Nova Gestão Pública - Reflexão sobre Origem, Evolução e Implicações na profissão médica e Organizações de Saúde

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NOVA GESTÃO PÚBLICA REFLEXÃO SOBRE ORIGEM, EVOLUÇÃO E IMPLICAÇÕES NA PROFISSÃO MÉDICA E NAS ORGANIZAÇÕES DE SAÚDE

Unidade Curricular: Políticas de Saúde Professor Doutor Tiago Correia Aluna: Rita Varandas, nº 64160 Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação Ramo Internet e Comunicação em Rede

Dezembro de 2014

INTRODUÇAO Reestruturação, sustentabilidade, reforma hospitalar, são algumas das palavras repetidas insistentemente, argumentos apresentados pelos interlocutores do Ministério da Saúde, no caso português, para justificar as várias políticas públicas adotadas com vista a tornar o SNS mais eficiente, eficaz e com menor peso nas contas públicas. Os pedidos para a racionalização dos gastos atingem os utentes e os profissionais de saúde e, atualmente, também os gestores hospitalares. Como refere Correia (2009), a Nova Gestão Pública (NGP) tem na sua conceção a ideia de desperdício e ineficiência do tradicional sistema público em contraponto com a qualidade dos sistemas privadas. A materialização desta ideologia em Portugal concretiza-se, a título de exemplo, através da conversão do estatuto jurídico-legal dos hospitais do setor público administrativo (SPA) em estabelecimentos públicos empresariais (EPE). O processo de empresarialização segue o seu caminho e sai reforçado na atualidade, demostrado através da aposta contínua da tutela na abertura do sistema público a uma cultura que prevalece os princípios organizacionais de eficácia e eficiência. A Nova Gestão Pública consiste, precisamente, numa ideologia que determina a administração dos bens públicos mediante recursos, ferramentas e princípios do setor privado (liberal), expondo, assim, os prestadores públicos às lógicas de mercado. Como refere Correia (2009), a lógica do princípio da NGP assenta na premissa de que “caso o bem público seja gerido como o bem privado, terá como resultado uma maior gestão”. A NGP está normalmente associada a cenários de crises fiscais e problemas orçamentais dos estados. Gruening (2001) refere que a NGP é uma ideologia política que comporta medidas variáveis, distintas em cada país e dependentes dos modelos de governança dominantes. Apesar de não existir uma fórmula única há características comuns. Desde a década de 80 que se assiste a uma retração do papel do Estado (Estado-Providência), como resultado do declínio do “fordismo” e das crises fiscais dos Estados. Foi neste contexto que surgiu o paradigma da NGP utilizado pelos governos com vista a modernizar o Estado. Este trabalho pretende refletir acerca das principais orientações e mudanças que guiaram a implementação de princípios da NGP no setor da saúde, procurando evidências teóricas e empíricas no caso do Reino unido. Refere-se este país, de cultura vincadamente capitalista e liberal, porque foi no tempo de governação de Thatcher, no princípio da década de 80 em Inglaterra, que surgiram os primeiros indícios de uma mudança de paradigma na administração dos bens públicos, ao terminar o consenso sobre o Estado-Providência, sob imperativos de ordem financeira.

