Novas estéticas ao jornalismo televisivo: ruptura e renovação das linguagens a partir do uso das câmeras onipresentes profissionais

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PARTE XI

DTI II Estudos de Jornalismo

O testemunho da dor dos outros The testimony of pain of others A na C l áu di a P er es1

Resumo: O artigo inspira-se no ensaio da escritora americana Susan Sontag, Diante da dor dos Outros, para indagar sobre um jornalismo que abusa dos enredos catastróficos em narrativas de teor testemunhal, que ora incomodam ora provocam apatia, mas só raramente são capazes de despertar sentimentos de alteridade. Para tanto, analisa narrativas sobre um acontecimento de natureza traumática: o desaparecimento do pedreiro Amarildo, numa favela do Rio de Janeiro, em julho de 2013. Nosso objetivo é discutir como o testemunho, mais do que mediar o sofrimento, pode colocar sujeitos em relação, oferecendo uma chave para pensar um jornalismo menos autoritário e mais dialógico.

Palavras-Chave: Narrativa. Jornalismo. Testemunho. Sujeitos. Abstract: The article is based on essay of american writer Susan Sontag, Regarding the pain of others, to inquire about journalism that abuses the catastrophic scenarios in testimonial content of narratives, which sometimes bother sometimes cause apathy, but only rarely are able to arouse feelings of otherness. It analyzes narratives about an event of traumatic nature: the disappearance of Amarildo bricklayer in a slum in Rio de Janeiro, in July 2013. Our purpose is to discuss how the witness, rather than mediate suffering, can put subjects in relation offering a key to think a less authoritative journalism and more dialogical.

Keywords: Narrative. Journalism. Testimony. Subject.

INTRODUÇÃO “As recordações que jazem dentro de nós não são gravadas em pedra; não só tem a tendência para se apagarem com os anos, como também é frequente modificarem-se ou inclusivamente aumentarem, incorporando delineamentos estranhos. Sabem-no bem os magistrados: quase nunca sucede que duas testemunhas oculares do mesmo facto o descrevam do mesmo modo e com as mesmas palavras, mesmo quando o facto seja recente, e que nenhuma das duas tenha um interesse pessoal em deformá-lo” Primo Levi, Os que sucumbem e os que se salvam

1.  Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PGCOM-UFF), [email protected]

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E

M 2003, a norte-americana Susan Sontag escreveu o ensaio Regarding the pain of

others em que reflete sobre o impacto provocado pelo excesso de imagens da dor e da guerra cotidianamente evocadas pela arte e veiculadas nos meios de comunicação. É como se perguntasse: diante do uso imoderado das imagens de sofrimento, teríamos nos tornado imunes ao infortúnio do outro? Neste artigo, seguimos a trilha sugerida pela autora para indagar sobre um jornalismo que abusa dos enredos catastróficos em narrativas de teor testemunhal, que ora incomodam ora provocam apatia, mas só raramente são capazes de despertar sentimentos de alteridade. No livro que inspira este artigo, Sontag nos diz que “é necessária uma vasta reserva de estoicismo para percorrer as notícias de um grande jornal a cada manhã, dada a probabilidade de ver fotos capazes de nos fazer chorar” (SONTAG, 2003, p. 17). Ao citar o poeta francês Charles Baudelaire, ela nos lembra o “tecido de horrores” que pode ser um jornal. Por outro lado, a autora sugere que, num mundo hipersaturado de imagens chocantes, aquelas que deveriam ser importantes acabam por se tornar banais, têm seu efeito reduzido, provocando nos leitores reações poucas ou quase nenhuma. “Inundados por imagens do tipo que, no passado, chocavam e causavam indignação, estamos perdendo nossa capacidade de reagir. A compaixão, distendida até seu limite, está ficando entorpecida” (SONTAG, 2003:90). No entanto, longe de seguir por um caminho conservador onde às imagens por si só fosse dado um poder supremo de nos tirar da inércia, o que faz Susan Sontag em seu livro é um convite à reflexão. Ela diz que a fotografia não tem a obrigação de remediar nossa ignorância acerca das histórias e das causas do sofrimento que ela seleciona e enquadra. Tais imagens não podem ser mais do que um convite a prestar atenção, a refletir, aprender, examinar as racionalizações do sofrimento em massa proposto pelos poderes constituídos. (SONTAG, 2003, p. 90)

Guardadas às devidas proporções e pedindo licença à autora, o que estamos propondo aqui é olhar com a mesma atenção para o lugar que o testemunho ocupa para as narrativas jornalísticas. Nossa intenção é perseguir o argumento de que, se o testemunho espetaculariza, é também por intermédio dele que nos humanizamos. Em meio a uma imprensa onde imperam as notícias de violência e criminalidade, onde o testemunho nos interpela? O que ele nos diz do acontecimento? Para tentar responder às perguntas e discutir as intervenções de uma poética do testemunho na construção do real e na narração dos fatos, cartografamos narrativas veiculadas na imprensa nacional sobre o desaparecimento do pedreiro Amarildo, em uma favela do Rio de Janeiro, em julho de 2013. A análise aqui empreendida pretende-se menos presa à problemática da autoria no campo da comunicação ou mesmo às questões das rotinas jornalísticas. O que se propõe é usar a centralidade que o testemunho ocupa nesses relatos para refletir sobre narrativas que rompem com as bordas do discurso rígido, ampliam o jornalismo e dão a ver a cena que existe para além do texto visível e do lugar comum, subvertendo o espaço organizado do jornalismo em direção aquilo que afeta os sujeitos.

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NÓS, AS TESTEMUNHAS “Mistério: pedreiro desaparece no Rio e sumiço ganha repercussão mundial” (Portal R7). “Ainda não há respostas sobre o paradeiro do ajudante de pedreiro, Amarildo de Souza, 47 anos, desaparecido no domingo (14), após ser abordado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, no Rio de Janeiro (RJ)” (Brasil de Fato). “Delegado faz reconstituição dos últimos passos de Amarildo” (Jornal O Globo). “Família de Amarildo diz acreditar que pedreiro já está morto” (Folha de São Paulo) “Suposto corpo de Amarildo não é encontrado e polícia encerra buscas” (Correio Brasiliense). “Parentes de Amarildo entram para o programa de proteção a testemunha” (Agência Brasil). “Caso Amarildo: TJ-RJ decreta prisão de PMs que teriam subornado testemunhas” (Uol). Todas essas informações foram extraídas ao acaso de um recorte do noticiário da época e informam sobre o desaparecimento de um ajudante de pedreiro, na favela da Rocinha, zona Sul do Rio de Janeiro, em julho de 2013, logo após o rapaz ser detido por policiais durante uma operação da Polícia Militar, batizada de “Paz Armada”. Ocorrido no mesmo período em que protestos invadiram as ruas do Brasil, naquilo que ficou conhecido como as “jornadas de junho”, o caso ganhou proporções inéditas. As redes sociais repercutiam os rumos da investigação policial e faziam ecoar uma pergunta que também virou bandeira, cartaz e tema para projeções em audiovisual nas manifestações pelo país. “Onde está o Amarildo?”, perguntavam-se todos nas ruas, nas redes, nos jornais. Deu também no New York Times, jornal americano que reuniu em sua manchete, dia 29 de julho, a violência dos protestos àquela enfrentada nas periferias das grandes cidades: “Protesters in Rio keep asking: ‘who threw the Molotov?’ and ‘where is Amarildo?’”2. Na mesma data, uma reportagem veiculada pela brasileira Pública (Agência de reportagem e Jornalismo Investigativo), intitulada “Amarildo, Presente!”3, narra o episódio a partir do testemunho daqueles que sobreviveram ao trauma. A jornalista Anne Vigna recupera os relatos dos que foram atingidos direta ou indiretamente pelo acontecimento. Durante o percurso narrativo, é dada ao leitor a possibilidade de conhecer os personagens por inúmeras marcas discursivas de teor testemunhal, reveladas ora nas declarações dos entrevistados ora nos vestígios deixados pela narradora, não importando se a jornalista estava ou não presente no momento em que se deu o fato, mas o modo como ela o recompõe. O mesmo pode se dizer da narrativa “Mas quem era Amarildo?”4, veiculada pelo coletivo Outras Palavras. Assinada por Tânia Caliari não apenas reconstitui o momento do desaparecimento de Amarildo como narra como estão os sobreviventes, quatro meses depois da tragédia, quando foi publicada a reportagem. São narrativas que, em sua própria tessitura e à luz dos testemunhos, dão pistas de que pretendem trafegar por um caminho menos dogmático do que aquele que autorizam os cânones do jornalismo hegemônico. Nessas narrativas, o jornalista deixa a sua torre de marfim e percorre as ruas das cidades em textos que, sem abrir mão da técnica, fazem do ato de narrar uma experiência estética, um jogo com o leitor, evidenciando o “como” do discurso jornalístico (RESENDE, 2006). 2.  “Manifestantes no Rio continuam perguntando: ‘Quem atirou o molotov?’ E ‘Onde está o Amarildo?’” 3.  Para ler a reportagem completa: http://apublica.org/2013/07/amarildo-presente/ 4.  Para ler a reportagem completa: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/ mas-quem-era-amarildo/

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Mesmo que, por motivos óbvios, as narrativas em análise não possam contar com o testemunho de Amarildo, o desaparecido, apostamos que elas carregam o testemunho em sua dupla face – tanto em seu sentido restrito, superstes, como aquele que viveu algo e agora narra a sua dor, no caso desta reportagem, isso se dá pelos relatos da esposa, filhos e amigos de Amarildo; quanto em sua distinção latina, como aquele que se coloca como um terceiro (testis), entre duas partes. Jeanne-Marie Gagnebin nos ajuda a pensar: testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezam a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente esta retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente. (GAGNEBIN, 2004, p.93)

Além disso, testemunha seria também ato performado não apenas por uma testemunha mas por um “texto testemunhal”, como sugere Rodrigues Lage (2013). É como se o testemunho que o jornalismo sustenta fizesse de nós testemunhas de outros testemunhos, transformando o jornalismo numa modalidade de testemunho e “fazendo dos outros, testemunhas submetidas aos regimes jornalísticos do ver e do contar” (2013, p. 85). Nesse sentido, esses textos constituem-se como casos concretos e material empírico exemplar que nos auxiliam a investigar, neste artigo, duas questões: 1) Em que medida o testemunho – quando valorizado não apenas como mero procedimento técnico, mas como experiência vivenciada e posteriormente construída durante o percurso do relato – seria capaz de produzir um envolvimento emocional entre quem produz e quem recebe o discurso?; e 2) É possível o testemunho desencadear algo para além da indiferença ou do choque, favorecendo um jornalismo menos autoritário e mais dialógico neste mundo de excessos?

OS MORTOS E OS SOBREVIVENTES De um modo geral, ao longo do século XX, o testemunho foi associado a um tipo de discurso relacionado aos “sobreviventes”, indivíduos ou grupos sociais que vivem situações de choque e necessitam de espaço para narrar o trauma. Selligman-Silva (2005) é categórico ao dizer que a “era das catástrofes”, como ficou conhecido o século passado, corresponde a “era dos testemunhos”. A expressão “literatura de testemunho”, por sua vez, surge exatamente no âmbito dos estudos literários para categorizar tanto os relatos relacionados ao genocídio dos campos de concentração e ao Holocausto (testemunhos de Shoah) quanto mais recentemente às narrativas literárias que dizem respeito às ditaduras latinoamericanas (testimonios). Em relação a essa última, De Marco (2004) associa o seu boom a um concurso patrocinado pela Casa de las Américas de Havana, nos anos 1970, que criou uma categoria para abrigar um tipo de escrita que, a partir dessa década, ganha corpo na América Latina e dar a ver o relato dos oprimidos principalmente em um contexto de ditadura política. Segundo a autora, isso levou a um incentivo na produção de narrativas que extrapolam a questão dos gêneros, indo do literário ao jornalístico ou documental, e marca a produção latinoamericana desde então.

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Esse culto ao testemunho foi criticado por Beatriz Sarlo (2007) no controverso O tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Ainda que a autora valorize os depoimentos em primeira pessoa como fundamental para a superação dos regimes totalitários, o livro põe em xeque a relação entre memória, testemunho e verdade. No entanto, ao reunir elementos que se referem tanto ao universo factual quanto ao ficcional, o testemunho também oferece argumentos para uma diluição de fronteiras. Nesse sentido, é o próprio Selligman-Silva (2008) quem nos dá a pista ao afirmar que não existe um gênero mas obras que apresentam um “teor testemunhal”. Em “Mas quem era Amarildo?”, o real nos chega pelo testemunho dos sobreviventes. Vejamos um trecho dessa narrativa: Era dia de Flamengo e Vasco. Amarildo passara o domingo pescando com seu primo Luiz na praia de São Conrado. Ao regressar, no fim da tarde, limpou os peixes na porta de sua casa e saiu para comprar limão e alho no bar do Julio, uma birosca que fica depois de uma curva acentuada, descendo o Beco do Cotó a partir de sua casa. No bar, cinco pessoas tomavam cerveja, faziam uma moqueca, e acompanhavam o jogo do Campeonato Brasileiro, entre eles o dono do bar. (…) Ao chegar, Amarildo foi solicitado por uma moradora para que levasse suas malas até a rua 2, onde pegaria um táxi para a rodoviária. Amarildo fez o carreto, voltou ao bar satisfeito, dizendo que recebera 30 reais pelo serviço. O grupo viu então a chegada de um grupo de PMs e a abordagem feita a Amarildo pelo policial Douglas Vital, que pediu seu documento. (Outras Palavras, 14/11/2013)

Trata-se de um relato pessoal, elaborado a partir de uma vivência singular e subjetiva; um testemunho. Embora a experiência não tenha sido vivida pela repórter, a ela coube construir uma narrativa amarrando os fios dos relatos de outros que assim o testemunharam. É no percurso do relato que o leitor fica a par de um grupo de oito policiais que chegou ao bar – alguns deles esperou do lado de fora – e depois desceu o Beco do Cotó conduzindo Amarildo até à Rua 2, no Centro de Comando e Controle (CCC), um posto da UPP onde ficam monitores com as imagens captadas por cerca de 80 câmaras que vigiam as ruas da Rocinha. Ora, se o acontecimento escapa no momento de sua ocorrência, o relato sobre ele, como nos diz Rosana Lima Soares (2009), será sempre “impreciso e fugidio, precário”, sendo necessário lançar mão de estratégias para narrá-lo. No caso de narrativas com forte componente traumático, a imaginação seria uma dessas estratégias (SELLIGMANSILVA, 2008). Aqui, caberia indagar sobre aquele que é talvez um dos maiores paradoxos do testemunho: se só é possível narrar recorrendo a imaginação (e isso é até desejável), até que ponto o teor de verdade do testemunho seria contaminado por uma certa dose de imaginação e ficção? De acordo com Selligman-Silva, ao invés de negar ao testemunho a possibilidade de “ver na imaginação”, deveríamos ter essa como um aliado potente. O autor defende que, na aproximação entre o campo testemunhal e o da imaginação, poderia estar a chave para se repensar tanto a literatura quanto o testemunho bem como também o registro

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da escrita autodenominado de sério e representacionista, como é o caso do discurso jurídico. Ao que se pode acrescentar também: do discurso jornalístico. No livro O que resta de Auschwitz, Giorgio Agamben (2008) parte das narrativas de Primo Levi sobre a Segunda Guerra Mundial (É isto um homem? e A Trégua, por exemplo) para analisar o papel do testemunho como documento histórico e seus limites. Ao procurar entender as dimensões da produção escrita dos sobreviventes do Holocausto, o filósofo acaba gerando um tratado sobre as dificuldades do narrar. O filósofo sugere que a possibilidade de narrar carrega a potência do que não é narrável e, sendo assim, “o testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falta” (AGAMBEN, 2008, p.43). Nessa perspectiva, testemunho seria também uma construção de linguagem que se configura na tensão entre o que se pode dizer e aquilo que de fato é dito: Talvez cada palavra, cada escritura nasce, nesse sentido, como testemunho. E, por isso mesmo, aquilo que dá testemunho não pode ser já língua, já escritura: pode ser somente um não-testemunhado (…) É sobre a natureza deste não-testemunhado, sobre a não-língua que é preciso interrogar-se. (AGAMBEN:2008, p.47)

Ao analisar a questão dos testemunhos de catástrofes históricas, Márcio SelligmanSilva reconhece a dificuldade de narrar mas aponta a necessidade imperiosa de dar testemunho. Recorrendo também a É isto um homem?, o autor vai dizer que o testemunho pode ser considerado uma atividade elementar, uma vez que dela depende a “a sobrevida daquele que volta do Lager (campo de concentração) ou de outra situação radical de violência que implica esta necessidade, ou seja, que desencadeia esta carência absoluta de narrar” (SELLIGMAN-SILVA, 2008, p. 66). Em “Amarildo, presente!”, temos: Semanas após o desaparecimento do marido, Bete se esforça para conseguir contar como conheceu o “meu homem”, ela diz, evocando a lembrança do jovem que se sentou ao lado dela em um banco em Ipanema: “Eu não saía muito desde que cheguei de Natal (Rio Grande do Norte) para trabalhar como empregada em uma família. No domingo, ia caminhar um pouco no bairro. Ele veio conversar comigo, nos conhecemos, e ele me trouxe para a casa de sua mãe aqui na Rocinha. Nunca mais saí”, conta. (Agência Pública, 29/07/2013)

A companheira de Amarildo diz à repórter que Amarildo tinha acabado de limpar os peixes trazidos do mar e que ela o esperou para fritá-los: “‘Como tantos domingos’, ela conta, o olhar perdido. Foram 20 anos de união, seis filhos, a vida dividida em um único cômodo que servia de dormitório, cozinha e sala”. Cabe a repórter, pela narrativa, fazer a declaração chegar ao leitor de modo a evidenciar que o testemunho também é feito de silêncios e vazios, de falas incompletas. Ou seja, aqui, o testemunho também se constrói durante o percurso da narrativa e vai muito além das declarações aspeadas dos entrevistados, demonstrando que dizer o indizível só é possível porque testemunho também é incompletude e oferecendo ao leitor possibilidade de ler nas entrelinhas, de apreender o que não está dito. Há sempre algo que fica “entre” o que é falado e o que se deixa de falar. Isso nos leva de volta à um ponto central deste artigo: a narrativa clássica do jornalismo, com sua ânsia em explicar o mundo, acaba por esvaziar o lugar da dúvida e por

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criar dicotomias. A esse propósito parece servir o testemunho, quando visto apenas como uma ferramenta da técnica jornalística. De outra parte, complexificar esse dispositivo nos leva a pensar sobre a dinâmica relacional na prática e no gesto jornalísticos. Mais uma vez: o que pode o testemunho para além do choque? É isso o que procuramos investigar mais explicitamente no tópico seguinte.

LITERATURA E JORNALISMO OU APONTAMENTOS SOBRE UMA “EMOÇÃO DO REAL” Podemos dizer, concordando com Ciro Marcondes Filho (1991), que o jornalismo é filho dileto do pensamento moderno iluminista e que a sua prática, em essência, está marcada pelas características da modernidade e pela crença no poder de explicar o mundo. Para o autor, o homem da era moderna se caracteriza pela ilusão de onipotência, com força para interferir na natureza e no meio, dominando a máquina e lançando mão da ciência e da razão, do concreto sobre o abstrato, do objetivo sobre o subjetivo. Há, nesse período, um triunfo da razão e um declínio do imaginário romântico jogando por terra a primazia da subjetividade e da experiência. O mundo mágico, maravilhoso e exótico do romantismo cede lugar ao realismo como representação de um cotidiano corriqueiro, a partir de um observador neutro, objetivo, imparcial. No entanto, essas fronteiras não são tão rígidas. Recuemos um pouco, antes de avançar sobre a estética realista nas narrativas midiáticas, para entender como a literatura lidou com esse embaralhar de fronteiras. No período moderno, na literatura, o predomínio é do romance realista marcado por uma crítica social muito forte, pela descrição detalhada de cenas para dar credibilidade e verossimilhança ao enredo, por um retrato psicológico dos personagens, pela vida comum. Em um ensaio sobre o papel da imaginação na literatura, em especial, no romance, o escritor Émile Zola (1995) escreve sobre o “senso do real”, onde desfere uma acirrada crítica à escola romântica a fim de defender o romance moderno, na figura dos realistas-naturalistas, que sacrificam o uso da imaginação e seu poder de lirismo ao real absoluto. Zola acredita que o autor deve desaparecer por trás da obra e institui, pelo menos teoricamente, o ideal de artista que seja imparcial e objetivo, tanto quanto o cientista. “O romancista parte da realidade do meio e da verdade do documento humano; se em seguida ele a desenvolve num certo sentido, já não é imaginação, a exemplo dos contistas, é dedução, como entre os cientistas”, diz Zola (1995, p.39), acerca do método realista de escrita. A partir daí, ele vai propor que, muito mais do que imaginação, o escritor se municie do “senso do real”, como uma espécie de qualidade mestra na literatura e que, segundo o escritor, trata-se de “sentir a natureza e representá-la tal como ela é” (1995, p.26). No jornalismo, as fronteiras entre os mundos da ficção e dos fatos também se apresentam de maneira tênue, o que sempre foi motivo de tensão. Phyllis Frus lembra que tanto jornalistas quanto escritores de ficção no final do século XIX e início do século XX parecem ter sido influenciados “pelas mesmas forças culturais, como domínio do conhecimento e da investigação intelectual, forjada pela experiência empírica” (FRUS apud JAGUARIBE, 2007, p.28). Roland Barthes chamava de “efeito do real” a retórica da verossimilhança que, na literatura, mais precisamente no romance realista, é obtido por detalhes que tornam

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a ambientação credível e melhor caracterizam os personagens. Trata-se de algo que deveria ser acionado “para mascarar os próprios processos de ficcionalização e assim garantir ao leitor-espectador uma imersão no mundo da representação que, entretanto, contivesse uma análise crítica do social e da realidade” (JAGUARIBE, 2007, p.27). Ou seja, o “efeito do real” é uma estratégia para dar à ficção um caráter de verdade absoluta. Dialogando com o “senso do real”, de Zola, e muito mais diretamente com o “efeito do real”, de Barthes, e fazendo um contraponto com o mundo contemporâneo, tomado por uma cultura midiática cada vez mais acelerada e por tecnologias que multiplicam a realidade, Beatriz Jaguaribe vai elaborar a noção de “choque do real”, definido como sendo a utilização de estéticas realistas visando suscitar um efeito de espanto catártico no leitor ou espectador. Busca provocar o incômodo e quer sensibilizar o leitor-espectador sem cair, necessariamente, em registros do grotesco, espetacular ou sensacionalista. O impacto do ‘choque’ decorre da representação de algo que não é necessariamente extraordinário, mas que é exacerbado e intensificado (2007, p.100).

Isto é, na contemporaneidade, as grandes metrópoles viram território minado de ocorrências cotidianas onde imperam a violência, a criminalidade, a desigualdade social. O “choque do real” refere-se, portanto, a esses retratos fornecidos pelos meios de comunicação, instantâneos que realçam a precariedade, as contradições e a marginalização em um cenário urbano atual: a violação, o assassinato, o assalto ou mesmo o erotismo, narrados de modo a provocar uma “ressonância emotiva”. Esses seriam os novos códigos realistas que, por meio das narrativas, levariam o leitorespectador a produzir significados. Mas não se trata mais de um observador distanciado e do ideal de neutralidade do realismo do século XIX (“senso do real”). Tampouco pretende-se mascarar os códigos narrativos utilizados para dar credibilidade ao mundo (“efeito do real”). Se antes o autor se posicionava como observador da realidade, “o novo autor ganha a tatuagem legitimadora da experiência” (JAGUARIBE, 2007, p.109). Ou seja, quanto mais vivenciado o drama pelo autor, mais ele vai se parecer autêntico aos olhos do leitor-espectador. Desse modo, “o choque do real” visa produzir intensidade uma vez que o apelo dos meios de comunicação tem sido “fazer com que a imagem ou a narrativa midiática seja mais prenhe de realismo do que a nossa realidade fragmentária e individual” (2007, p.30). No entanto, essa dose excessiva de informação descontextualizada que abusa dos enredos e imagens catastróficas incomoda mas não provoca mudanças. O “choque do real” teria assim, segundo a autora, “a potência de uma epifania negativa” em formato de invenções estéticas que, ao tentar driblar a banalidade, acabam caindo no mesmo lugar-comum das narrativas que reproduzem estereótipos, não oferecendo “consolo metafísico, utopia histórica ou projeto alternativo de futuro” (2007, p.105). Sem discordar da leitura sobre o “choque do real” proposto por Beatriz Jaguaribe, gostaríamos de levantar a hipótese de que há no jornalismo narrativas que, mesmo usando estratégias similares, conseguiriam despertar algo como uma “emoção do real”, onde o trauma noticiado seja capaz de produzir a verdadeira epifania. O limite é tênue, como aponta ainda Susan Sontag (2003), em seu ensaio Diante da dor dos outros, sobre

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como a representação da crueldade pode ou não nos influenciar. Ao analisar imagens de sofrimento em fotografias, a crítica diz: Fazer o sofrimento avultar, globalizá-lo, pode incitar as pessoas a sentir que deveriam “importar-se” mais. Também as convida a sentir que os sofrimentos e os infortúnios são demasiado vastos, demasiado irrevogáveis, demasiado épicos para serem alterados. (SONTAG, 2003, p. 68)

Isso nos leva de volta às narrativas em análise. O exercício proposto aqui é de, em meio a uma realidade “exacerbada pelo sensacionalismo” e pela “propulsão pelo choque”, pensar que há no jornalismo narrativas que usando estratégias similares conseguiriam despertar algo que salte dessa indiferença do “choque” para a “emoção”. Ou seja, olhar para o testemunho nas narrativas jornalísticas hoje em busca daquilo que emerge do banal e pode provocar algum impacto, despertar sentimentos de alteridade, afetar os sujeitos do discurso: quem vivencia, quem narra e quem lê. Há algo na dor de “Amarildo” que nos afeto pelo ordinário mais do que pelo espetacular da tragédia. Vejamos mais um trecho da narrativa: Bete trouxe os dois filhos que vieram com ela do Nordeste sem criar problema com Amarildo. “Ele adora crianças”, ela diz. O que as duas menorzinhas da família confirmam: “É o tio Amarildo que nos leva para a praia de São Conrado, ele que nos ensinou a nadar”. Ela apenas sorri, sempre fumando, e sem disfarçar a tristeza conta que está preocupada com a filha mais nova, de 5 anos. “Ela sempre estava com o pai”, suspira. No começo, Bete lhe disse que o pai tinha ido viajar e que, por hora, ele não voltaria. A pequena conserva a esperança de filha que sempre acreditou nas palavras do pai, e ele lhe prometeu um bolo grande no próximo aniversário. (Agência Pública, 29/07/2013)

Narrar a tragédia a partir dos sobreviventes e não dos discursos declaratórios e dados oficiais é a primeira característica que queremos enfatizar mais uma vez como uma marca desse tipo de narrativa testemunhal. A opção do relato é pela reconstituição da tragédia na vida de cada personagem, mais como um ponto de partida para nos dar a conhecer quem são essas pessoas, o que fazem, como vivem, no que creem, do que propriamente para realçar um efeito de “choque do real”. O avesso do choque se dá justamente porque a narrativa potencializa a fala e a expressão de cidadãos anônimos que costumam chegar à mídia apenas sob a ótica sensacionalista de produção de notícias. Mas, nesse caso, ao contrário, aparecem como personagens que, apesar do sofrimento, sobrevivem nos pequenos espaços urbanos de convivência, construindo formas alternativas de sociabilidades. Ao entrar na cidade pela contramão, a jornalista dar a ver um território que não se revela a um apressado olho nu de quem só enxerga a cidade de concreto das cartografias urbanas. Em última instância, o que essas narrativas trazem à tona, em suas tessituras, é exatamente a cidade que se conta a partir de seus homens ordinários, “uma cidade transumante, ou metafórica, (que) insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível” (CERTEAU, 1994, p.172). Nesse relato, também se localizam as marcas de um realismo contemporâneo. No entanto, trata-se de um retrato do contemporâneo que aciona a estética do realismo não para expor a “carne do mundo em toda a sua imperfeição” (JAGUARIBE, 2007, p.41).

