Novas Dimensões Etnográficas

August 4, 2017 | Autor: Eva Barrocas | Categoria: Anthropology
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Novas dimensões etnográficas: Para lá de um espaço.

Mestrado em Antropologia – Especialização em Culturas Visuais Ano Lectivo 2014 /2015 - 1º Semestre/ Janeiro 2014 Disciplina: Teorias e Métodos em Antropologia Docente: João Leal Discente: Eva Barrocas (43919)

Índice INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 3 1- UM ESPAÇO, UMA CULTURA: A DIMENSÃO ETNOGRÁFICA DURANTE A ANTROPOLOGIA MODERNA (1920-1980). ........................................................................................ 3 1.1- A DIMENSÃO ETNOGRÁFICA NA ANTROPOLOGIA MODERNA: A PARTIR DE MALINOWSKY. .......... 5 2- PARA LÁ DE UM ESPAÇO: A DIMENSÃO ETNOGRÁFICA NO INÍCIO DA ANTROPOLOGIA CONTEMPORÂNEA. ............................................................................................. 6 2.1 – PARA LÁ DE UM ESPAÇO: A CONEXÃO GLOBAL COMO PARTE DA DIMENSÃO ETNOGRÁFICA. .... 7 2.1.1 Friction: An Ethnography of Global Connection de Anna Tsing. .......................................... 8 2.2. – PARA LÁ DE UM ESPAÇO: UMA ETNOGRAFIA MULTI-SITUADA. ................................................ 10 2.2.1-An Ethnography of Displacement in the National Order of Things de Liisa Malkki ........... 10 CONCLUSÃO ........................................................................................................................................ 12 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 13

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Introdução Neste trabalho proponho explorar o desenvolvimento da dimensão etnográfica desde da Antropologia Moderna (1920-1980) até à Antropologia Contemporânea. Numa primeira parte são apresentadas as linhas que definiram o trabalho etnográfico durante a Antropologia Moderna, sendo dada especial atenção à definição do método etnográfico apresentada por Bronislaw Malinowsky. Durante o período da Antropologia Moderna, o objecto de estudo antropológico residia em comunidades situadas num determinado espaço e tempo. A dimensão geográfica do local era a dimensão etnográfica do antropólogo e cada local era encarado como uma unidade cultural, que englobava sistemas de valores próprios e fechados. Numa segunda parte deste ensaio, são apresentadas as mudanças temáticas e metodológicas que definiram a transição para a Antropologia Contemporânea. A procura antropológica deixou de se focar na coerência e na definição dos sistemas culturais. A perspectiva essencialista, utilizada pelos antropólogos modernos para definir as unidades culturais estudadas, foi substituída pela análise da conexão e da transformação dentro da comunidade e acompanhada por um crescente interesse na agencialidade1 das populações. Surgiram diversas áreas temáticas dentro da Antropologia que permitiram incluir o estudo da globalização e da transformação social. Seguindo os dois modos de realização da investigação etnográfica sugeridos por George Marcus, proponho apresentar como exemplos de etnografias2 contemporâneas que foram para lá de um espaço, ou seja, ultrapassaram a dimensão local característica da etnografia moderna, o trabalho de Anna Tsing e Liisa Malkki

1- Um espaço, uma cultura: A dimensão etnográfica durante a Antropologia Moderna (1920-1980). Durante o período que definiu a Antropologia Moderna, entre 1920 e 1980, o objecto de estudo antropológico residia em comunidades situadas num determinado espaço e tempo. O mundo estava dividido em “The West and the Rest” e a Antropologia focou-se durante este período maioritariamente no “the Rest” enquanto a Sociologia se focou no estudo do “the 1 O termo agencialidade é utilizado para descrever a acção individual como qualidade da vida social. 2 A etnografia, através de um conjunto de metodologias aplicadas no estudo e documentação das culturas, estabelece a relação entre teorizações antropológicas e a realidade cultural observada durante o trabalho de campo do antropólogo.