As organizações de saúde e os médicos (sobretudo estes) encontraram mudanças significativas na prática diária da clínica. A gestão e os gestores surgem na equação e no espaço da prestação de cuidados. A regulação do trabalho profissional na saúde tornou-se mais estreita à medida que os Estados procuram prestar serviços de saúde de baixo-custo e elevada qualidade aos cidadãos (Allsop e Jones, 2008). A NGP abre caminho à participação do setor privado e à concorrência entre serviços públicos de saúde geridos mediante a introdução de mecanismos de mercado e adoção de ferramentas da gestão privada. De facto, a empresarialização dos prestadores públicos conferiu maior autonomização das competências gestionárias e centralidade de instrumentos do setor privado, elevando a gestão enquanto área científica a um patamar na saúde que anteriormente não tinha alcançado, não só no país mas em todos os Estados onde a NGP é ideologia política dominante. Correia (2009) salienta que, se a emergência dos Estado-providência significou a elevação da medicina enquanto detentora do conhecimento médico e prestação de cuidados, a criação dos hospitais-empresa, conferiu destaque a outras áreas relacionadas com a gestão. Este trabalho está dividido em três partes. No primeiro capítulo é realizada uma resenha do papel do Estado ao longo dos vários períodos da história da administração pública, procurando bases no caso inglês e os condicionantes que levaram à implementação de ideologias da NGP. No segundo capítulo, são analisadas as relações de confiança que se estabelecem a vários níveis (interpessoal, institucional e organizacional) que se desenvolvem ou reconfiguram com a introdução dos princípios da NGP no contexto hospitalar. No seguimento desta reflexão, o terceiro capítulo explora a auto e hetero-regulação da profissão médica e as forças que atuam nas organizações de saúde. O PAPEL DO ESTADO E A NOVA GESTÃO PÚBLICA A transposição da atividade pública para regras do direito privado é uma das características da NGP (Correia, 2013). O modo de produção de saúde estatal, que tem como princípio o interesse público, é substituído por uma lógica de produção de saúde tendencialmente capitalista que têm outros fins, ligados à obtenção de lucro e não visando, necessariamente, o interesse público. Contudo, a NGP não se traduz na privatização ou mercantilização, mas na maioria dos cenários, mercado e a NGP coexistem, sendo que o mercado diz respeito à liberalização e ao privado em si, enquanto a NGP só se refere ao setor público, aplicando, no entanto, regras características dos privados, como taxas moderadas e restrição dos tempos de consulta.

Os modelos de gestão pública sucederam-se ao longo da história, na maioria das vezes, associados às mudanças no modelo do Estado. A tendência reformista da administração pública, sobretudo nas últimas três décadas, como refere Correia (2009), não é exclusivamente nacional, pelo contrário, compreende um leque considerável de países europeus e decorre de contradições do modelo de Estado-Providência. Modelo este que Boaventura de Sousa Santos (1987) considerou nunca estar totalmente efetivado em Portugal, designando-o de “semi Estado-providência”. No período do “Estado-providência”, o Estado era encarado como um provider, ou seja, era dele a responsabilidade de garantir resposta à maioria das necessidades dos cidadãos. O contexto deste tempo, que Osborne e McLauhlin (2002) circunscreveram entre 1945 e 1980, não pode ser ignorado. O Estado-providência surgiu na época após a segunda guerra mundial, da necessidade de reconstruir as nações afetadas e relançar a economia e a indústria, ambas feridas pelo conflito. A fase do pós-guerra representou uma crise a nível mundial, assistindo-se a um aumento substancial das despesas públicas e dos recurso humanos administrativos, consequência do peso maior que o Estado passou o ocupar nas dimensões económicas e sociais. O governo central assumiu, assim, uma função administrativa dos bens e serviços públicos, como consequência do aumento das suas funções e decorrente também de uma certa duplicação de recursos e ineficiência do modelo de organização anterior, defino por Osborne e McLauhin (2002) como “parceria-desigual”. O modelo de Estado-providência caracteriza-se pela intervenção do Estado na vida económica e social, visando o bem-estar das populações através da concretização de metas de satisfação das necessidades básicas da população. Associado ao Estado de bem-estar social surge o modelo de administração profissional caracterizado pelo aumento das atividades da administração pública e pela profissionalização. O modelo tradicional de estado entrou em crise no início da década de 70, com as críticas a centrarem-se na desumanização da burocracia aliadas à subida exponencial dos custos de um Estado altamente intervencionista. A reforma da Administração Pública iniciada em meados da década de 70 teve como propósito resolver a crise do Estado de “bem estar social” e substituir a Administração profissional por outro modelo. A NGP surgiu como um modelo que constituía um desafio à administração pública tradicional estruturada e construída pelos burocratas. A construção do Estado a nível organizacional foi estruturada mediante dois modos de coordenação, por um lado através da administração burocrática que prometia um tratamento equitativo e por outro, pelo profissionalismo que prometia um serviço