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Em termos de estratégias narrativas, não há esforço para provar uma verdade mas apresentar uma versão da realidade entre muitas. Quando muito, ao narrar o fato como uma experiência emocional, o que está em jogo é a possibilidade de novas leituras de mundo e o que se torna evidente é a produção de sentidos. Apesar da riqueza de detalhes, há uma constatação até certo ponto lógica de que o jornalista não tinha como estar presente no momento dos episódios relatados. No entanto, é como se estivesse exatamente ali. Como se pode perceber mais explicitamente neste caso: Luciana, que estava no bar no momento da abordagem, subiu o beco e foi avisar Bete, que desceu com a filha Beatriz até o CCC. Bete esperou do lado de fora do posto, conversando com um policial, até que viu um carro da polícia parar e seu marido sair do posto. Correu a seu encontro, e já dentro da viatura Amarildo lhe disse que o seu documento estava com Vital. A viatura seguiu para a sede administrativa da UPP na Rocinha, num local conhecido como Portão Vermelho, na parte alta da favela que faz divisa com a mata de um parque. Como nunca voltou para casa, ficou a pergunta: onde está Amarildo? (Outras Palavras, 14/11/2013)

No jornalismo, uma das técnicas mais utilizadas para reconstituir um fato do passado é a partir do testemunho de quem o vivenciou e isso se dá pela entrevista – se não através dos testemunhos colhidos em entrevista, de que outra maneira a jornalista e, consequentemente, o leitor poderiam ter acesso à descrição da cena acima? Por outro lado, como nos lembra Cremilda Medina (2008), a entrevista pode ser apenas uma técnica eficaz para extrair respostas, como num questionário, ou – e isso é o mais radical – transformar-se num dispositivo que, na comunicação humana e mais precisamente no jornalismo, é capaz de provocar o diálogo. Ou seja, nas narrativas jornalísticas legitimadas pelo discurso hegemônico, o Outro é um terceiro: “Fulano disse”, “Sicrano declarou”, é aquele que apenas “conta”, “diz”, “explica”. Nesses casos, não há espaço para alguém que conta a história, e isso é um elemento que atrofia a narrativa. Aqui, ao lançar um olhar para o outro a partir de uma escuta, temos como resultado uma narrativa dialógica e não, “atrofiada”. O argumento é que, nas narrativas jornalísticas em que o testemunho é valorizado para além da técnica, as barreiras da pretensa objetividade jornalística se diluem em favor de um envolvimento emocional entre quem produz e quem recebe o discurso. Nesse caso, é dada ao leitor a possibilidade de se imaginar participante da experiência narrada, uma vez que “sem a nossa vontade de escutar, sem o desejo de também portar aquele testemunho que se escuta, não existe o testemunho” (SELLIGMANSILVA, 2008, p.72).

NOTAS PARA UMA CONCLUSÃO Em sua dimensão contemporânea, o testemunho assume lugar central para as narrativas midiáticas, particularmente para o jornalismo. Neste artigo, seguimos alguns vestígios de narrativas de teor testemunhal sobre um acontecimento de natureza traumática, o desaparecimento do pedreiro Amarildo, a fim de discutir como o testemunho, mais do que mediar o sofrimento, pode colocar sujeitos em relação, oferecendo uma chave para se pensar um jornalismo mais dialógico.

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As narrativas em análise prescindem dos códigos da linguagem jornalística tradicional para contar a experiência do outro. Aqui, o outro não é um terceiro, aquele que apenas “conta”, “diz”, “explica”. O outro está falando pelo texto. Ao lançar mão dessa estratégia, as jornalistas estabelecem um certo grau de intimidade com o leitor que, por sua vez, identifica-se com a narrativa. Mais uma vez, voltando a Selligman-Silva (2009), o autor nos lembra que nos testemunhos de catástrofes sejam elas naturais ou históricas, é frequente os sobreviventes se verem como um outro. Trazendo essa discussão para o jornalismo e, ao defender o potencial político do testemunho em sua tentativa de dizer o indizível, sugerimos alguns apontamentos para uma travessia que salte da indiferença do “choque do real” para a “emoção do real” nas narrativas midiáticas. Essas estratégias discursivas podem ser capazes de fazer emergir a novidade que salta da realidade banal e provocar algum impacto em quem as escreve e em quem as lê, no sentido de afetar e despertar sentimentos de alteridade ou identificação com o outro.

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Acontecimento e mídia: a cobertura jornalística na queda da estrutura do Shopping Rio Poty Event and media: news coverage in Shopping Rio Poty structure of the fall. Gislane

da

Conceição Lim a Ca melo

de

Moraes1

Resumo: Analisa-se neste artigo a cobertura jornalística do desabamento da obra do Shopping Rio Poty ocorrido no dia 11 de julho de 2013, na cidade de Teresina (PI), e o enquadramento dado ao acontecimento pela mídia na construção do debate público local. Compreende-se a mídia como suporte de identificação e exploração do acontecimento, bem como arena de tensão na procura de respostas às questões dadas pela ação ocorrida; e o acontecimento como da ordem da experiência. Devido ao debate público proporcionado pela mídia local em torno do tema em destaque, fez-se uma seleção de matérias publicadas no portal de notícias 180 Graus, de Teresina, no período de 11 a 19 de julho de 2013, com o objetivo de compreender a construção do acontecimento jornalístico e suas características neste veículo de comunicação. A análise do material empírico se dá a partir do conceito de acontecimento jornalístico, na perspectiva de Louis Queré (2005); Cristina Ponte (2005); Crista Berger (2009). O artigo apresenta considerações a respeito da produção do acontecimento jornalístico sobre o desabamento da obra do Shopping Rio Poty e sua apresentação na forma de notícia na página do portal 180 graus.

Palavras-Chave: Acontecimento. Cobertura Jornalística. Debate Público. Campos Problemáticos.

Abstract: Analyzes in this article the news coverage of the collapse of the work of Shopping Rio Poty occurred on July 11, 2013, in the city of Teresina ( PI), and the framework given to the event by the media in the construction of local public debate. It is understood the media as identifying support and operation of the event, as well as voltage arena in finding answers to the questions given by the action occurred ; and the event as the order of experience. Due to public debate provided by the local media around the major theme , there was a selection of articles published on news portal 180 Degrees of Teresina, from 11 to 19 July 2013 , in order to understand the construction of journalistic event and its features in this vehicle of communication. The analysis of the empirical material starts from the concept of journalistic event , in view of Louis Queré (2005); Cristina Ponte (2005); Crista Berger (2009) . The article presents considerations regarding the production of journalistic event of the collapse of Shopping Rio Poty work and its presentation in the form of news in 180 degrees portal page.

Keywords: Event. Journalistic Coverage. Public Debate. Troubled Fields 1.  Jornalista. Pedagoga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPI, Universidade Federal do Piauí. E-mail: [email protected].

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Acontecimento e mídia: a cobertura jornalística na queda da estrutura do Shopping Rio Poty Gislane da Conceição Lima Camelo de Moraes

1. INTRODUÇÃO Parte da estrutura do shopping Rio Poty, que está em obras com previsão de ser entregue em 2014, desabou na madrugada desta quinta-feira (onze de julho). Um operário chegou a sair ferido, mas sobreviveu após ser resgatado dos destroços. [...] Como a obra vem sendo trabalhada de maneira urgente, alguns operários trabalham a noite toda. (Portal 180 graus, 2013).

A

MADRUGADA DO dia 11 de julho de 2013, na capital Teresina, no estado do Piauí,

foi surpreendida com um acontecimento que rompeu com a rotina do cotidiano. Imprevisivelmente, a aproximadamente uma hora da manhã, a estrutura do shopping Rio Poty que estava na sua primeira etapa de construção desabou, gerando assombro, num primeiro momento, aos sujeitos diretamente afetados pela ocorrência, e, em seguida, tornando-se macro–acontecimento midiático local. O presente artigo tem o objetivo de analisar a cobertura jornalística dada pela mídia ao acontecimento da queda de parte da obra do shopping Rio Poty, a partir das perspectivas teóricas do acontecimento, e do acontecimento jornalístico, percebendo como se deu o enquadramento dessa ocorrência pelo portal de notícias 180 graus2 (www.180graus. com) na produção do debate público e de novos campos problemáticos. Não se trata nesse estudo de abarcar as concepções teóricas do acontecimento em sua totalidade. Todavia, de apresentar aspectos da cobertura jornalística do desabamento do shopping Poty, na tentativa de refletir sobre a delimitação dada pela mídia ao acontecimento, entendendo que esse enquadramento, ajusta os sentidos e significados que se dá a ele, bem como, produz debates e constitui campos problemáticos já existentes ou estabelece novos campos. Para o estudo, serão realizados recortes do material empírico do veículo de comunicação portal de notícias 180 graus que ajudaram na busca dos objetivos propostos. Em decorrência do grande número de material coletado, buscou-se selecionar as matérias no período de nove dias de maneira aleatória, na busca de analisar a construção do acontecimento pela mídia. A partir dessa seleção do material empírico, as matérias foram observadas e analisadas seguindo três critérios, a saber: o primeiro é o de enquadramento, ou seja, a narrativa midiática no espaço público local; o segundo, os campos problemáticos, como eles foram constituídos ou reafirmados; o terceiro, as vozes das diversas fontes, o entrelaçado de vozes da mídia contribuindo para o debate público. Dado seu carácter hermenêutico e sociológico, o acontecimento, neste estudo, é visto no campo da ação, que é provocada a partir da visibilidade e do reconhecimento mediados pelos meios de comunicação. A mídia apropria-se desse acontecimento, dando a ele o seu enquadramento na produção do discurso jornalístico e leva isso para o espaço público através das notícias. Desta maneira, a realidade passa a ser compreendida a partir das experiências e das afetações que os acontecimentos jornalísticos provocam nos sujeitos, sendo este determinado histórica e culturalmente no sentido de sua afetação. 2.  O portal de notícias 180 graus surgiu no estado do Piauí em junho de 2001 com poucos jornalistas em seu quadro. O veículo pertence ao advogado e jornalista de carreira Helder Eugênio. O portal traz o slogan de “O maior portal” e tem como missão levar a notícia local a qualquer ponto do estado. O portal possui em sua home os seguintes canais: geral, esporte, cultura, entretenimento, sexo, cidades, blogs.

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Este artigo pretende analisar a construção do acontecimento jornalístico, a partir do olhar que a mídia dá a ele, neste caso, as matérias sobre a queda da estrutura física do Shopping Rio Poty e que foram veiculadas no portal 180 graus, com o intuito de promover uma discussão e a reflexão teórica do assunto. A observação dessas matérias segue, especialmente, as indicações teóricas de dois autores de referência para os estudos sobre acontecimento: Louis Quéré (2005) e José Rebelo (2005).

2. O ACONTECIMENTO: ALGUMAS QUESTÕES O acontecimento é um componente importante para a organização da experiência e construção da realidade. Todos os dias, os sujeitos são confrontados com acontecimentos de diferentes ordens e origens, e por meio deles, formam os significados de sua existência. Através de fenômenos que são externos aos sujeitos, os acontecimentos são gerados, e só fazem sentido a eles quando de sua afetação. Segundo Berger (2009), é através do processo de internalização que o sujeito vai transformar uma realidade externa objetiva em uma estrutura subjetiva de sentido. Dessa forma, Alsina (2009, p.114) afirma que “[...] os acontecimentos se compõem das características dos elementos externos nos quais o sujeito aplica seu conhecimento”. Com base numa perspectiva pragmática do acontecimento, pode-se afirmar que se trata de algo real, concreto e que atravessa o domínio do discurso, pois os acontecimentos são sentidos, antes mesmo, de serem levados para o campo discursivo, conforme o pensamento de Dewey (2010). Esse entendimento é feito a partir da ideia de “afetação” que Louis Quéré (2005) faz da discussão de Jonh Dewey (2010) a respeito da experiência. Para Dewey (2010), a experiência resulta da dinâmica de energia entre criatura viva e ambiente, o que Queré (2005) vai designar de “afetação”, ou seja, “só há experiência quando há transação entre duas coisas que não são exteriores uma à outra, por exemplo, entre um organismo e o meio ambiente que o rodeia, em que cada um é afetado pelo outro e reage segundo a sua constituição” (QUERÉ, 2005, p. 64). Com tal característica, ao refletir essa dimensão de afetação proposta por Queré (2005), pode-se indicar que a ocorrência dos fenômenos sociais, ou melhor, dos acontecimentos em sua ação coletiva de experiência pública é algo da ordem do cultural e do histórico. Isso por que, cada sistema social vai concretizar quais fenômenos merecem ser considerados como acontecimentos, conforme suas crenças e quais não devem ser notadas como tais. Assim sendo, Queré (2005) afirma ser a experiência “aquilo pelo que um sujeito e um mundo se constituem, confrontando-se com acontecimentos, na articulação mais ou menos equilibrada de um saber e um agir” (QUERÉ, 2005, p. 70). Tais afirmações sugerem que nunca o acontecimento existirá isolado do contexto em que ele aparece. Conforme assevera Ponte (2005, p.101), “a sua observação e interpretação ocorrem sempre numa dada situação ou campo problemático e são orientadas pela procura de respostas”. Assim, o campo problemático aberto pelo acontecimento faz com que os sujeitos afetados busquem sentidos ao que ocorreu, pois num primeiro momento sabem que não há sentido no que foi produzido. Isto posto revela que a interpretação dos acontecimentos ganha importância a partir do momento de sua experiência pública e, nessa transformação de um acontecimento

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local num problema público e político, eles constituem um campo problemático, aonde novos acontecimentos vão surgindo e inscrevendo-se nesse mesmo campo e ganhando significação, como é definido pelo filósofo francês Gilles Deleuze. Isto é, o acontecimento está entrelaçado numa teia de campos problemáticos já constituídos ou que servem de alavanca na constituição de novos campos. Quando no espaço público, do debate público, os fenômenos sociais são narrados pela mídia, há uma identificação da mídia nos critérios que levará em consideração naquela ação como uma ação publicada. Reflete-se, também, a dualidade da dimensão temporal do acontecimento, pois esse ocorre no tempo da ordem dos sujeitos, sendo simultaneamente explicável e explicativo. De acordo com Rebelo (2005), é “explicável pela produção de narrativas. Explicativo pelo poder que transporta, como revelador daquilo que transforma, nas coisas e nas pessoas” (REBELO, 2005, p. 56). Esse poder hermenêutico do acontecimento de criar interpretante e recriar sentidos, isto é, produtor e reprodutor de sentidos faz com que ao tomar conhecimento do mesmo, o sujeito passe a agir. O caráter pragmático do acontecimento está no fato de que ele só produz ação depois da compreensão. O poder hermenêutico está nas consequências do acontecimento e a significação que se dá ao ocorrido. Já para Patrick Charaudeau (2006): Para que um acontecimento possa ser depreendido, é necessário que se produza uma modificação no estado do mundo fenomenal, geradora de um estado de desequilíbrio, que essa modificação seja percebida por sujeitos (ou que estes julguem que houve uma modificação) num efeito de ‘saliência’, e que essa percepção se inscreva numa rede coerente de significações sociais por um efeito de pregnância. (2006, p. 99, grifos do autor).

A saber dessas características é valido ressaltara descontinuidade do acontecimento, uma vez que num primeiro momento o acontecimento não é compreensível, rompe o contínuo da existência. É descontínuo e vai além das possibilidades calculadas, rompe a seriação cotidiana, no entanto, sua existência abre direções para ações seguintes. Os acontecimentos impõem que possibilidades que julgávamos impossíveis, sejam reconhecidas. É o corte na continuidade que provoca a possibilidade de novos possíveis serem configurados. Eles são significativos, tem poder de revelação, de iluminação. Segundo Lanna (2008) o acontecimento rompe o decorrer da vivência comum, e sua contra-afetação busca apaziguar e reordenar o sentido da experiência ordinária. Isso se dá por que todos os dias há um confronto com pequenos acontecimentos ou, como afirmar Santos (2006), micro-acontecimentos que fazem parte de uma série e são relativamente previsíveis e puramente autorreferenciais dos sistemas, que vão causando interrupções e experiências diversas e abrindo novas possibilidades de ocorrências. É o que se chama de acontecimentos programados pela mídia e que se tornam previsíveis devido ao agendamento dado pela mesma. O acontecimento está diretamente ligado à ideia de provável, funcionando como força que rompe com expectativas, efetuando-se sobre o sujeito, que é incapaz de uma contra-afetação, pois não há sentido na ação que se dá. Podemos afirmar que o acontecimento ocorre num espaço público que é constituído por diversos agentes e que gera um debate agendado pelos medias, contributo de sua ação

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efetiva na formação de significados das experiências oriundas desses acontecimentos. Vejamos que os medias podem influenciar ou não a ação de sentido dos acontecimentos, tudo isso por que o significado da experiência do acontecimento pode ser banalizada, havendo, assim, uma passivação dessa experiência. Devido ao enquadramento dado ao acontecimento, que no meio jornalístico chamamos de notícia, a ação desse profissional entra na esfera do consenso e da não objetividade, pois são reportadas informações ao público que muitas vezes ao invés de gerar resoluções, apenas problematizam opiniões discordantes, tornando difícil a ação destes, frente a comentários e matérias tidas como consensuais. Num panorama social, Cristina Ponte (2005, p. 02) nos leva a refletir sobre os campos problemáticos e a recepção de conteúdo da mídia por parte das audiências, tendo em vista o seu papel nessa arena. Contribuem para expor novos problemas, para definir a própria natureza da questão, para tornar públicos dados que sustentam que se fale de temas antes tabu, contribuindo assim para uma espiral de reconhecimento. Salienta, contudo, que é crucial o modo como cobrem uma questão: podem ajudar a confrontar ou iludir certos aspectos do problema, desenham um papel na construção ou manutenção de ideias, sobre certos tipos de pessoas, promovem imagens icónicas, perpetuam falsas associações, suportam ou desviam o senso comum, popularizam novas formas de compreensão, destacam crises que atuam como marcas comuns, no pensamento público ou na sua viragem para novos aspectos do problema.

Pode-se afirmar que o poder da mídia nos acontecimentos está na teoria do agendamento jornalístico, isto é, o poder da mídia está em tornar visível o acontecimento, causar transformações e servir de inquérito. Por conseguinte, a mídia, numa visão pragmática do acontecimento, que está em tomar conhecimento dele, e agir, entra nesse processo para dar visibilidade e provocar ação entre os sujeitos. As notícias são produções do acontecimento, ou seja, ele se torna jornalístico quando se é dado pelo discurso jornalístico. E qual seria o papel da mídia nesse processo? A partir da concepção teórica apresentada por Queré (2005) e corroborada por Cristina Ponte (2005), está na sua atribuição enquanto base da identificação e exploração dos acontecimentos e suporte do debate público por onde as soluções são experimentadas e elaboradas. A mídia, além de ser um lugar de ordenação do acontecimento, de visibilidade e reconhecimento do mesmo, é também esse lócus que contribui para o sentido do que se produz, de investigação na procura de respostas. Não obstante, Lanna (2008, p. 7) assegura que as “narrativas mediáticas disponibilizam sentidos, que participam da tessitura do fazer cotidiano”. A narrativa, segundo Rebelo (2006, p.18), é a maneira de transportar o acontecimento para além dos limites de onde ele aconteceu: são as narrativas que possibilitam a “passagem do possível imprevisível ao possível previsível. Previsibilização pela domesticação do imprevisível. Ultrapassagem da incerteza. Restauração de um mundo”. Queré (2005) afirma ser reducionista pensarmos o acontecimento apenas na sua abordagem midiática, ou melhor, como uma construção midiática, pois outras instâncias sociais contribuem para o entendimento, a investigação e o debate público desse acontecimento, como é o caso da política, dos sindicatos, das associações, entre outros.

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A contribuição exata da mídia para a elaboração dos problemas sociais é uma questão complexa. De acordo com a corrente pragmatista, uma elaboração progressiva do acontecimento se produz através de um trabalho de enquete, distribuído através de vários operadores. Participam desse trabalho de investigação e de constituição os jornalistas, os médias, e também a política, a justiça, os sindicatos, os partidos políticos, as associações [...] (LAGE, 2011, p.180).

Todavia, não devemos deixar de lado a importância da mídia como meio técnico que torna público o acontecimento. Por meio da mídia, a distância territorial é apagada e novas formas de conceber o tempo e o espaço são instauradas. Com as barreiras territoriais ultrapassadas, por meio dessas tecnologias, intensifica-se o fluxo das mensagens que chegam com maior rapidez ­a longínquas e distintas regiões. O desenvolvimento de tecnologias capazes de transmitir mensagens por ondas eletromagnéticas impulsionou o avanço da globalização da comunicação. Como explica Thompson (2014), ao falar do fenômeno afirmando que tornou-se possível a partir daí, transmitir crescentes quantidades de informações sobre longas distâncias de maneira eficiente e virtualmente instantânea. O acontecimento, a partir da globalização da comunicação, se desterritorializou a rapidez da informação por meio da internet faz o acontecimento ser sentido e notado em diferentes contextos sociais, econômicos e políticos, ele passa a abranger um nível mundial. Nesse sentido, mesmo que estejamos em ambientes distantes da ocorrência de um dado acontecimento sua experiência pode ser vivida em outros lugares distantes, e gerar debates públicos, tendo em vista o caráter hermenêutico do acontecimento e sua difusão permitida através da mídia. Como, por exemplo, o tsunami no Japão e a catástrofe nuclear, que só apreendemos através da mídia. Então, mesmo em região distante, e essa informação passe apenas pela mídia, pelo discurso, e não atinja diretamente a nossa experiência, há o interesse em saber suas consequências e ações que vão se seguir. Ao compreender o acontecimento e suas consequências do ponto de vista de sua recepção pode-se afirmar que os significados dado ao acontecimento estão intimamente relacionados à vivência, à experiência e à contemporaneidade do mesmo. Portanto, a mídia aparece neste cenário para enquadra o acontecimento.

3. O DESABAMENTO DA OBRA DO SHOPPING RIO POTY E A PRODUÇÃO DO ACONTECIMENTO JORNALÍSTICO PELO PORTAL 180 GRAUS 3.1. Da ruptura as primeiras narrativas: a construção da notícia Funcionando como uma onda com grande poder de afetação, o acontecimento jornalístico se propaga graças à série de sentidos atribuídos ao seu paradoxo, que vão se inserindo pelas várias mediações encontradas pelo caminho. A mídia funciona como um desses locais de ordenação do acontecimento, contribuindo para o sentido que se produz. Composto por características como atualidade e descontinuidade, não é difícil classificar a queda da estrutura do shopping Rio Poty como um acontecimento, e da ordem do assombro, tendo em vista que, no caso jornalístico, esse acontecimento cotidiano foi tematizado pela mídia, sobretudo, por alcançar graus de noticiabilidade, bem como outras configurações que atuaram seletivamente, tais como: sua previsibilidade/ imprevisibilidade, sua repercussão junto ao leitor, sua comunicabilidade, conforme preconiza Alsina (2009).

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O jornalismo, em sua busca por or­denação da realidade, faz escolhas dentro dos vários corpos e relações para representar aquilo que aconteceu e disponibilizá-lo para o público, a partir de uma aproximação daquilo que Deleuze (1982) apresenta como indicadores formais. Que são os momentos de designação, manifestação e significação do acontecimento pela mídia que podem ser percebidos nas publicações numa ação de busca de sentido do acontecimento. Ninguém esperava que no dia 11 de julho de 2013, o shopping ao qual a população local aguardava inauguração devido a uma exaustiva ação publicitária, viesse ao chão. Sobre esse acontecimento, a mídia tratou de encontrar/apontar os motivos a fim de oferecer respostas satisfatórias ao público sobre o desabamento da estrutura física do Shopping Rio Poty. A narrativa midiática construída pelo portal de notícias 180 graus se voltava, naquele primeiro momento, na busca por explicações e na tentativa de pontuar significações para o fenômeno social, como pode ser observada na matéria intitulada “Estrutura do Shopping desaba e deixa um operário ferido”, publicada no portal no mesmo dia do ocorrido e que seguida transcrita abaixo: O desabamento ocorreu por volta de 1h. Como a obra vem sendo trabalhada de maneira urgente, alguns operários trabalham a noite toda. No momento do acidente cerca de quinze encontravam-se no local. Um deles, identificado apenas como Daniel, não conseguiu sair a tempo. Quando a estrutura do shopping em obras começou a desabar esses operários saíram correndo. O barulho ensurdecedor fez com que vizinhos do prédio ao lado da obra, do Condomínio Beverly Hills, se assustassem. Muitos foram para o lado de fora, na avenida Marechal Castelo Branco, onde se localiza o Shopping Rio Poty. [...] Já na manhã desta quinta era possível ver o tamanho do prejuízo. Um engenheiro que passava pelo local avaliou que a obra talvez tivesse de ser totalmente refeita após esse desabamento. Ele pediu para não ser identificado, mas afirmou que a estrutura caiu em efeito dominó e pode comprometer todo o prédio em obras (ESTRUTURA DO SHOPPING POTY DESABA E DEIXA OPERÁRIO FERIDO. 180 graus. Teresina, 11 jul. 2013).

Além da matéria, o portal 180 graus também divulga em sua página de notícias algumas imagens do desabamento do prédio do Shopping do Rio Poty (Figura 1), ratificando a ideia de que “a estrutura caiu em efeito dominó”, como afirmou o engenheiro que não foi identificado pelo nome, mas que serviu de fonte para a produção da notícia: Figura 1. Desabamento da estrutura arquitetônica do shopping.

Fonte: Portal de notícias 180 graus. Disponível em http://180graus.com/politica/shopping-rio-potydemitiu-100-operarios-veja-video-inedito-do-desabamento. Acesso em: 28 dez. 2014.

