32 31. Estados Unidos: caça às bruxas33 Representações de tempo e de lugar A presença de circunstâncias como o tempo e o local da acção são também marcas a ter em conta nos títulos, pelo contexto que reforçam e isso num lugar mínimo de escrita. Uma vez que as construções sociais de espaço e tempo estão estreitamente interligadas e que, em qualquer ordem social, coexistem diferentes espaços (global, local) e tempos (passado, presente, futuro), vale a pena prestar atenção a traços linguísticos que contribuem para essas representações: o tempo verbal, a conjugação simples ou composta, os advérbios, conjunções e preposições com referências temporais e espaciais. Os verbos estão com frequência ausentes nos títulos por economia de espaço, nomeadamente os auxiliares (ser, estar, ter) quando conjugados na voz passiva. Como vimos, a ausência de verbos e sua substituição por nominalizações, contribui para apresentar processos como entidades das quais estão ausentes os seus agentes activos [4, 17]. Quando estão conjugados em título, os verbos surgem mais no modo indicativo (marca de certeza) e no tempo presente, padrão também destacado por Lima Soares. Actualizam assim a informação para o momento da sua leitura [8, 10, 19, 20, 22, 24, 25, 26, 29], exprimem a eminência do acontecimento ainda não ocorrido [15] ou formulam uma sentença intemporal [26]. Nos exemplos, o tempo presente ocorre em verbos associados a pessoas seropositivas em actos de reivindicação (põe em tribunal, queixa-se, acusam, quer, emociona, ataca). Contudo, encontram-se nestas peças sobre pessoas seropositivas muitos títulos com verbos conjugados no tempo passado. Indicam acções e acontecimentos já concluídos, a morte [3, 6, 7, 16] e a transmissão do vírus [9, 12, 14], ou acções por concluir [1, 11, 23]. O recurso ao “aspecto” imperfeito do verbo no passado, à apresentação de uma acção interrompida, deixa assim subentendida que essa interrupção se deve à intervenção de forças da ordem social, polícias ou tribunais, o que acontece em ambos os jornais, registo textual que também se Diário de Notícias, 6 de Setembro de 1983. Notícia breve, secção No Mundo Diário de Notícias, 17 de Outubro de 1985. Feature, assinado por Jéròme Marchand, Suplemento Saúde. Fotografia de Ryan White e cartoon de fantasma em perseguição de pessoas. 32 33

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verificou no tratamento jornalístico da toxicodependência, em peças que davam conta de apreensões de droga ou de condenações, provenientes das mesmas fontes de informação (Ponte, 2001). A referência a espaços geográficos é também condicionada nos títulos, por questões de economia. A referência explícita ao cá dentro está menos presente do que ao lá fora, muitas vezes marcado pela identidade do participante. A dimensão planetária marca mesmo o título [9], atribuindo um poder desmesurado àquele sujeito seropositivo. Estilos e identidades No registo jornalístico dominante da notícia breve, predominam títulos informativos, com tom assertivo, que apresenta informações como certezas e aparentemente desprovidos de juízos de valor. Há, contudo, títulos em que o grau de certeza não é absoluto, que se apresentam como probabilidade [32, 33]. O título [32] apresenta um rumor em torno de uma figura pública, e o título [33] a duração provável de uma pena judicial aplicada a quem escondeu a sua situação de portador do vírus. 32. Freddie Mercury pode ter Sida 34 33. Por ocultar seropositividade, pode ser preso por quatro anos 35 Advérbios de tempo, de intensidade e de afirmação enfatizam títulos conclusivos [34-38]. O título [34], um dos primeiros do Correio da Manhã, mostra ainda a indefinição do género da nova palavra. O título [38], de uma reportagem, faz suas as palavras de um doente, sem marcas de voz externa, a exprimir dessa forma o Nós inclusivo com o leitor. 34. O Sida até já serve para roubar 36 35. Sida já causou a morte de cinco diplomatas dos EUA 37 36. O actor Rock Hudson afinal sofre de Sida 38 37. Fúria de viver de Cyril Collard só parou com a morte aos 35 anos 39 38. Ainda não olhamos de frente para os problemas da Sida40 Correio da Manhã, 11 de Novembro de 1991. Breve, não assinada Diário de Notícias, 10 de Outubro de 1991. Secção Quotidianos, notícia breve, não assinada 36 Correio da Manhã, 1983 37 Diário de Notícias, 4 de Abril de 1987. Notícia desenvolvida, secção de Informação Geral. Não assinada 38 Diário de Notícias, 26 de Julho de 1985. Notícia breve, não assinada 39 Diário de Notícias, 14 de Janeiro de 1994. Notícia assinada por Elisabete França. Secção Artes 40 Diário de Notícias, 27 de Abril de 1989 34 35

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Em títulos que referem figuras públicas, a informação factual cede por vezes lugar à interpretação e avaliação do desempenho [5, 24], com subentendidos, neste caso a homossexualidade de Hudson [39], e mesmo construções pela inversão [40]: 39. Vida “dupla” não prejudicou talento 41 40. Variações surpreendeu-nos: morreu! 42 Títulos alegóricos, inspirados pelo discurso religioso, têm aqui também expressão em situações que envolvem crianças, no título [41], como o caso dos irmãos hemofílicos seropositivos de Fronteira [42, 43, 44]: 41. Sida: filhos do mal maior 43 42. Deus anda ocupado44 43. O calvário dos irmãos com Sida 45 44. Santificado seja o vosso caso 46 O recurso a pronomes indefinidos, nos títulos [45, 46], enfatiza situações de discriminação: 45. Ninguém apoia crianças com Sida47 46. Sida: até a morte os descrimina48 Análise de dados Com base nestas categorias, foram pesquisados os padrões dominantes nos títulos de cada jornal. Apreciam-se como se configuram os títulos sobre figuras públicas; crianças, hemofílicos e homossexuais; depois apreciam-se como aparecem sujeitos indiferenciados, anónimos, ainda que com traços de identidade.

Correio da Manhã, 1989. Notícia assinada por Vitoriano Rosa, com uma foto de Rock Hudson. Correio da Manhã, Junho de 1984. Chamada de primeira página. 43 Diário de Notícias, 24 de Janeiro de 1990. Suplemento Medicina e Ciência. Feature. Grande plano de criança negra a ser beijada por mulher branca 44 Diário de Notícias, 17 de Setembro de 1993. Artigo de opinião, assinado por Guilherme de Melo 45 Diário de Notícias, 18 de Setembro de 1993. Notícia assinada por António Veladas. Secção Sociedade. 46 Diário de Notícias, 25 de Fevereiro de 1994. Crítica do filme Filadélfia, assinada por Nuno Henrique Luz. 47 Correio da Manhã, 3 de Dezembro de 1988. Chamada de primeira página 48 Diário de Notícias, 12 de Março de 1993 41 42

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Diário de Notícias No Diário de Notícias, a distribuição pelos títulos das quatro categorias diferenciadas – figuras públicas, crianças, hemofílicos e homossexuais – associadas a pessoas com Sida mostrou as três primeiras com uma presença bastante equitativa (entre 40 e 50 títulos), cerca do dobro da presença em título da categoria homossexuais. A categoria dos sujeitos indiferenciados é a mais numerosa, com 136 títulos. As figuras públicas com Sida são quase todas figuras de fora do país, com duas excepções: o cantor António Variações, em 198449, e o líder do Projecto Amizade, Costa Ferreira. Aparecem como pessoas singulares e são na quase totalidade do sexo masculino, registando-se apenas dois títulos com colectivos (vedetas, artistas da Globo). São mais os títulos que identificam os notáveis pelo seu nome próprio do que os que os designam pela sua actividade ou associação a figuras de elite. As figuras públicas de fora do país nomeadas pelo Diário de Notícias são Rock Hudson (em 9 títulos), Magic Johnson (6 títulos), Lauro Corona, Arthur Ashe e Freddie Mercury (2 títulos cada), Brad Davis, Liberace, Emile Ardolino, Cyril Collard, Reza Abdoh (1 título cada). A cronologia vai de 1984 a 1995, mas é de 1991 a 1994 que é mais intensa, deixando de aparecer a partir de 1995. O principal tema destas peças é a morte. Vários títulos sobre figuras públicas são enfatizados pelo uso de advérbios ou relevo das circunstâncias causais. À especificação da causa da morte como Sida, que surge na maioria dos títulos, opõe-se uma única especificação da causa da infecção, a transfusão de sangue contaminado: Arthur Ashe contraiu Sida por transfusão 50 As duas figuras públicas com mais presença em títulos foram Rock Hudson e Magic Johnson. A história de Rock Hudson é uma história de suspense, com mostra o primeiro título marcado pelo advérbio (Doença de Rock Hudson é ainda desconhecida51). O caso desvenda-se com o anúncio do desfecho a breve prazo (Especialista dá a Rock Hudson apenas mais dois meses de

De referir que não há alusão directa a Sida nas peças sobre a morte de António Variações. Diário de Notícias, 1992. Notícia breve, com fotografia do ex-tenista. 51 Diário de Notícias, 25 de Julho de 1985. Secção Cultura e Espectáculos. Notícia, não assinada, com fotografia do actor acompanhado por Doris Day. 49 50

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vida52). Os títulos seguintes [5, 27] associam o momento da sua morte a agonia e a sua identidade à do papel simbólico de um seu desempenho no cinema, sem referirem a sua homossexualidade. Já títulos depois da sua morte não deixam de evocar implicitamente essa situação, quando um ano depois, se anuncia a publicação de uma biografia do actor, assinada por si e por Sara Davidson, com o título Rock Hudson – His Story, apresentada como o desvendar de segredos da sua vida íntima (Confissões de Rock Hudson em livro53) e passados 10 anos se recorda ainda a sua morte (As últimas de Rock Hudson54). Diferente foi o tratamento em título do caso Magic Johnson. Para Allan (2002: 138), a 7 de Novembro de 1991, a declaração do jogador de basquetebol norte-americano de que era seropositivo terá constituído o factor singular mais significativo que afectou a consciência e preocupação pública com a Sida. Nessa declaração, Magic sustentou ter sido contagiado por relações sexuais com mulheres. Os primeiros títulos do Diário de Notícias (“Magic” Jonhson tem o vírus da Sida; Magic Johnson deixa basquete, Drama de “Magic” emociona a América) sucedem-se em cadeia, num curto prazo de tempo, e ainda nesse ano destaca-se a sua campanha em prol da atenção pública a este quadro clínico, interpelando directamente a figura máxima do país: “Magic Johnson” contaminado pelo vírus promete ser baluarte na luta contra a Sida55 Campanha de Johnson já começou56 Johnson apela a Bush no combate à Sida57 Campanha Magic Johnson requer maior ajuda a Bush58 Assumindo a condição de quem vai viver com o vírus, Magic Johnson é a única figura pública que encontramos em título a protagonizar comportamentos de liderança e a fazer uso da sua palavra marcando-a pelo compromisso público (promete) e pela interpelação (apela, requer). A clareza e força destas posições, em títulos em 1991 e 1992, não estimulam que, ao contrário do que aconteceu com Hudson, continue a surgir neste jornal. A condição de “viver com a Sida”, que esta figura pública assume, pode não ter tido o mesmo valor Diário de Notícias, 2 de Agosto de 1985. Secção Cultura e Espectáculos. Notícia, não assinada. Diário de Notícias, 25 de Julho de 1985. Secção Cultura e Espectáculos. Notícia, não assinada. 54 Diário de Notícias, 9 de Maio de 1995. Secção Programação. Notícia sobre televisão, assinada por António Branco. 55 Diário de Notícias, 9 de Novembro de 1991. Notícia longa, não assinada. Título de duas linhas, a 6 colunas. 56 Diário de Notícias, Novembro de 1991. Chamada de primeira página. 57 Diário de Notícias, 15 de Janeiro de 1992. Secção Desporto. Notícia breve, não assinada. 58 Diário de Notícias, 15 de Janeiro de 1992. Secção Desporto. Notícia breve, não assinada. Foto do desportista com o Presidente Bush. 52 53

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noticioso que o revelar de segredos de uma figura pública que escondera a sua orientação sexual. Em muitos dos títulos no Diário de Notícias que se reportam a crianças com Sida, ao contrário do que acontece com os restantes grupos diferenciados, aquelas não estão incluídas, ou seja, não são referidas expressamente no título. Para isto concorre a ênfase simbólica da linguagem usada nesses títulos, de que demos conta, recorrendo nomeadamente ao discurso religioso. Essa ênfase simbólica também ocorre no título que apresenta a organização não-governamental orientada para este grupo: Crianças com Sida ganham um “sol”59. São formas de escritas onde a morte e a contaminação são sublinhadas pela sua injustiça, pelo sacrifício, pela grande narrativa do “massacre dos inocentes”: filhos do mal maior; Deus anda ocupado; O calvário dos irmãos com Sida; Santificado seja o vosso caso. Os temas principais das peças onde crianças são protagonistas são o medo do contágio e a discriminação, mais do que a morte, que se verificava nas figuras públicas. O padrão dominante de representação é o relacional, que articula sujeitos singulares (bebé, adolescente, criança) e a forma como foram infectados ou a discriminação em que vivem. O contágio na possível transmissão do vírus no momento do parto ou pelo leite materno, em títulos de 1985, 1987, 1990 e 1992, desaparece nos anos seguintes, por conhecimento e maior controlo da situação. Hospitais e escolas surgem como espaços privilegiados de contágio e o seu pavor sustenta a discriminação, exercida sobretudo por pais de outras crianças. A batalha pela integração escolar de um adolescente seropositivo, dos Estados Unidos, é referenciada em 1986 (Adolescente com Sida autorizado a voltar à escola 60) e no momento da sua morte, em 1990, onde é identificado por nome próprio: Funeral de Ryan White homenageou valor da coragem61 Em Portugal, a situação de discriminação mais conhecida ocorreu com dois irmãos hemofílicos de Fronteira, também impedidos de frequentar a escola local. Foi traduzida em título de uma crónica pela crítica à ausência de comiseração (Deus anda ocupado) e descrita Diário de Notícias, 23 de Abril de 1993. Secção Sociedade. Feature assinado por Leonor Figueiredo, sobre a fundação da associação Sol. 60 Diário de Notícias, 27 de Fevereiro de 1986. Secção No Mundo (Sociedade). Notícia breve, não assinada. Fotografia do adolescente, acompanhado. 61 Diário de Notícias, 13 de Abril de 1990. Secção Sociedade. Notícia, não assinada. Fotografia panorâmica do funeral. 59