desinteressado porque era sustentado num conhecimento científico, especializado (Clarke e Newman, 1997). Obviamente, o clima ideológico foi decisivo na adoção destas metodologias, tendo sido influenciado pelos princípios teóricos defendidos por Weber, Taylor e Wilson. No entanto, a tentativa de reduzir os gastos no plano social e a redefinição do papel que o Estado exercia na economia – as soluções encontradas para fazer face a situações de crise, enfraqueceram o modelo burocrático weberiano (caracterizado pela neutralidade e racionalidade) e deu espaço à introdução de modelos de empresarialização no setor da administração pública, ditando o fim do keynesianismo. A influência das ideias neoliberais associadas aos constrangimentos económicofinanceiros estão na origem da NGP que determina uma administração pública orientada pela racionalidade gestionária e pelos valores de produtividade, eficiência, eficácia e da economia. A NPG é natural dos países anglófonos, tendo emergido no Reino Unido no final dos anos 70, princípio dos anos 80, na governação de Margaret Thatcher - a partir da conceção de que o modelo tradicional de prestação de cuidados de saúde – concebido após a segunda guerra mundial – era incomportável financeiramente, seguindo, assim, as dinâmicas político-ideológicas mais liberais como a racionalização da atividade pública. É de ressalvar que o regime liberal é mais permeável a iniciativas privadas. A NGP introduz uma nova forma de olhar a organização e as responsabilidades do setor público, privilegiando-se os resultados em detrimentos dos processos. A expetativa de redução das situações de incerteza quanto ao financiamento, aos prestadores e utilizadores, a dupla influência (controlo do Estado, por um lado e liberdade de mercado, por outro) e a introdução de mecanismos de controlo e previsão (responsabilização) da gestão e da clínica (health administration), executada por gestores profissionais com uma visão racional preocupada com os meios e os fins ou profissionais gestores que assumem uma posição de neutralidade e superioridade conferida à gestão científica, definem a NGP enquanto ideologia política. Como mencionado aquando da introdução a este trabalho, a NPG é uma ideologia política que comporta medidas variáveis, diferente do conceito de mercantilização ou privatização e concretizáveis de diferentes formas dependendo do país em análise. É também a ação política mais comum adotada pelos países para responder a situações de crise. Há no entanto, como explica Gruening (2001), numa análise sobre a origem e bases teóricas para o surgimento da NGP, características comuns nas reformas levadas a cabo por países como o Reino Unidos, Estados Unidos

da América, Nova Zelândia e Austrália, entre outros que, posteriormente, encabeçaram as reformas. Entre as características comuns encontram-se os cortes orçamentais, a responsabilização pelo desempenho, a auditoria de desempenho, privatização, descentralização, separação entre a provisão e a produção, liberdade para a gestão, apenas para enumerar algumas. A transposição da lógica de gestão empresarial privada na gestão dos bens públicos implica uma economia de mercado descentralizado que envolve, necessariamente, a competição, a modernização e a inovação, mas também a presença de agências reguladoras e supervisão das responsabilidades partilhadas entre o Estado e a sociedade. A separação entre o prestador e o financiador é uma característica importante da NGP e foi identificada no contexto nacional. Em Portugal, cinco dinâmicas na implementação da NGP foram identificadas: descentralização de competências, financiamento e responsabilização (accountability), racionalização das despesas, desregulação do mercado de trabalho e competição interna e ainda a diferenciação no SNS (Correia, 2011). Antes de mais importa notar que o caso português reveste-se de algumas particularidades comparativamente com o caso de outros países da europa. A primeira prende-se com o facto de nunca ter estado completamento implementado e efetivado o Estado de bem-estar social, com Boaventura de Sousa Santos (1987) a concluir que existe um semi Estado-providência, relacionado com o facto de a população portuguesa nunca ter, verdadeiramente, assimilado a sua institucionalização a par de não ter sido construído numa relação sustentável entre acumulação de distribuição de riqueza, explicam a configuração proposta por Santos de semi Estado de bem-estar social. A implementação da NGP arrancou com marcos legislativos importantes a partir de 2002 na governação social-democrata de Durão Barroso e através do quais foram definidas três figuras jurídicas para os hospitais públicos, explícitas na lei nº27/2002, que determina a forma como as diferentes unidades hospitalares são geridas e financiadas. Os hospitais que pertencem ao Sector Público Administrativo (SPA), hospitais entidades públicas empresariais (EPE) e os hospitais geridos enquanto sociedades anónimas, de capitais exclusivamente públicos (Correia, 2008). Atualmente e de acordo com dados do ministério da saúde a maioria dos hospitais são EPE, portanto, geridos mediante uma cultura empresarial. Não é objetivo deste trabalho detalhar as medidas implementadas no âmbito da NGP no contexto nacional, pretende-se apenas destacar as implicações que o modelo teve nos profissionais de saúde, sobretudo ao nível da responsabilização