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As primeiras notícias publicadas no portal de notícias 180 graus sobre o desabamento da estrutura arquitetônica do Shopping Rio Poty, de Teresina, abre um leque de possibilidades de análise sobre a produção do acontecimento jornalístico. Considerando que a mídia está na busca da relação de causa e efeito, como pode ser visto na primeira notícia publicada pelo portal, que se voltou para descrição do acontecimento, ainda o portal 180 graus nomeia o acontecimento e o imprimem sentidos, na medida em que procura relacionar os efeitos do desabamento do shopping com as pessoas que diretamente foram afetadas no caso: os operários e circunvizinhos da obra e indicadores de algumas consequências geradas numa primeira instância pelo desabamento: o operário que foi atingido pelo desastre. Pode-se inferir que, nesse primeiro momento, definido como o da ocorrência em si, a busca por respostas pelo portal de notícias 180 graus se torna na tentativa de reduzir essa descontinuidade da normalidade gerada pelo acontecimento, para encontrar uma restauração da continuidade. Esse entendimento pode ser analisado sob o ponto de vista da descontinuidade/continuidade dos acontecimentos, como assinala Queré (2005, p. 61): Esta descontinuidade surpreende e afeta a continuidade da experiência porque a domina. Por isso, fazemos tudo quanto está ao nosso alcance para reduzir as descontinuidades e para socializar as surpresas provocadas pelos acontecimentos: reconstruímos, através do pensamento, as condições que permitiram ao acontecimento produzir-se com as particularidades que apresenta; restauramos a continuidade no momento em que a ruptura se manifestou.

O fato de ser consensual a ideia de que as edificações que estão sob a responsabilidade de construtoras são seguras e inspecionadas por profissionais competentes na área, tendo em vista também a credibilidade da empresa responsável pela obra, faz com que ocorrido passe a gerar paradoxos e descontinuidades, bem como, debates que são criados no espaço público local.

3.2. Do acontecimento local ao arranjo de campos problemáticos Os acontecimentos causam uma descontinuidade naquilo que se tinha como normalidade cotidiana e funcionam inserindo-se em campos problemáticos3 já existentes ou servindo de meio para a constituição de novos campos. O campo problemático aberto pelo acontecimento exige uma investiga­ção que vai levar ao sentido produzido. A mídia serve como esse canal, buscando significação ao ocorrido. Os meios de comunicação, como forma de nomear o acontecimento, buscam imprimir causas e efeitos do desastre, classificando-o, neste caso da queda da obra do shopping, como: da ordem da natureza, isto é, problemas no próprio terreno; ou da ordem do homem, ou seja, questões relacionadas ao mau desenvolvimento da obra. Tendo em vista estes parâmetros, o acontecimento jornalístico passa a ser organizado em forma de intriga, de modo a apaziguar o paradoxo, retirando seu poder através do movimento dos sujeitos de reorganizar suas experiências afetadas. 3.  O conceito de campo problemático trabalhado neste texto é embasado na perspectiva teórica de Queré (2005, p. 104), que o entende como “o domínio sob o qual podemos ver a tipicidade de um dado acontecimento, encontrar acontecimentos comparáveis, identificar causas e efeitos, definir a situação, construir um passado e um futuro e, assim, estruturar o campo prático associado ao acontecimento”.

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Com isso, pode-se observar que a queda do Shopping Rio Poty na madrugada do dia 11 de julho de 2013, em Teresina, se tornou um campo problemático, um campo novo, dentro do qual, em seguida, outros acontecimentos foram se inscrevendo e ganhando significação. As matérias “grupo Sá Cavalcante, do Shopping Rio Poty, tem outra obra em Teresina” e “Acidente expõe fragilidade do corpo de bombeiros de Teresina”, publicadas respectivamente nos dias 13 e 15 julho de 2013, exemplificam bem a importância que o desabamento do prédio ganhou pelo portal de notícias 180 graus, visto que o tema voltou a ser tematizado e problematizado na forma de notícia. O Grupo Sá Cavalcante, o mesmo do Shopping Rio Poty, que desabou na madrugada da quinta-feira passada e deixou um operário ferido, tem outra obra em Teresina. É o Brisas Jóquei, que será um condomínio localizado na rua Anfrísio Leitão, a cerca de 150 metros da avenida Raul Lopes, na zona Leste de Teresina, e que está em obras. [...] Com o desabamento do shopping esta semana, a imagem do Grupo Sá Cavalcante ficou arranhada em Teresina. A maioria da população defende que a incorporadora deveria demolir toda a obra, já que o Corpo de Bombeiros disse que 70% da obra foi abaixo, e refazer um novo shopping. Além disso o grupo, que não é piauiense, enfrenta uma série de críticas em outros estados. No Rio de Janeiro, por exemplo, o jornal O Globo publicou matérias informando sobre obras e edificações feitas pela Sá Cavalcante. (GRUPO SÁ CAVALCANTE, DO SHOPPING RIO POTY, TEM OUTRA OBRA EM TERESINA. 180 graus. Teresina, 13 jul. 2013). O desabamento de parte das obras do Shopping Rio Poty, na semana passada, suscitou a apreensão de sempre quanto ao preparo do Corpo de Bombeiros para lidar com situações dessa natureza. Mais de uma vez, ficou provada e comprovada a incapacidade da corporação para enfrentar esse tipo de evento, pela absoluta falta de equipamento. [...] No acidente de quinta-feira passada, os bombeiros não se demoraram a chegar ao local. Porém, o acesso ao canteiro de obras foi difícil. Era madrugada, estava escuro e eles não dispunham de equipamentos para ver de perto nem os escombros nem os operários que estavam na obra. Por sorte, foram socorridos por um morador de um prédio vizinho, que lhes emprestou uma lanterna. (ACIDENTE EXPÕE FRAGILIDADE DO CORPO DE BOMBEIROS DE TERESINA. 180 graus. Teresina, 15 jul. 2013).

É possível compreender nas matérias transcritas acima que o portal de notícias 180 graus dá visibilidade ao acontecimento enfatizando a fragilidade dos órgãos competentes pela inspeção e acompanhamento das edificações de Teresina. A questão da queda do Shopping Rio Poty trouxe à tona novos campos que se inscreveram neste mesmo acontecimento, como, por exemplo, a matéria que ressalta o trabalho do corpo de bombeiro de Teresina, mostrando a fragilidade do órgão e trazendo para o público novo problema inserido neste mesmo universo e que só vieram a ser conhecidos e problematizados após a publicização da mídia. Em torno deste desastre se inserem vários campos problemáticos que são revelados pelas condições do local da obra, os órgãos que fiscalizam a construção, os protocolos de segurança do trabalho, o preparo do corpo de bombeiro do estado em casos como desastres dessa natureza, entre outros, que integrados mobilizam um aparato social para colocar as perguntas e buscar respostas e soluções para os problemas que ela deixa à vista.

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3.3. Do acontecimento as vozes: a captura da significação Para encontrar as respostas ao acontecimento muitas vozes foram ouvidas pela mídia, a fim de tornar suas significações, ou até mesmo, no caso de não ter as respostas para o acontecido, passear por entre fontes a fim de encontrar uma relação de causa e efeito. Assim, a mídia nomeia o acontecimento, manifesta a direção do seu discurso e acaba por criar uma busca de sentido coletivo onde cada sujeito interpelado, analisa as informações enunciadas pela mídia e busca o fechamento de sentido. Geram-se camadas de linguagem que se completam na busca de reorganizar o estado de coisas abalado pelo acontecimento. No período de 11 de julho de 2013, quando ocorre o desabamento da estrutura física do Shopping Rio Poty, até o dia 19 de julho de 2013 o assunto foi tema de algumas das matérias publicadas pelo portal de notícias 180 graus, e em cada uma das matérias outro dado era apresentando/acrescentando conferindo-lhe um caráter de novidade ao acontecimento jornalístico. Dentre as matérias veiculadas no período de 11 a 19 de julho de 2013, como pode ser analisado nas matérias transcritas a seguir: RIO POTY OBRA SERÁ INTERDITADA E COMISSÃO DO CREA VAI AVALIAR CAUSAS Uma comissão de engenheiros e geólogos será formada para fazer uma análise da obra e do terreno. A obra foi interditada e assim deverá ficar até que se conclua as investigações. Ainda durante a manhã, algumas pequenas partes da estrutura continuavam cedendo. Ninguém tem acesso à obra justamente por conta do risco. Pelo menos 70% da estrutura cedeu. A expectativa com relação à futura da obra é grande entre os empresários que compraram lojas no shopping e entre os moradores da região, que enxergam no empreendimento uma oportunidade de melhorias para o bairro. (RIO POTY OBRA SERÁ INTERDITADA E COMISSÃO DO CREA VAI AVALIAR CAUSAS. 180 graus. Teresina, 11 jul. 2013). INQUÉRITO APURA ACIDENTE QUE LESIONOU TRABALHADOR NA OBRA DO SHOPPING POTY Em virtude do desabamento nas obras do Shopping Poty, ocorrido na madrugada da última quinta-feira, o Ministério Público do Trabalho no Piauí instaurou inquérito para apurar o acidente que lesionou um trabalhador. “Fomos informados que a obra está embargada pela SRTE e que a empresa deverá arcar com os salários dos 600 empregados durante o tempo em que a fiscalização estiver em curso”, disse o procurador do Trabalho. [...] A denúncia foi feita pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil. (INQUÉRITO APURA ACIDENTE QUE LESIONOU TRABALHADOR NA OBRA DO SHOPPING POTY. 180 graus. Teresina, 12 jul. 2013). QUEDA DO SHOPPING RIO POTY PODERIA TER SIDO A MAIOR TRAGÉDIA DO PAÍS O presidente do Sindicato das Indústrias da Construção do Piauí (Sinduscon), André Bahia, disse que o desabamento das obras do Shopping Poty poderia ter se tornado maior tragédia do Brasil. Segundo ele, é responsabilidade da empresa agora fazer uma análise criteriosa de tudo o que ocorreu, porque o pior foi evitado, mas fica o alerta para todo o setor. (QUEDA DO SHOPPING RIO POTY PODERIA TER SIDO A MAIOR TRAGÉDIA DO PAÍS. 180 graus. Teresina, 16 jul. 2013).

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ENGENHEIRO DO MARACANÃ VEM AO PI PARA RECONSTRUIR SHOPPING RIO POTY Mesmo com as causa do desabamento sendo desconhecidas o Grupo Sá Cavalcante garante que manterá os investimentos na obra. Na tentativa de melhorar a imagem do empreendimento, o grupo anunciou que irá trazer um engenheiro renomado que participou da reforma do Maracanã, no Rio de Janeiro, e da construção da ponte Rio Niterói (ENGENHEIRO DO MARACANÃ VEM AO PI PARA RECONSTRUIR SHOPPING RIO POTY. 180 graus. Teresina, 19 jul. 2013).

Neste sentido, o entrelaçado de vozes que vêm de diversas fontes, serve para produzir as respostas que o acontecimento exige, sendo elas: as instâncias competentes no assunto, no caso o parecer do CREA e o inquérito do Ministério Público do Trabalho, o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil; os trabalhadores da obra que se recusam a voltar ao trabalho, cuja segurança foi questionada e posta à prova; os especialistas que foram chamados para construir a nova obra, no caso o engenheiro que construiu o Maracanã; o trabalhador que se acidentou na hora de desabamento da construção. Essas vozes se entrelaçam e formam novos campos problemáticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O acontecimento da queda da estrutura do Shopping Rio Poty inscreveu um novo campo problemático na cidade de Teresina, tendo em vista a imprevisibilidade do fenômeno. Por não ser do domínio da rotina, ou mesmo está no passado dos sujeitos da cidade, a queda de um shopping, esse fenômeno não só serviu de alavanca para a constituição de novos campos problemáticos, mas ajudou na constituição dos que já existiam. A mídia entra neste espaço por meio da cobertura jornalística, não só para identificar campos problemáticos, como também para reconstituir a teia desses campos nos modos como se entrelaçam em tensões, conflitos e respostas que o acontecimento revela. Assim, a quebra da “ordem” do cotidiano de sua rotina habitual, possibilitou a irrupção do acontecimento jornalístico, sendo aqui analisado sob a ótica da produção de notícias veiculas na página do portal 180 Graus de Teresina. Nesse intuito, pode-se observar que o portal de notícias 180 graus atua com o seu enquadramento e ajusta o acontecimento possibilitando que ações futuras possam ser organizadas e as ações passadas possam servir de apoio para explicação do desastre, na tentativa de “ordenar a vida” e pautar temas de discussão no debate público, na medida em que, cada nova matéria publicada pelo portal 180 Graus, desvendava as relações de efeito e causa do evento para a sociedade. O desastre da queda do shopping Rio Poty deixa em alerta a sociedade em geral, que em decorrência dessa irrupção gerada pelo desabamento passa a prever ações dessa natureza, organizando suas atividades. Nesse sentido, o portal 180 Graus que se intitula como o “o maior portal” por levar a notícia local a qualquer ponto do Estado do Piauí, se coloca a serviço de informar e entreter o seu público leitor e, com isso, acaba afetando os sujeitos que buscam no site respostas e significações sobre os assuntos de seu interesse.

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As representações do sem-teto nos discursos jornalísticos de Veja São Paulo durante o Projeto Nova-Luz (2005-2012) The representation of the homeless in the journalistic discourses from Veja São Paulo during Nova-Luz Project (2005-2012) Guy Pinto

de

A l m ei da Jr.1

Resumo: Este artigo propõe investigar a produção de sentidos dos textos jornalísticos da revista Veja São Paulo acerca representação do sem-teto. Nosso objeto de pesquisa são os discursos jornalísticos publicados na revista sobre a população de rua da cidade de São Paulo entre 2005 a 2012. A delimitação temporal se deu por conta da vigência na cidade do Projeto Nova-Luz, que planejava a revitalização de sua região central, fato que nos trouxe a expectativa de que o grupo seria reiteradamente um Valor-notícia. Para atingir o objetivo, temos um quadro teórico que compreende a Análise de Discurso de Linha Francesa; atrelada aos estudos sobre a cidade; e as teorias do jornalismo. Chegamos a um total de 15 textos (opinativos e informativos) que traziam relações com o tema morador de rua. Como resultados, verificamos que o sem-teto é geralmente representado como um corpo estranho, não normatizado ao urbano e marginalizado. Os enunciados abrigam estereótipos e reproduzem desqualificações sociais, com base em argumentos higienizadores e elitistas, e não demostram preocupação em debater os motivos da existência de sem-teto na cidade ou soluções para o problema. Palavras-Chave: Discurso jornalístico; Morador de rua; Representação da diferença; Análise de Discurso; São Paulo.

Abstract: This paper proposes to investigate the production of meanings of journalistic texts from the magazine Veja São Paulo on behalf of the homeless. Our object of research is the journalistic discourses published in the magazine about the homeless population of the city of São Paulo from 2005 to 2012. The temporal delimitation was due to the duration of the project Nova-Luz in the city, which planned the revitalization of their central region, the fact that brought us the expectation that the group would be repeatedly a news value. To achieve the goal, we have a theoretical framework comprising the French Discourse Analysis; linked to the studies of the city; and theories of journalism. We have reached a total of 15 texts (opinionative and informative) that were related with the homeless issue. As results, we found that a homeless person is generally represented as a foreign body, not urban standardized and marginalized. The statements hold stereotypes and reproduce social disqualifications based on sanitizers and elitist arguments, and do not demonstrate concern to debate the reasons for the existence of homeless people in the city or solutions to the problem. Keywords: Journalistic Discourse; Homeless; Difference representation; Discourse Analysis; São Paulo. 1.  Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM e integrante do grupo de pesquisa CNPq Comunicação, discursos e poéticas do consumo do PPGCOM-ESPM. [email protected].

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As representações do sem-teto nos discursos jornalísticos de Veja São Paulo durante o Projeto Nova-Luz (2005-2012) Guy Pinto de Almeida Jr

INTRODUÇÃO STE ARTIGO tem como objetivo a investigação da produção de sentidos dos textos

E

jornalísticos da revista VEJA São Paulo acerca da representação dos moradores de rua. É produto da dissertação de Mestrado Pelas ruas e nas páginas das revistas: estratégias de construção da representação do morador de rua no discurso jornalístico de Ocas” e VEJA São Paulo (ALMEIDA JR., 2014) – a qual teve como objetivo amplo investigar a representação da alteridade na imprensa. Agora, nossa intenção é trazer a luz os resultados da dissertação, nos quais trouxemos a representação do morador de rua nas páginas da revista VEJA São Paulo. Empreendemos, assim, um estudo no qual o objeto de pesquisa são os discursos jornalísticos publicados na revista sobre a população de rua da cidade de São Paulo entre 2005 a 2012. Esta delimitação temporal se deu por conta da vigência na cidade do Projeto Nova-Luz, o qual planejava a revitalização do Bairro da Luz, no Centro da Cidade de São Paulo. Por conta da aproximação do tema reurbanização com a questão do sem-teto, tivemos a expectativa de que esse seria reiteradamente um Valor-notícia (Sodré, 2012), fato que motivou a pesquisa. A expectativa veio do entendimento, como aponta Maria Helena Weber (2007), que a imprensa pode ser uma das possíveis representações da cidade.

A METODOLOGIA DO ESTUDO Para realizarmos a análise dos discursos jornalísticos a respeito da representação dos moradores em situação de rua na publicação, definimos alguns critérios de seleção: tema, recorte temporal, Valor-notícia e Vozes enunciativas. Com o tema, o veículo e o período definidos, fizemos a coleta de textos nas 416 edições da revista, compreendidas no período. Apenas cinco edições não foram encontradas, porém o fato não prejudicou nossa análise. As edições não encontradas foram: 1989, 2143, 2262, 2277 e 2299. Localizamos e selecionamos os textos que, de alguma forma, tinham como tema o sem-teto. Todos os textos que abordavam a temática direta ou indiretamente foram selecionados. Em resumo, realizamos um levantamento quantitativo sobre a incidência do tema “moradores de rua” e/ou “moradores em situação de rua” e/ou “sem teto”, ou termos correlatos na publicação. Assuntos que apresentam aderência com o tema, como risco social, revitalização urbana, moradia e habitação, esmolas, violência, políticas pública, assistência social, etc. também foram considerados em nosso recorte temático. Considerando o tema e o recorte temporal, chegamos a 70 incidências de textos jornalísticos – 11 (15,71%) do gênero opinativo e 59 do informativo (84,29%) – com o tema morador em situação de rua, todas referentes à cidade de São Paulo. Não fizemos uma distinção de gêneros jornalísticos (Assis, 2010; Costa, 2010), pois, ao consideramos os discursos jornalísticos, consideramos a linguagem como mediação entre o homem e a realidade natural e social. (Orlandi, 2009, p. 15). Ou seja, o discurso está para além do texto e carrega os sentidos sociais e históricos fazendo o trabalho social da língua. Outra razão de nossa indistinção é que há uma linha tênue entre os gêneros, ou seja, um texto informativo traz opinião e um texto opinativo traz informação (Assis, 2010). Como parte de nossa análise, sob o aspecto jornalístico, aplicamos a este corpus, o critério de Valor-notícia, pelo qual, analisamos a noticiabilidade da informação devido a fatores como atualidade, proximidade, impacto, interesse público, relevância, intensidade,

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frequência, amplitude, clareza, consonância/conformidade, imprevisibilidade, continuidade, composição, referência a nações de elite, menção a pessoas da elite e pessoas, e negativismo. (Sodré, 2012). Esse procedimento nos fez filtrar somente os discursos jornalísticos que entendemos ter relevância de noticiabilidade para a revista. Assim, chegamos a um número de 41 incidências (58,57% do total) de discursos jornalísticos que compreendiam o tema morador de rua e com o Valor-notícia que consideramos relevantes. O último procedimento de manuseio do corpus antes da análise em si, consistiu em aplicamos conceitos da análise de discurso, como meio para triar o material a ser analisado, a partir do mapeamento das Vozes enunciativas que traziam representações sobre o morador de rua. Nossa intenção com essa triagem foi chegar a um número que consideramos satisfatório e aplicável para a nossa análise. Assim chegamos a um total de 15 incidências. Conforme quadro abaixo: Tabela 1. Textos com o tema morador de rua na revista VEJA São Paulo entre 2005 e 2012 Edição Dia Mês

Ano

Pág. Seção

Gênero

Título

Autor(es)

1896

16

mar 2005

12

Urbanismo

Reportagem

Dez ideias para o centro

Alessandro Duarte, Marcos Buarque de Gusmão

2045

16

jan

2008

24

Perfil

Reportagem

Ele não foge da briga

Camila Antunes e Alessandro Duarte

2148

28

out

2009

28

Cidade

Reportagem

Cenas de um centro abandonado

Giovana Romani

2153

2

dez

2009

26

Assistência

Reportagem

Degradação que se esparrama

Henrique Skujis

2235

29

jun

2011

47

Imóveis

Reportagem

Vizinhos da Cracolândia

James Cimino

2277

9

mai

2012

22

Cidade

Reportagem

A vida no abrigo da Cracolândia

Maurício Xavier

2020

8

ago

2007

54

Cidade

Reportagem

Em quem o frio dói mais

Edison Veiga

2177

19

mai

2010

29

Criminalidade Reportagem

Dez mortes em quatro dias

Daniel Salles

2276

2

mai

2012

26

Cidade

Reportagem

Estrangeiros sem teto

Claudia Jordão

1941

1

fev

2006

126 Ivan Angelo

Artigo

Crianças de rua

Ivan Angelo

1959

7

jun

2006

8

Mistérios da cidade

Nota

O muro do Center 3

Edison Veiga, Regina Cazzamatta e Roberto Gerosa

1998

7

mar 2007

38

Cidade

Reportagem

Cortiço na Oscar Freire

Maria Paola de Salvo

2026

19

set

2007

26

Assistência

Reportagem

1sem-teto=350 reais (por mês)

Edison Veiga

2238

20

jul

2011

41

Cidade

Reportagem

Uma noite no albergue

Pedro Henrique Araújo

2252

26

out

2011

39

Perfil

Perfil

“Não fujo de uma polêmica”

Daniel Bergamasco

Com os textos selecionados, submete-os a uma análise com base em um quadro teórico que compreende a Análise de Discurso de Linha Francesa (ADF), na qual foram autores referenciais Eni Orlandi, Heloisa Nagamine Brandão, Dominique Maingueneau e Marcia Benetti. A ADF nos concede condições para compreender não o tema relatado em si, mas suas significações para além do texto, ou seja, suas enunciações (Orlandi, 2009).

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A essas leituras analíticas atrelamos os estudos sobre a cidade, no qual nos foi muito cara a contribuição de autores como Henri Lefebvre, Raquel Rolnik, Lewis Mumford, Paul Singer e Milton Santos; e às teorias do jornalismo – tomando por base os autores Nelson Traquina, Jorge Pedro Sousa, Muniz Sodré e Cristina Ponte. A justificativa para escolhermos um veículo jornalístico como formador de nosso corpus é que compreendemos que os veículos jornalísticos são um dos meios pelos quais os discursos circulam, materializados em reportagens, artigos, notas, ou em quaisquer outros formatos. Dessa maneira, ao analisarmos os discursos materializados nesta revista, estamos em contato com diversas representações da cidade, a partir dos sentidos dela que ali são produzidos. Entendemos, então, que o morador de rua, enquanto objeto do interesse público ou tema de fatos noticiosos, deve estar representado nesses veículos, porém indagamos: como o morador de rua está representado?

REVISTA VEJA SÃO PAULO Antes de apresentarmos os resultados de nossa análise, vamos apresentar as características editoriais e comerciais do veículo formador de nosso corpus de pesquisa, com base nos conceitos de classificação propostas pelo pesquisador português Jorge Pedro Sousa (2004). VEJA São Paulo é um suplemento da revista Veja para a cidade de São Paulo e região e se propõe a um modelo de jornalismo comercial, com fins lucrativos, pertencente a Editora Abril. A revista, conhecida como Vejinha, faz a cobertura jornalística da cidade de São Paulo. Com periodicidade semanal, é distribuída na capital e em 111 cidades num raio de 100 km. Foi publicada pela primeira vez em setembro de 1985 e hoje possui mais de 150 páginas (em média), com matérias que relatam problemas, serviços, cultura e roteiros de consumo gastronômico ou cultural. É um semanário, ou seja, traz em suas páginas um resumo dos assuntos da semana, em matérias especiais sobre temas específicos. No Kit de Mídia (Veja São Paulo, 2013) (material autopromocional de apresentação da publicação a possíveis anunciantes) o produto editorial se coloca focado em três pilares: Dar um leque de opções com o que há de melhor na cidade; Visitar os lugares com critério para evitar que o leitor tenha decepções; e Mostrar as atrações da cidade de um jeito que nenhuma outra publicação consegue. Segundo a Editora Abril, a revista VEJA São Paulo possui: Foco total nos consumidores que procuram as melhores atrações da sua cidade. A revista de São Paulo. Além de contar o que acontece de mais relevante na vida de São Paulo e com seus personagens, Vejinha tem o compromisso de apresentar ao leitor, em reportagens e Roteiro da Semana, as melhores opções em matéria de entretenimento, lazer, programas e serviço. (Veja São Paulo, 2013)

Uma das formas muito exploradas por Vejinha é o jornalismo de serviço que “[...] se estrutura em forma de relato a partir de informações objetivas associadas e orientações didáticas, esclarecimentos ou guia ao leitor sobre concursos, oportunidades e mudanças em serviços públicos ou de interesse da comunidade.” (Costa, 2010, p. 256). Além desse gênero, a cobertura da cidade de São Paulo feita com reportagens sobre problemas urbanos, segurança, moradia, cultura, qualidade de vida, entre outros.

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Com tiragem de 298.871 exemplares, não pode ser vendida separadamente de VEJA, ou seja, todo consumidor dela, dentro do recorte geográfico citado acima, tem acesso à Vejinha. Dessa tiragem, segundo dados oficiais de seu Kit de Mídia (Veja São Paulo, 2013), 250.319 são enviados para assinantes e 48.552 para vendas avulsas (bancas de jornal ou quaisquer outros pontos de venda). Como se trata de um suplemento voltado à prestação de serviço sua parte destinada a anúncios, classificados e roteiros culturais tomam a maior parte da publicação, restando as outras páginas para os discursos jornalísticos que serão nosso foco de interesse (reportagens, entrevistas, notas, dentre outros). Segundo o mesmo Kit de Mídia, Vejinha é destinada ao mesmo público da revista Veja, ou seja, 86% pertencem às classes A e B. Segundo os dados são 748 mil leitores, sendo 52% mulheres e 69% adultos (entre 20 e 49 anos). O material ainda diz o seguinte: VEJA São Paulo é uma revista que ama e defende a cidade. Nas reportagens, são discutidas questões importantes como trânsito, saúde, educação e segurança, assim como novidades ligadas as áreas de consumo, moda e comportamento, além de retratar pessoas que fazem a diferença em vários setores da capital. VEJA São Paulo atua como um grande GPS do lazer do paulistano, identificando e avaliando o que há de melhor na metrópole na gastronomia, arte e entretenimento. (Veja São Paulo, 2013)

A revista é composta pelas seguintes seções fixas: VEJA São Paulo Recomenda, A Opinião do Leitor, Vejasaopaulo.com, Seja o Crítico, #vejasp no Instagram, Mistérios da Cidade, Memória, Terraço Paulistano, Paulistano Nota Dez, Esquina da Moda, Bichos, As Boas Compras, Liquidações, Roteiro da Semana, e uma crônica, localizada na última página. Há ainda as editorias que variam conforme os assuntos da semana, denominadas a partir do tema abordado na reportagem, como Cidade, Consumo, Comportamento, Comida, Noite, Moda, Perfil, Turismo, Transporte, Trânsito, Shows, Drogas, Polícia, Solidariedade, entre outras. Geralmente são essas as seções que nos despertam mais interesse, pois a maior parte dos textos informativos está publicada nelas. Na época de nossa pesquisa, entre 2005 e 2009, a revista já era organizada dessa forma.

ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DO MORADOR DE RUA EM VEJINHA Após selecionarmos nosso corpus, com base nos critérios citados acima, realizamos a análise dos discursos jornalísticos. Para isso, além de termos como referencial teórico a Análise de Discurso de Linha Francesa, associadas às teorias da comunicação e consumo, jornalismo, cidades, etc., tomaremos por base um protocolo de análise que compreenderá os seguintes aspectos: compreensão do Valor-notícia de cada matéria que tiver o tema morador de rua; identificação das Vozes enunciativas com representações do morador de rua; interdiscurso no discurso jornalístico sobre os moradores de rua no veículo investigado (política; social; diversidade/diferença); produção de sentidos da cidade e dos moradores de rua, a partir da identificação das formações imaginárias e das formações discursivas. Buscam-se, aqui, as representações da cidade e dos moradores de rua; e identificação das representações do morador de rua. Na tabela abaixo temos o resumo de que encontramos em nossa análise para cada texto:

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Tabela 2. Textos com o tema morador de rua na revista VEJA São Paulo entre 2005 e 2012 Valor-notícia

Representações do morador de rua

Título

Autores

Vozes Enunciativas

Dez ideias para o centro

Alessandro Duarte e Marcos Buarque de Gusmão

Jornalistas; Presidente da Associação Viva Centro; Jaime Lerner; e Andrea Matarazzo.

Ideias para revitalização do Centro de São Paulo

Ele não foge da briga

Camila Antunes e Alessandro Duarte

Jornalistas; Andrea Matarazzo e Gilberto Kassab.

Perfil do secretário das Problema a ser ensubprefeituras Andrea frentando; Infrator; e Sujeito a ser “caçado”. Matarazzo

Cenas de um centro abandonado

Giovana Romani

Jornalista; Turista francesa; Abandono do centro Coronel da PM; Associação de São Paulo nos finas de semana Viva Centro; e Diretor do CCBB.

Degradação que se esparrama

Henrique Skujis

Jornalista; Presidente Associação Paulista Viva; Associação de moradores; Floriano Pesaro; e Silvia Maria Schor.

Degradação do Centro Causador e espalhador de São Paulo e política da degradação de albergues

Vizinhos da Cracolândia

James Cimino

Jornalista; Nova moradora; Agentes de saúde; Arquiteto Arnold Pierre; e Recepcionista de hotel.

Revitalização da Viciado Cracolândia (Nova Luz)

A vida no abrigo da Cracolândia

Maurício Xavier

Reabilitação de depen- Ex-viciados Jornalista; Sem-tetos; Psiquiatra Ronaldo Laran- dentes químicos e jeiras; Agentes comunitári- política de albergues os; Secretária da SMADS, Alda Marco Antônio.

Em quem o frio dói mais

Edison Veiga

Jornalista; Morador de rua; Frio nas ruas nos meses de inverno Assistente social; Secretário da SMADS, Floriano Pesaro.

Rebelde e Sujeito lançado à própria sorte

Dez mortes em quatro dias

Daniel Salles

Jornalista; Vendedor da região dos crimes; e PM.

Assassinatos de moradores de rua

Vítimas da violência

Estrangeiros sem teto

Cláudia Jordão

Jornalista; e Personagens estrangeiros moradores de rua.

Estrangeiros em situação de rua

Trabalhador; Limpo; e Vítimas da crise financeira.

Crianças de rua

Ivan Angelo

Ivan Angelo e Interlocutores

Crianças moradoras de rua

Carente, porém livre

O muro do Center 3

Edison Veiga, Regina Cazzamatta e Roberto Gerosa

Jornalistas; Administração do Shopping Center; e Arquiteto Ruy Otakhe.

Instalação de tapumes Problema e Mendigo. de madeira para conter que moradores de rua durmam sob marquise de shopping

O cortiço na Oscar Freire

Maria Paola Salvo

Moradores; Jornalista; Dono de apartamentos; e Representante dos outros proprietários.

Formação de cortiço em bairro nobre

Fora da lei; Marginal; e Corpo diferente.

1sem-teto=350 reais (por mês)

Edison Veiga

Jornalista ; Moradores de rua; e Secretário da SMADS.

Custo da assistência social

Vadio (não trabalhador)

Uma noite no albergue

Pedro Henrique Araújo

Jornalista; Moradores de Política de albergues rua; e Secretária da SMADS, Alda Marco Antônio.

“Não fujo de uma polêmica”

Daniel Bergamasco Jornalista; Promotor Maurício Lopes; Secretária da SMADS, Alda Marco Antônio; e Advogado Luis Carlos Tucho.

Declaração de promotor sobre população que é contra o sem-teto

Sujeito descartável; indigente; e Culpado pela egradação do Centro.

Culpado pela degradação do Centro; Sujeira; e Causa do Abandono do Centro.

Resistente ou rebelde

Cidadão de direitos e Opositor à classe média

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Levando em consideração a tabela acima, podemos sintetizar nossa análise da representação do morador de rua em VEJA São Paulo da seguinte forma. O morador em situação de rua é geralmente representado como um corpo estranho, não normatizado em relação ao ambiente urbano, ou seja, é representado como um marginal, no sentido de criminoso ou de viciado, por exemplo. Corroboram ainda a esta afirmação representações como vadio, culpado pela degradação do centro da cidade e indigente. Ressaltamos que essa representação se dá com base em argumentos higienizadores e elitistas, isso se deve ao fato de que a prática discursiva é autoritária, definida por Orlandi (2009). Nesta prática, a produção de sentidos é contida, o referente é apagado pela relação de linguagem que se estabelece e o locutor se coloca como agente exclusivo. Ou seja, não se abre espaço para outro tipo de sentido produzido que não se baseie na visão e no poder dos órgãos oficiais e seus representantes. Algo que nos chama a atenção nesses discursos é o fato de não haver uma instância de diálogo entre o sem-teto e as instituições. Efetivamente, nesta publicação, o morador de rua não tem voz. Quanto ao argumento da higienização, ele é utilizado todas as vezes em que a publicação aborda que a solução é retirada da população das ruas para ser colocada em um albergue ou, simplesmente, não ficar mais no centro. Já o elitismo se revela, pela ideia recorrentemente presente nos textos da revista de que o centro da cidade deve ser exclusivamente consumido por pessoas com alto poder aquisitivo. Além disso, há muitos casos em que as falas dos entrevistados ou enunciadores da revista são de caráter moralista e condenam as pessoas que vivem nas ruas. Percebemos isso especialmente quando o morador é representado como responsável pela degradação do centro da cidade. Além dos jornalistas, também temos como enunciadores frequentes, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social e a Prefeitura Municipal de São Paulo. É de se ressaltar que não verificamos silenciamento em questão da população em situação de rua nas páginas da publicação. Na ADF, o conceito de silêncio é importante para a compreensão da produção de sentidos. Ele pode ser pensado como “a respiração de significação, lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido” (Orlandi, 2009, p. 83). Entretanto, há o silenciamento da condição de cidadão do morador de rua. Isto se demonstra pelo no fato de que de todos os textos analisados, em poucos casos o sem-teto foi protagonista, enunciador ou personagem das reportagens. No caso que citamos, estamos falando do tipo de silenciamento em que o enunciador deixa de mencionar algo, ou diz uma coisa e não diz outra, pois as autoridades falam da situação ideal da cidade “limpa” e não abordam porque há a “sujeira”. Ou ainda, falam das ações tomadas, mas não falam dos problemas dos projetos, falam do cidadão que merece ter as ruas limpas, mas não falam do cidadão morador de rua que deveria ter condições de viver com dignidade, ter residência e trabalho, por exemplo. Alguns aspectos nos chamaram a atenção durante a análise do corpus de VEJA São Paulo, como o fato de termos encontrado sete textos que faziam a menção à Cracolândia – região próxima ao bairro da Luz em São Paulo com alto índice de viciados em crack – entre junho de 2010 e maio de 2012. Nesses casos, a publicação toca no tema do projeto Nova Luz, que justamente naquela época apresentava algumas ações. Por fim,

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podemos sintetizar que o morador de rua é representado, na Vejinha como culpado pela degradação do centro e marginal a ser descartado da composição do urbano. Entendemos que isso se dá pela característica editorial de VEJA São Paulo, que busca conversar diretamente com o seu público, classe A e B, e talvez, para este tipo de publicação, o povo da rua não demande uma representação distinta de um indivíduo estranho em relação à normatização da cidade. Tanto é que o albergue é representado como uma instituição necessária em VEJA São Paulo, porque aos olhos do governo municipal e das outras instituições que na revista enunciam vozes, o ideal seria que não houvesse morador de rua, mas como existe, então foram criados os albergues para abrigá-los, em dias frios, e, claro, “esconder” essa população. Sobre as Drogas, em Vejinha, o sem-teto é visto, de forma restrita, como viciado. Já no caso dos estrangeiros, é importante ressaltar que são apresentados personagens oriundos de países do chamado primeiro mundo com “dificuldades financeiras”. Há ainda um único caso encontrado e analisado que aborda a violência em relação à população de rua. No texto Dez mortes em quatro dias (Salles, 2010), a questão da violência é abordada e silenciada, abrindo espaço para a generalização, ou seja, violência é urbana e não em relação ao sem-teto. No caso das crianças, mais precisamente no texto Crianças de rua, elas estão representadas como marginalizadas e carentes, mas que são livres, comparadas, inclusive, com a vida do próprio enunciador: “Os meninos pareciam tranquilos, assumindo a obrigação. Eu também não gostava de muita coisa que tinha de fazer, mas fazia” (Angelo, 2006). Por fim, vale mencionar que quanto às questões políticas, o veículo reivindica políticas para solucionar os problemas dessa população. No entanto, se limita a dar visibilidade às políticas de albergues, ou seja, espaços onde essa população possa ser controlada, disciplinada e isolada do restante da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da análise, identificamos que as representações sociais do morador de rua construídas no e pelo discurso jornalístico de VEJA São Paulo, em certa medida, constrói uma imagem do sem-teto por meio de características generalizantes. Tal modo de caracterizar o outro é revelador da ação da ideologia, de preconceitos, pois nem todo morador de rua é viciado, ou ladrão, por exemplo. Em suma, podemos ver nas representações descritas na Tabela 2 que o sem-teto é um indivíduo estranho em relação à normatização da cidade. Isso evidencia que os processos de produção de notícias, ou de produção do discurso midiático, seguem estratégias que resultam em esclarecimento sobre os trabalhos da prefeitura e das autoridades que atuam junto aos moradores em situação de rua. Foi muito enriquecedor para nossa pesquisa a utilização da Análise de Discurso Francesa, uma vez que pudemos interpretar o material coletado de forma qualitativa e chegar a resultados sobre a representação social do sem-teto que, de certa forma, foram ao encontro de nossas expectativas. A ADF nos deu condições para alcançar os sentidos produzidos, por meio da análise das vozes dos textos, que serviu de caminho para alcançarmos a identificação das representações sociais do sem-teto.

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As representações do sem-teto nos discursos jornalísticos de Veja São Paulo durante o Projeto Nova-Luz (2005-2012) Guy Pinto de Almeida Jr

Sobre os critérios de pesquisa, o período extenso que delimitamos, ao mesmo tempo em que nos trouxe dificuldades operacionais com a pesquisa, dado o tempo restrito de análise (24 meses), deu-nos a noção da importância de trabalharmos com corpus complexos para a compreensão da produção de sentidos em veículos (Benetti, 2007). Deste modo, o marco temporal definido para a pesquisa, o Projeto Nova Luz, ao contrário de nossa expectativa inicial, não trouxe o morador de rua para lócus privilegiado do discurso jornalístico sobre a cidade de São Paulo. A respeito dos gêneros jornalísticos, confirmamos nossas reflexões teóricas de que há uma linha tênue entre os gêneros informativos e opinativos. Alguns textos, embora informativos, apresentavam grande teor opinativo e vice-versa. Já o Valor-notícia não remeteu, necessariamente, à questão da rua, pois encontramos uma diversidade de critérios de noticiabilidade sem que se pudesse encontrar uma explícita relação entre o morador de rua e elemento motivador do texto jornalístico. Quanto aos enunciadores, em todos os casos consideramos o jornalista autor da matéria como uma voz importante a ser analisada. Isso se deu porque compreendemos que para analisarmos as estratégias de produção dos discursos jornalísticos, devemos considerar que as condições de produção desses discursos incluem o jornalista, sua formação e o contexto de desenvolvimento da atividade profissional. Sobre a cidade, entendemos que ela é um ambiente comunicacional e é consumida tanto a partir da mídia quanto por meio da experiência urbana. No entanto, o conceito de encontro das diferenças (Caiafa, 2003), embora defendido como necessário é pouco praticado, haja vista, a forma como os discursos retratam a população diferente, por exemplo. Outro ponto que percebemos foi que a pobreza é marcada como um distintivo do morador em situação de rua nesses discursos jornalísticos, seja como sinônimo de vulnerabilidade social ou de miséria. Sobre as práticas discursivas, predomina o discurso autoritário, segundo a conceituação de Orlandi. Já sobre as condições de produção do discurso jornalístico, Vejinha, por ser um veículo comercial, preocupada em atingir um público diversificado, representa o morador de rua conforme as visões mais sedimentadas e, portanto, mais preconceituosas também. Assim, a ideologia da cidade limpa, organizada e protegida está manifesta, em maior ou menor grau, no corpus analisado. Depreende-se também que o silenciamento sobre a situação do morador de rua existe: pouco verificamos nos veículos a preocupação em debater ou esclarecer sobre os motivos da existência de tantos sem-teto na cidade de São Paulo, ou ainda, não observamos debates sobre projetos de promoção humana, de cuidados que promovam a saída das ruas e condições para que o sujeito viva uma outro tipo de vida, integrado às regras de normalidade das cidades, conforme argumentamos ao longo do trabalho. O discurso jornalístico produzido pela revista analisadas permanece no âmbito das questões superficiais, não ultrapassam os limites do que pode e do que deve ser dito; parecem muito afeitos a uma cordialidade que não condiz com o discurso jornalístico. Compreendemos que o efeito negativo disso é que por meio das representações sociais veiculadas na mídia que a sociedade também se mobiliza em torno da cidadania e do fazer política. Para finalizar, a partir da análise desenvolvida, podemos afirmar que o discurso jornalístico de Veja São Paulo abriga estereótipos e reproduz desqualificações sociais do morador de rua.

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As representações do sem-teto nos discursos jornalísticos de Veja São Paulo durante o Projeto Nova-Luz (2005-2012) Guy Pinto de Almeida Jr

REFERÊNCIAS Almeida Jr., G. (2014). Pelas ruas e nas páginas das revistas: estratégias de construção da representação do morador de rua no discurso jornalístico de Ocas” e VEJA São Paulo. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo, defendida em 27 de março de 2014) – Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo. Angelo, I. (fevereiro de 2006). Crianças de rua. Veja São Paulo (1941), 126. Assis, F. d. (jul./dez. de 2010). Fundamentos para a compreensão dos gêneros jornalísticos. Alceu, II(21), 16-33. Benetti, M. (2007). Análise do Discurso em jornalismo: estudo das vozes e sentidos. In: C. Lago, M. Benetti, & (orgs.), Metodologia de pesquisa em jornalismo (3ª ed., pp. 107-123). Petrópolis: Vozes. Caiafa, J. (Jun de 2003). Comunicação e diferença nas cidades. Lugar Comum, 91 -102. Costa, L. A. (2010). Gêneros jornalísticos. In: J. Marques de Melo, F. d. Assis, & (Organizadores), Gêneros jornalísticos no Brasil (pp. 43-84). São Bernardo do Campo: Universaidade Metodista de São Paulo. Costa, L. A. (2010). Outros gêneros em jornais regionais. In: J. Marques de Melo, F. d. Assis, & (Organizadores), Gêneros jornalísticos no Brasil (pp. 225-268). São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo. Orlandi, E. P. (2009). Análise de Discurso: princípios e procedimentos (8ª ed.). Campinas: Pontes. Salles, D. (Maio de 2010). Dez mortes em quatro dias. Veja São Paulo(20, ano 43), 29-30. Sodré, M. (2012). A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento (2ª ed.). Petrópolis: Vozes. Sousa, J. P. (2004). Introdução à análise do Discurso Jornalístico Impressa – um guia para estudantes de graduação. Florianópolis: Letras Contemporâneas. Veja São Paulo. (23 de maio de 2013). Informações Gerais. Fonte: Publiabril: http://www. publiabril.com.br/marcas/vejasaopaulo/revista/informacoes-gerais Veja São Paulo. (5 de maio de 2013). Mídia Kit VJSP 04-03-13. Fonte: Publiabril: http:// www.publiabril.com.br/marcas/vejasaopaulo/internet/informacoes-gerais/ Weber, M. H. (2007). A cidade traída: recortes da mídia, do governo e da academia. In: A. S. orgs. Médola, D. C. Araujo, F. Bruno, & L. Gomes (Ed.), Imagem, visibilidade e cultura midiática. Livro da XV COMPÓS (pp. 247-276). Porto Alegre: Sulina.

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A representação de um caso de agressão feminina nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo Representation of female violence in newspapers Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo Noemi Correa Bueno1

Resumo: Este artigo discute a representação do gênero feminino em uma cobertura jornalística de uma agressão a uma estudante. Para tal, realiza uma análise de enquadramento dos textos veiculados, no período de 30 de outubro a 20 de novembro de 2009, na Folha de S. Paulo e n’O Estado de S. Paulo sobre o ocorrido com a aluna Geisy Arruda nas dependências da UNIBAN (em 22 de outubro de 2009, onde foi hostilizada devido aos trajes que vestia). Observou-se que em O Estado de S. Paulo, 58% das expressões relacionadas ao caso adotaram o enquadramento de que se tratou de intolerância. Da mesma maneira na Folha de S. Paulo, predominaram as expressões que enquadram o episódio como um caso de violência, com 51% das ocorrências. Assim, pôde-se afirmar que apesar de ambos os jornais praticaram majoritariamente enquadramentos de que o caso constituiu-se de intolerância e violência, esta discussão poderia ter sido mais aprofundada, reforçando ainda mais que o caso consistiu em agressão e transgressão à aluna e aos direitos femininos.

Palavras-Chave: Violência. Jornalismo. Enquadramento. Feminino. Abstract: This article discusses the representation of female gender (case of an injury to a student) in newspapers Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo, in the period from October 30 to November 20, 2009. This period, the student Geisy Arruda was harassed, because of the clothes she wore. In the analysis this news, it was observed that in O Estado de S. Paulo 58% of terms related feature the occurrence with intolerance and violence, and in the Folha de S. Paulo 51%. Both newspapers featured the case with intolerance and violence in about 50% of news, therefore, this discussion could have evidenced further the event with aggression and transgression of the student and women’s rights.

Keywords: Violence. Newspaper. Framing News. Female.

AS REPRESENTAÇÕES DO GÊNERO FEMININO STE ARTIGO analisa a representação do gênero feminino em uma cobertura jorna-

E

lística de um acontecimento envolvendo uma agressão a uma estudante, buscando verificar as teorias formuladas acerca das representações da mulher na mídia. Realiza, para isso, uma análise de enquadramento dos textos veiculados nos jornais 1.  Doutoranda em comunicação pela FAAC/UNESP. Email: [email protected]

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A representação de um caso de agressão feminina nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo Noemi Correa Bueno

Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo sobre o acontecimento envolvendo a aluna Geisy Arruda nas dependências da Universidade Bandeirante de São Paulo - UNIBAN. Utiliza como referências conceituais as críticas de Bourdieu sobre a construção de gênero construída por meio da naturalização de relações androcêntricas. O jornalismo tem um papel importante nas questões de gênero, pois, como defende Bourdieu, o jornal consiste em uma das instituições de alto crédito social, sendo, portanto, detentor de um poder simbólico capaz de interferir na formação/consolidação do habitus e, consequentemente, na maneira como a realidade é apreendida pelos sujeitos. O habitus é constituído de estruturas objetivas presentes no mundo social e nos sistemas simbólicos, que são capazes de orientar e coagir práticas e representações, independente da consciência e vontade dos agentes, pois é incorporado e reproduzido naturalmente. O habitus encontra-se presente no princípio da sequência das ações, sem possuir a finalidade consciente de alcançar determinada intenção (BOURDIEU, 2003). No caso da realidade simbólica de gênero, este consiste em um trabalho longo de inculcação das diferenças sexuais, possibilitando a criação de um habitus adaptado à visão androcêntrica, e, consequentemente, na naturalização das relações de dominação entre homens e mulheres, legitimando o exercício de poder de um sobre o outro. Ainda de acordo com Bourdieu (2003), esta relação entre os sexos é mantida e eternizada por algumas instituições como a igreja, escola, família, Estado, esporte e jornalismo. No caso específico do jornalismo (objeto de estudo proposto), a dominação se potencializa devido ao caráter de imparcialidade, ou seja, o conceito de neutralidade (princípio do jornalismo) legitima seu discurso, e, por conseguinte, as relações de gênero representadas por este meio. Ainda segundo o sociólogo, estas instituições reinserem na história a relação entre os sexos com uma visão naturalista e essencialista, retirando das mulheres seu papel de agentes históricos. Assim, mesmo quando não há intenção de reforçar as desigualdade de gênero, a dominação masculina, que encontra-se inculcada inconscientemente, é reproduzida e perpetuada (BOURDIEU, 2003, p. 06). Nesta dominação masculina, as mulheres são constituídas como objetos simbólicos e colocadas em uma situação de dependência simbólica: elas existem pelo, e para, o olhar dos outros. Delas se espera que sejam ‘femininas’, isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. E a pretensa ‘feminilidade’ muitas vezes não é mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas masculinas, reais ou supostas, principalmente em termos de engrandecimento do ego. Em consequência, a dependência em relação aos outros (e não só aos homens) tende a se tornar constitutiva de seu ser (BOURDIEU, 2003, p. 82).

Como exposto acima, há uma relação entre a noção de dominação e a violência simbólica (violência que se apresenta como forma de universalidade e, portanto, como algo natural), cuja eficácia é alcançada, pois os próprios dominados encontram-se integrados naturalmente com o conceito da dominação sem que possuam consciência desta integração. Isso ocorre porque são utilizadas categorias próprias dos dominados de tal forma que estes não percebem a relação de forças.

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A representação de um caso de agressão feminina nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo Noemi Correa Bueno

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados’ (BOURDIEU, 2002, p. 11).

A dominação masculina é um exemplo de violência simbólica, violência “suave, insensível, invisível às suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento, ou em última instância do sentimento” (BOURDIEU, 2003, p. 08). A violência simbólica é possível porque existe um trabalho de inculcação e incorporação que age de maneira invisível e insidiosa por meio da familiarização com um mundo permeado por estruturas de dominação. Assim, a tomada de consciência não é suficiente para vencer a violência simbólica. O rompimento da relação de cumplicidade que as vítimas da violência simbólica estabelecem com os dominantes só é possível por meio da “transformação radical das condições sociais de produção das tendências que levam os dominados a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes” (BOURDIEU, 2003, p. 54), ou seja, por meio de uma transformação das estruturas que resultam nessa dominação. Considerando este aspecto, este artigo, que é parte de um trabalho maior (BUENO, 2010), busca discutir uma destas estruturas (o jornalismo) e como esta representa um caso de hostilização à mulher. Para tal, analisa a um dos enquadramentos dos textos veiculados, no período de 30 de outubro de 2009 a 20 de novembro de 2009, pelos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, relacionados à definição da situação de hostilização à aluna Geisy Arruda, ocorrida no dia 22 de outubro de 2009, nas dependências da Uniban. Neste episódio, a discente foi hostilizada por cerca de 700 estudantes devido aos trajes que vestia. Estes cercaram a sala em que Geisy se encontrava e proferiram ofensas e a ameaçaram de estupro. Diante desta agressão, a aluna precisou deixar a universidade escoltada por policiais.

O ENQUADRAMENTO DO JORNAL FOLHA DE S. PAULO A análise de enquadramento, utilizada como método, examina o modo utilizado pelos jornais para organizar o texto, selecionando alguns aspectos e tornando-os mais salientes em um texto, de maneira a promover uma definição particular do problema, uma interpretação causal, uma avaliação moral e/ou uma recomendação de tratamento para o ocorrido (ENTMAN, 2008). Ou seja, essa análise busca identificar uma ideia central organizadora que acabaria por conferir mais visibilidade a determinados elementos e aspectos em detrimento de outros, devido ao padrão de seleção, apresentação, ênfase e interpretação das palavras e expressões utilizadas pelas jornalistas ao organizarem suas representações discursivas. Para esta pesquisa, foi utilizada uma escala de três possibilidades de representação de situação, veiculadas no jornal Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, ao reportarem

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o episódio. A primeira consiste de expressões que não contribuíram para enquadrar o acontecimento como manifestação de intolerância e violência de gênero; a segunda possibilidade é a de os textos utilizarem expressões que enquadram o acontecimento como uma situação de violência e/ou intolerância a terceira consiste do uso de expressões neutras. A Tabela 1 apresenta a distribuição das expressões das reportagens do jornal Folha de S. Paulo nas três possibilidades da escala de definições do acontecimento, separadas pelos gêneros de jornalismo opinativo e informativo e, por último, agregadas. Tabela 1. Expressões referentes ao ocorrido na Uniban (Folha de S. Paulo) Enquadramentos

Valores Absolutos Opin.

Inform.

Valores Relativos Total

Opin.

Inform.