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West”. Eram preferencialmente escolhidos locais exóticos para realizar o trabalho de campo etnográfico. O espaço de estudo limitava-se a uma aldeia ou uma tribo. Estes locais definiam a dimensão etnográfica na qual o antropólogo se deveria imergir. A dimensão geográfica do local era a dimensão etnográfica do antropólogo e cada local era encarado como uma unidade cultural coesa, que englobava sistemas de valores próprios e fechados. Durante o século XX, a tradição de investigação etnográfica britânica assentava na Antropologia Social. Os estudos dentro desta corrente teórica eram maioritariamente realizados com populações não europeias. Os antropólogos debruçavam-se sobre a definição de sistemas de organização social, incluindo nas suas investigações dados de áreas como economia, religião, política e parentesco. Paralelamente, nos Estados Unidos da América, a Antropologia seguia as linhas teóricas do Culturalismo Norte-Americano. As culturas eram estudadas segundo uma perspectiva holística, ou seja, como unidades coesas que definiam a vida dos seus praticantes. Paralelamente às linhas de pensamento dominante da Antropologia Moderna, que encaravam as culturas como unidades isoladas e estruturadas, alguns antropólogos começaram a desenvolver o estudo dos processos de conexão e cruzamento de culturas. O estudo dos fenómenos de interação social foi iniciado a partir da formulação da teoria da aculturação3, desenvolvida por Melville Herskovitz e Roger Bastide, entre 1930 e 1940, (Leal, 2011, p.3). Porém, a teoria da aculturação permaneceu fora das temáticas centrais desta época, tendo sido depois recuperada durante o crescente interesse dos antropólogos contemporâneos sobre a globalização (Leal, 2011, p.3).

3 O termo aculturação é utilizado para descrever o fenómeno resultante do contacto entre duas ou mais culturas diferentes, e que origina alterações em ambas.

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1.1- A dimensão etnográfica na Antropologia Moderna: a partir de Malinowsky. Durante o período em que vigorou a Antropologia Moderna, a dimensão etnográfica era predominantemente local e pessoal A Etnografia foi definida como método científico a partir das indicações de Bronislaw Malinowsky na Introdução da sua obra Argonautas do Pacífico Ocidental de 1922. A Introdução da monografia de Malinowsky marcou o desenvolvimento da Antropologia, ao apresentar a metodologia a ser seguida pelo antropólogo durante o seu trabalho de campo. A observação lenta e participativa formulada por Malinowsky tornou-se numa das características distintivas da Antropologia. Para Malinowsky, a Etnografia tinha como base a observação participativa, como refere: “Da parte do Etnógrafo, significa que a sua vida na aldeia no início uma aventura muitas vezes estranha e desagradável, outras vezes intensamente interessante – assume depressa um curso natural em harmonia progressiva com aquilo que o rodeia” (Malinowsky,

1983, p22). Na realização do trabalho de campo, o antropólogo devia permanecer durante diversos meses ou anos a viver com a comunidade em estudo, de maneira a que fosse possível partilhar rotinas e acontecimentos diários. Era essencial proceder à recolha científica de dados, através da realização de entrevistas, tabelas de registo de observações, diagramas ou cartas sinópticas4. O trabalho de campo era também acompanhado pelo registo de comportamentos e acontecimentos num diário de campo. As fotografias tornaram-se uma ferramenta de registo útil, principalmente porque permitiam uma análise a posteriori do material recolhido. Era fundamental reduzir a distância entre a maneira de pensar do antropólogo e das pessoas locais. Para tal, não se poderia apenas realizar observação. Era necessário participar na vida social e cultural como salienta o autor: “Neste tipo de trabalho, é ainda aconselhável que, de vez em quando, o Etnógrafo ponha de lado a máquina fotográfica, o bloco de notas e lápis e intervenha no que se está a passar” (Malinowsky, 1983, p34). A dimensão etnográfica englobava

o que acontecia na vida social

local e tinha como base uma permanência próxima do

antropólogo entre a comunidade. Para que fosse possível uma recolha e análise fidedigna da vida das comunidades locais, a pesquisa etnográfica dependia do estabelecimento de uma boa relação entre o 4 As cartas sinópticas são utilizados para a organização de dados concretos como de geneologia, transações económicas, propriedade e observação.

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antropólogo e as pessoas que estudava. Durante a pesquisa etnográfica, as fontes de informação eram maioritariamente pessoas locais, existindo informadores chave: indivíduos que, ao demonstrarem um maior à vontade ou facilidade de comunicação e de entendimento do papel do antropólogo, se tornam colaboradores da pesquisa etnográfica. Ao escrever sobre a sua pesquisa, Charles Wagley realçou a importância de um informador chave, Champukwi, um índio da comunidade Tapirapé, que se tornou o seu assistente durante o trabalho de campo realizado na sua aldeia na floresta amazónica: “He seemed somehow to understand the anthropologist´s task in studying his culture, and in the process he gained considerable objectivity about his own way of life” (Wagley, 2007, p 134). Vários investigadores, como Margaret Mead, Charles Wagley, Edward EvansPritchard e Zora Neale Hurston, realizaram etnografias de estadia prolongada. O trabalho de campo passou a ser encarado como um ritual de passagem da vida académica para a profissional na carreira de um antropólogo.