(accountability) para concluir que a prática clínica não sendo diferente sobre a égide da NGP em comparação com o modelo tradicional, apresenta novas formas de controlo, a título de exemplo e como refere Correia (2011), o controlo da assiduidade através da supervisão biométrica, que constituiu-se como uma das alterações na prática clínica diária. Outro dado importante é que em Portugal o valor simbólico do conhecimento e dos saberes médicos é altamente valorizado, o que lhes confere uma prioridade nas relações de confiança. RECONFIGURAÇÃO DA CONFIANÇA NA NOVA GESTÃO PÚBLICA O modelo referente ao Estado-Providência conferiu ao conhecimento médico autonomia para atingir melhores saberes. Por isso, a reconfiguração do modo de produção de saúde teve especial impacto entre os profissionais da classe médica. No serviço nacional de saúde inglês, vigorava o princípio da confiança entre os três vértices do triângulo que compõem a sociedade: Estado, profissões e público. As profissões só ganharam autonomia quando o Estado as reconheceu, mediante regras de exercício da atividade, acesso à profissão, etc.. A institucionalização da confiança trazia expetativas políticas positivas. A população confiava no julgamento, conhecimento e perícia dos profissionais de saúde e em simultâneo confiava no Estado enquanto regulador e em certa medida com funções de fiscalização, ao assegurar equidade na alocação de bens e serviços públicos (Calnan e Rowe, 2008). Acredita-se que a confiança é relevante, se não fundamental, na prestação dos cuidados e resultados em saúde (Calnan e Rowe, 2008). Nestas relações está presente um grau de vulnerabilidade por parte dos doentes, um certo grau de risco relacionado com as competências do profissional médico e uma relação assimétrica, porque o conhecimento especializado que o médico detém é de difícil compreensão para os doentes, para alguns mais do que para outros. Existem, no entanto, vários níveis e relações de confiança no contexto da prestação de cuidados de saúde. Dentro de uma organização do género, existe uma relação de confiança entre o doente e o médico – normalmente associada a confiança nas competências e habilidades do profissional (a nível interpessoal) - e entre o médico e os gestores hospitalares que se inserem no contexto de relações de trabalho - a nível organizacional. A par desta, a população confia no Estado ou nos órgãos eleitos por ele, para assegurarem uma correta e equitativa distribuição dos bens e serviços públicos – confiança institucional. Alguma desordem nestas relações pode condicionar fortemente os níveis de confiança entre as partes, levando a relações de desconfiança e, como sucedeu, contribuindo para o surgimento da NGP.