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como calvário. A representação dos mais novos como as maiores vítimas desta patologia encontra-se aqui patente, tal como também Lupton (1994) deu conta na sua análise sobre a imprensa australiana, num tratamento que contrasta com o de outros grupos afectados, nomeadamente homossexuais. Várias histórias de contágio de crianças, provocadas por adultos, aparecem em situações de excesso, em pequenas notícias de fait-divers, que acentuam as figuras do desvio, sexual e familiar: o homossexual, a mãe e o pai “desnaturados”: Raptou e sodomizou criança sendo portador da Sida 62 Seropositiva mordeu a filha63 Prisão perpétua para um pai que contaminou um filho com Sida 64 É nas peças sobre crianças que se encontra ainda a maioria dos títulos genéricos, que referem situações de informação, diagnóstico e prevenção para com essa população: Contágio do vírus da Sida não se faz na escola 65 Sida infantil em Portugal ainda é pouco relevante66 Primeira protease para crianças com vírus da Sida 67 Educadores e o bê-á-bá da Sida 68 Nas referências a hemofílicos com Sida, o grande enquadramento é a incúria do Estado, a desatenção e descuido das instâncias públicas de saúde dos vários países ao risco corrido pelos hemofílicos, obrigados a frequentes transfusões de sangue. Associada a esse tema, temos a construção deste “grupo de risco” como combativo, exigente, afirmativo, interpelador e, sobretudo, com uma actividade legítima, reconhecida pelo jornal, como participante activo desta problemática. A revelação de hemofílicos infectados com o vírus HIV evidencia o diferendo temporal do problema em Portugal relativamente a outros países. A cronologia mostra que, Diário de Notícias, 20 de Janeiro de 1992. Secção Miramundo (Sociedade). Notícia breve, não assinada. Diário de Notícias de 1993. Secção Sociedade, notícia breve, não assinada. 64 Diário de Notícias, 10 de Janeiro de 1999. Secção Sociedade, notícia breve, não assinada. 65 Diário de Notícias, 10 de Outubro de 1985. Suplemento Saúde. Feature de Agência (França), não assinado 66 Diário de Notícias, 10 de Dezembro de 1997. Suplemento DN Especial sobre SIDA. Artigo assinado por Leonor Figueiredo. 67 Diário de Notícias, 8 de Janeiro de 1997. Notícia breve, não assinada. 68 Diário de Notícias, 28 de Fevereiro de 2000. Secção Educação. Notícia de Sílvia Costa, com foto de crianças a brincar ao ar livre (caras desfocadas). 62 63

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no Diário de Notícias, até 1992, o espaço de onde provinham as notícias era sobretudo o lá fora (França, Alemanha, Canadá, Espanha, Japão). Uma notícia de 1987 refere um caso singular no país, ainda como da ordem da probabilidade: (Hemofílico português internado terá Sida69), enquanto títulos referentes a outros países não hesitavam em recorrer ao modo indicativo, sinal da certeza. Esses títulos acentuam a batalha jurídica contra o Estado, travada por associações de hemofílicos, nos vários países, exigindo indemnizações e compensações. Os processos de representação são verbais e comportamentais, expressos no indicativo (simples ou contínuo) e futuro, deixando ler situações ainda sem desfecho: hemofílicos contaminados estão a pedir…; Espanha vai pagar…; hemofílicos contestam... Enquanto em 1991 já outros países entravam na evocação simbólica desta situação, particularizando estas mortes como de “vítimas inocentes” (França lembra vítimas inocentes da Sida70), é um ano mais tarde, em 1992, que a luta dos hemofílicos portugueses contra a falta de segurança do sangue atinge o pico: uma luta sustentada pela Associação Portuguesa de Hemofílicos, que se torna parceiro incontornável na discussão sobre as responsabilidades do Estado nesta matéria. Ao contrário do que se passa com outros grupos portadores de Sida, onde o sujeito individual tem maior destaque que o sujeito colectivo no tratamento jornalístico, nesta categoria o colectivo organizado domina sobre o individual. A representação desse fenómeno e desse protagonismo não deixa dúvidas nos verbos utilizados, referenciando acções verbais e comportamentais: os hemofílicos (no plural!) fazem ponto da situação, apresentam relatórios, põem o Estado em Tribunal, reclamam, denunciam, contestam… Apesar desta combatividade, os títulos não deixam de evidenciar que as exigências tiveram como contraponto respostas estatais da ordem do futuro, do provável, do precário, que vão pontuar títulos até 1996, 10 anos depois da referência ao possível primeiro caso. Hemofílicos com Sida vão ter fundo de apoio 71 Estado pode indemnizar hemofílicos 72 Indemnizações talvez em 94 73 Pensão provisória para hemofílicos 74 Diário de Notícias, 17 de Maio de 1987. Secção Informação Geral. Notícia breve, não assinada. Diário de Notícias, 16 de Setembro de 1991. Secção Sociedade, notícia breve e, não assinada 71 Diário de Notícias, 25 de Junho de 1992. Chamada de primeira página. 72 Diário de Notícias, 4 de Julho de 1993. Secção Sociedade, notícia breve, não assinada. 73 Diário de Notícias, 15 de Outubro de 1993. Secção Sociedade. Notícia assinada por Manuela Alves. Título a 5 colunas, fotografia de Lurdes Fonseca. 69 70

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Hemofílicos ainda por indemnizar 75 Ministério paga indemnizações às famílias sem exigir perdão 76 A referência em título à categoria homossexuais com Sida é relativamente escassa no Diário de Notícias: cerca de metade dos títulos que tratam cada uma das restantes entidades diferenciadas (crianças, hemofílicos, figuras públicas). O primeiro título que refere a nova patologia designa-a por Cancro, a mais temida de todas as doenças na altura, e restringe-a aos homossexuais (Cancro nos homossexuais77). No ano seguinte, em 1983, a tónica mantém-se, com dois títulos relacionais identificativos: [Sida é] A doença dos homossexuais78/A peste cor-de-rosa79 Em 1985, num momento em que se expandia a síndroma, escrevia-se ainda: Maior número de vítimas de Sida entre homossexuais masculinos80. Em 1986, um dos títulos recorria a dados estatísticos para assegurar que Metade da população do Rio tem medo dos homossexuais81. Os meados dos anos 80 no Diário de Notícias, à semelhança do que verificou na imprensa de referência de outros países, marcam o atenuar do olhar homofóbico, particularmente relevante num tempo em que escasseava a informação sobre a doença. Isso não significa, contudo, que tenham desaparecido as referências a grupos sexualmente desviantes como os mais atingidos. Assim se garantia num título de 1992, a credibilidade da informação sustentada por números e relações estatísticas: Sida já matou 550 pessoas em Portugal e atinge mais homossexuais e bissexuais82. Outro título do Diário de Notícias, de 1991, vai no mesmo sentido da associação da síndroma à homossexualidade e ao perigo de contágio: Pode ser perigoso agredir homossexual83. É um título da ordem do provável, do risco, que coloca o jornal como cúmplice com um leitor construído como um de nós, os heterossexuais. Não por acaso este tipo de títulos surgem em Diário de Notícias, 7 de Abril de 1995. Secção Sociedade, notícia breve, não assinada. Diário de Notícias, 16 de Abril de 1996. Notícia não assinada, título a 4 colunas. 76 Diário de Notícias, 11 de Março de 1997. Última página, notícia breve, não assinada. 77 Diário de Notícias, 5 de Abril de 1982 78 Diário de Notícias, 24 de Maio de 1983. Página Sete. Feature de Lawrence Altman. Título a 5 colunas, fotografia de travestis em actuação musical. 79 Diário de Notícias, 6 de Setembro de 1983. Secção No Mundo. Notícia breve, não assinada 80 Diário de Notícias, 1 de Setembro de 1985 81 Diário de Notícias, 9 de Dezembro de 1986 82 Diário de Notícias, 8 de Agosto de 1992. Secção Sociedade. Notícia, não assinada. Título a 4 colunas, fotografia de enfermeira com máscara, com uma criança seropositiva ao colo. 83 Diário de Notícias, 24 de Março de 1991. Secção Quotidianos. Notícia breve, tom irónico, não assinada. 74 75

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secções ligeiras do jornal, espaços do incrível e das histórias intemporais, como as secções Miramundo e Quotidianos. Apresentando nos primeiros anos os homossexuais masculinos como o grupo privilegiado para a disseminação da Sida, com o fizeram os media de outros países, também o Diário de Notícias contribuiu para a desatenção colectiva ao fenómeno, colocando-o nas margens da vida “normal”. Nesses títulos está ainda patente a dificuldade das suas próprias organizações suscitarem da parte dos media atenção suficiente. Surgidas nos finais dos anos 80, estão praticamente ausentes nos títulos do jornal que referem organizações nãogovernamentais de intervenção neste campo, fontes de informação que terão relevância na década de 90. Associado à categoria orientação homossexual, o ostracismo foi o grande tema destes primeiros anos, suavemente beliscado nos anos 90, com a muito discreta afirmação de movimentos organizados e com os primeiros seropositivos a darem a cara em reportagens e entrevistas. Com anos de atraso em relação à visibilidade desses movimentos sociais e dos seus líderes em países como o Brasil e os Estados Unidos, de que dava conta Cristiana Bastos (2002) e a que se referem alguns títulos do Diário de Notícias de 1986 e 1987: Governo brasileiro ouve líderes “gay”84 Desfile “gay” na capital americana85 Pessoas anónimas com Sida constituem a categoria com mais numeroso de referências a seropositivos, presentes em cerca de 140 títulos. Em quase metade, estas pessoas anónimas são apresentadas como agentes de acções, enquanto nos restantes são apresentados como afectados por acções que lhes são dirigidas. A distinção é realizada pelo recurso à voz activa e a voz da passiva. Estas pessoas anónimas aparecem na maioria das vezes com atributos de identidade. Predomina a representação do seropositivo anónimo indiferenciado como pessoa singular, activa ou passiva, face à sua presença como parte de um colectivo. Referências a seropositivos como um agregado estão mais associadas à intervenção de organizações não-governamentais especialmente orientadas para esta população: Doentes com Sida contam como é a ajuda que o Abraço lhes dará 86 84 85

Diário de Notícias, 18 de Agosto de 1986. Secção Informação Geral. Notícia breve, não assinada. Diário de Notícias, 12 de Outubro de 1987. Última Página. Notícia breve, não assinada. 51

Abraço apela aos doentes87 Seropositivos criticam a actuação da Abraço88 A distinção por género evidencia também que, enquanto pessoas singulares, a maioria dos seropositivos presentes nos títulos pertence ao sexo masculino. Nas peças cujos títulos não apresentavam sinais de identificação, 49 referem situações protagonizadas por adultos do sexo masculino, para 16 protagonizadas por adultos do sexo feminino. Estes títulos que apresentam pessoas singulares anónimas como categoria têm como grandes temas, por um lado, o contágio, o crime; por outro a batalha contra a discriminação e afirmação de direitos. O tema mais frequente é o contágio. O conhecimento de se ter sido infectado associase ao desespero e à punição do possível “culpado”. O contágio surge associado a actos primários cometidos por pessoas seropositivas, como violar, sodomizar, morder (polícia, filha), e a termos como mordedura, mordidela. A contaminação por pessoas associadas a actividades marginais (prostitutas, presos, drogados, toxicómanos com Sida) é repetidamente referida. Prisões, hospitais, consultórios de dentista, seringas e bisturis são espaços e instrumentos mais presentes nestes títulos sobre o contágio, nos primeiros anos. Nos títulos que colocam pessoas seropositivas como afectadas pela acção de alguém, o agente é a instituição reguladora, como a Polícia e os Tribunais, associada à condenação, pena de prisão ou expulsão do país. É de referir nestes títulos a presença frequente das circunstâncias causais, a explicitação do motivo da acção/punição: Soviética na prisão por causa da Sida 89 Expulso por contrair Sida 90 Cidadão estrangeiro na China expulso por ser seropositivo91 Equador expulsa prostituta com Sida que infectou pelo menos 200 pessoas 92 Diário de Notícias, 1992. Notícia assinada por Leonor Figueiredo. Título a 3 colunas, fotografia de quarto de hospital. 87 Diário de Notícias, 18 de Março de 1998. Notícia não assinada. Fonte: Abraço e a agência Lusa 88 Diário de Notícias, 28 de Janeiro de 1999. Notícia assinada por Lília Bernardes, correspondente do DN no Funchal. Fontes: Margarida Martins, presidente da Abraço, e famílias apoiadas pela associação 89 Diário de Notícias, 26 de Dezembro de 1988. Secção Miramundo. Notícia breve, não assinada. Título a 2 colunas. 90 Diário de Notícias, 30 de Setembro de 1989. Secção Miramundo. Notícia breve, não assinada. Título a 2 colunas. 91 Diário de Notícias, 10 de Abril de 1991. Secção Quotidianos. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas. 92 Diário de Notícias, 13 de Julho de 1992. Secção Sociedade. Notícia breve, não assinada. 86

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Condenado por transmitir vírus 93 Seropositivo cipriota condenado por contaminar pessoa 94 Portador de HIV julgado por imprudência 95 Prisão perpétua para um pai que contaminou o filho com Sida O poder de contagiar por parte de pessoas seropositivas é apresentado sem limites, por sobrelexicalização, em títulos onde verbos e atributos se repetem. O contágio é sobretudo por via sexual, por vezes em situações da máxima inversão de sentido, em histórias de fait-divers: Violada estava contaminada com Sida 96 Seropositivo canadiano condenado a manter a castidade 97 Equador expulsa prostituta com Sida que infectou pelo menos 200 pessoas Espanhol seropositivo lança pânico entre mulheres 98 Sexo inseguro leva seropositivo à cadeia 99 Seropositivo espalha pânico na Finlândia 100 Prostituta lança pânico social em Itália 101 É de novo escassa a presença de mulheres em título no Diário de Notícias e incide sobretudo em pessoas singulares. Enquanto grupo alvo de discriminação, surgem num título de 1992: Mulheres com Sida são mortas102. Um título de 1995 evidencia a dimensão da propagação da síndroma neste sexo: Sida infecta duas mulheres em cada minuto103. Associado ao tema do contágio, o padrão seguinte em frequência destaca desde as primeiras notícias o crime como grande tema, (Ladrão de bancos ameaça com Sida104), e a Sida

Diário de Notícias, 8 de Outubro de 1996. Secção Sociedade. Notícia breve, não assinada Diário de Notícias, 1 de Agosto de 1997. Secção Sociedade. Notícia breve, não assinada 95 Diário de Notícias, 16 de Abril de 1998. Secção Sociedade. Notícia breve, não assinada 96 Diário de Notícias, 4 de Outubro de 1988. Secção Miramundo. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas 97 Diário de Notícias, 19 de Abril de 1991. Secção Quotidianos. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas. 98 Diário de Notícias, 3 de Janeiro de 1992. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas 99 Diário de Notícias, 11 de Julho de 1997. Secção Sociedade. Notícia breve, não assinada. 100 Diário de Notícias, 19 de Janeiro de 1997. Secção Sociedade. Notícia do correspondente Hélder Fernandes. Título a 3 colunas. 101 Diário de Notícias, 20 de Abril de 1998. Secção Sociedade. Notícia da correspondente Manuela Paixão. Título a 2 colunas. 102 Diário de Notícias, 30 de Julho de 1992. Secção Quotidianos. Notícia breve, não assinada. 103 Diário de Notícias, 4 de Abril de 1995. Chamada de primeira página, zona superior. 104 Diário de Notícias, 3 de Agosto de 1983. Secção Informação geral, notícia breve, não assinada 93 94