2- Para lá de um espaço: A dimensão etnográfica no início da Antropologia Contemporânea. Can the mutually constitutive relationship between anthropology and locality survive in a dramatically delocalized world? (Appadurai, 1996 p.178)

A Antropologia Contemporânea, com início na década de oitenta do século XX, foi marcada pelo aparecimento de novas linhas de pensamento e dimensões etnográficas. A procura antropológica deixou de se focar na coerência e na definição dos sistemas culturais. A procura da identificação de unidades culturais foi substituída por uma investigação das dinâmicas dentro das culturas, através da análise da conexão e da transformação dentro da comunidade. As pesquisas etnográficas passaram a incluir uma procura da compreensão de tendências globais e movimentos de transformação social. A conexão e a globalização atuam sobre as culturas, que antes eram pensadas como unidades isoladas. Há problemas locais que derivam de fenómenos globais. As pessoas passaram a ser encaradas como elementos transformadores da sua cultura. As redes de agencialidade e a criatividade tornaram-se objetos de estudo da Antropologia (Ortner, 2006, p.131). George Marcus definiu dois modos gerais para realizar investigação etnográfica contemporânea em que o local e o global se entrelaçam. O primeiro método caracteriza-se por

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um intenso trabalho de campo situado e participativo, que é acompanhado por outros meios de pesquisa referentes ao sistema mundo, como utilização de arquivos, e dados históricos e/ou aplicação e exploração de macroteorias a partir de casos específicos situados (Marcus, 1995, p.95). O segundo método caracteriza-se por um trabalho de campo multi-situado. Esta perspetiva móvel da etnografia veio desafiar os métodos clássicos de trabalho de campo localizado e de estadia prolongada (Marcus, 1995 p.100). Para seguir os fenómenos culturais e sociais derivados da globalização é necessário que o trabalho de campo ocorra em diferentes locais e com intensidade e duração variáveis (Marcus, 1995, p.100).

2.1 – Para lá de um espaço: A conexão global como parte da dimensão etnográfica. “Global connections are everywhere. So how does one study the global?”

(Tsing, 2005, p.1) Segundo Zygmund Bauman, vivemos num período de modernidade “líquida”: “ (…) that is a condition in which social forms (structures that limit individual choices, institutions that guard the repetitions of routines, patterns of acceptable behaviour) can no longer (and are not expected) to keep their shape for long” (Bauman, 2007, p.1). A forma e estrutura sociais dissolveram-se num

mundo global incerto (Bauman, 2007, p.2). A ideia de um mundo globalizado circula par a par com a ideia generalista de movimento livre, ou seja, da existência de uma circulação livre de matérias-primas, bens, pessoas, informação e ideias num mundo aparentemente sem fronteiras palpáveis. Somos confrontados com esta circulação global ao ir ao supermercado e encontrarmos disponíveis produtos de diversas origens distantes. Ou, através de um computador e de uma ligação à Internet, que nos permitem “visitar” virtualmente todos os cantos do mundo. Porém, se pensarmos nesta circulação global apenas de forma generalista, vemos somente a projeção dos diversos fenómenos que lhe dão forma. Perdemos a visão das redes internas que a constituem, das pessoas que nela estão envolvidas, e das tensões que nela residem. E é aqui a Antropologia entra. A crescente conexão mundial através de um maior acesso da população a meios de comunicação de longa distância levou à criação de redes de influência que atuam localmente. Surgiu a necessidade de analisar escalas supralocais: “Second, on a planet open to free circulation of capital and commodities, whatever happens in one place has a bearing on how people in all other places live, hope or expect to live (Bauman, 2007, p.6). Há um imaginário á escala global que