Total

Não enquadram como intolerância

8

31

39

4,2%

16,3%

20,5%

Enquadram o caso como intolerância

59

38

97

31,1%

20,0%

51%

Neutros

23

31

54

12,1%

16,3%

28,5%

FONTE: BUENO, 2010, p. 126

Podemos ver que, no jornal Folha de S. Paulo, apareceram 39 termos considerados contrários ao enquadramento de intolerância e violência, sendo que 31 foram encontrados em textos informativos e 8 em textos opinativos. A maioria destas expressões buscaram classificar a hostilização de forma genérica, como “tumulto” (13 casos); “confusão” (2 ocorrências) e “apelo” (2 casos). Houve ainda expressões que apontaram a hostilização como natural e/ou correta, como “reação coletiva de defesa do ambiente escolar” (4 ocorrências), “excesso de vigilância” (1 ocorrência) e “os seguranças da faculdade, no começo, (também estavam participando), estavam rindo” (2 ocorrências). Ou seja, ao apontar como ato de defesa ou vigilância do qual os próprios seguranças participaram, os textos colocam que a intervenção foi positiva e colaborou com a harmonia da coletividade. Além disto, também foram utilizadas expressões que indicaram a responsabilidade da aluna pelos acontecimentos (“foi o estopim de uma postura decorrente da aluna”, “com certeza, não foi somente pelo fato de a garota estar vestida com minissaia”). As vozes que se posicionaram contrariamente ao enquadramento de violência foram as da redação (19), os leitores (5), os alunos (1), a Uniban (7), uma vestibulanda (1), um universitário (2) e a própria Geisy (4). Já as expressões que enquadram o ocorrido como manifestação de intolerância somaram 97 casos, sendo 38 em textos não opinativos e 59 em textos opinativos. Houve duas expressões cuja freqüência se destacou das demais: “agressão” (6 ocorrências) e “quase fui estuprada” (4 casos, todas tendo Geisy como fonte). As vozes que expressaram este enquadramento de violência foram a da redação (58), a de leitores (22), a dos alunos (6), a da Geisy (6), a de universitários (3), a do advogado de Geisy (1) e a de sociólogos (1). Por fim, as expressões neutras totalizaram 54 ocorrências, sendo 31 em textos informativos e 23 em opinativos, sendo provenientes das seguintes vozes: redação (40), leitores (9), alunos (2), vestibulandos (2) e um sociólogo (1). Em relação ao acontecimento, portanto, predominaram as expressões que enquadram o episódio como um caso de intolerância, com 97 ocorrências (51%), em detrimento das contrárias

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a esse enquadramento, com 39 casos (20,5%) e das expressões neutras, que apresentaram 54 casos (28,5%). Vale ainda ressaltar que, no conjunto dos três enquadramentos, 52,6% das expressões analisadas apareceram em textos informativos e 47,4% em opinativos. Como pode ser verificado na tabela acima, das expressões que não enquadraram o acontecimento como intolerância, 31 estavam presentes em textos informativos e 8 em opinativos. Assim, a posição de que o caso não consistiu em intolerância predominou em textos informativos, textos que possuem a pretensão de apresentar neutralidade e imparcialidade, revelando os fatos de maneira isenta em relação ao ocorrido. Esse resultado se explica pela reprodução nas reportagens de expressões utilizadas pelas próprias fontes das matérias. Por outro lado, das 97 expressões favoráveis ao enquadramento de intolerância, 38 estavam presentes em textos informativos e 59 em opinativos. Assim, as expressões que interpretaram o acontecimento como intolerância predominaram nos textos de opinião, nos quais se manifestaram diversos profissionais não envolvidos no episódio. Como os textos informativos possuem a pretensão de neutralidade e que correspondem à realidade, e os opinativos são resultados de opiniões pessoais e não a representação real de fatos, a predominância de expressões de que o evento consistiu em intolerância apenas nos textos opinativos podem gerar o sentido de que o evento não foi de hostilização, apesar de algumas pessoas o caracterizarem desta maneira. As expressões neutras também predominaram em textos informativos, com 31 ocorrências, em comparação com as 23 nos textos de opinião. A predominância de expressões neutras já era esperada nos textos informativos, já que destes últimos se espera que narrem os fatos de forma isenta. Assim, verificamos que das 100 expressões presentes em textos informativos, 31% foram consideradas neutras, 38% construíram o enquadramento de que se tratou de intolerância e violência 31% foram contrárias a esse enquadramento. Em sentido diverso, nos textos opinativos, 25,6% das 90 expressões em foram consideradas neutras, 8,9% contrárias e 65,5% enquadraram o que ocorrera como um episódio de intolerância e violência. Somando-se as expressões contrárias às neutras, pode-se ver que nos textos informativos da Folha de S. Paulo preponderou um enquadramento do acontecimento que não o representava como intolerância ou violência. Em sentido contrário, nos textos de opinião, predominou o enquadramento de que se tratou de intolerância e violência. Convém salientar que, tomando-se isoladamente cada uma das três alternativas da escala, predominaram em ambos os gêneros jornalísticos, expressões favoráveis ao enquadramento de intolerância e violência, sendo que no gênero informativo houve 7% a mais de expressões favoráveis em comparação com as demais. No gênero de jornalismo opinativo, as expressões favoráveis à interpretação de intolerância e violência foram 40% mais frequentes que as expressões neutras e 56,5% que as contrárias.

OS ENQUADRAMENTOS DO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO Em O Estado de S. Paulo, no período estudado, apareceram 169 expressões relacionadas ao caso Geisy Arruda. Destas, 99 adotaram o enquadramento de que se tratou de intolerância, 40 eram neutras e 30 eram contrárias ao enquadramento do ocorrido como manifestação de intolerância e violência. A Tabela 2 resume os resultados.

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Tabela 2. Enquadramentos referentes ao ocorrido na Uniban (jornal O Estado de S. Paulo) Enquadramentos

Valores Absolutos

Valores Relativos

Opin.

Inform.

Total

Opin.

Inform.

Total

Contrários ao caso como intolerância

3

27

30

1,8%

16,0%

17,8%

Favoráveis ao caso como intolerância

17

82

99

10,1%

48,5%

58,6%

Neutros

7

33

40

4,1%

19,5%

23,7%

FONTE: BUENO, 2010, p. 158

Das 30 expressões referentes ao acontecimento contrárias ao seu enquadramento como manifestação de intolerância e violência, 27 apareceram em textos informativos e apenas 3 em textos opinativos, ou seja, o jornal difundiu mais essa posição valorativa em textos informativos do que nos opinativos. A expressão contrária de maior destaque foi “tumulto”, com 13 aparições. Outras expressões, como “algazarra”, “confusão”, “brincadeira que passou dos limites”; “incidente”, e, “momentos de apuro” foram caracterizadas como contrárias, porque minimizam o acontecimento, desvinculando-o da ideia de violência e intolerância. Também foram utilizadas expressões que responsabilizaram Geisy pela agressão que sofreu, posicionando os discentes como defensores do ambiente da universidade que havia sido “transgredido” pela aluna. Dentre as vozes utilizadas para expor estas expressões, sobressaiu-se a da própria redação com (18 ocorrências), e das seguintes fontes: alunos (com 4 citações) e Uniban (com 6). Já o enquadramento de intolerância e violência apresentou 99 expressões. Destas, 82 estiveram presentes em textos informativos e 17 em textos opinativos. Destacaram-se o termo “agressões”, com 6 ocorrências e a narrativa de Geisy ter necessitado de escolta policial para deixar o campus (6 ocorrências também), sendo que as demais expressões não apareceram mais de 2 vezes. Este enquadramento foi construído a partir do uso das seguintes vozes: redação (69), mãe de Geisy (9), leitores (4), alunos (4), sociólogos (2), especialistas (2), antropólogos (2) procuradores (2), Uniban (1), MEC (1), imprensa internacional (1) e ONGs (1). Já em relação às expressões neutras em relação ao enquadramento como manifestação de intolerância e violência, foram verificadas 40 casos (33 presentes em textos informativos e 7 em opinativos), pertencentes às seguintes vozes: redação (25), leitores (3), alunos (1), Uniban (1), irmão de Geisy (3), especialista (2), psicoterapeuta (3), ONG (1) e procurador (1). Constata-se, ainda, que o jornal O Estado de S. Paulo enquadrou o acontecimento majoritariamente como ato de violência e intolerância. Já as expressões neutras somam menos da metade daquelas do enquadramento de violência (99 ocorrências). Como se recorda, esse resultado em relação ao acontecimento também foi verificado no jornal Folha de S. Paulo, onde foi constatado o predomínio de expressões favoráveis ao enquadramento de intolerância (com 97 ocorrências), em detrimento das contrárias (39 casos) e neutras (54 casos). O enquadramento de intolerância em O Estado foi constituído por 17 expressões em textos opinativos e 82 em textos informativos. Das expressões contrárias a esse enquadramento n’O Estado, 3 estavam em textos opinativos e 27 em textos informativos. Das expressões neutras, 7 estavam em textos opinativos e 33 em textos informativos.

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Verifica-se, portanto, que os enquadramentos a favor e contra uma interpretação de intolerância predominaram em textos informativos, dos quais se espera a narrativa dos fatos de maneira mais neutra possível. O mesmo não aconteceu na Folha de S. Paulo, na qual, as expressões favoráveis apareceram mais em textos opinativos que em informativos. Em termos percentuais, verifica-se que nos textos opinativos, 57,7% das expressões enquadraram o acontecimento como intolerância, 23,2%, foram neutras e 19,1% contrárias. Enquanto isso, nos textos opinativos, 63% das expressões adotaram o enquadramento de intolerância, 25,9% foram consideradas neutras e 11,1% contrárias. Dessa forma, pode-se concluir que o jornal O Estado de S. Paulo adotou um enquadramento predominante de que houve intolerância, tanto em textos informativos como nos opinativos, vindo em segundo lugar o enquadramento neutro à compreensão do acontecimento como ato de intolerância e violência.

COMPARAÇÕES ENTRE OS ENQUADRAMENTOS Ao comparar os resultados nota-se que em ambos houve um predomínio das expressões enquadrando o episódio como um caso de intolerância e violência, seguidas por expressões neutras e, por último, de expressões de que não houve intolerância ou violência. No jornal Folha de S. Paulo, essa sequência predominou tanto em textos opinativos, quanto nos textos informativos. Verificamos que o jornal Folha de S. Paulo apresentou 51% das expressões relativas ao enquadramento de que se tratou de intolerância, 20,5% expressões contrárias a esse enquadramento e 28,5% neutras. Também no jornal O Estado de S. Paulo predominou significativamente o enquadramento de intolerância, tanto nos textos de opinião como nos informativos. Em O Estado, 58,6% das expressões foram de que houve intolerância 17,7% contrárias a esse enquadramento e 23,7% eram neutras. Verificou-se, ainda, que ambos os jornais ouviram predominantemente os envolvidos no caso, apresentando cada sujeito praticamente o mesmo número de citações nos dois diários. Na Folha, Geisy obteve 10 citações, enquanto que a Uniban e os alunos foram citados, respectivamente, 7 e 9 vezes. E, em O Estado, Geisy se pronunciou 10 vezes, a Uniban 8 e os alunos 9 vezes. Vale ainda ressaltar que na Folha foram constatadas apenas 8 expressões (4,2% das expressões sobre o acontecimento) nos textos opinativos que se referem à violência e intolerância, a saber: “conduta violenta e intimidatória”; “consequência de um pensamento coletivo que ainda é conservador e machista”; “crime contra a dignidade sexual”, “episódios de intolerância”; “evidencia que discriminação e intolerância são valores ainda implícitos na sociedade brasileira”; “reforçam um sistema de opressão e violência contra a mulher”; “machismo”; e, “representa os preconceitos de gênero ainda existentes, que estabelecem uma dicotomia entre ‘santa’ e ‘prostituta’ e condenam quem sai dos padrões”). Dentre as expressões de O Estado de S. Paulo que condenaram as ações dos estudantes destacam-se: “cenas de preconceito, intolerância e barbárie”; “é uma lógica machista a que alimenta sentimentos de indignação e ultraje por um vestido curto”; “foi a volta do patriarcalismo mais exacerbado que, apesar de tudo que se diz e se vê sobre as conquistas das mulheres, continua a nos assediar”; “há uma sociedade desigual e que acredita

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disciplinar os corpos femininos pela violência”; “não há nada que justifique o uso da violência para disciplinar mulheres”; “o machismo justifica a agressão contra a mulher por uma suposta falha”; “preconceito de gênero”; “situação de violência na qual a vítima pode ser seu próprio algoz”; “trata-se de uma questão de direitos civis, que interessa a toda sociedade”; “violência sexista”. Ainda em relação às expressões relativas ao acontecimento, verificou-se que na Folha foram usadas expressões que generalizam a violência do caso Geisy, remetendo-a a questões culturais relativas às relações entre homens e mulheres, e que, portanto, podem atingir outras mulheres (essas expressões são: “consequência de um pensamento coletivo que ainda é conservador e machista”; “evidencia que discriminação e intolerância são valores ainda implícitos na sociedade brasileira”; “machismo”; “mostra o desconhecimento da luta das mulheres para conquistarem o direito de frequentar em igualdade de condições com homens, os mais diferentes espaços da sociedade contemporânea”). O Estado também apresentou expressões generalizantes como: “claro caso de violência contra a mulher”; “é uma lógica machista a que alimenta sentimentos de indignação e ultraje por um vestido curto”; “esse caso me parece ter um forte caráter de gênero”; “foi a volta do patriarcalismo mais exacerbado que, apesar de tudo que se diz e se vê sobre as conquistas das mulheres, continua a nos assediar”; “ganhou repercussão gerando debates sobre intolerância e violência na sociedade”; “há uma sociedade desigual e que acredita disciplinar os corpos femininos pela violência”; “inverter a lógica da violência (culpar o uso do vestido) é a estratégia mais comum nos enredos de violência de gênero”; “isso retrata a violência de gênero, culpar a mulher pela agressão”; “não há nada que justifique o uso da violência para disciplinar mulheres”; “machismo”; “o machismo justifica a agressão contra a mulher por uma suposta falha”; “preconceito de gênero”; “trata-se de uma questão de direitos civis, que interessa a toda sociedade”; “violência provocada pelo machismo da sociedade”; “violência sexista”. Interpretando os resultados, podemos afirmar que O Estado contribuiu um pouco mais que a Folha para o enquadramento do caso como uma questão sexista, que se encontra latente na sociedade como um todo e por isso, podem atingir todas as mulheres direta ou indiretamente. Ou seja, O Estado contribuiu mais que a Folha para repensar a situação das mulheres na sociedade brasileira, já que apontou em seus textos mais expressões que remetem atitudes sexistas como motivo da reação dos alunos e, posteriormente, da Uniban. Apesar de essa contribuição ter sido pequena, pois diz respeito a apenas a 8,9% dos termos que caracterizam o acontecimento, foi, no entanto, maior que a da Folha, que apresentou apenas 3,1% de expressões desse tipo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ambos os jornais praticaram majoritariamente enquadramentos de que o caso de hostilização de Geisy constituiu-se de intolerância e violência, sendo que O Estado se mostrou pouco mais propenso que a Folha a assumir esse posicionamento, descrevendo, por exemplo, não somente como ocorreu a violência, mas designando-a como tal e relacionando-a à cultura machista da sociedade. Dessa maneira, os resultados da análise específica de enquadramentos da ocorrência “hostilização” não foram consistentes com a predominância de um habitus sexista na

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imprensa, como defendido por Bourdieu, autor utilizado como referência teórica. Pelo contrário, pode-se dizer que a definição do acontecimento pelos dois jornais foi positiva, no sentido de defesa de direitos do gênero da estudante hostilizada. No entanto, o episódio é complexo e tem outras facetas, por exemplo, o enquadramento da própria estudante Geisy pelos dois jornais (que não está analisado neste artigo) revelou o predomínio de uma abordagem neutra, seguida de um enquadramento favorável a considera-la vítima de intolerância. No caso desta análise, observamos que O Estado de S. Paulo apresentou-se mais disposto a veicular textos que questionassem paradigmas androcêntricos instituídos, expondo a necessidade de mudança nos valores sexistas presentes em nossa sociedade. No entanto, o número de expressões que denominam claramente o acontecimento como intolerância e violência ainda é mínimo, como, também foi relativamente baixa a frequência de expressões que remetem o acontecimento a questões sexistas que se encontram latentes na sociedade e que por isso, atingem/podem atingir todas as mulheres, possibilitando uma discussão crítica sobre esta situação em geral. Convém ainda lembrar que os enquadramentos são definidos não somente pelo que incluem, mas também pelo que omitem, pois as omissões podem ser tão críticas como as inclusões. Assim, a baixa presença de expressões que relacionem o evento aos valores sexistas, por um lado, indicar o início de uma abertura dos jornais para discutirem questões de gênero, relacionando-as a preconceitos latentes em nossa sociedade, mas por outro lado essa baixa frequência pode dificultar a leitura do acontecimento sob a perspectiva sexista, facilitando uma compreensão tradicional e não crítica sobre o ocorrido com a aluna Geisy Arruda. Por isso, as reivindicações relacionadas às representações de mulheres veiculadas nos meios devem considerar não apenas representações mais adequadas (sem a reprodução de mitos e estereótipos), mas, principalmente, representações que apontem e contestem valores sexistas ainda existentes. Em resumo, estamos progredindo, mas devagar, no sentido da representação correta dos direitos das mulheres na imprensa.

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A representação de um caso de agressão feminina nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo Noemi Correa Bueno

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Evidências e tendências do uso das redes sociais digitais por mídias jornalísticas Evidences and trends of the use of the digital networks by news media J ac q u e l i n e

da

S i lva D e o l i n d o 1

Resumo: O artigo é resultado de uma pesquisa exploratória sobre o uso das redes sociais digitais por jornais, sites de notícias, revistas, emissoras de TV e rádio. Mais especificamente, tentamos compreender como e com que objetivos as companhias noticiosas do Brasil e de outros países usam essas ferramentas – principalmente o Facebook e o Twitter. Os resultados apontam para a tendência das organizações noticiosas articularem-se nas redes sociais digitais principalmente visando à busca por audiências, ideias de pauta, distribuição de conteúdo e localização de fontes, não explorando todo o potencial interativo desses canais para criar vinculação social e construir comunidades. Argumentamos, por fim, que o uso das redes sociais digitais pelas empresas jornalísticas pode colaborar com o fortalecimento dos laços sociais e com o engajamento dos usuários enquanto cidadãos.

Palavras-Chave: Mídias jornalísticas. Redes sociais digitais. Estratégias de mercado. Vinculação social.

Abstract: The article is the result of a exploratory research on the use of digital social networks by newspapers, news websites, magazines, TV and radio stations. More specifically, we try to understand how and why news companies from Brazil and other countries use these tools – especially Facebook and Twitter. The results point to the tendency of news organizations to articulate in digital social networks primarily aiming audiences, sources, stories and distribution of content, not exploiting the full potential of interactive channels to create social connection and build communities. We argue, finally, that the use of digital social networks by media can collaborate with the strengthening of social ties and user engagement as citizens.

Keywords: News media. Digital social networks. Market strategies. Social connection.

1.  Professora do curso de Jornalismo do Centro Universitário Fluminense (UNIFLU – Campos/RJ, Brasil) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, Brasil). E-mail: [email protected]

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Evidências e tendências do uso das redes sociais digitais por mídias jornalísticas Jacqueline da Silva Deolindo

INTRODUÇÃO ESQUISAS INDICAM que as redes soiais digitais, principalmente o Facebook e o

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Twitter, têm se tornado os caminhos preferidos dos usuários da Internet em todo o mundo para obter notícias. Entre os americanos, cerca de 30% da população adulta conectada obtém notícias através dessas ferramentas. Esse número pode chegar a 38% na Itália, 45% na Espanha, 50% na Alemanha e 60% no Brasil. (Pew Research Center, 2013; Telefonica, 2013) Entre os portugueses, 38% dos utilizadores de internet consideram que as redes sociais são fontes muito importantes de notícias e 96,5% afirmam ter o hábito de comentar notícias em redes sociais digitais. (Observatório da Comunicação, 2014) Diante destes e de outros dados, além das observações que temos registrado ao longo de nossas pesquisas, reconhecemos que é evidente o papel estratégico que as redes sociais estão desempenhando no que se refere ao acesso a fontes e histórias e à distribuição de conteúdo jornalístico atualmente. Entretanto, acreditamos que a relevância das redes sociais digitais para as companhias noticiosas e seus públicos vai além: dependendo do planejamento e da conduta da companhia de mídia, elas podem servir como ferramentas úteis para gerar vinculação social, aqui entendida como aquilo que mantém as pessoas unidas, socialmente engajadas, em relação umas com as outras. (Sodré, 2001) Este artigo tem por objetivo refletir sobre o papel desempenhado pelas redes sociais digitais na mediação da comunicação entre pessoas conectadas à internet, o uso corrente dessas mídias por empresas jornalísticas e o grande potencial que os perfis dessas companhias têm de estabelecerem uma conexão genuína com seus públicos e, de forma dialógica e colaborativa, desempenharem mais eficientemente sua função social. O texto tem um caráter de revisão bibliográfica e articula dados levantados por diversos pesquisadores e instituições especializadas. Dividimos este paper em três partes: a primeira trata do potencial das redes sociais digitais em estabelecer/fortalecer laços, gerando capital social, e de como as organizações jornalísticas em geral têm se apropriado desse movimento para descobrir histórias, distribuir conteúdo e gerar fluxo para suas páginas oficiais na internet; a segunda reflete sobre o conceito da comunicação como disposição afetiva, que estabelece a relação do sujeito com o outro, e sobre como também na internet, apesar da superficialidade apontada por seus críticos, é possível comunicar e promover articulações e engajamentos; a terceira apresenta o resultado de uma pesquisa exploratória que realizamos entre dezembro de 2013 e janeiro de 2015 que indica que o uso das redes sociais digitais por veículos de comunicação em diversos países do mundo, pelo menos atualmente, não explora todas as suas potencialidades; por fim, a quarta parte apresenta propostas de boas e eficientes práticas do uso das redes sociais digitais por empresas jornalísticas, inclusive com exemplos de iniciativas premiadas internacionalmente.

INTERAÇÃO MEDIADA POR COMPUTADOR: LAÇOS, CAPITAL SOCIAL E ESTRATÉGIAS DE MERCADO Para além das discussões sobre os limites da exposição e da privacidade (Kenn, 2012; Braga, 2010), sobre os aspectos econômicos e mercadológicos (Carvalho, 2009; Coutinho, 2007) e sobre as táticas de entretenimento e consumo (Castro, 2012; Taylor, Lewin & Strutton, 2012; Endelman, 2013), há que se reconhecer que existe nas redes

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sociais a capacidade facilitar, potencializar ou mesmo promover conexão e engajamento entre os sujeitos que se lançam, através delas, em experiências de interação. Nesse caso, interessam-nos, sobretudo, aqueles usos através dos quais os interagentes se comunicam e podem agir criativamente entre si, oportunizando influências mútuas e negociadas (Primo & Cassol, 1999; Primo, 2000). A literatura especializada tem se enriquecido continuamente com estudos, análises e relatos de casos dessa natureza, como “Redes de indignação e esperança”, de Castells (2013). De fato, se, por um lado, nos deparamos com situações em que o ciberespaço oportuniza às pessoas o estabelecimento ou a retomada de laços fortes, determinados principalmente pela proximidade afetiva e intensidade emocional entre pessoas do mesmo círculo social (Mardens & Campbell, 1984), por outro, devemos admitir que a web é feita também, e talvez principalmente, de uma rede de laços fracos (Granovetter, 1973;1983), que apesar de serem menos densos, mais superficiais, porosos e assimétricos, têm oportunizado aos indivíduos o fluxo de ideias, inovações, influências e informações socialmente distantes, integrando pessoas e pequenos grupos à estrutura social maior e possibilitando, inclusive, a organização e a mobilização comunitária. Kaufman (2012), considera, inclusive, que a força dos laços fracos no ambiente do ciberespaço consiste na sua potência para criar capital social, “gerando um ativo intangível valioso na sociedade e em suas organizações” (Kaufman, 2012, p. 216). Atentas a esse recurso, cada vez mais empresas inscrevem-se nas redes sociais digitais em busca de obter e gerir relacionamentos como um ativo. Como coloca Alex Primo (2013), a respeito da popularização das mídias digitais, “não apenas os movimentos sociais souberam (utilizá-las) para fins comunitários, como também o próprio mercado percebeu que poderia incorporar a colaboração on-line em suas estratégias informacionais, promocionais e de venda”. (Primo, 2013, p. 17) O uso das redes sociais digitais por empresas jornalísticas em todo o mundo é um exemplo dessa apropriação, marcada pelo que se pode chamar de “convergência de interesses”. (Primo, 2013, p. 14). Este artigo, contudo, reconhecendo que uma abordagem meramente crítica não é suficiente para compreender a conjuntura midiática, procura argumentar como as interações entre os membros das audiências e entre estes e as empresas de mídia noticiosa podem ser, para além de uma estratégia mercadológica, uma oportunidade para gerar vinculação e engajamento social.

COMUNICAÇÃO, VINCULAÇÃO E ENGAJAMENTO Um caminho importante para pensar a comunicação em tempos de convergência de mídias e de tecnologia nos é apresentado por Muniz Sodré (2001), que tem se dedicado a desenvolver uma teoria da comunicação que explique “como se dá o vínculo, a atração social, como é que as pessoas se mantêm unidas, juntas socialmente”. Para o autor, “vinculação social” é o mesmo que “compromisso social”, “laço atrativo” que mantém os sujeitos unidos na vida em sociedade – e não apenas unidos, mas ativos na construção, administração e conciliação do comum. Comunicação, assim, inscreve-se na ordem do afeto, do sensível, uma motivação que nos leva a organizar as informações que fluem no seio da comunidade. “Nós nos comunicamos por disposição afetiva. É isso que nos move”. (Sodré, 2013) Para o autor, é o

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afeto, essa capacidade de fazer os seres entrarem efetivamente em contato, obrigando-os à relação, que faz do vínculo a força motriz da sociabilidade, agenciador da coexistência (Yamamoto, 2012), do entendimento de comunidade (com toda a sua violência, tensão, suas lutas) e comunicação (com todo o seu poder dialógico, com sua capacidade aproximativa e diferenciadora). (Paiva, 2013) Tal performance visceral nos indica, portanto, que o papel do afeto na comunicação humana enquanto interação, comunhão (Sodré, 2013, op. cit.), é tão fundador que deve ser pensado como aquilo que impulsiona o sujeito às experiências de alteridade. Como interpreta Cimino (2010, p. 7), “ele se torna o principal responsável pelo estado de choque ou de perturbações na consciência, que possibilita o relativismo de determinadas crenças e o surgimento de emoções diversas que consagram, por sua vez, novas formas de perceber, agir e interpretar o mundo da vida”. Justamente por isso, para Sodré, ao contrário dos autores citados até aqui, a mídia não dá conta da comunicação, do vínculo, atingindo apenas sua externalidade. Ainda que reconheça a mídia como uma ambiência afetiva e sensorial (o bios midiático), ele destaca que se trata de um novo quadro de referências com moral utilitarista, a orientar não apenas novos modos de se relacionar, mas também o desenvolvimento da subjetividade, do caráter, da personalidade, da moralidade, que se afirmam no modo como o sujeito se conduz, age ou produz (Sodré, 2002). “Hoje, na Internet, por exemplo, nunca as pessoas estiveram tão conectadas, tão ligadas, mas não vinculadas”, afirma (Sodré, 2001, op. cit.). Mais radicalmente, o autor considera que “as pessoas têm se conectado não porque querem comunicar algo, mas pelo prazer de estar conectado. A máquina é satisfatória por quê? Porque dá a ilusão de se ser comunidade sem conflito”. (Sodré, 2013) Entretanto, acreditamos que não se pode desconsiderar tão radicalmente a vinculação que potencialmente se estabelece através das diversas experiências que hoje se travam nos “mundos das mídias” (Oliveira, 2008). Concordamos, que também no “ato da conectividade [se realiza o] ato de estar em permanente condição de fazer sentido para si e para o outro”. A mídia, e nesse caso as redes sociais digitais, podem também ser “uma instância da experiência vivida na e pela relação interativa e [por isso] integra[r] o mundo fenomenal” (Oliveira, 2008, p. 35-37) Se assim não fosse, os afetos que circulam pela rede não resultariam em mobilizações e engajamentos que testemunhamos dia a dia (Castells, op. cit.; Pereira, 2011; Moraes, 2007). Obviamente, não se possa perder de vista que, assim como nas relações face a face, também nas interações on-line a cooperação, os interesses e a busca por reputação estão intimamente relacionados (Zago & Batista, 2008) e que nas redes sociais estão implicadas diversas categorias e hierarquias de poder comunicacional. (Silveira, 2011) Mas, concomitantemente, através das redes sociais as audiências podem ser envolver em trocas informativas e dialógicas a respeito do lugar em que se vive e das coisas que ali se passam, visando à problematização e à busca da melhoria do que lhes é comum. Muito mais do que uma ferramenta para obter pautas e fluxo de leitores, as redes sociais das empresas jornalísticas podem constituir um espaço de prática da cidadania e um instrumento de fortalecimento dos vínculos entre as organizações noticiosas e suas audiências e dos membros da audiência entre si. Como concebe Aroso (2013, p. 6), “idealmente, as consequências da presença meios de comunicação nas redes sociais serão

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o aumento da audiência e o fortalecimento dos vínculos com esta, já que transformam audiências em comunidades”. Entretanto, entendemos que esse modelo ideal só se realiza quando a empresa de mídia está empenhada em fazer do seu espaço nas redes sociais um lugar de encontro, de experiências, de intercâmbio, de mediação. Como veremos a seguir, essa não parece ser a prática usual entre as empresas de mídia em diversos países do mundo.