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como arma. Este padrão recorre não só à referência a actividades interditas, como consumo de drogas, mas também a actos violentos: Doente com Sida acusado de violação e homicídio105 Ainda que permaneçam em título até 1998, temas como o contágio e o crime perdem relevância a partir de 1992 no Diário de Notícias, cedendo visibilidade à batalha contra a discriminação e à luta por direitos, quase sem expressão até aí. A partir de 1994, ano da realização da Cimeira Mundial da Sida, irrompem títulos que configuram pessoas seropositivas com voz e com vontade, a falar do seu quotidiano, com determinação para lutar contra a discriminação. Alguns destes títulos já foram apresentados, mas a sua listagem neste lugar sublinha como se tornou um pouco mais visível no Diário de Notícias uma vivência cívica até então praticamente marginalizada, em prol de histórias singulares de crime e de morte. Viver de novo com o vírus da morte106 Conhecer a doença foi um estímulo para encarar a vida107 Infectado com HIV queixa-se à UE 108 Sida provoca milhares de pedidos de reparação 109 Seropositivos emocionam Cimeira da Sida 110 “Vivos, apesar do vírus” “Hoje sinto-me bem, amanhã posso estar a morrer” 111 A casa dos desejos impossíveis 112 Seropositivo corre maratona 113 Doente com Sida em fase terminal quer eutanásia 114 Uma vítima de diagnóstico errado avança com processo 115 Seropositivos solicitam parecer à Provedoria 116 Diário de Notícias, 22 de Julho de 1991. Secção Quotidianos. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas. Diário de Notícias, 30 de Outubro de 1992. Reportagem de Leonor Figueiredo, com fotografias 107 Diário de Notícias. Reportagem de Leonor Figueiredo, com fotografias 108 Diário de Notícias, 23 de Junho de 1994. Notícia breve, não assinada. Secção sociedade. 109 Diário de Notícias, 17 de Fevereiro de 1994. Secção Sociedade. Notícia breve, não assinada. 110 Diário de Notícias, 2 de Dezembro de 1994. Chamada de primeira página, que remete para uma reportagem da enviada do jornal a Paris, Leonor Figueiredo 111 Diário de Notícias, 1 de Dezembro de 1994. Tema de Abertura. Reportagem de Leonor Figueiredo. Título a 4 colunas. Fotografias de seropositivo, em casa, a tocar piano e a ler. 112 Notícias Magazine, 26 de Novembro de 1995. Grande Reportagem de Carla Baptista, com fotografias 113 Diário de Notícias, 2 de Novembro de 1996. Última página. Notícia breve, não assinada. 114 Diário de Notícias, 10 de Maio de 1997. Notícia breve, não assinada. Secção Sociedade 115 Diário de Notícias, 29 de Setembro de 1998. Secção Sociedade. Notícia breve, não assinada 105 106

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Decidir o futuro num espaço digno 117 Juiz com Sida ataca indiferença Seropositiva posta fora de casa ganha causa em tribunal 118 Cinco dias no país da Sida 119 Para além do recurso ao presente do indicativo, à diversidade de processos de representação de acções (verbais, comportamentais, mentais, materiais) e ao papel de seropositivos como pessoas activas, chamamos a atenção para o facto de estes títulos corresponderem a peças jornalísticas que rompem com os modelos dominantes deste corpus, a notícia breve, proveniente da agência noticiosa ou da fonte policial ou judiciária, ou o texto de fait-divers. Pelo contrário, vários destes títulos são títulos de trabalhos jornalísticos assinados, realizados por iniciativa de jornalistas que acompanhavam esta temática, como Leonor Figueiredo, em trabalhos de reportagem e entrevista. São apenas nove as peças de opinião que referem a situação de “viver com Sida” no conjunto das mais de 100 peças de opinião no Diário de Notícias (editorial, coluna, carta de leitor, cartoon) sobre Sida. Quando o fazem, é ainda em regra de maneira periférica. Esta quase exclusão das vivências das pessoas seropositivas é significativa do pouco interesse que esta problemática suscitou na direcção do jornal: não há, em 20 anos, um único editorial do corpo principal do jornal que refira essa situação da pessoa que vive com Sida. Na sua maioria, são textos sobretudo narrativos, crónicas e cartas de leitor, onde a condição de seropositivo é referida marginalmente. O contágio e a discriminação e ostracismo, que lhe estão associados, são os grandes temas presentes, também aqui. É o contágio da doença que coloca a Diana Andringa a questão da legitimidade do exercício do segredo médico (A Peste). Em 1988, a doença ainda se lhe afigurava como “irreal”, “tão irreal como a peste, um pouco mais do que a lepra (…)”. Afirma que, ao lembrar-se de A Peste, percebe “de repente porque nos incomodam tanto eles, os médicos, com a Sida, e o seu ridículo Diário de Notícias, 9 de Fevereiro de 1999. Secção Sociedade. Notícia breve, não assinada Diário de Notícias, 14 de Janeiro de 1999. Reportagem Casal Ventoso. Reportagem de Leonor Figueiredo, duas páginas, título a 5 colunas. Fotografias do interior do Centro de Acolhimento, com pessoas em grupo. 118 Diário de Notícias, 2000. Secção Sociedade. Notícia breve, não assinada 119 Diário de Notícias, 2000. Notícias Magazine. Grande reportagem, de Fernanda Câncio (12 páginas), com fotografias. 116 117

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número de atingidos, tão inferior ao da malária, ao das crianças do Terceiro Mundo que todos os dias morrem vítimas de doenças comuns (…). E o incómodo da autora vem da frequência com que referem o seu insucesso médico sobre esta doença. Temos assim, em 1988, da parte de uma jornalista socialmente empenhada, um olhar (ainda) sobre a Sida como doença de um círculo fechado, que os preocupa, a eles, médicos, uma doença ocidental, minoritária, irreal. O caso dos dois irmãos hemofílicos de Fronteira suscitou uma crónica do jornalista Guilherme de Melo, em 1993. Deus anda ocupado é o título da peça violenta contra a discriminação e pela defesa do segredo médico, justificada pela distinção entre ser portador do vírus e este estar em evolução activa. Denuncia ideias primárias sobre o contágio, que “aqueles pais preferem continuar escravizados ao mais perverso e cruel dos medos: o medo irracional”. Apela, no final, à intervenção cívica, numa primeira pessoa plural: “…Deus tem andado muito ocupado (…), cabe-nos a nós, humanos, substitui-lo. Mesmo que deficientemente.” Anunciando uma grande reportagem nesse número sobre doentes seropositivos, o tema do editorial de Isabel Stilwell, na Notícias Magazine, em 1995, Sida: morrer por amor120 recusa a punição moral sobre as pessoas com Sida e termina também com uma interpelação contra o ostracismo: “Mesmo que pense que, felizmente, a doença não tem nada a ver consigo, não deixe que quem tem Sida sinta (…) que os muros da casa onde vive o protegem de um mundo que os deseja, acima de tudo, crucificar”. Dois anos depois, é também num Suplemento do Diário de Notícias, o DNA, que é apresentada em editorial uma das matérias que sustenta o tema central desse número, a segurança: “No coração do DNA estão homens e mulheres que lutam todos os dias pela sobrevivência. São seropositivos (…) Uma falta de segurança muito mais grave que todas as outras, que toca naquilo que é, para a maioria dos homens, o bem mais precioso: o amor.”

Correio da Manhã No Correio da Manhã, a distribuição pelos títulos das quatro categorias diferenciadas destaca a relevância das figuras públicas, em 84 títulos, seguindo-se os homossexuais (58) e, a maior distância, crianças e hemofílicos (entre 15 e 20 títulos). Por comparação com o Diário de

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Notícias Magazine, 26 de Novembro de 1995. 56

Notícias, observa-se assim uma maior visibilidade da categoria orientação homossexual. A categoria pessoas anónimas é também aqui a mais numerosa, com 154 títulos. Não admira que, como jornal popular, o Correio da Manhã tenha dado especial atenção a figuras públicas com Sida do mundo do espectáculo em situações de tragédia pessoal. Nas peças sobre figuras públicas seropositivas, refere 25 sujeitos pelo seus nomes próprios, a esmagadora maioria do sexo masculino e vários com repetição. Três portugueses são referidos: António Variações (em 3 títulos), Costa Ferreira, líder do “Projecto Amizade” (2), e João Carneiro. A maioria das figuras públicas provém dos Estados Unidos e Brasil, e são sobretudo do sexo masculino. Rock Hudson (9 títulos), Liberace, Kurt Raab, Lauro Corona (5), Anthony Perkins (2), Freddie Mercury (7)121, Elton John, Nureyev (3), Sandra Bréa e Greg Lougans são figuras do mundo das artes cuja morte é anunciada. A declaração como seropositivo por parte de Magic Johnson escapa ao jornal, mas aparece em três títulos, mais tarde. Entre as 37 figuras públicas com identidade própria nos dois jornais, apenas seis foram comuns: António Variações, Rock Hudson, Liberace, Lauro Corona, Freddie Mercury e Magic Johnson. Para sujeitos com nomes supostamente menos conhecidos dos seus leitores, o jornal acentua o seu estatuto antecedendo-o pela referência à área profissional: o cineasta Tony Richardson; o actor Denholm Elliot (2); a actriz Cláudia Magno; o actor Caíque Ferreira; o realizador Derek Jarman; o realizador Marlon Riggs; o coreógrafo Billy Wilson; o actor Martin Smith; o actor Tom Villard; o rapper Eazy-E. A referência apenas à actividade profissional do falecido/a é também frequente, destacando a ideia de que “muitos artistas morrem com Sida”, ou de que foram vítimas da Sida, atributos insistentemente presentes. Assim, lemos em título a notícia da morte de personalidades e actores designadas por A primeira vedeta [vítima da Sida], Encenador brasileiro, Escritor e actor, Mais um da “Dinastia”, Actor de “Bonanza”, Campeão do mundo de boxe, Estrela da TV americana, Protagonista do “Expresso da Meia-Noite”, Maestro da Orquestra de Sydney, Actor dos “Marretas”, cantor de teatro, Leroy da série “Fama, Actor da Broadway, Uma estrela do ballet internacional, Actor de “Dallas”, Dramaturgo, Bailarino portuense, Argumentista, Actor de musicais, Fundador da editora Wax Trax, Actriz brasileira…. Para além destas peças, sobre a sua morte e evocação, o jornal deu grande destaque à participação de figuras públicas num concerto de homenagem, em Londres, tendo um enviado especial coberto esse evento. 121

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Tal como acontece no Diário de Notícias, também a cronologia destes títulos vai de 1984 a 1995, com especial incidência entre 1991 e 1995, ainda que haja nos dois jornais poucas figuras coincidentes. Uma vez que praticamente desaparece depois de 1995 e estando 1991 associado à revelação de Magic Johnson e à morte de Freddy Mercury, é como se, na sequência destes dois casos que atingiram figuras públicas do mundo do desporto e da música, se tivesse desencadeado a história dos famosos vítimas de Sida, e esta se tivesse esgotado em 1995. Mesmo que tenham continuado a falecer pessoas do mundo do espectáculo, essas mortes tornaram-se mais discretas, menos expostas nos media. A excepção surge no Correio da Manhã, em 2000 e refere, contra a corrente, uma morte feminina: Actriz brasileira morre de Sida. Apenas no Correio da Manhã aparecem figuras femininas associadas à Sida, todas actrizes. A actividade sexual das figuras públicas é também aqui mais enfatizada, nomeadamente no tratamento do caso Rock Hudson. A sua doença, conotada com homossexualidade masculina, suscitou títulos homofóbicos: Rock Hudson vai revelar segredos sobre a sua homossexualidade em Hollywood 122 O amante de Rock Hudson123 Vida “dupla” não prejudicou talento 124 Pavor da Sida põe Hollywood com careca à mostra 125 A exorbitância e o desvio sexual estão também presentes em títulos: Actriz com Sida seduziu 40 políticos126 Mulher de Elliot sabia que o actor era bissexual127 Nureyev e Mercury tinham ligação secreta128

Correio da Manhã, Setembro de 1985. Notícia não assinada, com fotografia Correio da Manhã, Novembro de 1985. Notícia breve, não assinada, com fotografia 124 Correio da Manhã, Setembro de 1985. Feature, com quatro fotografias. Revista Correio de Domingo 125 Correio da Manhã, Dezembro de 1991. Notícia breve, não assinada 126 Correio da Manhã, 23 de Junho de 1995. Notícia, não assinada. Fotografias dos dois artistas. À largura da página. 127 Correio da Manhã, 9 de Outubro de 1992. Notícia não assinada. Título a 4 colunas, fotografia do casal 128 Correio da Manhã, 23 de Junho de 1995. Notícia, não assinada. Fotografias dos dois artistas. À largura da página. 122 123

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A mais extrema construção do outro será o título que anuncia a morte de António Variações: Variações surpreendeu-nos: morreu! Pela desatenção ao caso Magic Johnson aquando da sua declaração de seropositivo, contraposta a uma intensa cobertura das mortes de estrelas conotadas com orientação homossexual, já conhecida ou então revelada, pode-se considerar que o grande tema desta categoria é o da vulnerabilidade dos artistas homossexuais à Sida. Também mais presente do que no Diário de Notícias, a caracterização da orientação homossexual carrega-lhe as cores. A apresentação intensifica e prolonga no tempo o uso do termo gay, jogando com ele em contextos de ironia (Este mundo gay…). Mais forte do que os temas da morte e do medo do contágio da Sida, referidos muitas vezes apenas no corpo da notícia, será a própria afirmação da comunidade gay, homossexual, carregada do poder de fazer coisas e de as protagonizar, referidos em títulos que enfatizam o número dos envolvidos nas acções, as dinâmica de intervenção, os direitos e territórios crescentes de afirmação. Os espaços são sobretudo os lá de fora, não cá dentro: “Gays” aos milhares nas cidades dos EUA129 Frente gay contra a Sida130 A Sida no Festival Homossexual de S. Francisco131 A Feira dos “Gays” em São Francisco132 200 000 homossexuais junto à Casa Branca133 Homossexuais reunidos num Congresso em Viena134 “Pravda” para homossexuais135 Ministro polaco demitido por criticar homossexuais136 Gays londrinos param o trânsito137 Correio da Manhã, 1983 Correio da Manhã, 31 de Julho de 1985. Notícia não assinada, título a 2 colunas. 131 Correio da Manhã, 8 de Agosto de 1985. Notícia não assinada 132 Correio da Manhã, 1986. Suplemento. Notícia não assinada, com fotografias de corpos masculinos semi-nus. 133 Correio da Manhã, Outubro de 1987. Notícia breve, não assinada. Fotografia dos manifestantes 134 Correio da Manhã, 19 de Julho de 1989. Notícia, não assinada. Título a duas colunas. Fotografia de dirigentes (homens e mulheres). 135 Correio da Manhã, 2 de Agosto de 1990. Notícia não assinada, título a 2 colunas. Fotografia de homem a mostrar jornal 136 Correio da Manhã, 12 de Maio de 1991. Notícia não assinada, título a 3 colunas 137 Correio da Manhã, Janeiro de 1994. Notícia breve, não assinada, com foto dos manifestantes 129 130