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influencia a agencialidade das populações locais. As pesquisas etnográficas passaram a incluir uma procura pela compreensão de tendências globais e movimentos de transformação social. Há fenómenos localizados num espaço específico que só podem ser decifrados quando se identificam os fatores externos que estão a atuar naquele local. Compreender a produção de localidade, ou seja, entender e identificar o conjunto de fenómenos que levam à criação de uma identidade local dentro de um espaço de forte interação social, implica agora um olhar multiplamente localizado do antropólogo. Ou seja, atualmente, a dimensão etnográfica em que o antropólogo se imerge na sua pesquisa, torna necessário que ocorra, em simultâneo, uma presença enraizada no local e com as pessoas, e uma visão periférica sobre as redes de influência que atuam e esculpem as transformações que nele ocorrem. Desafiando a visão essencialista de cultura da Antropologia Moderna, Apppadurai utilizou o termo ethnoscape para definir uma nova dimensão etnográfica contemporânea. O conceito de ethnoscape engloba a constante circulação de pessoas como parte integrante da identidade desse local: ”By ethnoscape, I mean the landscape of persons who constitute the world in which we live. Tourists, immigrants, refugees, exiles, guest workers, and other moving groups and individuals constitute an essential feature of the world and apper to affect the politics of (and between) nations to a hitherto unprecedented degree” (Appadurai,1996, p.33). E, acrescenta: “ethnoscape, a term I used to get away from the idea that group identities necessarily imply that cultures need to be seen as spatially bounded, historically unselfconscious, or ethnically homogeneous forms”

(Appadurai, 1996, p.183).

2.1.1 Friction: An Ethnography of Global Connection de Anna Tsing. Anna Tsing, na sua obra Friction: An Ethnography of Global Connection, analisou a destruição florestal na Indonésia através de redes de influência transnacionais. Tsing fez trabalho de campo prolongado e, em proximidade, com as populações locais, trabalhou com os Dayaks (população local), com os migrantes que vivem do corte da madeira e com os ambientalistas que desenvolveram iniciativas de proteção e conservação das florestas. Para além da procura por uma visão local, Tsing partiu para o estudo através de um olhar crítico sobre os fenómenos que advêm do choque ou fricção entre o local e o mundo: “Cultures are continually co-produced in interactions I call “frictions”: the awkward, unequal, unstable, and creative qualities of interconnection across difference”(Tsing, 2005, p.4). Tsing sugere que se utilize os

princípios da etnografia para realizar uma análise da conexão global a partir de situações específicas e locais.

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Na etnografia de Tsing, o leitor é confrontado com o contexto social e político da destruição florestal. A partir de 1970, a floresta começou a ser explorada para a produção de matéria-prima controlada por empresas japonesas, que tinham estabelecido parcerias com o Estado da Indonésia, através do governo do Presidente Suharto (p.15). Mais tarde, em 1980, o Estado da Indonésia assumiu o controlo do monopólio que girava à volta das várias espécies arbóreas de Dipterocarpaceae seguindo o mesmo modelo das transnacionais japonesas. A área florestal tornou-se um campo de domínio ambíguo. Passaram a existir zonas de fronteira que separam áreas privadas de públicas e as áreas de exploração das de conservação. A paisagem natural deixou de existir como um bem em si mesmo, transfigurando-se num produto, numa matéria-prima: “The landscape itself appears inert: ready to be dismembered and packaged for export” (p.29). As sociedades que aí viviam perderam os direitos das terras e o

território mergulhou num domínio obscuro. A floresta foi ocupada por pessoas de diferentes origens que deram corpo aos instrumentos das explorações madeireiras e ao cultivo de borracha e óleo de palma. Esta destruição massiva foi geograficamente situada mas incentivada por redes de influência externas, que são desmanteladas e denunciadas pela antropóloga. Apesar da destruição da floresta trazer prosperidade económica, esta não é partilhada pelos locais. O dinheiro gerado como que se teletransporta para quem detêm o poder deste monopólio. A exportação é o principal destino destas matérias-primas. “It is difficult to find the words to discuss this kind of transethnic, translocal collaboration and the regional resource dynamics it sets in motion. Resource economists and bureaucrats recognize no localisms; to them, the world is a frontier” (p.35)

A exploração económica dos recursos naturais à escala global envolve conceitos universais de poder que só são completamente compreendidos se a análise for feita através de situação concretas, situações locais (p.267). Para criar uma análise completa das conexões globais e dos seus meios de funcionamento há que abandonar os conceitos abstratos e universais que as fundamentam e estudar especifica e localmente os dilemas, ou fricções que advêm da sua prática.