O abuso de poder é identificado na literatura (Warren, 1999, citado por Calnan e Rowe, 2008) como elemento perigoso no equilíbrio das já desiguais relações de confiança entre população/utentes e médicos. Vários são os contributos e forças que concorrem para a instauração da desconfiança. Por exemplo, em Inglaterra, percebeuse que iniciativas políticas que partiam do Estado central (“de cima para baixo”) – a nível macro – e que alteravam a forma como os cuidados de saúde estavam organizados, a par

de

uma

transformação

na

atitude

dos

doentes

(mais

informados

e

consequentemente mais exigentes) tinham implicações negativas nos níveis de confiança que doentes e população em geral apresentam relativamente ao sistema de saúde (Calnan e Rowe, 2008). A confiança cega na autoridade médica decorrente, em certa medida, da passividade dos doentes, com os profissionais de saúde a exercerem um papel paternalista e moralista foi-se deteriorando, fruto também das forças consumistas presentes no regime liberal da época na sociedade inglesa, da década de 80. A divulgação pela comunicação social de casos que retratavam erros médicos ou profissionais negligentes minaram as relações de confiança a nível institucional. De facto, a autonomia das profissões passou a ser contestada pelos efeitos que provocava. A população começou a questionar esta autonomia ao constatar que os benefícios para os próprios eram escassos e existiam abusos por parte dos profissionais. Outras das razões que contribuíram para expetativas negativas no triângulo entre as partes, foi a gradual tendência de mercantilização da saúde que se traduziu numa maior vigilância crítica da população, a individualização com predomínio de valores empreendedores no seio do setor público e a alteração ideológica dos Estados no lugar e papel das profissões, atingida pela liberalismo da década de 80, onde começou a prevalecer a necessidade de controlo e previsão dos custos e procedimentos aplicados em nome do estado. Não só o Estado e as populações desconfiam das profissões, mas estas também detém um certo grau de incerteza, para não falar em desconfiança, sobretudo nas relações com o Estado. A este nível fala-se numa quebra de confiança a nível organizacional. Contudo, como defendem Calnan e Rowe (2008) pode não estar presente uma perda de confiança mas uma reconfiguração da confiança que deixa de estar centrada no status para passar a estar ancorada no desempenho. A entrada em cena de gestores poderosos no contexto hospitalar, nomeados pelos executivos e que têm como propósito implementar atividades de regulação, auditoria e monitorização, altera as relações de poder e a dominância da profissão médica, alcançada no período após a segunda-guerra mundial, no qual os médicos detinham autonomia clínica, controlo sobre o diagnóstico e tratamento, controlo sobre a

avaliação dos cuidados e sobre a natureza e volume das tarefas médicas – profissionalismo médico (Harrison, 2004). Inicialmente, os administradores clínicos eram responsáveis pelo controlo das organizações de saúde, posteriormente, começaram a ser apoiados por administradores burocráticos até que o controlo das organizações passou a estar nas mãos de gestores poderosos que trabalhavam num ambiente de NGP, propício às suas tarefas de gestão, causando a erosão do poder profissional dos médicos (Shortell et al. 1996; Harrison and Lim 2003, citado por Hughes, 2014). A introdução de índices de desempenho e/ou produtividade e um maior controlo é gerador de tensões entre médicos e gestores que asseguram o cumprimento dos requisitos inerentes à NGP. Harrison (2004) argumenta que terminaram os “anos de ouro” dos médicos, não querendo com isto dizer que os princípios da NGP sejam antiprofissionais. De facto, novas formas de relações de confiança parecem emergir no contexto da prestação de cuidados de saúde, a nível organizacional, institucional e interpessoal. A reconfiguração da confiança parece apresentar uma tendência para novos pressupostos, ou seja, assiste-se a uma mudança nas motivações para a confiança, deixando de ser suportadas por condicionantes afetivas para se basear em condicionantes racionais. (Calnan e Rowe, 2008). A “embodied trust” como referido na literatura já não se adequa às mudanças culturais e sociais – com cidadãos mais informados, vigilantes e reivindicativos – e não se adapta aos objetivos do Estado, que pretende diminuir o peso dos gastos públicos em diversas áreas da administração pública, sobretudo na saúde. Aliás, a implementação de princípios da NGP, com consequente abertura dos serviços públicos ao mercado concorrencial e a lógicas de mercado, passa a exigir a obtenção de medidas de qualidade, como níveis de desempenho, com vista a tornar os serviços de saúde a prestação de cuidados credíveis e passíveis de serem confiáveis. Harrison (2004) defende, porém, que o declínio na autonomia e dominância médica não se traduziu na perda total de confiança na profissão, mas numa reconversão dos mecanismos através dos quais os médicos conquistavam a confiança do público, dos seus pares e dos gestores. Também Calnan e Rowe (2008) e Allsop e Jones (2008) argumentam que a classe soube reinventar-se através da adoção e uso de inúmeras estratégias, sendo que uma delas, designada “novo profissionalismo”, resultou de um acordo concertado e renovado entre médicos e doentes, incluindo medidas de responsabilização perante utentes mais informados e conhecedores dos seus direitos. Passou-se de um paradigma de confiança pessoal (ou embodied trust) para confiança informada, mais racional (embrained trust). A nível organizacional passou-se de uma