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Cidade homossexual na Tailândia138 Esta presença relativamente marcada da dinâmica da comunidade homossexual vai até meados dos anos 90, perdendo depois relevância. Coexiste com títulos que sublinham a ameaça sobre o seu destino, como o título (da ordem do provável, note-se) de 1985, que apontava: 50% dos homossexuais poderão morrer de Sida nos próximos 5 anos 139 ou Cancro e SIDA são “pragas” entre as minorias nos EUA140, como a capacidade de disseminar o vírus, “Gay” com Sida seduziu centenas de adolescentes141, a repressão e o estigma: De luvas de borracha para prender homossexuais 142 Árbitro homossexual suspeito de ter Sida143 George Michael acusado de ser homossexual144 São escassas as referências a crianças com Sida no Correio da Manhã. As primeiras datam de 1985 e vêm de fora: Uma garota italiana foi vítima do Sida145, O primeiro bebé brasileiro vítima de Sida morreu.146 Excepto no caso dos irmãos hemofílicos de Fronteira, são esporádicas e de origem internacional, até 1993, ano em que a organização não-governamental Sol começa a sua intervenção, com campanhas públicas em prol de crianças seropositivas, beneficiárias da solidariedade de artistas e outras organizações. Também nas peças sobre crianças os grandes temas são a morte e a discriminação. Num corpus reduzido, tem destaque a cobertura do jornal sobre o caso dos irmãos hemofílicos de Fronteira, em 1988: Ninguém apoia criança com Sida/Sida atirou Cláudio para um mundo indesejado147 Criança portadora de Sida deseja regressar à escola 148 Uma rua contra duas crianças149. Correio da Manhã, Junho de 1995. Notícia breve, não assinada. Título a 3 colunas Correio da Manhã, 20 de Julho de 1985. Feature, não assinado. Título a 5 colunas, fotografias 140 Correio da Manhã, 1988. Notícia breve, não assinada. 141 Correio da Manhã, 30 de Março de 1992. Notícia breve, não assinada 142 Correio da Manhã, 20 de Outubro de 1987. Notícia breve, não assinada 143 Correio da Manhã, 10 de Novembro de 1992. Notícia breve, não assinada 144 Correio da Manhã, 19 de Agosto de 1993. Notícia breve, assinada AEI/CM. 145 Correio da Manhã, 17 de Abril de 1985. Notícia breve, não assinada 146 Correio da Manhã, 9 de Julho de 1985. Notícia breve, não assinada 147 Correio da Manhã, 3 de Dezembro de 1988. Título de chamada de primeira página e de reportagem, assinada por Isabel Oliveira, com fotografias. 148 Correio da Manhã, 20 de Abril de 1989. Reportagem na Assembleia da República, não assinada. Título a 4 colunas, fotografia das duas crianças, rodeadas de adultos, na Assembleia. 138 139

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Com a excepção do título que apresenta uma criança como delinquente (Garoto ataca transeuntes com seringas150), estes títulos apresentam os mais novos como vítimas, pela morte precoce, pela aquisição involuntária da condição de seropositivos, pelo abandono e pela discriminação. Para além do caso Fronteira tem também lugar a morte de Ryan White, referido pelo nome próprio: Sida matou Ryan White151 Apenas em 1990, um título do Correio da Manhã anuncia a expansão da patologia aos outros do masculino adulto: Sida está a propagar-se a mulheres e crianças 152 Em menor quantidade do que no Diário de Notícias, as notícias do Correio da Manhã relativas à contaminação do sangue com o vírus, que irá afectar muitos hemofílicos, surgem mais tarde e quase que se restringem ao país. Como no Diário de Notícias, os títulos do Correio da Manhã sublinham a contestação por parte dos hemofílicos portugueses, e estes também surgem como colectivo (hemofílicos), têm voz, manifestam-se de forma organizada, processam o Estado, querem, aceitam, acusam, inquietam-se, lamentam: Hemofílicos “a arder” ao ser descoberto mais sangue com Sida 153 Hemofílicos acusam Estado de má-fé154 “Indignação e revolta” no dia da Hemofilia 155 A contestação da incúria do Estado é assim, de novo, o principal tema que marca o grupo diferenciado dos hemofílicos, destacando o seu protagonismo. Como no Diário de Notícias, também no Correio da Manhã, pessoas anónimas com Sida são quem mais aparece nos títulos das peças onde são protagonistas. De novo, isso se relaciona com o género jornalístico dominante das peças ser a notícia breve, que favorece a Correio da Manhã, 1993. Carta de leitora. Título a 2 colunas. Correio da Manhã, 1994. Notícia de Valdemar Pinheiro, com grande destaque. Título a 3 colunas, fotografia da Baixa de Lisboa, com legenda: Nas ruas da Baixa, ninguém está em segurança com o pequeno “Callé” à solta, de seringa em riste. 151 Correio da Manhã, 9 de Abril de 1990. Notícia breve, não assinada, com fotografia de Ryan White. 152 Correio da Manhã , 1990. Notícia não assinada. Fonte: investigadores norte-americanos 153 Correio da Manhã, 4 de Novembro de 1992. Notícia desenvolvida, não assinada, à largura da página. Título a 4 colunas. Fonte: Associação Portuguesa de Hemofílicos (APH).) 154 Correio da Manhã, 18 de Abril de 1995. Notícia desenvolvida, não assinada. Título a 4 colunas. Fotografia da mesa da Conferência de Imprensa da APH. 155 Correio da Manhã , 16 de Abril de 1997. Notícia não assinada. Fonte: Associação Portuguesa dos Hemofílicos 149 150

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personalização de sujeitos e a sua inclusão nos títulos. A sua exclusão ocorre em títulos que se centram na ameaça da seringa, num assalto ou roubo, poder conter sangue infectado pelo vírus. Na maioria destes títulos, a figura masculina é o assaltante, associado explícita ou implicitamente a toxicodependente e a seropositivo, que ameaça contagiar a sua vítima através de seringas, numa história que se repete e cuja proveniência são as fontes policiais ou testemunhos de vítimas para o jornal. O olhar cronológico mostra como o assalto com seringa supostamente infectada se tornou a história dominante associada a seropositivos enquanto sujeitos activos, a partir de 1991 e até 2000, agindo sozinhos ou em pequenos grupos. Como Bird assinalava sobre estes “mitos urbanos”, não há a prova de que quem pratica esse acto seja seropositivo, que a seringa esteja realmente infectada com o vírus. A ameaça de o estar é suficiente como arma. Com títulos que podem ou não incluir o actor do processo material, o grande tema é aqui o crime, como se pode observar pela linguagem repetitiva (assalto, roubo, arma, ameaça...). A palavra seringa é a que mais se repete, aparecendo ela própria como sujeito de poder: Seropositivo ataca com seringa 156 Seringa era arma para roubo 157 Assaltava com faca e seringa “infectada” 158 Espanhol usava seringa como arma 159 Assaltado com seringa 160 Armado com seringa assalta bomba 161 Seringa ameaça 162 Roubado com seringa 163 Apesar de alguns dos títulos não indicarem o género do agente, este é um sujeito sobretudo masculino, como o mostra o texto da notícia. Apenas uma notícia tinha um

Correio da Manhã, 16 de Junho de 1991. Notícia breve, não assinada. Correio da Manhã, 1993. Notícia breve, não assinada. 158 Correio da Manhã, 1994. Notícia breve, não assinada 159 Correio da Manhã 1994. Notícia breve, não assinada. 160 Correio da Manhã, 1995. Notícia breve, não assinada 161 Correio da Manhã, 7 de Janeiro de 1997. Notícia breve, não assinada 162 Correio da Manhã, 3 de Fevereiro de 1997. Notícia breve, não assinada 163 Correio da Manhã, 3 de Junho de 1999. Notícia breve, não assinada 156 157

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protagonista feminino, num título de fait-divers que acentua o absurdo do espaço da ocorrência: Ameaçado com seringa dentro da própria casa164 Outro padrão noticioso aponta a efectivação do contágio, numa diversidade de situações que têm na transmissão sexual a expressão mais forte. O léxico não deixa dúvidas (disseminar, violar, contagiar…). A possível contaminação por prostitutas ou homossexuais é carregada em títulos onde se destaca a quantificação (10, 50, 5000…), na maioria indicadores de processos transitivos (acções sobre alguém), numa lógica que sublinha o poder e o excesso de quem os pratica: Ele disseminou a Sida no mundo Americano com Sida violou 50 garotos 165 Seropositiva andou com 50 jogadores166 Doente com Sida contagia 10 mulheres 167 Prostituta seropositiva pôs cinco mil em risco 168 Jovem com Sida tenta violações169 Outros títulos invocam a transmissão por via sexual: Uma prostituta de 29 anos tornou-se a primeira mulher a morrer de Sida no Japão170 Caça a “sedutor” com Sida171 Nestas pequenas notícias, repetitivas e criadoras de um efeito de série, são poucas as peças que referem coragem de indivíduos nas batalhas contra a doença e o ostracismo, bem como acções de luta cívica e de disponibilidade para intervir nos tratamentos. As primeiras reportagens sobre seropositivos surgiram no Correio da Manhã. Alguns títulos dessas peças são transcrições directas das suas palavras: Correio da Manhã, 1 de Setembro de 1998. Notícia breve, não assinada Correio da Manhã, 20 de Maio de 1990. Notícia breve, não assinada 166 Correio da Manhã, Dezembro de 1991. Notícia breve, não assinada 167 Correio da Manhã, 6 de Novembro de 1991. Notícia breve, não assinada 168 Correio da Manhã, 16 de Fevereiro de 1998. Notícia não assinada, título a 3 colunas. Fotografia da mulher. 169 Correio da Manhã, 22 de Novembro de 1997. Notícia, com 10 parágrafos, assinada pelo correspondente do Porto, Eduardo Alcobia 170 Correio da Manhã, 1987. Notícia breve, não assinada 171 Correio da Manhã, 23 de Outubro de 1998. Notícia breve, título a 4 colunas, com fotografia do homem 164 165

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Jovem de 17 anos vítima de Sida fez-nos confissões/Jovem de 17 anos vê a vida a fugir-lhe por causa da Sida172 Seropositivo falou publicamente da SIDA173 Português com SIDA quer ser “cobaia” 174 “Quando soube custou-me imenso”175 “Com prevenção, podemos durar muitos anos” 176 A referência a pessoas seropositivas no plural é minoritária enquanto sujeitos activos. Encontram-se no Correio da Manhã as primeiras referências a movimentos cívicos. São títulos que referem pessoas seropositivas como produtores de acontecimentos, a usar da palavra, a exprimirem as suas experiências: Vítimas da Sida à volta do Cristo-Rei 177 Doentes espanhóis com Sida criticaram falta de apoios178 Doentes de Sida contra discriminação 179 Vítimas da Sida correm contra o tempo180 Americanas com Sida sentem-se abandonadas181 A punição é, como no Diário de Notícias, o padrão dominante da representação de pessoas seropositivas anónimas como afectadas pela acção de alguém. A intervenção reguladora do Estado surge em títulos de ocorrências inicialmente de fora do país, que ilustram a proximidade entre a condição de seropositivo e o castigo e discriminação exercida: Bulgária expulsa africanos com Sida 182 Correio da Manhã, 19 de Fevereiro de 1987. Chamada de primeira página e reportagem no interior, assinada por Paulo Barbosa. Fotografias de grandes planos do corpo do doente. 173 Correio da Manhã, 1 de Dezembro de 1988. Notícia breve, não assinada 174 Correio da Manhã, 8 de Setembro de 1990. Notícia, não assinada. Fotografia de Costa Ferreira 175 Correio da Manhã, 1 de Dezembro de 1991. Reportagem, não assinada, página inteira, associada ao Dia Mundial da Sida. Fotografia de seropositivo 176 Fórum Estudante, 21 de Setembro de 1993. Entrevista a seropositivo, de João van Zeller. Fotografia de parte do corpo. 177 Correio da Manhã, 3 de Dezembro de 1988. Notícia breve, não assinada. Fotografia de manifestantes brasileiros, de mãos dadas, junto à estátua de Cristo do Corcovado. 178 Correio da Manhã, 19 de Setembro de 1989. Notícia não assinada, título a 6 colunas, fotografia de manifestantes. Outros conteúdos relacionados com a doença dentro desta peça. 179 Correio da Manhã, 1990. Notícia breve, não assinada, título a 3 colunas. 180 Correio da Manhã, 24 de Novembro de 1991. Fotolegenda, assinada EPA/Lusa/CM. Imagem de dois manifestantes junto ao Capitólio. 181 Correio da Manhã, 27 de Junho de 1995. Notícia assinada por Emmanuel Serot (CM/APF), título a 2 colunas 172

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Vítima de Sida vai para a prisão 183 Estrangeiro com Sida expulso da China184 Canadá quer deportar emigrante com Sida 185 Acesso ao crédito cortado a seropositivos186 Outro padrão relevante na representação de pessoas seropositivas anónimas é a de beneficiárias de acções de solidariedade. O tema está mais vincado no Correio da Manhã do que no Diário de Notícias, tendo maior protagonismo as organizações não-governamentais e as suas iniciativas, a partir de 1990: Projecto apela ao respeito aos infectados com Sida 187 Campanha ajuda doentes com Sida 188 Prendas animam doentes com Sida 189 Mulheres com Sida têm apoio no Porto 190 Os artigos de opinião sobre pessoas com Sida são mais comuns do que no Diário de Notícias. São também mais frequentes no Correio da Manhã as cartas dos leitores. Cartas e artigos de opinião surgem pela primeira vez no Correio da Manhã em 1985. São publicadas ininterruptamente cartas de leitores de 1989 a 1996, retomando em 1999 e 2000, num total de 31 peças. Os artigos de opinião vão de 1987 a 1998, excepto em 1997, num total também de 31, vários apenas com referências periféricas à síndroma. O medo do contágio e considerações de ordem religiosa e moral são os temas dominantes destas cartas de leitores e de artigos de opinião. Predomina um discurso social conservador, xenófobo, homofóbico, proibicionista, conjugado com o discurso religioso e

Correio da Manhã, 1987. Notícia breve, não assinada Correio da Manhã, 30 de Novembro de 1988. Notícia breve, não assinada 184 Correio da Manhã, 1991. Notícia breve, não assinada 185 Correio da Manhã, 6 de Novembro de 1996. Notícia, não assinada 186 Correio da Manhã, 9 de Fevereiro de 1999. Notícia, não assinada 187 Correio da Manhã, 29 de Junho de 1990. Notícia, assinada por Fernando Teles (Lusa). Título a 4 colunas, fotografia de Costa Ferreira 188 Correio da Manhã, 1994. Notícia breve, não assinada, sobre uma iniciativa da associação ADDEPOS 189 Correio da Manhã, 23 de Dezembro de 1995. Notícia breve, não assinada. Fonte: Liga Portuguesa Contra a Sida 190 Correio da Manhã, 15 de Fevereiro de 1999. Notícia, da delegação do Porto. 182 183

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punitivo: “(…) Mas Deus não dorme (…). A Sida é portanto a expiação justa e oportuna”191, por isso “Portugal tem a Sida que merece”192 . Este discurso integra a defesa da monogamia heterossexual. Num dos primeiros artigos, de 1985 (em que se defende que o vírus é espalhado por “micróbios exógenos, oriundos de áreas menos avançadas económica e higienicamente”), a Sida é caracterizada como “uma diabólica enfermidade nascida no ‘bas-fond’ dos prazeres sexuais contra-natura, (…) da homossexualidade irmanada com o uso de outra praga do século, a droga”