USO DAS REDES SOCIAIS POR MÍDIAS JORNALÍSTICAS: UM ESTUDO EXPLORATÓRIO O levantamento bibliográfico que realizamos sobre o uso das redes sociais digitais por empresas jornalísticas não teve a intenção de ser exaustivo. Devido à brevidade desta revisão, articulamos aqui apenas as referências que mais contribuem com este estudo pontual. No entanto, tanto aquelas citadas quanto as que fizeram parte do background de nossos estudos parecem apontar para o mesmo: um subaproveitamento generalizado do potencial das redes sociais digitais por parte das empresas de mídia. A “Pesquisa sobre o uso de redes sociais por jornalistas franceses” (Mercier, 2012a), realizada com 600 jornalistas de toda a França, por exemplo, é um dos estudos a apontar que, para esses profissionais, as redes sociais digitais são eficientes para fornecer informações diferentes das que normalmente circulam no espaço público, localizar fontes, facilitar as trocas entre colegas e construir uma “marca pessoal”. A pesquisa não menciona o uso das redes sociais digitais para gerar vinculação social numa perspectiva mais ampla, mas em um trabalho complementar o autor diz que, na imprensa diária regional francesa, a menção a qualquer tipo de interação com o público chega a ser nula. (Mercier, 2012b) Segundo ele, nesse casos, é comum as redes sociais serem alimentadas automaticamente, fornecendo apenas o título da reportagem postada no site principal e um link para a história, sem qualquer dimensão interativa. Em um estudo anterior, sem desconsiderar alguns líderes de mercado, Cheyel e Mercier (2011) classificam o uso das redes sociais pelos meios de comunicação franceses em geral, mesmo para produzir apenas fluxo de leitores, como embrionário. O mesmo foi observado por Boudjema (2013) na Bolívia, onde os meios digitais não saberiam aproveitar o potencial da nova forma de comunicação eletrônica que são as redes sociais. Segundo o autor, os gestores das empresas de mídia impressa viram nas redes sociais apenas um novo “muro” onde pregar suas notícias, esquecendo-se do aspecto fundamentalmente social dos novos meios e, em particular, do Facebook. O único objetivo seria conseguir o máximo de seguidores. Entretanto, o aumento no número de fãs nas redes sociais das mídias digitais não teria gerado impacto nem mesmo no fluxo de visitas aos sites principais da empresas jornalísticas. Segundo Boudjema (op. cit.), em 2012, do total de visitas aos jornais digitais naquele país, apenas 5% seriam provenientes do Facebook e 1% do Twitter. A razão disso, segundo o autor, seria a desconsideração do aspecto social das redes digitais e de sua lógica interacional e dialógica. Nos Estados Unidos, o uso das redes sociais para fins promocionais parece também ser a regra. Segundo Messner, Link e Eford (2011), o Twitter vem sendo usado pelas empresas de mídia em geral para distribuir conteúdo e raramente para construir comunidades.

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Por outro lado, o uso do Facebook para conquistar audiências é, para muitas empresas de mídia norte-americanas, uma questão de sobrevivência. (Rosenstiel & Mitchell, 2011) Há fortes indicações de que esta tendência exista também na mídia regional ao redor do mundo. Estudando o uso do Twitter e do Facebook entre 27 meios de comunicação regionais localizados em países ibero-americanos (Argentina, Colômbia, Espanha, México, Peru, Portugal e Venezuela), García-de-Torre at al. (2011) observaram que o tipo de mensagem mais comum no Facebook é o título com um link para a reportagem no site principal (71,8% dos casos) e que as mensagens conversacionais não chegam a 6% do total, ainda que sejam campeãs de comentários entre todas as outras. No Twitter, esse percentual é de 25,8%, ainda que também no microblog as manchetes com links sejam a maioria das postagens (63,5%). Para os autores, as entrevistas realizadas com diretores das mídias pesquisadas deixou claro o reconhecimento das redes sociais digitais como ferramentas eficientes para falar com audiências mais jovens e de fora de sua área geográfica, para pautar reportagens de serviços à comunidade a partir das demandas e sugestões apresentadas on-line, para seguir fontes, para obter imagens e outros documentos. Segundo os pesquisadores, portanto, o Twitter e o Facebook têm, entre os meios de comunicação ibero-americanos, a função primordial de promover conteúdo e, entre outras limitações, a dificuldade de se “conectar” com as audiências e gerar comunidade. No Brasil, particularmente, a pouca interação entre mídias jornalísticas e seu público foi observada por Tellaroli (2010), que estudou o comportamento dos portais de notícias UOL, Terra e G1 no Twitter. Já a pesquisa de Ikemoto (2013) sobre os perfis da Folha de São Paulo e de O Globo no Facebook encontrou resultado diferente. Segundo ela, dentro dos limites da linha editorial e das possibilidades do site de rede social, a interação é largamente incentivada pelos veículos, “já que é uma forma de ampliar o alcance da notícia, e assim, do próprio jornal” (p. 33). Na pesquisa que realizamos no interior do Brasil (2012-2016) para uma abordagem geoeconômica de pequenas e médias empresas de mídia locais e regionais, quase a totalidade dos gestores de mídia entrevistados afirmou ser o Facebook, em primeiro lugar, seguido do Twitter e, em alguns casos, o Youtube, ferramentas imprescindíveis para gerar fluxo de leitores para os jornais on-line e para sites dos jornais diários, revistas e emissoras de rádio e de TV locais. Todos têm destacado a importância das redes sociais digitais para distribuir conteúdo, pesquisar e receber sugestão de pautas, localizar fontes, fotos e documentos, mas são poucos os que, espontaneamente, mencionam a importância social de sua presença nas redes midiáticas ou, menos ainda, o reflexo de seu papel social refletido ou não na natureza dos comentários em suas redes sociais. Entretanto, nenhum dos meios de comunicação locais e regionais que temos visitado se dedica à articulação com o público através das redes sociais nem à mediação de comentários com regularidade ou como política editorial. Em nenhuma das mídias pesquisadas, por exemplo, há um funcionário dedicado exclusivamente a essa função. Assim como os resultados globais, as evidências que temos reunido apontam para a ausência de um empenho mais rigoroso por parte dos gestores a essa função social de suas mídias.

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NOTÍCIAS E INTERAÇÃO: NOTAS SOBRE AS “MELHORES PRÁTICAS” Entre algumas importantes instituições representativas, o papel das redes sociais digitais para as empresas de mídia parece não ser um consenso. Na publicação “10 Best Practices for Social Media – Helpful guidelines for news organizations” (2011), a ASNE (American Society of News Editors), por exemplo, alerta que as mídias sociais oferecem tanto oportunidades quanto riscos porque podem ajudar os repórteres a coletarem informações e colaborar com as empresas ao ampliarem o alcance do conteúdo, mas também podem abrir as comportas para problemas. O manual é apresentado como um quadro com diretrizes para ajudar os editores a desenvolverem suas próprias políticas e destacam organizações que lideraram o caminho das boas práticas. São elas: 1. Traditional ethics rules still apply online. 2. Assume everything you write online will become public. 3. Use social media to engage with readers, but professionally. 4. Break news on your website, not on Twitter. 5. Beware of perceptions. 6. Independently authenticate anything found on a social networking site. 7. Always identify yourself as a journalist. 8. Social networks are tools not toys. 9. Be transparent and admit when you’re wrong online. 10. Keep internal deliberations confidential. (ASNE, 2011, p. 3)

Afora a pertinência de alguns tópicos, nota-se uma orientação carregada do ideal de objetividade que caracteriza o jornalismo moderno, e o melhor o uso das redes sociais parece ser aquele em que as devidas distâncias do público e da subjetividade do repórter são resguardadas. O documento admite que regras e controle em demasia podem tolher a criatividade e a inovação, mas aconselha uma política de uso institucional. Já a rádio pública sueca tem uma visão mais entusiasmada das redes sociais. Ainda que manual lançado pela instituição para orientar suas emissoras (Sveriges Radio, 2013) dê orientações específicas quanto à ética, ao uso privado das redes sociais por funcionários, à proteção das fontes e à moderação de comentários, as redes sociais são assumidas no documento como “ferramentas fantásticas” para se comunicar com o público. We can use them to spread our material, expand our networks, gain new knowledge and receive invaluable help in our journalistic work. By being present where our audience is, and showing that our communication is seriously intended, we can become credible and relevant also for those who have no previous relationship with Swedish Radio. (SVERIGES RADIO, 2013, p. 9)

O manual da rádio sueca incentiva o uso das redes sociais pelos funcionários fora da instituição, mas pede que se evite o uso do perfil privado para fins de trabalho e ressalta os cuidados com o que escrevem ou opinam em suas próprias páginas devido ao contrato de trabalho, às convenções coletivas, à política da instituição e a sua própria credibilidade enquanto jornalista. Nesse caso, orienta-se que o jornalista abstenha-se de cobrir determinadas áreas. A publicação incentiva que seus editores, nas redes sociais, construam conexão com o público para que a colaboração e o engajamento ocorram em

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todas as etapas da produção de notícias. Os conselhos são para que se aplique um tom pessoal nas postagens, ouça o que o público tenha a dizer e dialogue com ele. (Sveriges Radio, 2013, pp. 112-133) É justamente esse que parece ser o modelo recomendado pela Wan-Ifra (World Association of Newspapers and News Publishers) para o uso das redes sociais digitais pelas empresas de mídia jornalísticas. A associação concede anualmente o prêmio XMA Cross Media Awards para reconhecer, entre outras coisas (como o aproveitamento das redes para gerar lucro), se as companhias têm construído relacionamento com suas audiências, empoderando-as para a criação de conteúdos. As categorias premiadas são “Melhor uso do Facebook (por um jornal)”, “Melhor engajamento comunitário (para geração de conteúdo”, “Monetarização (que jornais capitalizam melhor sua presença nas redes sociais)” e “Projetos especiais (para melhor integração mídias tradicionais-novas mídias”. O prêmio de melhor uso do Facebook por um jornal em 2012 foi para o The Straits Times (ST), de Cingapura, que inovou, por exemplo, na implantação de uma galeria de fotos interativa. Segundo a proposta, um tema é lançado on-line pela rede social a cada semana e o público participa enviando fotos e comentários, que comporão uma edição impressa especial com o resultado da mini-série. O jornal Últimas Noticias, da Venezuela, foi o vencedor do prêmio de “Melhor Engajamento Comunitário”. El jurado calificador reconoció la manera como ÚN se relaciona con sus lectores, en la plataforma digital y sin ésta, a través de la Unidad de Participación Ciudadana, el programa de Superbarrio, los consejos de lectores, las cartas al director, las páginas del diario hechas por las audiencias, el canal en la web de Tu Voz, la página de Tu Zona, y las cuentas en Facebook y en Twter: @UNoticias, @almercadoconUN, @tuvozun, @tuzonacaracas; @infografiacc y @ pillatelapropia.El veredicto de los ocho miembros del jurado concluyó: “Últimas Noticias es una iniciativa verdaderamente grande con tres canales sociales para informar con compromiso a la comunidad y asegurar que la voz de la gente sea escuchada, con lo que consigue publicar importantes historias. Es un gran proyecto, con un maravilloso componente de educación”. (ÚLTIMAS NOTÍCIAS, 2012, on-line, grifo no original)

Segundo Danisbel Gómez Morillo, chefe da Unidade de Participação Cidadã do jornal, tais ferramentas são usadas no sentido de realizar um jornalismo de serviço público. “Los periodistas y los médios debemos entender que el futuro demanda hacer los diarios, la web y las redes sociales con la gente, no conformarnos con los encuentros virtuales sino abrirles las puertas de nuestras redacciones” (Id. Ibid). Para a Wan-Ifra (2013), o comentário on-line é um dos instrumentos a favorecer essas trocas entre as redações e o público. O citado manual de gerenciamento de comentários on-line destaca que essa abertura ao diálogo faz o público se sentir realmente contribuindo com seu veículo de comunicação, além de integrado ao debate sobre os temas do momento. Os meios de comunicação, por sua vez, colocam-se diante de uma variedade muito maior de pontos de vista e podem contar com informações de pessoas realmente interessadas nos assuntos tratados, descobrir novas histórias e novas maneiras de cobrir uma questão. Entretanto, não é o que ocorre na maioria das vezes visto que a seção de comentários muitas vezes descamba para falas desarticuladas e uma enxurrada de insultos.

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A moderação humana – e não apenas filtros eletrônicos –, tem aí o papel primordial da mediação para que esse diálogo seja de fato construtivo. Segundo a organização, investir nesse recurso pode beneficiar não apenas a comunidade como também conferir um valor diferenciado às mídias nesses tempos de grande concorrência e busca de negócios sustentáveis. (Wan-Ifra, 2013, p. 71)

CONCLUSÃO O panorama que procuramos traçar sobre o uso das redes sociais digitais pelas mídias jornalísticas indica que, de um modo geral, elas são utilizadas principalmente para gerar fluxo de leitores para o site oficial do meio de comunicação na internet, distribuir conteúdo, seguir fontes e captar histórias, em detrimento do potencial de interação que poderia ser estabelecido com suas audiências. Ainda que os trabalhos aqui comentados reflitam realidades próprias dos países em que foram realizados, acreditamos que seja significativo o fato de convergirem sempre para os mesmos pontos, a despeito das diferenças locais. Muitas vezes, o uso da ferramenta está envolto numa névoa de desconhecimento técnico, inabilidade e também enganos. Como “melhores práticas”, são apontados exemplos de laços efetivos entre a mídia e seu público. Esses casos indicam a tentativa das mídias em compreender como posicionar-se em um universo de mudanças, onde os públicos não apenas recebem informação, mas tornam-se de fato parte do processo de produção. Trata-se, importante observar, de um redirecionamento de postura em que a empresa de mídia não só procura desempenhar mais eficientemente seu papel social, estabelecendo uma relação mais estreita com suas audiências, mas de um redirecionamento também do seu modelo de negócios. A atividade de mídia em todo o mundo tem enfrentado o desafio contínuo de agregar e manter audiências e de criar novas fontes de receita para sobreviver em um mercado que passa por profundas mudanças. Robert Picard (2013) observa que, uma vez que as empresas jornalísticas atendem a um mercado de natureza dual, constituído de audiências e anunciantes, as firmas que querem se manter ativas e rentáveis deverão descobrir caminhos para atender os desejos e necessidades de públicos cada vez mais exigentes, e isso passa por criar valor para esses públicos, tornando-se relevantes e imprescindíveis para eles. Como resultado, o livro-caixa se verá mais movimentado porque mais pessoas despertarão interesse pelo conteúdo da mídia e também porque mais anunciantes se interessarão em financiá-la para ter acesso aos membros dessa audiência crescente. A análise que desenvolvemos até aqui não teve intenção de ser exaustiva; por causa da abordagem restrita deste trabalho, diversas questões a respeito do uso das redes sociais por empresas jornalísticas continuam encobertas. Incentivamos fortemente que outras pesquisas visem ao preenchimento de tais lacunas. Uma agenda de investigação focada nessa problemática poderia incluir, entre outros pontos: • Um estudo de recepção a fim de verificar entre as audiências os usos e apropriações que elas fazem do perfil das empresas de mídia nas redes sociais digitais, bem como a participação do público na construção da notícia através dessas ferramentas e o potencial de mobilização para a discussão/solução de problemas da comunidade;

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• As dinâmicas e as estratégias competitivas e de comunicação das empresas de jornalísticas que mantêm equipes exclusivas para o gerenciamento de suas redes sociais; • Uma análise comparada dos usos das redes sociais digitais entre mídias jornalísticas locais e regionais e companhias globais.

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Contrato de informação nas mídias sociais digitais: dados externos em postagens de jornais brasileiros no Facebook Media information contract on digital social media: external data in brazilian newspapers posts on Facebook L u c i a n a M e n e z e s C a r va l h o 1 Anelise Rublescki2 Eugenia M a riano

da

R o c h a B a r i c h e l lo3

Resumo: O trabalho apresenta um recorte teórico-analítico de pesquisa em desenvolvimento sobre as possíveis transformações do contrato de informação midiático, que caracteriza tradicionalmente o jornalismo, na ambiência das mídias sociais digitais. Delimita-se à análise dos dados externos do contrato (identidade, finalidade, propósito e dispositivo), a partir de Patrick Charaudeau, no âmbito da esfera produtiva do jornalismo. Por meio de observação não participativa, são descritas as fanpages dos jornais brasileiros Zero Hora, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, no site de rede social Facebook, com análise das quatro condições do contrato em uma postagem representativa de cada organização. O objetivo é ilustrar a adaptação da instituição jornalística à ambiência conversacional das mídias sociais digitais. Nesta etapa, percebe-se que variam as formas de contato com o leitor, por parte dos jornais, na mídia social, com postagens ora mais humanizadas ora tradicionais e informativas, indicando que o fornecimento de informação pode estar deixando de ser prioridade nesses espaços na busca de se constituir outros vínculos com o público.

Palavras-Chave: Contrato de informação midiático. Instituição Jornalística. Mídias Sociais Digitais. Contrato de Comunicação. Patrick Charaudeau.

Abstract: The paper presents a theoretical and analytical approach of a research currently in development concerning the possible changings of the media information contract, which traditionally features journalism, in the ambience of digital social media. It focuses on the analysis of external contract data

1.  Jornalista, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), docente no curso de Jornalismo e no MBA em Mídias Sociais do Centro Universitário Franciscano (Unifra), e-mail: [email protected]. 2.  Jornalista, doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-Doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), docente no Curso de Jornalismo e no Programa de Pós-Graduação da Feevale, jornalista da Fundação de Economia e Estatística, e-mail: [email protected]. 3.  Graduada em Comunicação Social, doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-Doutora pela University College of London (UCL) com bolsa de Estágio Sênior no Exterior concedida pela CAPES, professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), bolsista em produtividade de pesquisa do CNPq, e-mail: [email protected].

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which are delimited from Patrick Charaudeau proposal within the productive sphere of journalism. Through non-participant observation, are described fan pages of Brazilian newspaper Zero Hora, Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo, all hosted on the social networking site Facebook, and is carried out the analysis of the four conditions of the contract in a posting representative of each organization. The aim is to illustrate the adaptation of journalistic institution in conversational ambience of digital social media. At this stage, one can see that vary forms of contact with the reader, by the newspapers, carried out on social media, where we find posts sometimes more human and sometimes more traditional and informative, indicating that the provision of information can be leaving to be a priority in these digital spaces looking to set up other links with the public

Keywords: Media Information Contract. Journalistic Institution. Digital Social Media. Contract of Communication. Patrick Charaudeau.

CONDIÇÕES DO CONTRATO DE INFORMAÇÃO DO JORNALISMO ODA COMUNICAÇÃO envolve algum tipo de contrato, ou acordo tácito, entre os

T

sujeitos que se relacionam por meio da linguagem. Para Charaudeau (2009, 2012), as situações de troca comunicativa envolvem, sempre, co-intencionalidades que são postas em prática e reguladas por uma série de restrições. Os parceiros se relacionam por meio de um acordo prévio pelo qual se reconhecem um ao outro e identificam a situação na qual se encontram. O contrato envolve restrições da ordem do gênero discursivo no qual se inscrevem os enunciados, e da instituição que regula suas práticas discursivas e que são reconhecidas pelos sujeitos. Ou seja, para que possam se comunicar, os indivíduos precisam levar em consideração os dados internos4 (espaços linguageiros) e externos5 (condições situacionais) que constituem uma troca. No caso dos enunciados inscritos em determinados gêneros de discurso, como os do jornalismo, significa submeter-se às suas regras, aceitando suas normas institucionais e linguísticas como válidas. No jornalismo, a relação entre produtores e receptores se dá, tradicionalmente, por meio de um contrato com foco na informação. É a partir da expectativa de que a instância de produção entregue informação com credibilidade que o público das organizações jornalísticas com elas se relaciona, por meio de seus produtos (jornais, revistas, programas de rádio de TV). Com a internet e as plataformas digitais, e a conformação de um novo ecossistema midiático, essa relação se torna mais complexa. Entendendo o jornalismo como gênero de discurso (BENETTI, 2008) e instituição social (GUERRA, 2009; CARVALHO e BARICHELLO, 2008; CARVALHO, 2010), identificamos que a base da comunicação em seus espaços e condições se desdobra a partir de um contrato que permanece mais ou menos estável, tendo na mediação informativa 4.  Os dados internos dizem respeito aos espaços de locução, relação e tematização. Tais espaços não serão analisados neste trabalho. 5.  Os dados externos são as condições de identidade, finalidade, propósito e dispositivo, que constituem a análise aqui apresentada.

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sua base. Alinha-se ao que Charaudeau (2009, 2012) denomina “contrato de informação midiático”, definido como o tipo de contrato comunicativo característico dos meios voltados para informar. O que define uma dada situação comunicacional linguageira como pertencente ao gênero jornalístico e a este tipo de contrato é a presença mais ou menos estável das condições (dados externos) e espaços (dados internos) que envolvem as instâncias de produção e recepção. Embora todos os dados sejam fundamentais para a análise do contrato ofertado pela instância de produção do jornalismo, delimitamos, neste trabalho, a análise do contrato das organizações jornalísticas no Facebook aos dados externos (condições) que o integram. A seguir, abordaremos as condições situacionais do contrato de informação, com foco na instância de produção do jornalismo: a) IDENTIDADE - Trata-se de uma instância composta por vários atores que estão presentes em qualquer enunciado produzido por ela: além dos valores da instituição jornalística, a organização enquanto empresa, seus diretores, editores, a programação, linha editorial, histórico da organização. É importante assinalar que, atualmente, o público deixou de ser apenas receptor para se tornar usuário e interagente, e tem espaços nos próprios dispositivos midiáticos para se manifestar ou interagir diretamente com a instância de produção, da qual eles também podem fazer parte, comentando, enviando seus relatos e testemunhos, fotos ou vídeos. b) FINALIDADE - A mídia, de forma geral, e não apenas jornalística, se vê entre a necessidade de fazer saber (visada de informação) e a de fazer sentir (visada de captação). No caso do jornalismo especificamente, prevalece a primeira, vide o contrato de informação que o caracteriza. Charaudeau (2009) esclarece que, mesmo que possamos identificar em alguns produtos jornalísticos um predomínio de uma função emotiva, visivelmente voltada para captura de audiência, o que define o contrato jornalístico é seu ideal informativo. c) PROPÓSITO - A questão do propósito está ligada às noções de “universo de discurso” e de “acontecimento”. Referem-se aos processos de transformação, por parte da instância de produção, do acontecimento bruto em notícia; e de interpretação, por parte da instância de recepção, da notícia em algo que faça sentido, de acordo com conhecimentos prévios, competências culturais, mediações sociais. Na instância de produção, este acontecimento é transformado em relato por meio de uma série de filtros que passam pelos critérios de noticiabilidade e valores-notícia. d) DISPOSITIVO - Constitui as condições materiais pelas quais ocorrem as trocas dentro de um determinado contrato, envolvendo uma articulação estruturada de vários elementos. Não é, então, somente a tecnologia, ou o suporte utilizado para veicular ou receber os produtos jornalísticos. São as circunstâncias que envolvem as características materiais, formais, semióticas do meio, e que influenciam na configuração da mensagem: “Todo dispositivo formata a mensagem e, com isso, contribui para lhe conferir um sentido.” (CHARAUDEAU, 2009, p. 105). O dispositivo é, assim, um suporte associado a uma tecnologia, sendo permeado de materialidades e sistemas semiológicos. Dentro do contrato de comunicação informativo (do jornalismo), cada dispositivo interfere na produção e na recepção das mensagens.

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CONTRATO DE INFORMAÇÃO NAS MÍDIAS SOCIAIS DIGITAIS Nas mídias sociais digitais, as condições situacionais pelas quais a informação circula são distintas daquelas dos meios tradicionais. Nem sempre a identidade de quem enuncia corresponde a um jornalista ou a uma organização informativa; do mesmo modo, a visada informativa ganha outros contornos e desdobramentos; o propósito varia tanto a ponto de se discutir transformações dos critérios de noticiabilidade do jornalismo (memes6 viram notícia a partir dos compartilhamentos nas redes, em uma outra lógica de seleção dos fatos); e o dispositivo se torna mais complexo. Nas mídias sociais digitais, o dispositivo envolve várias condições materiais e sistemas semiológicos (linguagem verbal escrita, oralidade, iconicidade); o suporte de transmissão é digital, por meio de telas (de celulares, computadores, tablets); e a tecnologia é híbrida, hipertextual e hipermidiática, interativa, a relação entre os atores (organizações e públicos) é totalmente diferente da possibilitada pelos demais meios. Essas mídias estão permeadas pela colaboração dos participantes devido a uma série de materialidades (HANKE, 2006; BRAGA, 2008), que constituem suas lógicas e gramáticas por meio de interações sociotécnicas. Entendemos que as mídias sociais digitais não são “sociais a priori” (PRIMO, 2013), mas se desenvolvem por meio de interações complexas entre diferentes atores – as tecnologias que incidem com suas materialidades sobre os usuários (indivíduos e organizações), e esses com suas apropriações das tecnologias. A partir da noção de affordances (GIBSON, 1986) e do entendimento dos meios como gramáticas (PEREIRA, 2004), podemos dizer que algumas mídias apresentam maior potencialidade que as demais para uma comunicação mais participativa e em rede. É o caso das mídias sociais digitais, que podem ser definidas como “[...] quaisquer tecnologias ou práticas online que permitem o compartilhamento de conteúdo, opiniões, ideias, experiências e mídias, possibilitando conversações sobre o que é relevante” (SAAD, 2011, p. 164). Atualmente, há uma série de serviços na internet e aplicativos para plataformas móveis que possibilitam esse tipo de uso focado no compartilhamento e na conversação. Os sites de redes sociais como o Facebook – e seus aplicativos para tecnologias móveis, como smartphones e tablets – são um tipo de mídia social digital. O que caracteriza um site de rede social é a possibilidade de criar um perfil ou página personalizada do ator social, ter um espaço de interação com outros atores e a possibilidade de publicização da rede de contatos aos demais atores (BOYD & ELISSON, 2007), o que a constitui também em uma mídia social, por onde circulam informações. O aproveitamento das potencialidades informativas e conversacionais das mídias sociais ampliam características já presentes nas gerações anteriores do jornalismo digital, conforme apontaram Mielniczuk (2001) e Palacios (2003), como multimidialidade, hipertextualidade, interatividade, personalização, ubiquidade, além de explorar a cultura da participação e a convergência midiática. Tais desdobramentos potencializam a circulação da notícia no ecossistema midiatizado, em um contexto em que o jornalismo passa a depender da participação dos interagentes da rede digital para que seus produtos tenham visibilidade. 6.  São conteúdos que circulam de forma viral na internet, por meio do compartilhamento dos usuários.