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2.2. – Para lá de um espaço: Uma etnografia multi-situada. Mesmo durante o período da Antropologia Moderna, houve trabalho de campo situado em diferentes locais de forma a serem realizados estudos comparados, como é exemplo o trabalho Sex and Temperament in Three Primitive Societies de Margaret Mead em 1935. Contudo, apesar de existir trabalho de campo multiplamente situado, cada local era analisado como uma unidade isolada. O trabalho multi-situado sugerido por Marcus pretende ir para além do estudo comparativo e unitário de culturas, ou seja, “it develops instead a strategy or design of research that acknowledges macrotheoretical concepts and concepts of the world system (…) it also ethnographically constructs aspects of the world system itself through the associations and connections it suggests among sites” (Marcus, 1995, p.96).

Num mundo em constante conexão e movimento, a etnografia, através de uma dimensão multi-situada, estuda as redes que se formam, ao seguir grupos de pessoas através das suas deslocações e processos de diferenciação cultural. As representações de espaço nas ciências sociais basearam-se numa fragmentação geográfica em países e culturas em que o espaço foi encarado como uma paisagem neutra onde ocorreu diferenciação cultural: “Representations of space in the social sciences are remarkably dependent on images of break, rupture, and disjunction. The distinctiveness of societies, nations, and cultures is based upon a seemingly unproblematic division of space, on the fact that they occupy "naturally" discontinuous spaces“ (Gupta, Ferguson, 1992, p.337). Há diversas exceções

a esta visão unitária entre espaço e cultura que ficaram excluídos das temáticas mais exploradas durante o período da Antropologia Moderna: habitantes de zonas de fronteira; trabalhadores sazonais e migrantes; nómadas; expatriados e refugiados.

2.2.1-An Ethnography of Displacement in the National Order of Things de Liisa Malkki Através de uma etnografia multi-situada, Liisa Malkki debruçou-se sobre uma categoria ambígua dentro do sistema de nações, mas que contudo engloba milhões de pessoas espalhadas por todo o mundo - os refugiados: “This is, in fact, a concise statement of some key reasons for the systematic invisibility of refugees in the literature on nations and nationalism, as in the familiar old anthropology of “peoples and cultures”: refugees are at once no longer classified and not yet classified. They are no longer unproblematically citizens or native informants. They can longer satisfy as “representatives” of a particular local culture” (Malkki, 1995, p7).

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Os campos de refugiados são grandes massas populacionais que sofreram uma desterritorialização, foram obrigadas a abandonar o seu país de origem, permanecendo num espaço intersticial dentro do sistema clássico de organização mundial em nações. Na Primavera de 1972, o exército do Burundi, chefiado pela minoria étnica Tutsi, matou mais de 100.000 pessoas da etnia Hutu no espaço de tempo de um mês. Malkki realizou trabalho de campo em dois locais habitados pelos refugiados do massacre. O campo Mishamo situava-se numa zona isolada da Tanzânia. O segundo grupo de refugiados vivia na cidade de Kigoma. No campo de Mishamo o discurso dos refugiados Hutu desenvolveu-se segundo uma visão heroica do grupo de sobreviventes a que pertencia. Segundo a investigação de Malkki, o discurso colectivo, o exílio iria levar à formação de uma identidade nacional mais forte e que iria recuperar a sua nação, o Burundi (p.3). Havia uma preocupação em transmitir a história e princípios morais dos Hutu através de provérbios e narrativas, que foram recolhidos por Malkki (p.53). Ocorreu uma revitalização da sua história e cultura. Os refugiados de Mishamo não incluíam os refugiados de Kigoma na sua visão heróica dos Hutu, nem na linha pura de Hutu que se estava a formar durante o exílio (p.3). No campo de refugiados de Kigoma, não houve formação de um identidade colectiva, pelo contrário desenrolou-se um processo de assimilação5 na vida cosmopolita e de dissolução da identidade nacional. Em Kigoma existia um acentuado tráfego de pessoas e uma pluralidade de habitantes. Ao contrário de Mishamo, em que se se formou uma comunidade essencialmente Hutu, os refugiados de Kigoma viviam em zonas etnicamente heterogéneas. Os refugiados de Kigoma escondiam a sua condição, muitos negavam que o eram se lhes fosse perguntado diretamente (p.156). Em vez de uma reconstrução da identidade nacional como ocorreu no campo de Mishamo, em Kigoma cada um construiu a sua própria identidade através de estratégias criativas que permitiriam uma dissolvência dos refugiados Hutu dentro das diversas categorias sociais da cidade (p.156). Esta invisibilidade procurada pelos Hutu citadinos era fomentada por uma preocupação geral de ser transportado para os campos de refugiados e de perda de liberdade individual (p.156). Apesar de fisicamente separados, a forma como os habitantes de Mishamo