193

. Nas palavras de um leitor, em 1990, “a receita é

deixar as relações sexuais no seu lugar: no matrimónio de um com uma e para sempre”194. Já em 1987, associado estava também um imaginário da Sida como problema dos outros, lá de fora, dos grandes centros. No Portugal, “país pequeno e de tradições marialvas, ainda marcado por uma ruralidade comportamental (…) a incidência do mal parece ter um significado reduzido”195. Esta ideia associa-se de resto ao imaginário do país de brandos costumes, incapaz de se manifestar violentamente que, iremos ver, vai estar presente no imaginário da Sida no país. Em 1993, a carta de um leitor, com o título Cuidado com a Sida!196 alerta os perigos de imigrantes, de África e do Brasil, cuja “aparência é pouco cuidada, levando-nos a admitir estar-se em presença de toxicodependentes e prováveis seropositivos”. Interroga e lamenta-se: “Foram estes cidadãos fiscalizados sanitariamente? Se não foram, todos os naturais do nosso País, que somos nós, estão desamparadamente à mercê de apanhar a Sida e outras maléficas doenças que a estrangeirada de ‘pressão’ nos traz (…)”. Esta posição xenófoba motivou indignações da parte de leitores, acusando o seu autor de racista, em duas cartas também publicadas pelo jornal, a 23 de Fevereiro. Menor reacção dos leitores suscitou o caso das crianças de Fronteira, no mesmo ano: uma leitora, em Uma rua contra duas crianças197, protesta contra a discriminação das crianças, questionando o silêncio das autoridades: “Onde está o sr. Ministro, que não vê, não ouve e, pior, não entende?” Em 1995, a campanha de Verão da Comissão Nacional de Luta contra a Sida suscita comentários críticos a uma jovem, membro do grupo etário alvo da campanha, que se Correio da Manhã, 13 de Outubro de 1990. A Sida, artigo de Augusto de Sá Osório Correio da Manhã, 1 de Novembro de 1990. A Sida que merecemos 193 Correio da Manhã, 14 de Agosto de 1985. Sexo e Sida 194 Correio da Manhã, 24 de Agosto de 1989. A Sida 195 Correio da Manhã, 23 de Maio de 1987. Crónica de um Flagelo 196 Correio da Manhã, 3 de Fevereiro de 1993 197 Correio da Manhã, 1993 191 192

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interroga: “Será que não acreditam na nossa capacidade de termos umas óptimas férias sem termos de voar num tapete chamado preservativo?”198 Também esta carta suscita reacções de outro leitor, desta vez de apoio, que acusa a promoção do uso de preservativo de provocar a multiplicação “das relações sensuais, seja com quem for, numa promiscuidade avassaladora”, e a Comissão de ser “a mãe e o pai da Sida”.199 Como referimos, o tema perde importância neste espaço de opinião depois de 1997. Isolada está assim uma das cartas mais recentes, Criança seropositiva200, publicada no início do ano lectivo de 1999-2000, de um pai que considera não existirem condições para que uma criança seropositiva frequente o infantário onde está a sua filha.

Correio da Manhã, 24 de Outubro de 1995. Preservativos: um conto de fadas Correio da Manhã, 19 de Novembro de 1995. Mãe e pai da Sida 200 Correio da Manhã, 11 de Outubro de 1999 198 199

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7. Pessoas seropositivas em imagens Marisa Torres da Silva Além dos títulos, da assinatura ou do autor, a imagem é também um elemento paratextual dos textos jornalísticos, enquanto “zona intermediária entre o fora-do-texto e o texto” (Compagnon, 1979: 328) e, simultaneamente, “lugar privilegiado de uma pragmática e de uma estratégia, de uma acção sobre o público” (Genette, 1987: 8). Nessa sequência, quer no campo literário, quer jornalístico, a textualidade beneficia de uma associação frutífera com a imagem, através de uma exploração das suas diversas dimensões significantes, que não se limitam à pura representação indicial. No espaço do jornal, a fotografia é alvo de um trabalho jornalístico e, como tal, não reproduz a realidade, como um espelho. Como toda a actividade jornalística, ela supõe uma selecção e uma construção do real (apesar de o utilizar como referente), ganhando uma carga de significado diferente do simples reflexo ou mera captação do mundo. Para Mouillaud e Tétu (1999), a analogia de uma fotografia permite, por um lado, representar os objectos observados no mundo e, por outro, produz um saber e uma crença, ao ser sujeita a uma percepção directa. Na perspectiva de John Hartley (1982), as fotos de imprensa desempenham um papel essencial na construção de uma história. Aliás, a publicação ou não de uma notícia depende bastante dos seus elementos pictóricos (apesar de isso ser mais frequente na televisão do que na imprensa). O fotojornalismo, prática jornalística recente, veio também mostrar que as imagens não constituem meros suportes do texto escrito, mas produzem registos autónomos sobre os acontecimentos, que dialogam com o texto. Progressivamente, a imagem vai ganhando o reconhecimento de uma certa autonomia como linguagem. No jornalismo dos dias de hoje, a utilização da cor na fotografia veio reforçar o seu efeito de realidade e uma “consciência espectacular do mundo” (Mouillaud e Tétu, 1979: 73). Para a apreciação das imagens de seropositivos utilizadas como ilustração, recorremos à constituição de um sub-corpus das peças onde apareciam, não necessariamente coincidente com o anterior. No conjunto total dos itens, foi encontrado um número semelhante de imagens de seropositivos no Diário de Notícias e no Correio da Manhã. Ambos os jornais apresentaram, cada um, cerca de 150 fotografias com afectados pelo vírus da Sida, o que demonstra uma 68

ainda menor presença dos seropositivos nas imagens, comparativamente aos textos noticiosos nos quais figuram como protagonista. Na maior parte dos casos, as imagens de pessoas infectadas pela Sida integram peças jornalísticas que têm como actor principal intervenientes que não os seropositivos. Com efeito, essas imagens aparecem apenas em 37 e em 49 dos itens que têm os seropositivos como actor principal, respectivamente no DN e no CM. Os seropositivos surgem, então, em fotografia, muitas vezes em peças jornalísticas que focam assuntos da temática VIH/Sida, que não estão relacionados com as experiências, formas de vida ou problemas dos indivíduos infectados. Tal constatação permite inferir, por outro lado, que a imagem do seropositivo poderá ser utilizada para conferir um maior interesse humano à história jornalística e estabelecer uma proximidade com o leitor. A título de exemplo, a peça intitulada SIDA está a ‘moralizar’ os costumes em África

201

,

sobre a mudança de hábitos e comportamentos sexuais no continente africano, é ilustrada com a fotografia (sem legenda) de um beijo entre John, um bebé de raça negra de 16 meses abandonado pela mãe por ter o vírus da Sida, e Barbara Chamness, a sua mãe adoptiva, por ocasião da V Conferência Internacional sobre Sida, em Montreal, Canadá, em 1989. Verificase, portanto, uma desarticulação semântica entre o conteúdo central do texto jornalístico e a imagem de Ian Barrett, da agência Reuters: enquanto o primeiro aborda o tema dos costumes sociais e das atitudes sexuais em África, a segunda funciona como uma espécie de apelo à não rejeição e à não discriminação dos doentes. Esta fotografia, aliás, à semelhança de outras imagens, é frequentemente utilizada como ilustração de peças jornalísticas sobre Sida. Imagens que se repetem No conjunto total das fotografias de seropositivos, existem em ambos os jornais várias imagens que se repetem. A fotografia do beijo entre o bebé abandonado e a mulher que o adoptou é um desses casos paradigmáticos de utilização recorrente de imagens provenientes das agências noticiosas, que são compradas por jornais de todo o mundo e que passam a integrar os seus arquivos. O DN e o CM, em termos gerais, costumam identificar essas fotografias através dos termos “Direitos Reservados” ou então indicando a proveniência das mesmas (AFP, Reuters, Lusa, etc.). 201

Diário de Notícias, 28 de Novembro de 1990 69

A imagem acima referida serve de ilustração a várias peças no DN, tendo sido publicada pela primeira vez neste jornal com a notícia Farmácias ‘explicam’ a Sida em campanha por todo o País202. No entanto, a fotografia surge depois como um item autónomo, sob a forma de fotolegenda, na rubrica A Semana Vista…203. Até 1993, essa imagem acompanha diversos textos jornalísticos, nomeadamente Sida: filhos do mal maior,204, Vírus da Sida afecta um quarto dos africanos sexualmente activos 205 ou O ‘dever moral de apoiar África 206. No entanto, a “foto do beijo” não é único exemplo que demonstra a existência de imagens repetidas, tanto no DN como no CM. A fotografia que ganhou o prémio da Foto da Imprensa do Ano, nos EUA, em 1988, assinada por Alon Reininger e intitulada “SIDA nos Estados Unidos” – que mostra um doente de Sida em fase terminal, Ken Meeks, sentado numa cadeira de rodas a olhar directamente para a câmara fotográfica207– aparece recorrentemente em ambos os jornais, bem como a imagem de um bebé africano infectado pelo vírus da Sida numa incubadora. Apesar de apresentarem imagens comuns, que se repetem, cada jornal tem as suas “preferências” no que diz respeito à utilização frequente da mesma fotografia. No DN, além das imagens já referidas, a fotografia de um homem com um aspecto debilitado numa cadeira de rodas208, a imagem de outro homem deitado numa cama de hospital com as mãos sobre o peito e de olhos abertos209, de um homem negro em sofrimento a ser assistido por uma freira costas

210

, de outro elemento do sexo masculino sentado numa cama de hospital, de

211

, de um homem, também de costas e com a cabeça entre as mãos, sentado numa

cadeira da sala de espera de um hospital homem que está deitado no chão

212

ou de uma mulher negra a segurar a mão de um

213

, são, todas elas, ilustrações que se repetem em várias

peças jornalísticas.

Diário de Notícias, 7 de Julho de 1989 Diário de Notícias, 11 de Julho de 1989 204 Diário de Notícias, 24 de Janeiro de 1990 205 Diário de Notícias, 14 de Junho de 1992 206 Diário de Notícias, 15 de Dezembro de 1993 207 Por exemplo, Correio da Manhã, 21 de Outubro de 1988, ou Diário de Notícias, 6 de Junho de 1990 208 Diário de Notícias, 13 de Agosto de 1988 209 Diário de Notícias, 27 de Abril de 1993 210 Diário de Notícias, 7 de Julho de 1993 211 Diário de Notícias, 1 de Dezembro de 1993 212 Diário de Notícias, 8 de Abril de 1995 213 Diário de Notícias, 6 de Março de 2000 202 203

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O CM, por outro lado, repete fotografias como a de um homem com uma visível presença do sarcoma de Kaposi no rosto e no pescoço214, de um jovem norte-americano de 24 anos, vítima da doença, num hotel nova-iorquino215, de Clair Harward, norte-americano de 26 anos216 ou de Gaétan Dugas, a primeira vítima oficial da Sida. Verificou-se, porém, uma menor quantidade de fotografias repetidas neste último jornal do que no DN. Em geral, as imagens que aparecem frequentemente como ilustração possuem uma forte carga dramática e muitas mostram o seropositivo como um indivíduo doente ou em sofrimento, espacialmente inserido em ambientes de hospital e ostracizado pela sociedade, aspecto que veremos em seguida. Que seropositivos aparecem nas imagens? No seu livro de 1999, Susan Moeller analisou a forma como os meios de comunicação norte-americanos contam histórias como as epidemias. No que diz respeito às fotografias, a autora observou uma predominância de imagens de confrontação do leitor, com poucas pessoas, nas quais europeus e americanos aparecem mais como indivíduos, ao invés de outros, que são mais fotografados em grupo, como vimos. Da mesma forma, as fotografias de seropositivos caracterizam-se por uma preferência pelo indivíduo infectado pelo vírus, isolado na imagem, muitas vezes inserido em situação de hospital. O doente é mostrado como uma pessoa à margem da sociedade, abandonada e ostracizada. Kress e van Leeuwen estudaram a forma como a interacção entre o leitor e as pessoas mostradas na imagem é afectada pelo olhar dos participantes representados. “Há uma diferença fundamental entre fotografias nas quais os participantes representados olham directamente para os olhos do leitor e as fotografias onde isto não acontece. Quando os participantes representados olham para o leitor (...) estabelece-se um contacto, mesmo que seja apenas a um nível imaginário” (Kress e van Leeuwen, in van Leeuwen e Jewit., 2001: 28). Frequentemente, o seropositivo olha a câmara fotográfica217, mas em muitas imagens aparece de costas218 ou esconde o rosto com as mãos219. Ainda que raramente, o seropositivo Correio da Manhã, 19 de Janeiro de 1985 Correio da Manhã, 30 de Janeiro de 1986 216 Correio da Manhã, 11 de Janeiro de 1986 217 Diário de Notícias, 7 de Julho de 1989 e Correio da Manhã, 19 de Janeiro de 1985 218 Correio da Manhã, 30 de Janeiro de 1986 219 Diário de Notícias, 23 de Setembro de 1999 214 215

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surge em grupo e em espaços exteriores sobretudo em imagens provenientes de países africanos220. É aqui pertinente referir o estudo de Kress e van Leeuwen (idem: 27) sobre a distância social representada dos participantes numa imagem, baseado na proxémica de Edward T. Hall. Segundo os autores, a distância social numa fotografia pode ser diferenciada em distância íntima (onde só se vê a cabeça ou o rosto), distância pessoal (na qual se vê a cabeça e os ombros, ou então a pessoa da cintura para cima), distância social (onde se vê a pessoa na totalidade ou o espaço em seu redor) e distância pública (onde se consegue ver, pelo menos, quatro ou cinco pessoas). Observando esta “escala” de distância interpessoal, podemos dizer que, nas fotografias de pessoas infectadas pelo vírus da Sida, predomina a distância íntima e a distância pessoal, contendo assim um forte impacto dramático. As crianças, por outro lado, são um dos grandes protagonistas nas imagens de seropositivos. Podemos dizer que a criança em imagem poderá proporcionar um acrescento de sentido e garantir uma mais fácil adesão à leitura das peças jornalísticas, na medida em que se trata de uma personagem muito significativa para a maior parte dos indivíduos. A infância é aqui utilizada para conferir uma maior visibilidade e imprimir um carácter mais afectivo ou de interesse humano ao conteúdo das peças jornalísticas. Algumas das histórias individuais de crianças seropositivas que aparecem nas imagens são contadas ou referidas em textos jornalísticos, até à década de 90, como é o caso de Eve Van Grafhorst, uma criança de 3 anos que contraiu o vírus através de uma transfusão de sangue221, de Ryan White, um hemofílico norte-americano de 13 anos que foi expulso da sua escola e de outros estabelecimentos de ensino por ter Sida222, de Herby Cear, uma criança de Miami cujos pais morreram de Sida223, de John, o bebé da “foto do beijo” ou ainda de Claúdio Barroso, uma criança hemofílica portuguesa, que foi rejeitada da escola que frequentava (caso “Fronteira”)224. Nem todas as crianças, porém, são identificadas nas imagens, permanecendo, na maior parte dos casos, em situação de anonimato. Muitas vezes, as crianças – sobretudo bebés – aparecem ao colo de mulheres ou acompanhadas por figuras do sexo feminino.