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As mudanças ocorrem, também, no discurso jornalístico, historicamente marcado por estratégias de apagamento de sua própria encenação, que passa a se voltar para o seu próprio dizer. Fausto Neto (2006) explica que a autorreferencialidade na mídia, como uma das manifestações da midiatização, apresenta-se de várias formas, seja com as organizações falando de si mesmas ou remetendo umas às outras, constituindo os jornalistas em atores da própria enunciação, transformando vida privada em vida pública, produzindo notícias sobre o próprio campo jornalístico.

CONDIÇÕES DO CONTRATO DO JORNALISMO NO FACEBOOK Nesta etapa da pesquisa, selecionamos três organizações jornalísticas brasileiras presentes na internet que mantêm fanpages7: Zero Hora, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Após a seleção das organizações, partimos para a observação direta não participativa, conforme proposto por Johnson (2010), nas páginas das organizações. Os posts8 selecionados foram publicados entre outubro e novembro de 2013. A seleção do material foi realizada entre os dias 31/11 e 02/12 de 2013. Posteriormente à observação direta nas páginas e coleta dos dados básicos como número de seguidores, imagens utilizadas, e promessa junto aos leitores (no item “sobre” do Facebook), aplicamos um protocolo de análise para identificação e interpretação dos dados externos, ou condições, do contrato de comunicação. A seguir, apresentamos o resultado da observação realizada nas páginas dos jornais e a análise das condições do contrato de comunicação em um post de cada jornal. As três postagens apresentadas aqui foram selecionadas de um conjunto de dados coletados durante esta etapa da pesquisa. Devido às restrições do número de páginas de um artigo, não seria possível relacionar neste trabalho um maior número de posts.

1. Zero Hora O jornal Zero Hora (ZH), de Porto Alegre (RS) mantém a página no Facebook desde 17 de junho de 2009, informação que é disponibilizada na própria fanpage. O jornal apresenta-se informalmente aos seguidores, com uma saudação que se aproxima de uma conversa (“Oi”) e a utilização do tom coloquial, de acordo com a ambiência da mídia social (“Curta”). Como podemos ver na Figura 1, a página permite envio de mensagens in box9 por parte de seus seguidores.

7.  Em tradução literal para o português, “página de fãs”, modalidade alternativa aos perfis, no Facebook. Enquanto os perfis são destinados à construção de representações de pessoas físicas, as páginas ou fanpages são indicadas para pessoas jurídicas (empresas, pessoas públicas, personagens, comunidades, etc). No trabalho, utilizamos página e fanpage como sinônimos. 8.  Palavra em inglês (verbo que significa enviar, informar) que foi apropriada pelos brasileiros como substantivo para designar os textos “postados” em blogs e outras mídias digitais. 9.  Mensagem enviada em modo fechado, particular para o dono da página.

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Figura 1. Cabeçalho da fanpage de ZH Fonte: facebook.com/zerohora.10

Ao mesmo tempo, o texto de abertura da página informa que sua principal função é fornecer aos seguidores “atualizações e fotos sobre as últimas notícias”. A página de ZH no Facebook conta com aproximadamente 694 mil curtidas, ou seja, perfis que optaram por receber, em seus feeds11, o conteúdo postado pelo jornal. Uma observação exploratória nas postagens mais recentes do jornal mostra que a organização utiliza o espaço para noticiar suas principais manchetes ou notícias de última hora; promover a participação dos interagentes, convidando-os a participar de coberturas colaborativas; autopromover-se através de um discurso autorreferencial ou da exploração dos bastidores da redação; e exploração do caráter conversacional da mídia social, sobretudo no uso de uma linguagem coloquial permeada por marcas de oralidade, como quando o jornal deseja “bom dia” aos seus seguidores. As postagens apresentam números expressivos de engajamento do público, dependendo do conteúdo, e foram encontradas algumas passagens em que o jornal conversa diretamente com algum seguidor por meio do espaço de comentários e respostas do Facebook. Selecionamos uma postagem que ilustra uma estratégia de adaptação do jornal ao caráter participativo da mídia social (Figura 2).

10.  Acesso em 30/11/2013. 11.  Forma abreviada de newsfeed, que se trata de sistema de publicação automática de informações e notícias na internet. No Facebook, é a forma pela qual os perfis recebem atualizações das páginas que curtiram.

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Figura 2. Post de ZH.

Fonte: facebook.com/zerohora 12

O post selecionado consiste em uma imagem do trio de músicos da banda britânica Black Sabbath, que faria um show naquela noite na cidade de Porto Alegre (RS), contendo a hashtag13 #blacksabbathempoa14. No enunciado verbal, tem-se um chamado de Zero Hora convidando os leitores a participar da cobertura colaborativa do show. Na análise (Quadro 1), encontramos marcas de conversação por meio do tom coloquial, e do breve diálogo que se estabeleceu entre um interagente e o jornal15, no espaço de comentários.

12.  Acesso em 01/12/2013. 13.  Palavras-chave utilizadas com o símbolo “cerquilha” (hash, no inglês britânico) que funcionam como etiquetas (tags) para organizar as postagens nas mídias sociais, podendo facilitar em coberturas colaborativas no agrupamento de postagens que tratem do mesmo acontecimento. 14.  Referente à presença da banda em P. Alegre (POA). 15.  Optamos por não reproduzir o diálogo entre o jornal e o leitor em função dos limites de caracteres e da delimitação à análise dos dados externos do contrato nas postagens.

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Quadro 1. Análise dos dados ou condições externas do contrato no post de ZH. CONDIÇÕES

ANÁLISE

Identidade

Quem enuncia neste post é a própria ZH, por meio de um tom conversacional. A postagem inicia com um convite ao leitor, para que informe as músicas preferidas da banda, e faça parte da cobertura colaborativa em tempo real do show, lançada pelo veículo. “Que músicas você quer ouvir?” e “Participe da cobertura” são marcas no enunciado que indicam que a instância de produção visa um efeito de aproximação com seu enunciatário. O destinatário ideal é alguém que se identifica com a banda e estaria disposto a colaborar enviando fotos, relatos ou vídeos durante o show.

Finalidade

Percebemos o predomínio das visadas prescritiva (fazer com o que o leitor participe da cobertura); do pathos (fazer sentir pelo apelo emotivo dos fãs); e informativa (fazer saber ao público, mas contando com sua colaboração, na medida em que quanto mais gente participar da cobertura, melhor informados ficariam todos). As visadas de informação e captação se complementam.

Propósito

O show da banda Black Sabbath, em Porto Alegre, é a temática de interesse jornalístico sobre a qual se apoia a enunciação de ZH. O propósito é informar sobre o show e, ao mesmo tempo, envolver o público neste processo informativo. Há o emprego de uma estratégia de autorreferencialidade quando o jornal chama atenção para sua própria cobertura, e não apenas para o show.

Dispositivo

A preferência pela postagem com imagens é estratégica no Facebook, pois assim como vídeos, atraem mais atenção dos interagentes nas mídias sociais do que apenas texto verbal. A inclusão do link, além de demonstrar a exploração, pela instância de produção, do hipertexto (uma das características das mídias digitais e da internet), também indica o recurso à transmidialidade entre fanpage e Blog do Leitor – ambos se complementam e são utilizados com fins distintos. A estratégia relacional aparece na resposta dada pelo jornal a um comentário de leitor-interagente, promovendo uma conversação – tipo de comunicação que caracteriza as mídias sociais digitais. Há, em cena, também, as materialidades dos dispositivos móveis, pois, ao solicitar a participação dos fãs que estivessem no show, por meio do envio de fotos e vídeos, ZH apela para o uso das tecnologias móveis como smartphones e tablets.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

2. Folha de S. Paulo A Folha de S. Paulo (FSP) apresenta-se em sua fanpage com a proposta de receber a opinião do leitor (Figura 3). Diferentemente de Zero Hora, não está disponível a informação sobre desde quando o jornal está no Facebook, e também não é possível ao seguidor enviar mensagem in box aos administradores da página.

Figura 3. Print da imagem de capa da fanpage da FSP. Fonte: facebook.com/folhadesp16.

16.  Acesso em 01/12/2013.

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Há um tom mais formal no texto, com destaque à data de fundação (1921), e maior ênfase à promessa de fornecer informação, como podemos identificar no trecho “A Folha de S.Paulo (www.folha.com) quer levar a você o melhor conteúdo, com pluralismo, jornalismo crítico e independência”. O mesmo ocorre na seção “sobre”, em que a organização jornalística fala de seus princípios editoriais, que não por coincidência relacionam-se a alguns dos principais pilares do jornalismo enquanto instituição, como “pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência”. O texto destaca, também, o fato de a FSP ter sido “o primeiro veículo de comunicação do Brasil a adotar a figura do ombudsman” e se compromete a “oferecer conteúdo on-line a seus leitores”. Como informação de contato, é dado apenas o endereço do site do jornal. A fanpage da FSP conta com aproximadamente 2,3 milhões de seguidores ou perfis que curtiram a página para receber suas atualizações em seus feeds do Facebook. A observação exploratória nas postagens do jornal em sua página mostra que o compromisso de fornecer informação neste espaço é levado a sério, pois são poucos os posts que adotam uma maior coloquialidade na linguagem ou que incluem um caráter mais conversacional. Selecionamos, para este trabalho, uma postagem (Figura 3) coletada no período da investigação empírica, que também ilustra como o processo de adaptação dos jornais à ambiência digital é mais complexo do que se imagina, diante das transformações do ecossistema como um todo e suas afetações para o jornalismo.

Figura 3. Post da FSP.

Fonte: facebook.com/folhadesp17.

17.  Acesso em 01/12/2013.

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Neste post, o jornal utiliza sua fanpage para divulgar as notícias e reportagens publicadas em seu site. Há um recurso à coloquialidade com a expressão “o buraco é mais embaixo”, que não aparece na matéria, portanto podemos inferir que se trata de uma adaptação ao caráter conversacional da mídia social (Quadro 2). O assunto é uma reportagem especial sobre a história dos bueiros da cidade de São Paulo. Na imagem postada, tem-se um infográfico que integra a reportagem. Quadro 2. Análise do post da FSP no Facebook CONDIÇÕES

ANÁLISE

Identidade

O post parte de um enunciatário tradicional, a FSP, que assume sua identidade de fornecedora de informações.

Finalidade

Prevalece a visada de informação, o intuito do jornal em “fazer saber”, não pelo factual, já que não se trata de uma notícia, mas pelo apelo histórico, que pode se relacionar à visada do pathos, já que o jornal fala da história da cidade e seu cotidiano.

Propósito

O propósito é informar sobre a cidade de São Paulo, sua história e suas ruas, e ao mesmo tempo sobre o próprio jornal, que chama atenção para seu próprio fazer (“Por três meses, a Revistasaopaulo fez uma varredura...”).

Dispositivo

A postagem encena a informação por meio de um dispositivo que explora as materialidades informativas da hipermídia (por meio do infográfico que mistura imagem, gráficos e texto), e da linguagem hipertextual, que convida o interagente a percorrer o caminho do link, para complementar as informações incluídas no post. A fanpage é utilizada, novamente, como canal de divulgação das informações do jornal, chamando o leitor, por meio dos links, a visitar o site, indicando um recurso à multimidialidade entre fanpage e site (que se complementam). Apesar de aparentemente funcionar como um dispositivo tradicional, o espaço de comentários e a possibilidade de curtir e compartilhar é explorado amplamente pelos leitores, que interagem com a informação e entre si. No entanto, a possibilidade de conversar com o leitor não é explorada pelo jornal. É o primeiro post deste corpus a utilizar um recurso de informalidade para chamar para a matéria: o uso da expressão “o buraco é mais embaixo” ocorre apenas na fanpage, não fazendo parte do título da matéria no site do jornal.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

3. O Estado de S. Paulo O jornal O Estado de S. Paulo (ESP) é concorrente da Folha no estado, e dá ênfase, em seu texto de apresentação no Facebook, para o caráter participativo da mídia social. Sua fanpage se coloca para o leitor como “um espaço para participação e debate”. No entanto, deixa claro que esta participação deve ser conforme algumas regras18, consideradas necessárias para que sejam mantidas “discussões bacanas” no espaço. No espaço “sobre”, não está disponível a informação sobre desde quando o jornal mantém a página. Também não é possível enviar mensagem in box.

Figura 4. Imagem de capa da fanpage do Estadão. Fonte: facebook.com/estadao19.

18.  As regras para participação referem-se a comentários não só na fanpage, mas em todos os espaços do leitor no jornal, na internet: http://cadastro.estadao.com.br/responsabilidade-online. 19.  Acessado dia 30/11/2013.

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Embora seja visível a preocupação em mostrar o caráter histórico, tradicional do jornal, com sua data de fundação (1875) e outras datas históricas que foram inseridas em sua linha do tempo, há uma ênfase nas peculiaridades de seu papel na fanpage. A linguagem coloquial (“discussões bacanas”) e o destaque à “participação e debate” atestam esta adaptação à ambiência de mídia social. A fanpage do ESP possui 909 mil likes e a imagem de capa (Figura 4) trazia, no período da pesquisa, uma imagem diferente a cada dia, com o tema “amanhecer”. Tratavam-se de imagens enviadas por leitores por meio do aplicativo de rede social Instagram, com a utilização da hashtag #AmanhecerEstadao. Em nossa observação exploratória, já é possível perceber significativas diferenças nas estratégias adotadas pelo Estadão em relação ao seu concorrente Folha de S. Paulo no Facebook. Assim como Zero Hora, o ESP adota distintas formas de enunciação em sua fanpage, postando notícias que convidam a acessar seu site, mas também investindo no relacionamento com os interagentes, como quando deseja “bom dia” aos seguidores da rede social e compartilha imagens enviadas pelos leitores. Na Figura 5, o post analisado reflete essa estratégia do jornal.

Figura 5 – Post do ESP Fonte: facebook.com/estadao20. Esta postagem apresenta o predomínio do tom conversacional em seu enunciado. O jornal dá “bom dia”, utiliza expressões informais como “galera”, e recorre à hashtag, recurso típico das mídias sociais, além de conectar a fanpage com o perfil do jornal no Instagram, conforme analisamos no Quadro 3.

20.  Acesso em 3/12/2013.

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Quadro 3. Análise do post do Estadão no Facebook. CONDIÇÕES

ANÁLISE

Identidade

Neste post, o jornal assume um enunciador informal, que não está preso à linguagem objetiva da informação jornalística. Também está presente como co-enunciador o leitor que enviou a imagem.

Finalidade

O ESP apresenta uma finalidade marcada pelo “fazer sentir” (pathos). Percebemos também uma estratégia promocional quando remete a uma “missão” proposta aos leitores no Instagram. Não deixa de ser, também, autorreferencial, pois o jornal chama atenção para si.

Propósito

Sobre o que se fala? Neste caso, sobre a imagem enviada pelo leitor, por meio da proposta colaborativa promovida pelo jornal no Instagram. Há também o propósito de estabelecer uma conversa com o leitor (“bom dia”, “ótima semana...”).

Dispositivo

Este post é um exemplo de exploração do caráter relacional das mídias sociais, a começar pela linguagem utilizada. Tem sido cada vez mais comum se ver empresas desejando “bom dia” aos seguidores, adotando uma linguagem mais próxima de uma conversação entre pessoas. O uso da expressão “galera” e do emoticon de sorriso “J” são marcas da adaptação estratégica à ambiência sociotécnica das mídias sociais. As lógicas da ambiência midiatizada também estão presentes no estímulo à participação dos interagentes, convidados a enviar suas fotos pelo Instagram, e na inclusão do interagente na enunciação. Neste caso, a foto do leitor é utilizada como imagem de capa, e esta inclusão estratégica é enunciada: “o clique foi enviado por Fausto Mota...”. As características da plataforma digital são exploradas por meio da conectividade, com a convergência entre as duas mídias sociais, e hipertextualidade, por meio do recurso ao link. Apesar do tom conversacional e da informalidade, no entanto, não se registra conversa direta entre leitores e organização, embora o post tenha gerado muita interação dos leitores com o conteúdo, a julgar pelo número de compartilhamentos da imagem e de opções curtir.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A observação nas fanpages dos jornais, nesta etapa exploratória da pesquisa, mostrou algumas nuances interessantes do processo de adaptação da instância de produção do jornalismo à ambiência de mídia social digital. Embora o período de análise tenha sido restrito e as estratégias, em se tratando de ambiência digital, estejam sempre mudando, a presença do tom conversacional na enunciação e o incentivo à participação dos leitores/interagentes representam pistas relevantes para compreender as transformações do jornalismo no ecossistema midiatizado, sobretudo nas quatro condições do contrato de comunicação do jornalismo, do ponto de vista da instância de produção, aqui analisadas.

CONSIDERAÇÕES PONTUAIS A partir da análise das condições (dados externos) do contrato de comunicação do jornalismo, do ponto de vista da instância de produção, nas postagens dos jornais no Facebook, podemos perceber que variam as formas de contato com o leitor, com postagens humanizadas (como quando desejam “bom dia” e solicitam ao leitor conteúdo colaborativo) ou mais tradicionais e informativas (como quando apenas reproduzem manchetes e notícias de seus sites). Além disso, é recorrente a utilização da autorreferencialidade, em postagens em que as organizações chamam atenção para o seu próprio fazer ou ao seu lugar institucional. As postagens apresentam tanto elementos do contrato informativo tradicional do jornalismo (principalmente quanto à identidade de quem enuncia, que em geral representa a própria organização), como alguns elementos que indicam adaptação às gramáticas da mídia social, no que diz respeito principalmente a aspectos do dispositivo, como mostrou a análise das condições do contrato.

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É importante, no entanto, assinalar, que há postagens em que mesmo a condição de identidade é partilhada com o leitor/interagente co-enunciador, quando a postagem traz fotos enviadas para a redação, por exemplo. Já o dispositivo que se constitui na enunciação jornalística, nas páginas dos jornais no Facebook, não raro explora as materialidades do meio digital, recorrendo à multimidialidade (com vídeos, imagens), transmidialidade (uma mídia integrada à outra, como site e fanpage, ou Instagram e fanpage), hipertextualidade (com a presença dos links), e interatividade (com a participação dos interagentes e a conversação), o que, acreditamos, ocorre por conta das affordandes ou gramáticas da própria mídia em que se dá a enunciação. Percebemos, de forma inconclusiva e parcial, que a cultura participativa e conversacional, que caracteriza o ecossistema midiatizado das mídias sociais, afeta aos poucos o caráter informativo do contrato de comunicação do jornalismo, dando à visada de informação outros sentidos mais adaptados ao entorno midiatizado. Tais questões, aqui tangenciadas, devem ser aprofundadas nos encaminhamentos futuros da pesquisa, em que pretendemos investigar também os dados internos do contrato do jornalismo nas mídias sociais e ampliar o corpus de análise.

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Contrato de informação nas mídias sociais digitais: dados externos em postagens de jornais brasileiros no Facebook Luciana Menezes Carvalho • Anelise Rublescki • Eugenia Mariano da Rocha Barichello

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Visualização de dados no jornalismo e os estudos de redes sociais digitais Data visualization in journalism and digital social media research M aya n n a E s t e va n i m 1

Resumo: Esta pesquisa objetiva um estudo sobre a visualização de dados no jornalismo associado a análise de rede social digital. Parte-se da visão de jornalismo como sistema e dos processos de antenarrativa; conteúdos que fornecem ao usuário/leitor o entendimento de temas sociais de forma visual, a partir do agrupamento de grandes volumes de dados e dos rastros deixados na rede. Áudios, vídeos, mensagens de textos são transmitidos facilmente com os acessos a Internet e nos diversos canais por onde os atores estabelecem conexões, entre eles as redes sociais digitais. Os estudos de mídias sociais (RECUERO, 2012) abarcam tanto estes canais como as relações estabelecidas em rede (novas práticas de interação e subjetivação). Neste cenário, como o jornalismo online nacional vem produzindo matérias que envolvem o grande volumes de dados na web? Como tem produzindo conteúdos diferenciados? Adota-se o paradigma Jornalismo Digital em Base de Dados (BARBOSA, 2007), os conceitos de formato (RAMOS, 2012), jornalismo pós-industrial (COSTA, 2014), sistema narrativo (BERTOCCHI, 2013). Os resultados apontam para os desafios da produção de conteúdos aprofundados e contextualizados com o cenário nacional, assim como a necessidade de novas expertises profissionais e investimentos em recursos técnicos para a melhor exploração e manuseio dos dados.

Palavras-Chave: visualização de dados; jornalismo digital; antenarrativa; análise de rede social digital.

Abstract: This research aims to a study on the complex data visualization in digital journalism associated with social network analysis. It starts with the vision of journalism as a system and antenarrativa processes. Content that provide the user / reader understanding of social issues in a visual way, from the grouping of large amount of data and traces left on the network. Audio, video, text messages are easily transmitted with the access to Internet and the different contents. The studies of social media (RECUERO, 2012) embrace these channels as the relationships established network (new means of interaction and subjectivity). In this scenario, as the national online journalism has been producing materials involving large volumes of data on the web? How has producing relevant content? We adopt the Digital Journalism in Databases (BARBOSA, 2007), the format of

1.  Mestranda em Ciências da Comunicação, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Bolsista CNPq. Orientanda da Profa. Dra. Elizabeth Saad. E-mail: [email protected]

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Visualização de dados no jornalismo e os estudos de redes sociais digitais Mayanna Estevanim

concepts (RAMOS, 2012), post-industrial journalism (COSTA, 2014), narrative system (BERTOCCHI, 2013). The results show to the challenges of producing in-depth content and contextualized to the national scene, as well as the need for new professional expertise and investments in technical resources to better use and handling of data.

Keywords: data visualization; digital journalism; antenarrativa; digital social network analysis.

INTRODUÇÃO RÁPIDO CRESCIMENTO da comunicação conectada, dos usos das redes sociais

O

digitais e os avanços da tecnologia vêm permitindo o processamento em tempo real de uma grande quantidade de dados, em muitos momentos passíveis de observação e primeiras análises em tempo real. Vive-se na contemporaneidade novas formas de relação com uma técnica sempre presente na história do homem, seja através do alfabeto, da escrita, da roda, do telefone ou do computador, meios que facilitam o processo de comunicação com o outro. A Internet potencializou as possibilidades de diferentes vozes no contexto público. Pessoas comuns, longe da missão de trabalho e a título de livre expressão do pensamento, providas ou não de interesses inconfessos, põem-se em contexto público, sob o usufruto da democracia como valor universal, aparentemente sem qualquer preocupação com a natureza privada ou pública dessa atuação. (TRIVINHO, 2014, p. 238).

Estas diferentes vozes são passíveis de serem rastreadas e mais do que saber o que cada indivíduo pensa, as análises permitem o estudo de comportamentos de determinados setores da sociedade diante da sua atuação, considerando a movimentação mediante os fenômenos emergentes. Desenhar o cenário contemporâneo dos estudos dos processos de comunicação é um desafio para a academia e para o mercado. A interdisciplinaridade, os rápidos processos de mudança, a pouca literatura reflexiva sobre temáticas e os inúmeros trabalhos que relatam fatos cotidianos superficialmente fazem parte desse momento. O desafio das ciências, de acordo com o sociólogo Octavio Ianni (1994) é que os estudos progridam com a mesma velocidade com que o mundo avança em discutir o presente, a dinâmica social contemporânea com protagonistas vivos, atuantes, com a dificuldade de não se ter parâmetros para essas novas compreensões. Assim acontece nas Ciências Sociais, na Comunicação, no estudos do Jornalismo. O objeto é dinâmico, mutável. Propõe-se aqui uma reflexão sobre a visualização de dados associado a análise de redes no momento de um jornalismo pós-industrial, onde ocorrem significativas mudanças no fazer jornalístico e nas organizações comerciais. Há a proximidade dos jornalistas com a audiência, ocorrem quebras de relações hierárquicas e a necessidade de se aprofundar os fatos, consequentemente de novas expertises do profissional. Há constantes usos de mobilidades o que requer novas dinâmicas e processos narrativos. Entender como alguns processos se estabelecem são fundamentais para os estudos da Comunicação, para a compreensão da sociedade, suas crenças e manifestações. São importantes para situar e questionar o jornalismo enquanto prática social: mediação,

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Visualização de dados no jornalismo e os estudos de redes sociais digitais Mayanna Estevanim

credibilidade, agendamento, legitimidade e fluxo noticioso. Neste estudo, de cunho teórico, parte-se da visão de mídia social como fenômeno emergente da conversação entre os diversos atores na rede social (RECUERO, 2012). Adota-se o paradigma Jornalismo Digital em Base de Dados (BARBOSA, 2007), os conceitos de formato (RAMOS, 2012), de jornalismo pós-industrial (COSTA, 2014), sistema narrativo e antenarrativa (BERTOCCHI, 2013) para tentar responder as perguntas sobre como o jornalismo online nacional vem produzindo matérias que envolvem o grande volume de dados na web e como tem produzindo conteúdos diferenciados, contextualizados com as ações estabelecidas pelos indivíduos nas redes sociais digitais. É um estudo com foco no cenário nacional, observação não participante, que perpassa o projeto de pesquisa da presente mestranda. A análise é descritiva e interpretativa (LOPES, 2010, p. 151). Os resultados apontam para trabalhos cada vez mais em equipe, que integram áreas como computação e designer, mas que requerem novos conhecimentos por parte do jornalista que vão auxiliá-lo a dialogar melhor com as demais áreas envolvidas na construção de narrativas mais contextualizados e diferenciados em sua apresentação para o leitor. Serão apresentados, brevemente, os cenários dos estudos em mídias, o que é análise de redes sociais digitais, cartografia das controvérsias, partindo para o jornalismo na atualidade, entre eles o formato visualização de dados, dentro do jornalismo de dados.