confiança baseada no status e unidirecional, na qual os clínicos têm pouca necessidade de acreditar nos gestores enquanto os últimos têm que confiar nos clínicos, para uma confiança baseada no desempenho e bidirecional, na medida em que os médicos têm que trabalhar com os gestores para assegurarem recursos e o desenvolvimento do serviço e os gestores precisam de trabalhar com os clínicos para assim atingirem os objetivos de desempenho e ir ao encontro das metas do governo. (Calnan e Rowe, 2008). O PRINCÍPIO DO FIM DA “ERA DE OURO” DOS MÉDICOS Atualmente, existem duas linhas de autoridade nas organizações que prestam cuidados de saúde e que são geradoras de conflitos e tensões internas. Assiste-se a uma tentativa para maior controlo dos médicos que têm autonomia para tomar decisões impactantes nos orçamentos das unidades hospitalares. Harrison (2004) refere que que esta lógica de conflito manifesta-se, empiricamente, se os dois grupos perseguirem diferentes objetivos e/ou métodos incompatíveis para alcançarem as metas e que, de facto, foi o que sucedeu no sistema de saúde inglês, nas últimas duas décadas. As organizações de saúde são reguladas pelo Estado através dos gestores e pelos profissionais médicos que são quem aplica o conhecimento, não estando necessariamente sobre a alçada de quem financia. Esta dupla regulação cria tensões e conflitos no seio das unidades hospitalares. Inicialmente, os profissionais estavam isolados, no sentido em que o Estado incentivava e defendia o fechamento do conhecimento e dos saberes médicos conferindo-lhes autonomia, contudo, atualmente e seguindo a ideologia da NGP, o Estado interessa-se e quer saber como está a ser concretizado o conhecimento, ou seja, também quer regular o conhecimento médico. Esta intenção altera um paradigma que se baseava na dependência da autonomia profissional. O estado tornou-se mais severo não apenas por questões financeiras mas também por questões ideológicas. As formas de autorregulação do conhecimento são sujeitas a supervisão coletiva numa tentativa de regulação da forma como o conhecimento é aplicado. No modelo de autorregulação profissional, são os profissionais que constituem o centro do sistema de saúde e a utilização dos recursos depende maioritariamente das suas decisões. Este modelo assume, geralmente, que o controlo sobre o sistema deve ser delegado na profissão dos médicos. No entanto, a organização da prestação de cuidados de saúde tem evoluído no sentido de colocar o doente como pilar na prestação de cuidados e têm-se assistido a uma tentativa de cortar com uma cultura organizacional que, aos olhos dos Estados e em certa medida dos cidadãos, privilegia o interesse dos