Diário de Notícias, 6 de Março de 2000 Correio da Manhã, 24 de Junho de 1986 e Diário de Notícias, Junho de 1986 222 Diário de Notícias, 17 de Outubro de 1985 e Correio da Manhã, 3 de Agosto de 1985 223 Correio da Manhã, 17 de Agosto de 1985 224 Correio da Manhã, 20 de Abril de 1989 220 221

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Ao comparar as agendas de vários media durante as eleições federais nacionais na Austrália, Bell et al. (in van Leeuwen e Jewit, idem: 18) identificaram valores-notícia comuns, como o crime, os desastres ou as celebridades/personalidades. Neste último valor notícia, deu-se maior ênfase a “personalidades per se”, em detrimento da sua função ou capacidades. Os itens focaram as pessoas com valor notícia devido ao seu glamour, riqueza, coragem, prestígio, ou à incorporação de outras características desejáveis ou indesejáveis” (idem, ibidem). No caso das imagens de seropositivos, o Correio da Manhã é o jornal que confere uma maior visibilidade aos indivíduos infectados pelo vírus que alcançaram notoriedade em diversas áreas, como o cinema, o desporto ou a música, embora o Diário de Notícias dê também importância a algumas destas personalidades. O actor Rock Hudson 225, o jogador de basquetebol Magic Johnson226, o cantor Freddie Mercury227 ou o actor Lauro Corona228 são figuras públicas que aparecem diversas vezes em fotografia em ambos os jornais. Uma fotografia adquire um valor notícia elevado quando testemunha um evento que é dramático, não usual e controverso. Com efeito, há imagens que se inserem na categoria da foto-choque de que fala Roland Barthes (1984), ou seja, a fotografia que se torna notícia, sobre a qual não há nada a dizer, sem uma categorização verbal capaz de ter domínio sobre o processo instrumental de significação. Ela capta situações traumáticas com impacto ao nível do público, representando os limites do horror e da violência., sobretudo ao nível do sofrimento humano. A foto-choque possui uma força própria, que pode chocar os leitores ao ponto de estes recusarem um conhecimento mais alargado sobre o tema focado, ou então permitir-lhes tomar consciência de uma realidade monstruosa. Podemos dizer que algumas das fotografias de seropositivos que integram o nosso corpus se encaixam na definição de foto-choque, por mostrarem doentes com Sida em estado terminal. As feridas no corpo, a debilidade física e a expressão de tristeza dos doentes retratados transformam estas imagens em fotografias com um enorme impacto visual junto do leitor, até pelo tipo de planos de grande proximidade, como referimos. Verifica-se no Correio da Manhã uma maior presença deste tipo de imagens, que mostram o sofrimento humano devido à Sida. Diário de Notícias, 25 de Julho de 1985 e Correio da Manhã, 8 de Maio de 1987 Diário de Notícias, 16 de Janeiro de 1992 e Correio da Manhã, 8 de Setembro de 1994 227 Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1991 e Correio da Manhã, 8 de Dezembro de 1991 228 Diário de Notícias, 27 de Julho de 1989 e Correio da Manhã, 3 de Agosto de 1989 225 226

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Os exemplos de fotos-choque são diversos: as já referidas de um homem com uma visível presença do sarcoma de Kaposi no rosto e no pescoço, de um bebé africano infectado pelo vírus da Sida numa incubadora, de Clair Harward e de Ken Meeks (imagem que ganhou o prémio norte-americano da Foto da Imprensa do Ano em 1988), as fotografias de um jovem português de 17 anos com Sida a mostrar as feridas nas pernas e nos pés229, a de uma criança romena com o rosto em sofrimento230, a de um doente de Sida em estado avançado e com um aspecto esquelético231, a de uma criança chinesa com feridas no corpo 232 ou a de um homem negro morto a ser segurado pelos braços por outro homem233. O que dizem as legendas? No jornal, a imagem comunica com a estrutura textual, nomeadamente com a legenda. Esta orienta a nossa leitura da fotografia, impondo-lhe um sentido determinado, de tal forma que uma imagem pode ser publicada em jornais diferentes e adquirir significados distintos, conforme a ancoragem realizada pela legenda. Segundo Agnes e Croissandeau, “é a legenda – e o texto que acompanha a fotografia - que confere todo o sentido à imagem” (1977: 49), ou seja, já não é a imagem que enriquece o texto, mas a palavra que vem acrescentar algo à foto, conferindo-lhe uma mais-valia de significação e uma referência a uma dada cultura. Roland Barthes refere também que “antigamente, havia a redução do texto à imagem, enquanto que hoje se dá uma amplificação da imagem ao texto” (1982: 42). Para o mesmo autor, é necessário distinguir na fotografia dois níveis, o da denotação (o que a imagem mostra, enquanto analogon da realidade) e o da conotação (as ideias evocadas e as sugestões de sentido, que pressupõem o seu encaixe numa determinada cultura). Devido à sua polissemia de sentidos, a imagem presta-se a ser interpretada de diferentes maneiras: daí que o texto escrito tenha a função de impor uma unicidade de significação à imagem. A relação entre esta e o texto escrito tornou-se tão crucial que deu origem a géneros jornalísticos autónomos, como é o caso da foto legenda Nas imagens de seropositivos, observamos que, na maior parte dos casos, as legendas não dizem directamente respeito aos indivíduos retratados, mas incidem sobre o

Correio da Manhã, 19 de Fevereiro de 1987 Correio da Manhã, 16 de Dezembro de 1990 231 Correio da Manhã, 27 de Abril de 1993 232 Correio da Manhã, 10 de Junho de 2000 233 Diário de Notícias, 10 de Maio de 1999 229 230

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vírus em termos gerais, designadamente na referência a números e a dados biomédicos da doença, o tema mais frequente, como vimos. Por exemplo, uma fotografia que mostra um indivíduo numa cama de hospital, a ser assistido por uma freira234, tem como legenda Sida em África já afectou dez milhões de pessoas. Aquela imagem funciona assim como metonímia, a figuração singular e anónima de uma situação que envolve milhões. Já quando se trata de figuras públicas afectadas pela Sida ou indivíduos que, pela sua condição, se tornaram numa espécie de “ilustração paradigmática” da doença (Ryan White ou Eve Van Grafhorst, duas crianças vítimas de discriminação), as legendas tendem a descrever ou a referir-se a essa pessoa em particular. Por vezes, também no caso das figuras públicas, a legenda aparece sob a forma de discurso directo ou de citação – as imagens de Rock Hudson, que têm como legendas “Há alguns anos sentia-me sozinho, mas o trabalho mitigava a solidão”

235

e “Quis triunfar na vida para a minha mãe se orgulhar de mim”236, são exemplos disso

mesmo. Outro aspecto digno de nota é o facto de o Diário de Notícias, a partir de 1996, no quadro da sua reformulação gráfica, optar por utilizar uma “palavra-chave” no início da legenda, o que confere à imagem, logo à partida, um sentido muito definido. Nas imagens de seropositivos, há algumas palavras-chave (substantivos ou adjectivos) recorrentemente utilizadas nas legendas: justiça, carência, contágio, apoio, drama, epidemia, fatal, dor, dramático, alerta, direitos, doente, doença ou flagelo, termos que fazem, aliás, parte do léxico habitual para se falar da Sida.

Diário de Notícias, Dezembro de 1993 Diário de Notícias, Abril de 1985 236 Diário de Notícias, 3 de Outubro de 1985 234 235

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8. Metáforas e representações da Sida Com base nos títulos da totalidade das peças jornalísticas recolhidas no Diário de Notícias e no Correio da Manhã, de 1981 a 2000, realçam-se metáforas e representações da Sida. A atenção recai sobretudo nos títulos dos primeiros anos, pela sua intensidade (recordemos que o pico noticioso ocorreu em 1987), que poderá ter marcado modos de pensar a Sida, prolongando temporalmente a sua influência. São assim apreciados os modos como a Sida, cronologicamente, foi designada, quantificada, apresentada como batalha pela cura e como batalha moral e como se sustentou a ideia de que por cá, era quase o oásis. As designações Como vimos, o nome VIH como a designação do agente que provoca a sida só foi fixado anos após as primeiras pesquisas científicas. Durante cerca de três anos, cientistas e jornais científicos empregaram o nome LAV/HTLV-III (ou o inverso), numa barra que marcava a identidade de vírus em disputa. A recomendação do emprego do acrónimo da nova síndroma, feita pela comissão internacional de taxinomia de vírus, poria finalmente termo a este diferendo. Já nos meios noticiosos seria encontrada, em exclusivo, a designação VIH nos textos jornalísticos sobre a doença. Vimos também, com Susan Sontag, que a designação corrente não é despojada de consequências. Ao enfatizar a designação do terceiro estádio, Sida, quando a situação clínica inclui uma variedade de outras doenças ou infecções oportunistas, para abranger toda a situação de alguém seropositivo ainda que o vírus não esteja activo, estamos a proceder a uma metonímia de significado, a tomar a parte pelo todo. Nos títulos do Diário de Notícias, a designação Sida foi hegemónica face a designações como vírus da Sida ou HIV/Sida. Mas mais do que isso, interessa observar como essa construção se operou nos primeiros tempos, antes de se constituir como dominante. Nas três primeiras notícias do Diário de Notícias, em 1982, quando pouco se conhecia da doença, esta não teve nome próprio. Foram usadas três designações indirectas, a marcar características que pudessem servir para a interpretação do seu significado, neste caso por referência a outras doenças malignas e a locais de onde teria emanado: cancro, doença misteriosa

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e síndroma cubano237. Recordando Sontag, não estranhamos que a primeira designação indirecta da nova patologia se tenha feito por referência à mais temida de todas as doenças nesse momento, o cancro. A referência a Cuba vai a par de referências a outras regiões das Caraíbas e a África, “primitivas”, apontadas como o berço do novo vírus, como nos primeiros títulos de outros jornais. Ao contrário das designações indirectas, o nome próprio designa directamente o seu referente. Para que exista, é necessário que num dado momento ocorra um “acto de baptismo”. O nome próprio só é dado a seres frequentemente evocados, relativamente estáveis no espaço e no tempo e com importância social ou afectiva. No caso presente, o nome próprio começou por ser importado da designação norte-americana (AIDS). Quando transitou para a designação portuguesa, começou por se apresentar como acrónimo, a enfatizar cada uma das iniciais de síndroma de imunodeficiência adquirida, SIDA, com as quatro letras em maiúsculas. Nos primeiros momentos de afirmação do seu nome próprio, como Sida, era de género masculino (o Sida). A transição para nome comum, como doença corrente, regista-se em 1985 (a sida), designação dominante quando escrita no interior do título. Significativos pelo uso do artigo definido (a) – a marcar algo já conhecido do leitor e com carácter genérico – são dois títulos de 1983, que coincidem em confinar a nova doença ao grupo social dos homossexuais, como já vimos: A peste cor-de-rosa; A doença dos homossexuais, com o primeiro a apresentar duas metáforas a intensificar o seu sentido. A lenta afirmação do nome próprio não exclui o recurso a outras designações indirectas. Nos anos 80, pelo enquadramento que trazem a algo de novo e que se vai prolongar no tempo, encontram-se no Diário de Notícias múltiplas designações indirectas, umas tomando como referente o campo da medicina (vírus diferente, vírus do cancro, doença rara, síndroma imunológica, afecções imunológicas), outras a recorrer a metáforas como pesadelo do século XX, fantasma, psicose, grande morigeradora. São muitos os termos e expressões identificativos da Sida: camaleão, espectro, obsessão dos nossos dias, medo, luta desigual e de morte, pavor, “casa da morte”, problema de saúde número um, pálida comparação com a peste negra, praga mundial, ou a ampliar o seu próprio referente (mil vírus). O nome próprio é ainda carregado de sentido quando se faz

Síndroma cubano já matou 564 pessoas, título do Diário de Notícias, de 27 de Março de 1983. Secção Informação Geral. Notícia, não assinada, título a 2 colunas 237

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acompanhar insistentemente por verbos como apavorar, matar, duplicar, propagar, alastrar, subir em flecha, entre outros. Como investigações de outros países deram conta, a psicose do medo percorreu a cobertura destes primeiros anos, sobretudo o medo do outro, que irá alimentar fortes medidas de segregação por parte de autoridades e actos discriminatórios no dia a dia. Entre tantos títulos centrados na expansão desmesurada da Sida, encontram-se títulos como Sida: doentes sem cura a caminho do gueto, a encimar a matéria factual de uma notícia.238 Nos primeiros títulos do Correio da Manhã, dos anos 80, recorre-se também a designação indirecta (doença desconhecida, nova doença, depois identificada por A nova doença quando se supõe já do conhecimento do leitor e se anuncia que chegou ao país239). O jornal introduziu a designação portuguesa como acrónimo logo em 1983, inicialmente com aspas (“SIDA”) e vai prolongar até ao início dos anos 90 o uso dominante desse acrónimo (SIDA). A designação em maiúsculas permanecerá embora em posição secundária face ao nome próprio (Sida) ou comum (sida). Os títulos deste jornal carregam assim, por mais tempo, a designação pelo acrónimo, tornando a palavra graficamente mais destacada nos seus títulos. Também estes primeiros títulos são dramatizados, ao associarem, à designação e aos seus predicados, advérbios que intensificam a velocidade e a coincidência. Como exemplo, em 1983 e 1984: [Sida] já chegou a Portugal, já serve para roubar, já mata na Suécia, também mata em Israel, já afectou mais de 3 mil em trinta países, já afectou três dezenas no Zaire, em Portugal ultrapassa já a dezena. A quantificação O recurso a estatísticas e à linguagem dos números é uma das marcas do jornalismo, como garante da credibilidade da informação. Como sublinhou Nelkin sobre as relações entre jornalistas e cientistas, as quantificações são procuradas avidamente por jornalistas, que necessitam de números para tornar a história mais visível e mais próxima dos leitores, pela sua expressão brutal ou pela singularidade do carácter excepcional da situação desencadeada. Como foi também destacado na cobertura de epidemias pelos media (Lupton, 1994), a

Diário de Notícias, 2 de Julho de 1987. Feature assinado por Evelyne Fallot. Suplemento Saúde, com chamada de primeira página. 239 Portugal prepara prevenção para nova doença e A nova doença já chegou a Portugal, títulos do Correio da Manhã, de 1983. 238