5 O termo assimilação é utilizado para descrever um fenómeno estudado pela sociologia e antropologia, em que pessoas de uma determinada cultura se adaptam ao modo de vida de uma outra comunidade a qual passam a pertencer. A assimilação pode ocorrer com diferentes intensidades, atingindo o seu máximo quando deixa de ser possível identificar uma pessoa como membro da minoria a que pertence originalmente.

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imaginavam os refugiados que viviam em Kigoma, e vice-versa, definiram a própria ideia de si mesmos (p.197). Em Kigoma, havia uma visão negativa da cidade nos campos de refugiados que eram vistos como uma prisão. No campo de Mishamo, a assimilação dos Hutu em Kigoma era vista como uma traição a sua própria cultura. Em ambos os locais criou-se uma visão extrema da vida dos refugiados noutros locais, que participou na formação de ambas as comunidades. Havia migração e famílias repartidas entre Mishamo e Kigoma mas esta fluidez de movimento não fazia parte do imaginário de cada um dos locais. Dentro dos campos de refugiados há processos de formação cultural local que preenchem o vazio categórico em que o resto do mundo os incluí: “But there is a big difference in “matter out of place” in the classification of plants or animals and the “matter out of place” when people are in question. For people categorize back (Malkki, 1995, p.8).”A assimilação cultural e a

formação de uma identidade local são estratégias distintas, porém podem surgir a partir da mesma situação inicial de exílio forçado. A agencialidade das pessoas depende do meio social onde vivem: “Whatever “agency” they seem to “have” as individuals is in reality something that is always in fact interactively negotiated. (…) As truly social and inescapably social begins, they can only work within the many webs of relations that make up their social worlds” (Ortner, 2006, p.151).

As estratégias de sobrevivência de cada grupo de refugiados dependeram da ethnoscape que passaram a habitar e da informação que lhes chegava sobre a vida dos Hutu noutros locais. Baseada numa etnografia dos fenómenos culturais, sociais e políticos dos refugiados do Burundi, Malkki identificou dois processos específicos de lidar com a condição de refugiado. Ambos os processos dependeram da agencialidade dos membros das comunidades quer seja através da reconstrução da identidade cultural ou pela assimilação cultural.

Conclusão O local e o método etnográfico eram as linhas condutoras da dimensão etnográfica da Antropologia Moderna. Com o desenvolvimento da Antropologia Contemporânea, a dimensão local foi alargada para que fosse possível fazer perguntas sobre a transformação e diferenciação cultural que estavam a ocorrer num mundo contemporâneo. As culturas passaram a ser encaradas não como unidades fechadas e coerentes, mas como um conjunto dinâmico de interações que as definem e transformam. O interesse da Antropologia Moderna pelas estruturas e sistemas, em que as pessoas eram estudadas como reprodutoras da cultura ou sociedade em que se inseriam, foi substituído por um interesse pela agencialidade das populações.

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Num mundo em constante conexão e movimento, a etnografia “dá corpo” às grandes teorias da globalização, cruzando escalas de análise desde o local ao supralocal. A etnografia vai agora para lá de um espaço, ou seja, as culturas já não são definidas de forma unitária com a fragmentação geográfica de nações ou povos. Há um interesse em estudar novos processos de diferenciação cultural derivados da conexão global. E, para tal, a dimensão etnográfica tem que incluir simultaneamente uma visão local e uma visão para lá do local. Esta visão alargada inclui uma dimensão multi-situada e uma dimensão supralocal. Estas novas dimensões de espaço do trabalho etnográfico são necessárias para que seja possível compreender a posição das culturas e comunidades no sistema mundo e as redes de influência que estão a atuar na sua transformação. É necessário que ocorra em simultâneo uma presença enraizada no local e com as pessoas, e uma visão periférica sobre as redes de influência que atuam e esculpem as transformações que nele ocorrem. O global é encarado como parte integrante das situações locais e não algo paralelo e exterior.

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