prestadores e dos grupos profissionais. Allpson e Jones (2008) refere que a medicina já não é a sua própria juíza, justificando a afirmação com a multiplicação de agências de regulação em vários países e tentativas dos Estados em controlar o saber e a prática médica, com vista a atingir objetivos de qualidade e responsabilidade. O profissionalismo enquanto estratégia de controlo ocupacional e organizacional é hoje confrontado com dilemas de regulação complexos. O poder e a autonomia que foram outrora marcas de uma “época de ouro” e que permitiram fundamentar a autorregulação da profissão pelos pares – têm vindo a ser contaminadas pela incorporação de tecnologias gestionárias e de controlo. Em determinados Estados, como acontece em Portugal na figura da Ordem dos Médicos, persiste a autorregulação da profissão médica, na qual as associações profissionais estabelecem as regras de acesso, determinam quais as melhores práticas que devem constar das orientações, o sistema de penalização para os profissionais que não cumpram os requisitos definidos pela profissão e também detém, em muitos casos, a construção e transmissão do conhecimento médico especializado. A regulação do poder profissional e as suas estratégias são distintas em vários países, no entanto, é percetível que as reformas executadas no sentido de aferir as competências dos médicos ao longo da carreira e a identificação precoce de más-práticas são uma tendência generalizada (Allpson e Jones, 2008). No contexto de maior eficácia e eficiência, a discussão sobre o que deve estar sob a alçada do Estado e o que deve estar nas mãos das associações profissionais ganhou revelo nas últimas décadas. Vários fatores contribuíram para que a autonomia médica e a autorregulação profissional começassem a ser questionadas. A medicina começou a percecionada como uma indústria de alto-risco, registaram-se avanços na prática da medicina baseada nas evidências, as falhas dos reguladores na deteção de más práticas e o aumento da complexidade da tarefa de regulação, promoveram esta cultura de supervisão crítica mais severa por parte dos Estados (Allpson e Jones, 2008). Aos profissionais de saúde, sobretudo médicos, é exigida a prestação de contas relativamente às decisões que tomaram e aos gastos consequentes, para não mencionar, a prestação de contas em termos de desempenho profissional. Harrison (2004) identifica, nas décadas de 60 e 70, três elementos que combinados garantiam a autonomia e a dominância médica, que McKinlay e Merceau (2002) designaram como a época de ouro dos médicos. O Estado incentivava e reforçava a autorregulação profissional, conferia autonomia clínica aos médicos e sustentava que os gestores deveriam apoiar os profissionais de saúde. O segundo elemento nesta espécie de

relação contratual prende-se com o regime de contratação de médicos, evitando a subordinação aos gestores, os médicos eram independentes e em certa medida isolados do restante NHS. Os médicos tinham liberdade para encaminhar utentes para outros hospitais, incluindo provados e sem qualquer atenção às consequências financeiras. A nível formal, os médicos incorporavam em larga maioria os órgãos estatutários do NHS, com poder de veto. Em terceiro lugar, Harrison refere que a prática de gestão do NHS até meados de 1980 era comparável à prática da diplomacia. Os gestores tinham influência mínima nos médicos e estavam focados na resposta das necessidades de atores internos da organização, existia uma ausência generalizada de auditoria e avaliação e sobretudo os gestores agiam como se os médicos fossem os seus clientes ao invés dos doentes/utentes. Este cenário que Dunleavy (1981) apelidou de corporativismo ideológico, alterou-se a partir da década de 80, no sistema nacional de saúde inglês e com as mudanças em curso ao nível da melhoria da gestão hospitalar. Outra tendência na regulação externa da profissão médica tem sido o estabelecimento de códigos de conduta e normas profissionais que regulam ou determinam o que é esperado dos médicos (Allpson e Jones, 2008). Muitos países também começaram a introduzir mecanismos para aferir as competências e conhecimento dos médicos se adaptavam aos modelos vigentes. Assistiu-se a uma espécie de padronização com a produção de diretrizes baseadas em evidências para um maior número de doenças e grupos de doentes. Os médicos foram incentivados a participar ativamente na melhoria da prática clínica, de corresponderem a padrões elevados de qualidade instituídos por entidades externas à profissão e para trabalharem em equipas multidisciplinares. A colaboração entre médicos e gestores abandonou, de certa forma, nos últimos anos, o domínio do conflito, considerando que o sucesso da governação clínica assenta numa comunicação entre as duas forças que atuam nas organizações de saúde. Enquanto o modelo de empresarialização coloca a ênfase na gestão empresarial, a governação clínica pretende deslocar a atenção no sentido do doente e da prestação de cuidados de saúde. O modelo de governação dos hospitais têm-se orientado para a prática da governação clínica. CONCLUSÃO Os desenvolvimentos, sobretudo nas últimas três décadas, no setor da saúde, mostram que as novas práticas de governação, assentes na gestão do desempenho profissional, não estão dependentes do movimento de autorregulação a partir das capacidades dos profissionais, como anteriormente caracterizava a autonomia e a