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paixão pela quantificação é um traço dominante desta cobertura pela imprensa australiana, como se os números fossem garantes absolutos da verdade da informação. Quando aprecia a cobertura de uma epidemia alimentar por parte dos media britânicos, nos anos 80, Roger Fowler (1991: 147-8) designa-a por histeria, esclarecendo que não significa com isso que a situação fosse insignificante ou ilusória. Classifica essa cobertura dos media como histérica pelos termos do seu próprio conteúdo emocional, uma vez que histeria não é apenas um comportamento excessivo face ao evento que o suscita: esse comportamento torna-se ele mesmo autónomo, um modo de discurso independente da realidade empírica. Marcas desse estilo histérico são, para além das narrativas de segredos, da intensidade e da negatividade de sentimentos, também a retórica da adjectivação e da quantificação e o uso de verbos adequados à ideia de um crescimento desmesurado (disparar, multiplicar, proliferar, progredir, escalar...). Também na cobertura da problemática da Sida no Reino Unido, o autor encontrou essa tendência. No tratamento jornalístico da Sida pelos dois jornais portugueses, muito cedo esses números dispararam. A leitura cronológica dos títulos dos dois jornais mostra como essa procura de ilustrar numericamente a situação, sobretudo de fora do país, se processou de modo alucinante, com números contraditórios entre si. Ressalta a ausência de um acompanhamento jornalístico dos dados editados, como se a chegada à redacção de informação proveniente de fontes com alguma credibilidade fosse suficiente para a tornar pública e não se justificasse um olhar mais atento ao que o jornal tinha dito e agora entrava em contradição com a nova informação. A título de exemplos, em 1985, o Diário de Notícias punha em título: O vírus da Sida já infecta dois milhões de norte-americanos240. Poucos meses depois intitulava: Sida ameaça um milhão de americanos.241 No ano seguinte, em 1986, anunciava: Mais de dois mil com Sida em cada 24 horas na RFA242, para poucos meses depois afirmar com a mesma certeza: Sida em todo o mundo atinge 34 mil pessoas243 e Há Sida em 98 países e os casos são 45608.244

Diário de Notícias, 8 de Abril de 1985. Secção de Informação Geral. Notícia, não assinada, título a 3 colunas Diário de Notícias, 4 de Julho de 1985. Suplemento Saúde no Mundo. Notícia, não assinada 242 Diário de Notícias, 1 de Setembro de 1986. Secção Informação Geral. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas 243 Diário de Notícias, 22 de Novembro de 1986. Secção Informação Geral. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas 244 Diário de Notícias, 11 de Abril de 1987. Secção Informação Geral. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas 240 241

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A mesma quantificação de números nos títulos perpassa nos primeiros anos pelo Correio da Manhã: 400 mil com sida nos EUA; poucas semanas depois, 2 milhões de americanos com SIDA; 50% dos homossexuais poderão morrer; 400 mil alemães portadores do vírus. Entre estes títulos de massa, o singular que anuncia a morte de Uma garota italiana. Como vimos no modo como pessoas seropositivas apareciam enquanto protagonistas das peças, o singular predomina sobre o colectivo. Dá-se mais espaço às figuras públicas que morrem de sida e a indivíduos associados a actividades marginais, como o pequeno crime, à prostituição ou outras actividades sexuais fora da norma, do que ao colectivo organizado. Foi escassa, nestes dois jornais portugueses, a visibilidade dos movimentos de exigência do reconhecimento dos seus direitos cívicos, apesar dessa dinâmica ter afectado o curso das investigações sobre a doença e as suas modalidades de terapia. Na maioria das peças que referem a situação de pessoas seropositivas, estas são representadas por “grandes números”, assustadores mas silenciosos na sua grandiosidade abstracta. Não significa isto que esses números não tenham tido fontes de informação por detrás, nomeadamente agências internacionais e fontes institucionais. O que acontece é que, sendo esses os circuitos privilegiados, sem vozes alternativas organizadas nem jornalistas a acompanharem a problemática de uma forma continuada e atenta, as histórias que se contam são uma sucessão de informação rápida, repetitiva, sincopada, numa lógica de reprodução conformada e totalizante. A “causa” e a “transmissão” da Sida Desde os primeiros anos destas notícias que a procura da “causa” da nova síndroma e as possibilidades de transmissão do vírus estiveram presentes nos dois jornais. O Correio da Manhã teve neste ponto mais intervenção, noticiando variadas sugestões sobre a origem e formas de infecção, dando presença às mais diversas possibilidades de transmissão, que faziam da relação interpessoal corrente uma vivência de alto risco e que alimentaram a exigência de políticas de ostracismo para todos aqueles que se soubesse serem seropositivos, como de resto os jornais também dão conta, enquanto “factos” a noticiar. Como memória destes fantasmas, aqui se registam algumas dessas ideias, umas apresentadas como “verdades” ou fortes probabilidades de o serem, só sendo desmentidas – e não pelo mesmo jornal – muito mais tarde. 80

Picada de mosquitos poderá provocar sida245 O vírus da SIDA veio do espaço246 Insectos não passam o vírus da sida247 Sida também se transmite pelas lágrimas248 Sida não se “pega” por contacto casual249 Vírus da SIDA não se propaga no trabalho250 Insectos africanos poderão transmitir Sida251 Também no suor foi encontrado o vírus da SIDA”252 Suor não transmite o vírus da sida253 Beijo é transmissor254 O beijo não pega a sida255 A batalha médica Sendo a maioria das peças sobre a problemática VIH/Sida centrada na história biomédica, organizada nas suas duas grandes linhas, ora a ciência e a medicina a vencerem a doença ora a doença a progredir e a propagar-se fora do controlo da medicina e da ciência, as metáforas bélicas tiveram uma forte presença, sobretudo nos primeiros anos, quando de forma optimista se previa que a cura ou hipótese de prevenção fossem encontradas a breve prazo. A vitória ou a impotência da ciência e da medicina face à síndroma, nestes 20 anos, permanecem como duas grandes narrativas que se interligam. Como marcas dessa disputa, é exemplar o confronto de discursos sobre uma provável vacina para a Sida, e as disputas e Correio da Manhã, 18 de Agosto de 1985. Notícia, não assinada. Título a 2 colunas. Imagem de crianças, em lixeira. Legenda: Deficientes condições higiénicas expõem as pessoas a numerosas infecções, debilitando o sistema imunológico e deixando-as mais vulneráveis ao vírus da SIDA 246 Correio da Manhã, 12 de Dezembro de 1986. Notícia de página inteira, não assinada. Imagens do planeta Terra, visto do espaço e de rua em dia de chuva. Legenda: As chuvas que caem sobre a Terra poderão ser veículo de transporte do vírus da SIDA 247 Diário de Notícias, 10 de Janeiro de 1988. Secção de Informação Geral. Notícia breve, não assinada 248 Correio da Manhã, 17 de Agosto de 1985. Fonte: investigadores norte-americanos 249 Diário de Notícias, 9 de Agosto de 1986. Secção de Informação Geral. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas. 250 Correio da Manhã, 1988. Notícia breve, não assinada 251 Diário de Notícias, 25 de Agosto de 1986. Secção de Informação Geral. Notícia, não assinada, título a 3 colunas. 252 Correio da Manhã, 26 de Junho de 1987. Notícia, não assinada, título com destaque, a 2 colunas 253 Correio da Manhã, 20 de Dezembro de 1991. Notícia breve, não assinada 254 Correio da Manhã, 1987. Notícia breve, não assinada 255 Diário de Notícias, 15 de Maio de 1992. Secção Quotidianos. Notícia breve, não assinada 245

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desacordos entre as próprias comunidades médica e científica sobre as possibilidades da sua criação. Assim se alimentou a ‘novela da vacina’, numa narração de final incerto, como permanece. Nos anos 80, lia-se que a [vacina contra a Sida] pode estar pronta dentro de dois anos; prevê-se para breve; dentro de 4 anos?; difícil ainda de prever o prazo; prevista para breve; médicos dos EUA anunciam…; é ainda impossível; regista progressos; só daqui a cinco anos; ainda é impossível; admitida para 1987; justifica optimismo; só depois de 1990; estará à venda daqui a três anos… No Correio da Manhã, o folhetim da vacina junta-se a fontes terapêuticas alternativas: Herbanários têm cura para a SIDA256 Médico brasileiro diz que cura SIDA com homeopatia257 Raiz peruana cura a SIDA258 A batalha moral Sublinhava Sontag que uma doença com as características da Sida tinha poder para suscitar a convocação de batalhas contra a vivência da sexualidade que não decorresse de acordo com os cânones da moral dominante. Para além do foco nos homossexuais masculinos como os responsáveis pelo contágio, que constituiu o primeiro enquadramento nos dois jornais, à semelhança do que aconteceu noutros países, a referência assertiva a vivências da sexualidade, por vezes com ironia, noutras com interpelação directa ao leitor, marca uma forte presença no Diário de Notícias até princípios dos anos 90. Podemos aí reconhecer o peso de fontes institucionais, nomeadamente ligadas à Igreja, mas também a assunção pelos jornais de um certo discurso corrente, social, feito de cumplicidades com os seus leitores nessa matéria, nomeadamente nas páginas ligeiras como Miramundo e Quotidianos. Estes títulos moralistas, frequentes nos anos 80, vão reduzir-se nos anos 90, altura em que começaram a ter maior visibilidade as palavras de pessoas directamente afectadas e também das organizações não governamentais, como a Abraço, a organização que gerou campanhas com maior visibilidade mediática, nomeadamente a promoção do uso do preservativo, altura também em que, como demos conta, se registou um salto qualitativo nesta cobertura, com peças de reportagem e jornalismo de investigação sobre esta problemática (como foi o Caso Virodene). Correio da Manhã, 1985. Notícia breve, não assinada. Correio da Manhã, Abril de 1986. Notícia breve, não assinada 258 Correio da Manhã, 28 de Novembro de 1988. Notícia breve, não assinada 256 257

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Entre outros títulos de batalha moral dos primeiros anos, podemos observar como nalguns o Diário de Notícias como enunciador se dirige directamente ao leitor, pelo imperativo que aconselha, pela imposição da asserção que não admite contestação, pela adopção das palavras de outros, fazendo-as suas ao eliminar as aspas desse discurso directo: Acabaram os dias da liberdade sexual259 Fidelidade conjugal é o melhor meio para evitar o contágio da doença260 Abuso das leis da natureza resultou na sida261 Vamos ser todos castos262 Sida está a “moralizar” os costumes em África263 Sida está a contribuir para a felicidade conjugal264 Sida: promiscuidade sexual é a maior causa de contágio265 Medo da sida está a modificar o comportamento de solteiros266 Ao menos seja fiel à vida267 Seropositivos apresentam comportamentos excessivos 268

Títulos centrados no alerta para com o desempenho sexual não canónico acontecem também até aos inícios dos anos 90 no Correio da Manhã, jornal onde esta batalha moral foi mais visível e enfática. Na sua economia, contam a moral da história, numa linguagem coloquial e cúmplice com o leitor, pelo frequente recurso a aspas, a sugerir segundos sentidos, também com avaliações, comentários e asserções formuladas com grau máximo de certeza. Alguns dos títulos repetem-se mesmo, com poucas semanas de intervalo. Em vários, Diário de Notícias, 16 de Maio de 1987. Suplemento, chamada de primeira página, para entrevista com Elisabeth Taylor 260 Diário de Notícias, 15 de Junho de 1987. Informação Geral. Notícia, não assinada, título a 4 colunas. Fonte: bispos espanhóis em carta pastoral. Foto de cientista, com máscara, em laboratório 261 Diário de Notícias, 23 de Março de 1987. Notícia breve, não assinada, título a 5 colunas. Fonte: bispo de Setúbal 262 Diário de Notícias, 16 de Outubro 1989. Secção Miramundo. Notícia breve, não assinada 263 Diário de Notícias, 28 de Novembro de 1990. Suplemento Medicina e Ciência. Feature de John Tierney, 2 páginas. Fotografias: criança negra a ser beijada por mulher branca, de manifestantes negros e de mulher com criança negra ao colo 264 Correio da Manhã, Outubro de 1985. Artigo de opinião 265 Correio da Manhã 17 de Novembro de 1991. Feature, não assinado. Título à largura da página. 266 Diário de Notícias, 20 de Junho de 1991. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas 267 Diário de Notícias, 1 de Dezembro de 1993. Notícia breve, não assinada. Secção sociedade 268 Correio da Manhã, 20 de Julho de 1993. Entrevista não assinada, de página inteira, com a psiquiatra Luísa Figueira. 259

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a nova doença surge quase como justiceira, correctora de uma situação não aceitável pelos ‘bons costumes’, estigmatizando estereótipos da mulher sedutora e libertina. Em vários, como pudemos observar, os agentes das acções, os seus sujeitos lógicos, estão ausentes, quando pressuposto está que se dirigem aos “não seropositivos” e que não se querem contagiar, a todos nós. A título de exemplo, a juntarem-se a títulos já referidos, e que têm em comum a ênfase no presente, a acentuar a actualidade da enunciação, um presente que também é contínuo e ainda intemporal: Só fidelidade conjugal evita contágio da SIDA269 SIDA está a contribuir para a fidelidade conjugal270 Casamento e fidelidade atraem cada vez mais a Suécia do sexo livre271 Medo de contágio da SIDA promove os bons costumes272 Suecas dizem que a SIDA provoca falta de amantes273 “Fuga” à SIDA implica alterações sexuais 274 Sida: Promiscuidade sexual é a maior causa de contágio Sida torna francesas fiéis275 Ao contrário destes títulos, encontramos no Correio da Manhã títulos que mostram a distância do jornal em relação àquilo que se afirma, pelo uso de aspas. Aquelas são palavras que o jornal apresenta como não sendo suas: “SIDA não é punição… mas sim doença”276 “É absurdo pensar que a SIDA é uma forma de punição”277

Correio da Manhã, 1 de Agosto de 1985. Notícia não assinada. Fonte: director do Instituto de Práticas Sexuais Avançadas de São Francisco 270 Correio da Manhã, 1985. Este título surge duas vezes nesse ano. 271 Correio da Manhã, 27 de Agosto de 1986. Feature, página inteira, não assinado. Título à largura da página, em 3 linhas, fotografias de casal e carrinho de bebé, de jovens mulheres em fato de banho. 272 Correio da Manhã, 21 de Maio de 1987. Notícia, não assinada, título a toda a largura da página 273 Correio da Manhã, 23 de Julho de 1987. Notícia, não assinada, título a 3 colunas 274 Correio da Manhã, 8 de Julho de 1989. Notícia, não assinada, título a 3 colunas, com destaque 275 Diário de Notícias, 8 de Março de 1996. Secção Síntese/Sociedade. Notícia breve, não assinada 276 Correio da Manhã, 17 de Maio de 1987. Suplemento “Correio dos Jovens”, manchete. Título retirado da resposta de um leitor a um inquérito lançado pelo suplemento 277 Correio da Manhã, Junho de 1987. Suplemento “Correio dos Jovens”. Como o anterior, título retirado da resposta de um leitor a um inquérito lançado pelo suplemento 269

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A Sida, cá dentro Nos primeiros anos a informação sobre as medidas de prevenção da Sida foi quase inexistente e, aparentemente, Portugal diferenciava-se do caos exterior por uma aparente quase imunidade. Disso mesmo se dava conta, explicitamente, em textos de opinião dos dois jornais, como vimos. Em 1983, é o Correio da Manhã o jornal que primeiro informa sobre medidas de prevenção, que anuncia a chegada ao país da nova doença, que avança com o título imperativo, SIDA não deve gerar histeria278. Em quase todos os anos, é dos dois jornais o que mais peças centradas no país (Quadro A6 da Análise de Conteúdo). Em 1984, os dois jornais noticiam a seropositividade do primeiro português, alguém que vem de fora, um emigrante, com o Correio da Manhã a acentuar que é o único com sida. Meses depois, informam da morte de António Variações, embora sem referência directa à nova doença. No ano seguinte, em 1985, outros casos pontuais vão surgir, no Algarve, em Coimbra. A par destas informações, o jornal dá conta de preocupações com possíveis contágios, por parte de médicos e enfermeiros, da baixa incidência da sida no norte do país, do elevado custo do teste, de crianças hospitalizadas. Anuncia (Já temos) um novo centro especializado em doenças transmissíveis e que Portugal “arma-se” na luta contra a SIDA. Informa também que Portugal não importa sangue e que Hemofílicos portugueses não correm riscos de sida279. O número de “casos” vai subindo, chega às quatro dezenas em 1986, mas está muito aquém dos grandes números dos títulos sobre outros países, como vimos. Em 1987, o jornal chama a atenção, em manchete de primeira página, para as palavras de um jovem seropositivo, que vê a vida a fugir-lhe e que lhe faz confissões, na primeira peça deste conjunto que ouve uma pessoa seropositiva. Por contraponto a estes títulos e a outros que dão conta de preocupações de reclusos quanto ao contágio, ou do pouco conhecimento existente sobre preservativos, a partir de 1987, com o número de casos a continuar a subir, encontram-se títulos tranquilizantes, que fazem suas palavras de fontes institucionais: Tudo bem no Algarve em matéria de SIDA280 Correio da Manhã, 1983 Correio da Manhã, Outubro de 1985. Notícia não assinada 280 Correio da Manhã, 1987. Notícia breve, não assinada, título a 2 colunas. Fonte: administrador regional de saúde 278 279

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SIDA em Portugal é extremamente rara281 SIDA em Portugal só afecta 54 pessoas282 Um milhão de portugueses mudou hábitos sexuais com medo da SIDA283 Sida não preocupa os portugueses284 Somos o país da Europa com menor taxa de sida285 Portugal é o penúltimo em casos de SIDA286 Enquanto os “casos” iam aparecendo na imprensa, com especial lugar para cadeias e reclusos, a tensão entre perspectivas diferentes quanto à situação portuguesa transparece mais cedo no Diário de Notícias, com títulos contraditórios como: Apenas quatro casos de Sida entre residentes em Portugal287 Sida: afinal também temos288 Não há mais casos de Sida em Portugal289 Sida em Portugal não é muito grave290 Sida em Portugal está a aumentar291 Há poucas condições no País para evitar contágio da doença292 Sida em Portugal mergulhada no caos293 Português está informado sobre os perigos da sida294

Correio da Manhã, 1987. Notícia, não assinada. Título com destaque, 2 colunas. Fonte: Norton Brandão, médico, no VI Congresso do Clínico Geral 282 Correio da Manhã, 4 de Julho de 1987. Notícia, não assinada. Título a 2 colunas. Fonte: documento da Organização Mundial de Saúde 283 Correio da Manhã, 25 de Novembro de 1987. Feature de Miguel Gaspar, 1 página. Título à largura da página, em duas linhas. Fonte: Grupo de Trabalho da SIDA 284 Correio da Manhã, 22 de Março de 1988. Notícia breve, não assinada. Fonte: Sondagem da Gallop 285 Correio da Manhã, 7 de Novembro de 1988. Notícia, não assinada, título a 2 colunas e 4 linhas. Fonte: Organização Mundial de Saúde 286 Correio da Manhã, 1989. Notícia breve, não assinada. Título com destaque. Fonte: Ministra Leonor Beleza 287 Diário de Notícias, 1 de Setembro de 1985. Informação Geral. Notícia, não assinada. Título a 4 colunas. Fonte: Gabinete do Ministro da Saúde 288 Diário de Notícias, 5 de Setembro de 1985. Suplemento Saúde. Artigo assinado por Maria Guiomar Lima. Fotografia de homem, seropositivo. 289 Diário de Notícias, 19 de Março de 1986. Informação Geral. Notícia, não assinada, título a 2 colunas. Fonte: Instituto Nacional de Sangue 290 Diário de Notícias, 1 de Junho de 1988. Última página. Notícia, não assinada. Fonte: Leonor Beleza 291 Diário de Notícias, 15 de Fevereiro de 1989. Informação Geral. Notícia, não assinada, 2 colunas. Fonte: Grupo de Trabalho da Sida 292 Diário de Notícias, 18 de Fevereiro de 1989. Informação Geral. Notícia, não assinada, 2 colunas. Fonte: especialistas de saúde, reunidos em Simpósio 293 Diário de Notícias, 29 de Novembro de 1994. Reportagem, com chamada de primeira página, a propósito do Dia Mundial da Sida. 281

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Luta contra a SIDA: Portugal está orgulhoso295 Sida em Portugal causa preocupação296 Sida em Portugal tende a diminuir297 Sida dispara em Portugal298 Pela cronologia destes títulos, podemos registar como se prolongou a ilusão do país como um relativo oásis quanto à nova patologia. Isto aconteceu num tempo onde vozes alternativas às das fontes institucionais ainda não se faziam ouvir. Os primeiros anos da patologia no país foram assim marcados por dois movimentos paralelos: enquanto aumentava o número de pessoas identificadas como atingidas pelo vírus, liam-se mensagens contraditórias, mas marcadas pela metáfora do país como um relativo oásis face ao que se passava lá fora. Vinte anos depois do aparecimento do vírus, como vimos, Portugal era o país da União Europeia com maior taxa de incidência da Sida, sobretudo atingindo uma população do sexo masculino entre os 20 e os 49 anos, tendo crescido notoriamente o número de casos transmitidos por via heterossexual.

Diário de Notícias, 10 de Abril de 1988. Informação Geral. Notícia com base em sondagem. Título a 4 colunas. Quadros estatísticos e imagem de laboratório. 295 Notícias Magazine. Artigo de opinião de Isabel Leal, psicoterapeuta e psicóloga clínica 296 Correio da Manhã, 23 de Outubro de 1990. Fonte: ADDEPOS, Associação dos Direitos e Deveres dos Seropositivos e Portadores do Vírus da Sida 297 Diário de Notícias, 28 de Novembro de 1990. Chamada de primeira página, que remete para uma reportagem assinada por Helena Mendonça, tendo como base um relatório do Grupo de Trabalho da Sida. 298 Diário de Notícias, 28 de Julho de 1998. Manchete do jornal, que remete para uma reportagem assinada por Leonor Figueiredo. Esta peça baseia-se num estudo realizado por dois matemáticos e uma epidemiologista. 294

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9. Observações e conclusões finais A análise discursiva realizada sobre os dois jornais portugueses permite encontrar pontos de semelhança e de diferença relativamente a análises realizadas noutros países. Retomando as conclusões de Allan (2003), ressalta, em primeiro lugar, a associação entre a nova patologia e homossexuais masculinos, a que não é estranha a origem comum da informação, proveniente dos Estados Unidos. A discriminação sobre pessoas infectadas, apresentada sobretudo como matéria factual, constitui outra linha noticiosa comum. O grande interesse pela nova patologia e a especulação sobre o seu domínio a curto prazo marcam também os primeiros anos, suportando a história médica, da batalha contra a doença, paradigma dominante no campo da saúde. A subida do interesse humano suscitada pela morte de uma estrela de cinema, Rock Hudson, vem também contribuir para um maior atenção, nomeadamente pela repetição da história da figura pública atingida pela sida, com a notoriedade e o negativismo associados. Enquanto Allan observa que é a partir de 1985 que a imprensa britânica de referência revê o enquadramento da doença como praga gay, a nossa análise mostra que essa revisão ocorre bastante mais tarde, num jornal como o Diário de Notícias. Pela distribuição das peças nos espaços do jornal, podemos observar que, ainda em 1992, muitas estavam colocadas na página dos Quotidianos, um espaço ligeiro, de histórias de interesse humano, escritas num tom de cumplicidade irónica com o leitor, sobre o mundo dos outros, página essa que sucedeu à rubrica Miramundo, também de “histórias do incrível”, dos anos 80, onde aparecem as primeiras peças sobre esta nova doença. É também comparativamente bastante mais tarde do que na imprensa britânica que encontramos no Diário de Notícias uma maior presença de formas de reportar mais sensitivas. Enquanto Allan aponta para o período entre 1986 e 1989, a nossa análise mostra que no Diário de Notícias essa viragem é notória a partir do início dos anos 90, visível no número de peças de reportagem que dão a ver as realidades de pessoas afectadas pela doença e também visível no trabalho de investigação realizado na denúncia de um escândalo, a fraude do medicamento Virodene, em 1998. É indicador de que nas redacções há jornalistas interessados, preparados para um acompanhamento regular desta problemática e empenhando-se nele. Evidencia ainda como as redacções são também espaços de disputa e de negociação entre jornalistas, editores e direcção sobre os temas a cobrir. No caso do Diário de Notícias, nas palavras de jornalistas que escutámos, para a viragem verificada no 88

início dos anos 90 teve importância decisiva a percepção da jornalista Leonor Figueiredo, sobre esse fenómeno – “e que mais ninguém tinha, especialmente ao nível da direcção” – e “a persistência que teve em forçar uma nova forma de abordagem que deu início a uma cobertura mais aprofundada e sociológica do tema”. Tudo isto, ressaltam ainda, “coincidiu com uma grande reviravolta no DN, que reestruturou toda a direcção e chefia”. Na secção Sociedade, “foram tempos de grande debate e discussão, imbuída daquele espírito de que o jornalismo deveria ser mais do que um fait-divers noticioso. E a sida era um dos temas que nos parecia importante abordar de uma forma quase sociológica. Não sem algumas reservas da direcção, que muitas vezes se cansava do tema (“Sida, outra vez!”)”. Destas contingências das relações no interior das redacções se faz também uma necessária teoria da produção noticiosa, pelo menos na inscrição da sua relevância. As relações entre repórteres e editores têm recebido bastante menos atenção do que as relações entre fontes e jornalistas, quando constituem igualmente um aspecto crítico, como escreve Schudson (2000: 185): “muita investigação tem sido centrada nos processos de recolha das notícias mais do que na sua escrita, reescrita e “apresentação”299 no jornal. Isso é lamentável uma vez que a pesquisa aponta que é na apresentação de uma história que advém a sua influência real”. À realidade da sida junta-se uma outra, a da própria organização interna das redacções dos jornais e a forma como é pensada jornalisticamente esta problemática. Não é indiferente o que se selecciona para ser tratado, o lugar onde é tratado e a forma jornalística como é tratado. A associação da sida à pequena criminalidade leva a que muitas referências indirectas apareçam nas páginas do espaço local, provenientes de fontes de rotina, como as policiais e judiciárias. A associação da sida ao insólito e ao mundo dos outros alimenta a sua presença em espaços de informação/entretenimento, em textos leves e mesmo humorísticos, situação que também identificámos no estudo sobre a cobertura jornalística de crianças (Ponte, 2002). Em ambos os casos, o foco centra-se no sujeito singular atingido pela doença, que faz dela uma arma, situação que deve ser exemplarmente punida. A persistência desses traços nos títulos é uma tónica nas pequenas notícias de ambos os jornais. Por contraste, vimos no Diário de Notícias a afirmação de um jornalismo alternativo, no seio da secção Sociedade, realizado por trabalhos de investigação e por reportagens assinadas por jornalistas com acompanhamento regular do tema. Vimos como, desde os 299

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títulos aos espaços ocupados pelas peças, esse tratamento jornalístico configurava de forma diferente a realidade das pessoas com sida, e como essa realidade transportava um olhar sensível sobre as pessoas afectadas e a sua humanidade. Também para esta emergência tardia contribuiu a maior visibilidade pública desta doença associada à incúria no campo da saúde (aos hemofílicos organizados é atribuído um papel de destaque e de intervenção crítica), e ainda também à dificuldade experimentada por minorias sexuais em fazerem-se ouvir de forma organizada, antes de 1991300, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos ou no Brasil. Recordemos também a própria génese de fontes de informação disponíveis e intervenientes, como foi mostrado na II Parte. A Comissão Nacional de Luta contra a Sida (CNLCS) surgiu em 1990, com base na reestruturação do Grupo de Trabalho da Sida, e é então que é definida como uma das suas linhas programáticas a realização de campanhas públicas de comunicação, de entrevistas e de declarações aos meios de comunicação social. É também apenas em 1992 que surge a Associação Abraço, a primeira associação com uma forte política de visibilidade pública, através da promoção continuada de eventos. Por seu lado, encontramos nos anos anteriores sobretudo declarações de membros da hierarquia católica, sustentadas em bases conservadoras – como vimos nos títulos da batalha moral – e de forte oposição ao uso do preservativo como medida de protecção. Ou seja, até bastante mais tarde do que nos jornais britânicos de referência, por exemplo, observa-se no Diário de Notícias a permanência dos primeiros enquadramentos da patologia, com a sua associação a grupos de risco, nomeadamente homossexuais masculinos. Se em relação ao Diário de Notícias podemos assinalar a viragem nesta cobertura no início dos anos 90, em relação ao Correio da Manhã, e tal como na imprensa popular de outros países, observa-se que a sua cobertura se manteve relativamente fiel a um padrão noticioso assente em pequenas notícias de interesse humano, como as de figuras públicas atingidas pela doença ou a sucessão de crimes urbanos a ela associados, como o uso da seringa como arma. A estas pequenas notícias, não assinadas, junta-se o maior peso de cartas de leitores e textos de opinião de sentido conservador, prolongando-se no tempo. Traços de homofobia e a associação persistente da doença à criminalidade e a castigo moral são linhas de fundo

O primeiro grupo organizado foi o Grupo de Trabalho Homossexual, ligado ao PSR, e surgiu em 1991. Antes desse ano, afirma um seu dirigente (in Caldeira, 2004: 133), não havia qualquer tipo de estruturas gays/lésbicas organizadas no que diz respeito a direitos políticos e sociais. 300

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deste jornal durante mais tempo, sendo notório também o declínio da atenção ao tema a partir de meados da década de 90 (cf. Gráfico 1). A dificuldade da afirmação de vozes alternativas – com a excepção da Associação Portuguesa de Hemofílicos – bem como o próprio silêncio governamental sobre a doença no país, com as suas fontes a garantirem que estava sobre controlo e a configurarem o território nacional quase como imune, comparativamente ao que se passava lá fora, terão certamente contribuído para uma também silenciosa expansão do vírus, colocando hoje o país em posição cimeira no contexto da União Europeia. Seria redutor se atribuíssemos aos meios de comunicação social a responsabilidade exclusiva pela situação que coloca Portugal na liderança da percentagem de pessoas com vírus face à população do país, no contexto da União Europeia. Mas a gravidade dessa situação não pode deixar de interpelar todos quantos tiveram e têm uma responsabilidade pública, social, onde se incluem os media. Como esta análise deu conta, não foram certamente indiferentes os enquadramentos que privilegiavam o caso singular e a responsabilidade individual, a história do desvio e da sua punição, e que sustentaram assim ilusão desta doença como confinada ao estranho mundo dos outros.

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