dominância profissional. As novas práticas dependem, cada vez mais, de um desempenho de tipo gestionário e baseado em normas que determinam as boas práticas que influenciam a tomada de decisão médica. Contudo, Hughes (2013) refere que no contexto de uma governança mais ampla, os médicos, através de uma rede profissional – talvez, mais informal – são capazes de desviar-se do controlo direto dos gestores. Não foi objeto de análise neste trabalho, contudo, no seguimento desta reflexão é importante notar que a governação clínica tem-se assumido, no sistema de saúde inglês, bem como em Portugal, a estratégia adotada pelos Estados e que tem como propósito a melhoria do padrão de funcionamento dos serviços clínicos e da própria prática clínica. A ideologia que move a governação clínica assenta na perda de confiança na autonomia médica, na crença da intervenção estatal na regulação do exercício da medicina e na capacidade do estado definir e monitorizar as políticas médicas. Assim, a governação clínica recorre a uma série de processos, entre eles, a prática baseada na evidência, a monitorização clínica, a auditoria e gestão do risco e o envolvimento dos doentes, com vista a melhorar a qualidade e, em simultâneo, garantir a responsabilização dos profissionais pelos atos da sua prática clínica. Bilson e White (2004) consideram que a governança clínica é normativa e prescritiva e exige aos clínicos uma autorregulação e autoavaliação sobre o seu desempenho que vá ao encontro de normas e protocolos produzidos pelas altas instâncias de saúde. Independentemente da evolução das reformas no setor da saúde é percetível, como refere Correia (2011), que a função de prestador do Estado está gradualmente em retração enquanto emerge a função de regulação da atividade dos privados e é neste sentido que seguiram e poderão seguir as políticas em matéria de saúde, sobretudo, devido ao clima de crises fiscais que é transversal a muitos países do mundo desenvolvido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Allsop, J & Jones, K (2008); “Protecting patients: international trends in medical governance”, In E. Kuhlmann & M. Saks (eds.), Rethinking Professional Governance, Bristol: The Policy Press, cap. 1, pp. 1528. Calnan, M. & Rowe, R. (2008), “Trust relations and changing professional governance: theoretical challenges”, In E. Kuhlmann & M. Saks (eds.), Rethinking Professional Governance, Bristol: The Policy Press, cap. 4, pp. 61 -76. Correia, T. (2009), “A reconceptualização dos modos de produção de saúde no contexto da reforma hospitalar portuguesa”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 85, pp. 83-103. http://rccs.revues.org/350?lang=fr

Correia, T. (2011), New Public Management in the Portuguese health sector: a comprehensive Reading, Sociologia Online, 2, pp. 573-598. http://revista.aps.pt/cms/files/artigos_pdf/ART4dc41d5890f57.pdf Gruening, G (2001), Origin and theoretical basis of New Public Management. International Public Management Journal, 4: 1 – 25 Harrison, S. (2004), “Medicine and Management: Autonomy and Authority in the National Health Service”, in In A Gray & S Harrison (eds.),Governing Medicine: theory and practice, Berkshire: Open University Press, cap. 5: 51 – 59. http://dl4a.org/uploads/pdf/6-Governing_Medicine.pdf. Hughes, D (2014), “Health Administration”, In WC. Cockerham (ed), The Wiley Blackwell Encyclopedia of Health, Illness, Behavior, and Society Acessível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781118410868.wbehibs028/full Hughes, D. (2013), “Sociological Perspectives on Regulation and Governance”, Sociology of Health and Illness: special editorial, Acessível em: http://onlinelibrary.wiley.com/journal/10.1111/(ISSN)14679566/homepage/sociological_perspectives_on_regulation_and_governance.html.

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