MAPEANDO A REDE A noção de rede advém muito antes do ambiente online, no entanto, no espaço digitalizado, as conexões tem por base canais de informação feitos a partir de ferramentas por onde as pessoas podem receber e propagar informações de forma ampla. Estas ferramentas que proporcionam a comunicação em massa, muitas vezes em tempo real, são denominadas de sites de rede social digital. Eles nada mais são do que os suportes que proporcionam aos indivíduos “traduzir” e complexificar suas redes sociais (RECUERO, 2014 p. 2) onde o anonimato não é estimulado, pois, para fazer parte destas redes, o usuário cria um conta inscrevendo seus dados pessoais. Uma funcionalidade comum das redes sociais digitais é permitir que usuários criem e compartilhem conteúdo nesses ambientes, variando de simples mensagens de texto, comunicação de eventos cotidianos, como também, de conteúdos multimídias, fotos e vídeos. As mídias sociais, por sua vez, compreendem não só a parte física, os sites de rede social, as ferramentas de uso, como também os efeitos de apropriação e difusão de informações nas redes. A apropriação dos sites de rede social com a criação de mais laços entre os atores reduziu as distâncias sociais (vide o estudo de Backstrom et al., 2012), criando maior abrangência para as informações. Os canais de circulação de informação assim se amplificaram e passaram a ser bastante dependentes das ações dos atores, que coletivamente proporcionam que determinadas informações tenham mais visibilidade do que outras, atuando como filtros e câmaras de eco. Nesta intersecção nasce o que chamamos, neste artigo, de mídia social: A ampliação e a reverberação das falas individuais dos atores, refletindo pensamentos e opiniões que acontece a partir das apropriações dos sites de rede social e da tradução das redes sociais no espaço online. (RECUERO, 2014, p. 2)

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Visualização de dados no jornalismo e os estudos de redes sociais digitais Mayanna Estevanim

A reverberação das falas individuais dos atores, as opiniões, os pensamentos expos-

tos na rede são passíveis de serem coletados e estudados. A Análise de Redes Sociais (ARS) atua na estrutura da sociedade, onde de pouco vale a sua estratégia, planos de negócios e tecnologia se não houver atenção à cultura, ao que está acontecendo na rua, no dia a dia das pessoas. O estudo de redes cobre um grande número de áreas e tem sido utilizado como ferramenta para entender vários fenômenos, incluindo o espalhamento de epidemias, propagação de informação, buscas na web e ataques a redes de computadores, entre outros. “Uma rede é, na ARS, um conjunto de elementos, que chamamos de vértices ou nodos, com conexões entre eles, chamadas de arestas. A estrutura topológica pode ser modelada por um grafo” (BENEVENUTO et al. 2011). A Rede é o que faz proliferar os mediadores. “Explicar ou descrever como as redes se constituem implica, dentre outras coisas, seguir o rastro das ações, traduções e conexões efetuadas pelos diversos atores heterogêneos” (SANTAELLA, 2013, p. 99). Esses rastros podem ser estudados de diversas maneiras, oriundos de diferentes correntes teórico-metodológicas, entre elas a cartografia das controvérsias (CCs), que é o “conjunto de recursos técnicos que visa explorar e visualizar temas e situações numa ação em rede” (TOMASELI apud SANTAELLA, 2013, p. 99). A análise das transformações das ações sociais implica não apenas em novas práticas de interação em rede, mas também em novos significados do social e da relação homem/ máquina. Surgem novas experiências de subjetivação, onde os usuários desenvolvem distintas maneiras de apropriação das redes: cada indivíduo participante decide o que ver, consumir, com quem quer conviver. São adquiridas, portanto, novas formas de subjetividade. Na composição das redes “há sempre uma série de disputas, negociações, controvérsias que redefinem continuamente os atores, suas ações associações, bem como a própria rede. (...) As redes engendram conexões performativas que, uma vez estabelecidas, dotam de propriedades novas os atores nelas implicados. (SANTAELLA, 2013, p. 99)

Há diferenças, por exemplo, entre publicar e compartilhar conteúdo na web. Quando se publica, as pessoas fazem isso para que todos os usuários da Internet vejam. No entanto, quando os usuários publicam conteúdo em redes sociais digitais tem em mente a “audiência” do seu grupo de amigos. Qualquer um passa a funcionar como gerador de conteúdos e de vínculos emocionais, com potencial exercício de participação e poder. Diversos trabalhos tem focado nas relações entre a mídia social, os processos eleitorais e a participação política, mas os estudos podem ser muito mais abrangentes. A partir dos dados coletados é possível traçar comportamentos, tendências, entender melhor o contexto de atuação, por exemplo, como estão sendo citados os candidatos, em quais contextos, como as estratégias de campanha são aceitas pela população ativa na rede. É possível entender as redes emergentes de conversação (RECUERO, 2012), mapear fluxos, deslocamentos e identificar coletivos (LATOUR apud SANTAELLA, 2013). Com isso, fica relativamente esclarecido por que as redes do ciberespaço podem ser sine qua non políticas, mesmo quando não há nisso uma intenção explícita, o que é distinto dos movimentos políticos nas redes que se propõem, de saída, como tal. (SANTAELLA, 2013, p. 100).

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Redes sociais digitais são ambientes propícios para diversos estudos da Comunicação, Computação, estudos sobre padrões de tráfego, mineração sistemas multimídia entre outros. São chave para pesquisas e tratamento de grande volume de dados. “Apesar de não ser recente, o estudo de redes sociais ainda está em sua infância, uma vez que os ambientes estão experimentando novas tendências e enfrentando diversos novos problemas e desafios” (BENEVENUTO, 2011, p 66). As redes sociais digitais vem funcionando como um novo meio de comunicação, modificando aspectos da sociedade e também estimulando diferentes maneiras de coberturas jornalísticas.

A VISUALIZAÇÃO DE DADOS E O JORNALISMO DIGITAL EM BASE DE DADOS As práticas jornalistas se atrelaram as constantes mudanças sociais e tecnológicas, tendo diversas fases e formas de apresentação de conteúdos desde o surgimento do online. Os modelos de negócios estão em adaptação, principalmente para serem sustentáveis num momento em que indivíduos, instituições, empresas ou quaisquer organizações possuem o poder de mídia. De acordo com o pesquisador Caio Tulio Costa (2014), uma das características vivenciadas pelo jornalismo na atualidade, no chamado jornalismo pós-industrial, são os efeitos disruptivos da Internet e das tecnologias de combinar modelos de meios de comunicação num único canal. Para Daniela Bertocchi (2013), o jornalismo não está mais organizado conforme a lógica industrial em cascata produtiva, mas sim de forma mais complexa, com diversos atores, “mais circularidade, mais algoritmos, mais inteligência artificial, mais computação em seu interior” (BERTOCCHI, 2013, p. 10). Para ela, o jornalista faz parte do sistema de informação, mas não mais como o seu principal ator. (...) a saída que se antevê para os modelos de negócios possíveis nesta nova realidade tem de levar em conta que o jornalismo deve continuar a expor a corrupção, chamar a atenção para as injustiças, cobrar políticos e empresas pelas promessas e obrigações assumidas, informar cidadãos e consumidores, ajudar a organizar a opinião pública, elucidar temas complexos e esclarecer divergências fundamentais – ou seja, os jornalistas não são apenas narradores de fatos (COSTA, 2014, p. 64).

Neste cenário, a narrativa pós-industrial adquire práticas diferenciadas, afinadas com o que o leitor quer e com o que as tecnologias da atualidade proporcionam. Exigem um trabalho muito maior do profissional e investimentos em termos de recursos e equipe diante de uma linguagem imersiva e hipermidiática2. Neste contexto de grande volume de dados se encontra o que a pesquisadora Suzana Barbosa (2007) denominou de Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD), que seria a quarta3 fase do jornalismo digital. Um jornalismo que tem nas bases de dados uma ruptura no procedimento de criação das notícias jornalísticas com funções de indexar objetos multimídia (sons, 2.  Para o pesquisador Sérgio Bairon, a hipermídia pode ser entendida como “a expressão não linear da linguagem, que atua de forma multimidiática e tem sua origem conceitual no jogo” (BAIRON, 2011, p. 7).  3.  A quinta fase do JDBD tem as mídias móveis como agentes de um novo ciclo de inovação, a existência de um nível expressivo de replicação de conteúdos na distribuição multiplataforma/cross-media (BARBOSA, 2013).

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imagens, gráficos), armazenar material produzido e de arquivo (memória), agilizar produções, compor conteúdos para a web, recuperar, informações e, principalmente, cruzar dados que gerem uma nova informação visual e dinâmica (ESTEVANIM, 2014). No jornalismo digital os formatos servem de estrutura para as linguagens digitais. De acordo com Daniela Oswald Ramos (2011), as bases de dados estão hierarquicamente na criação e na manipulação de diversos conteúdos no texto JDBD, são uma determinação estrutural “(...) é a partir daí que geram-se linguagens, modelizadas pelos formatos, nos quais pode-se ter experiências narrativas, pois a priori, em estado puro, não há narrativas nas bases de dados” (RAMOS, 2011, p. 23). Neste sentido, os conteúdos digitais podem, potencialmente, ser editados de diversas formas. Nesta combinação de elementos gráficos estatísticos, muitas vezes interativos se encontra o jornalismo de dados, data-driven journalism ou também conhecido por jornalismo guiado por dados. Ele é um escopo do JDBD é uma consequência do desenvolvimento alcançado pelo jornalismo digital, pela tecnologia de bases de dados, pela expansão da Internet, de iniciativas de informações livres (“open data”) e pelo barateamento dos processos produtivos online (BARBOSA, 2007). O data-driven journalism é um processo de produção em que dados servem como base para análises, visualizações e narrativas. Para Daniela Bertocchi (2014), o jornalismo guiado por dados diz respeito ao processo jornalístico que vai da captura, passando pela curadoria e resultando na visualização dos dados em formatos. O processo de manipulação dos dados é o primeiro ato da antenarração. “Antenarrar dados insere-se numa “cultura de software” e dialoga diretamente com o jornalismo de dados” (BERTOCCHI, 2013, p. 114), sendo a narrativa digital jornalística um sistema, processo, fluxo. Ao colocar a narrativa como sistema, decidimos aqui caminhar rumo às camadas mais subterrâneas de sua modelagem: descemos primeiramente à antenarrativa (a narrativa em potencial) para, em seguida, voltarmos em direção à superfície, observando o formato no qual ela se manifesta (com quais tipografias, cores, formas, design, gêneros textuais), expandindo nosso olhar até a camada do usuário (lugar em que ocorrem enunciações e manipulações externas à narrativa e que a modificam, ou seja, o entorno do sistema narrativo). (BERTOCCHI, 2013, p. 40)

A visualização de dados é “o aproveitamento do agenciamento entre as camadas de dados e metadados no âmbito do sistema narrativo, o qual privilegia a apresentação visual relevante e de impacto” (BERTOCCHI, 2013, p. 180). É um formato que recorre à utilização de softwares de processamento de dados que não necessariamente aparecem ao usuário/leitor, uma vez que os resultados finais podem ser construções narrativas a partir dos dados obtidos, como infografias, mapas, entre outros4. Neste artigo, parte-se do pressuposto de que a visualização de dados é um formato que faz parte do sistema narrativo jornalístico da atualidade. São informações abstratas, dados, 4.  O foco deste artigo é o cenário nacional, mas as publicações em âmbito internacional são avançadas e inovadoras no jornalismo digital. O jornalista americano Josh Stern publicou um post no seu blog intitulado Groundswell com as reportagens que foram destaque no jornalismo em 2014. Elas utilizaram storytelling, recursos de áudio, vídeo, satélites, sensores, imersão. O post The Best Online Storytelling and Journalism of  2014, está disponível em http://stearns.wordpress.com/2015/01/05/the-best-online-storytelling-andjournalism-of-2014/. Acesso em 12 de janeiro de 2015.

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números, estatísticas que são tratadas e correlacionadas de forma visual para que se tornem compreensíveis. Num cenário de Big Data, diante do volume de dados e das diferentes extensões, surge a necessidade de ferramentas e técnicas de coleta dessas informações, uso de metadados, que são as informações de dados sobre dados e de data mining, que é o processo de explorar grandes quantidades de dados à procura de padrões consistentes, como regras de associação ou sequências temporais (BARBOSA & TORRES, 2013).

O JORNALISMO E A VISUALIZAÇÃO DE DADOS NO BRASIL Em pesquisa apresentada no IV Congresso Internacional de Ciberjornalismo5, em dezembro de 2014, juntamente com as professoras Egle Spinelli e Daniela Ramos, foram pesquisados 108 jornais, no formato digital, nas capitais do país. Nos quais apenas 8 apresentaram seções destinadas exclusivamente a dados ou infografia6. Sendo um veículo localizado na região centro-oeste, um na região sul, um na região nordeste e cinco na região sudeste (quatro somente na capital paulista).7 Além de geograficamente localizadas, as iniciativas se mostraram ainda em pequena escala no cenário nacional. São variáveis em relação as equipes envolvidas, desenvolvimento de softwares próprios, recursos em geral e principalmente disponibilidade de tempo de execução e entrega dos conteúdos aos leitores. A partir de observação não-participante do uso de dados no jornalismo nacional, com foco nas visualizações de dados8, é possível contextualizar o cenário da prática jornalística partindo da atuação em três instâncias: as desenvolvidas pelos veículos tradicionais de mídia, as dos veículos independentes e as que ocorrem dentro dos laboratórios acadêmicos. Entre os exemplos tem-se o Blog Estadão Dados9, do Jornal O Estado de São Paulo, que apresenta tanto reportagens, quanto projetos em visualização de dados. A equipe do núcleo Estadão Dados criou a ferramenta chamada Basômetro10 que permite medir o desempenho dos governos e dos deputados brasileiros. O resultado final, apresentado ao leitor, é uma infografia interativa11 que utiliza como recursos visuais uma timeline com bolas, linhas e porcentagem para medir a taxa de governismo do parlamentar a partir da recuperação interna das bases de dados do sistema construído.

5.  Realizado na cidade do Porto, em Portugal, nos dias 4 e 5 de dezembro de 2014. 6.  A observação aconteceu nos dias 15 e 16 de setembro de 2014 diretamente no endereço eletrônico de veículos de comunicação. Foram observados sites e portais de notícia que apresentam conteúdo produzido especialmente para o formato online. Foram selecionamos quatro jornais, aleatoriamente, de cada capital, totalizando, 108 veículos selecionados. O artigo completo estará disponível na página do OBCiber, em https://obciber.wordpress.com/congresso/ 7.  Sendo 1 veículo da região centro-oeste, 1 da região sul, 1 da região nordeste, 5 da região sudeste (4 somente na capital paulista). 8.  Iniciado em janeiro de 2014 em decorrência do ingresso no mestrado em Ciências da Comunicação na Universidade de São Paulo, 9.  Disponível em: http://blog.estadaodados.com 10.  Disponível em: http://estadaodados.com/basometro/ 11.  A palavra infografia vem do inglês informational graphics e consiste em utilizar ferramentas visuais como mapas, tabelas, desenhos, ilustrações, legendas, combinadas com texto no intuito de transmitir ao leitor informações de fácil compreensão (CAIRO, 2008).

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Outro exemplo é do Hacks Hacker SP12, um grupo independente que visa unir pessoas em ações colaborativas que envolve explorar tecnologias para filtrar e visualizar informações. Buscam também novas formas de usar tecnologias para contar histórias no jornalismo. Eles realizam as denominadas “hackatonas” eventos que reúnem programadores, designers, jornalistas e pesquisadores em torno de dados públicos, sobre ideias de visualização da informação e monitoramento de propostas já iniciadas. Cada evento conta com uma temática e parcerias, a exemplo do Hack d’Água´São Paulo: dados e sensores para informar sobre a crise hídrica13, que conta com o Instituto Socioambiental e a equipe do Laboratório da InfoAmazonia&MapasColetivos como facilitadores,  apresentando trabalhos já desenvolvidos tanto na visualização de dados, quanto em sensores.  Os próximos exemplos atendem melhor o jornalismo e a visualização de dados aos estudos de análise de redes atendendo as propostas deste artigo. O laboratório de estudos sobre Internet e Cultura do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Espírito Santo (LABIC/UFES)14, como a própria descrição da sua página na web diz, é um laboratório que tem como proposta a realização experimental de produtos digitais e a promoção de pesquisas e atividades de extensão sobre o impacto da cultura digital nos processos e práticas de comunicação contemporânea. O grupo é formado por jornalistas, programadores, universitários, entre outros. Ele vem se destacando como um dos laboratórios acadêmicos brasileiros que tem voltado os esforços para a análise de redes adotando grafos15 e os estudos da cartografia da controvérsia. A tarefa dos profissionais não é nada fácil porque requer trabalho integrado de diferentes áreas como a Comunicação, Computação, Estatística, entre outras. A cartografia A longa jornada do #MarcoCivil: da letargia do Parlamento ao efeito Snowden, foi um trabalho que utilizou o software livre Gephi16, uma plataforma interativa de visualização e exploração de dados em grafos. A análise propôs a trajetória das discussões sobre o #MarcoCivil17 nas redes sociais. A equipe do laboratório registrou, em 2012, 22 mil tweets somente com a hashtag #MarcoCivil. Destes, foram separadas as mensagens que viralizaram na rede, um total de 5 mil retweetes. Com a leitura dos retweets, as mensagens mais viralizadas, por diferentes atores, se concentrava em seis grandes controvérsias. São elas: questões políticas, efetivação da lei, neutralidade da rede, liberdade de expressão, direito autoral, direito do consumidor, cibercrimes e privacidade. A partir disso, com estudos técnicos sobre atribuições de cores e arestas foram criados gráficos sobre a diversidade de controvérsias, as oscilações diante dos novos acontecimentos, como adiamento da 12.  http://hackshackers.com. Outras informações também estão disponíveis em: http://www.meetup.com/ Hacks-Hackers-Sao-Paulo/. 13.  http://www.meetup.com/Hacks-Hackers-Sao-Paulo/events/206050432/ 14.  http://www.labic.net 15.  “Um grafo pode ser compreendido como a representação gráfica de uma rede se valendo de elementos como nós (pontos de conexão) e arestas (conexões entre os nós)”. (DI FELICE, Massimo, TORRES, Julliana C. e YANAZE, Leandro K. H. Redes digitais de sustentabilidade: As interações com o meio ambiente na era da informação. São Paulo: Annablume. 2012). 16.  O Gephi pode ser baixado gratuitamente no https://gephi.org. 17.  O Marco Civil da Internet é a lei que regula o uso da Internet no Brasil (previsão de princípios, garantias, direitos e deveres para quem usa a rede, além dos usos por parte do estado estão entre a abrangência da lei).O projeto surgiu em 2009, mas foi somente no primeiro semestre de 2014 que ele foi sancionado. Informações sucintas podem ser encontradas em http://pt.wikipedia.org/wiki/Marco_Civil_da_Internet. Acesso em 07 de janeiro de 2014.

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votação. Foi em 2013, que de acordo com o estudo, a rede deixa de ser de ativistas, políticos e especialistas e se populariza. Esta popularização foi ajudada pela entrada em cena da rede contrária #NãoVaiTerMarcoCivil, pela realização das jornadas de junho18 e pela divulgação da espionagem eletrônica que o governo dos EUA foi denunciado por praticar19. A ARS abrangeu este percurso, possibilitando ver como os atores presentes na rede reagiram a cada fato novo. Um outro exemplo de análise de rede, agora em parceria com um veículo tradicional de mídia, foi a matéria publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, Análise das redes sociais mostra que perfis falsos influenciaram discussão na web20. No dia 30 de setembro de 2014, na editoria Eleições, o jornal Folha de S. Paulo publicou a reportagem que teve por base um estudo aprofundado sobre as discussões ocorridas nas redes sociais digitais Facebook e Twitter no dia 28 de setembro do mesmo ano, dia do debate dos presidenciáveis na TV Record. O jornal solicitou a análise dessas redes ao laboratório LABIC, da UFES. O rastreamento foi feito entre às 16h e à 00h45, com a hashtag oficial #debatenarecord e com a dos candidatos a presidência. De acordo com o estudo, as menções aos candidatos Aécio Neves, Dilma Rousseff e Marina Silva mostraram-se bem semelhantes durante todo o tempo, com exceção dos 15 minutos antecedentes ao debate, onde as menções favoráveis ao candidato Aécio Neves (#SouAecio Voto45) triplicaram tanto no Twitter quanto no Facebook. De acordo com os pesquisadores do Labic, esta seria uma situação características de uso de bots (palavra originária da contração do termo em inglês “robots” ou robôs) na replicação de conteúdos e da presença de perfis falsos. Fator este que impacta diretamente nos trending topics21 comumente utilizados como referências para se destacar o que é mais falado nas redes sociais digitais. “A atuação de robôs e perfis falsos em vários momentos durante a campanha presidencial coloca em xeque a capacidade da rede de se converter participação em aumento de democracia” (ARAGÃO, 2014, p. 1). De forma sucinta e com as devidas generalizações, este é o cenário do jornalismo pós-industrial no Brasil, onde se encontram as práticas e os estudos referentes ao Jornalismo Digital de Base de Dados e visualizações de dados. Um cenário cada vez mais aquecido, com a presença de cursos em dados, data science, buscas por conhecimentos e experimentações práticas de análises de grande volume de informações.

CONSIDERAÇÕES A proposta deste artigo, que tem a pesquisa teórica como base, tentou apresentar de forma breve como o jornalismo digital vem utilizando a visualização de dados no cenário nacional. Visou, pretensiosamente, apresentar o momento vivido pelo jornalismo 18.  Protestos realizados no Brasil em 2013, também conhecidos como Manifestações dos 20 centavos, Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho. As manifestações populares aconteceram em várias regiões do Brasil e foram iniciadas para contestar o aumento da tarifa do transporte público. 19.  Edward Joseph Snowden é um analista de sistemas que trabalhou na Central Intelligence Agency (CIA) dos Estados Unidos e também na Agência de Segurança Nacional (ANS) Americana, que denunciou o sistema global de vigilância feito pelo governo americano. 20. Publicada no dia 30 de setembro de 2014, na editoria Eleições 2014. Disponível em: http://www1.folha. uol.com.br/poder/2014/09/1524593-analise-das-redes-sociais-mostra-que-perfis-falsos-influenciaramdiscussao-na-web.shtml. Acesso em 13 de dezembro de 2014. 21.  Treding Topics ou TT’s é um termo em inglês que significa os principais assuntos do momento, palavras postadas na rede.

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digital, pelo jornalismo de dados, associando-o aos estudos de mídias, a análise de redes sociais. As oportunidades de aperfeiçoamento, de melhorias dos conteúdos jornalísticos estão presentes. Entender como as práticas funcionam, como as relações se estabelecem, quais as operacionalidades necessárias para a observação do cotidiano e interpretação dos dados coletados são ferramentas fundamentais e um desafio para a prática do jornalismo de forma relevante na contemporaneidade. Múltiplas competências, trabalho em equipe com profissionais de diferentes áreas como a computação e designer tem se mostrado cada vez mais presentes para a execução dos conteúdos. Um momento de experimentações no jornalismo e de aprendizagem em lidar com grandes volumes de dados e apresentá-los em diferentes formatos. Momento que já vem impactando nas escolas de comunicação e em suas grades curriculares. A vida nas redes é de exposição, muitas vezes ilimitada em relação a intimidade. As pessoas estão aprendendo, na prática, o que deve ou não ser mostrado de cada um. Esta é uma fase onde ocorre a compreensão sobre como lidar com a super-exposição, com as questões de intimidade e gerenciamentos de crise em grande escala. Como as pessoas comuns produzem significado e valor num ambiente de comunicação; o que as pessoas, coletiva ou individualmente, decidem fazer com essas tecnologias; quais os discursos circulantes são questões cada vez mais passíveis de serem investigadas diante das manifestações nas redes sociais digitais e nos rastros que o indivíduo deixa na web. Os tipos de cultura que produzem e se espalham por esses meios e em torno deles ainda estão em definição, mas é preciso buscar novos olhares, pluralidade sobre o objeto. Há um aumento de usuários das redes sociais e há mecanismos cada vez mais eficazes para construir a ideia de “relevância” pública. As tendências de opinião parecem cada vez mais mediadas por sujeitos que podem influir na agenda do que acontece na sociedade. Para fugir das armadilhas é preciso apropriações sobre como funcionam as redes, seus usos, termos, ferramentas que modificam cenários. Em uma sociedade que se estrutura de forma complexa os estudos e as práticas também adquirem complexidades. O jornalismo não está isento disso. Um sistema midiático é mais do que simplesmente as tecnologias que o suportam. A realidade do atual ambiente de comunicação é muito mais confusa. O crescimento da comunicação em rede, especialmente quando associada às práticas da cultura participativa, cria uma diversidade de novos recursos e facilita novas intervenções para uma variedade de grupos que há muito tempo lutam para se fazer ouvir. Novas plataformas criam aberturas para mudanças sociais, culturais, econômicas, legai e políticas, além de constituírem oportunidades para a diversidade e a democratização, pelas quais vale a pena lutar. Os termos dessa participação, todavia, estão ainda por ser definidos e serão formatados por um conjunto de batalhas legais e econômicas que veremos se desenrolar nas próximas décadas. (JENKINS, 2013, p. 20).

Quando a circulação de discursos, quando os coletivos são estudados na rede, é possível ver a criação de valores, as múltiplas economias que constituem o panorama da mídia. Para Foucault (1979) todos agem sobre as mesmas regras e estão sujeitos as mesmas relações, em um contínuo onde uns exercem de forma mais experiente seus poderes do que outros. Ao trazer estas considerações para a atualidade, no ambiente

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de rede, é perceptível a potencialidade de poder a todos, mas o seu exercício com formas diferenciadas. A visualização de dados, no jornalismo, pode levar conteúdos que fornecem ao usuário/leitor o entendimento de temas sociais de forma visual, a partir do agrupamento de grandes volumes de dados e dos rastros deixados na rede. Meios que sintonizam o jornalismo com as novas necessidades de compreensão informativa da sociedade contemporânea.

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22.  Estará disponível nos anais do evento em: https://obciber.wordpress.com/congresso/

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Redes sociais e empresas jornalísticas: como o novo comportamento de consumo pode afetar estratégias digitais Social networks and journalistic companies: how the new consumer behavior can affect digital strategies St e fa n i e C .

da

S i lv e i r a 1

Resumo: As redes sociais on-line fazem parte da transformação provocada pela tecnologia nos hábitos de produção, consumo e distribuição da mídia e do público. A partir disso, as empresas de mídia se adaptam e se inserem no contexto das mídias sociais. O valor da informação é definido a partir das lógicas da oferta e da procura. Isso quer dizer que este conceito acaba por ser reestruturado pelas empresas na tentativa de resgatar o interesse do público no cenário atual. Isso pode levar a uma redução no número de notícias e um aumento nas informações mais leves sobre saúde, relacionamentos, entretenimento e estilo de vida. Dentro deste contexto, examinamos (de forma não participante), brevemente, a atuação dos dois maiores jornais de São Paulo (maior Estado do Brasil em número de habitantes) no Facebook, Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo, a fim de perceber se a estratégia digital adotada pelas empresas pode significar que os veículos optem por divulgar informações de cunho mais leve e popular. A partir desta observação, apresentamos uma visão inicial acerca da atuação das empresas jornalísticas dentro de sites de redes sociais de acordo com a criação de valor na era digital.

Palavras-Chave: jornalismo digital, redes sociais, Facebook Abstract: The online social networks are part of the transformation over the use of technology in the behaviour of media and public production, consumption and distribution. In that scenario, media companies adapt and insert themselves in the social media context. The value of information is defined from the logic of demand. This means, the concept is reestructured from media companies in the attempt of regain the public interest nowadays. It might lead a reduction in the news volume and increase of casual news like health, relationships, entertainment and lifestyle. Inside this context we briefly analyse (in a nonparticipant way) the performance from two of the biggest newspapers in São Paulo (most populous Brazilian state) on Facebook - Folha de S.Paulo and Estado de S. Paulo - with the objective of apprehend if their digital strategy can result in the increase of casual and popular news appearance in both media vehicles. Based on the observation of their news publications we present an introductory view over the performance of news companies inside social networks and how they create information value in digital times.

Keywords: digital journalism, social networks, Facebook 1.  Doutoranda em Comunicação no PPGCOM/ECA-USP; [email protected]

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Redes sociais e empresas jornalísticas: como o novo comportamento de consumo pode afetar estratégias digitais Stefanie C. da Silveira

INTRODUÇÃO S REDES sociais on-line se consagram cada vez mais como um dos pontos funda-

A

mentais ligados à transformação provocada pela Internet, tecnologias digitais e mobilidade nos hábitos de produção, consumo e distribuição da mídia. Partindo desde o princípio do aparecimento de softwares de interação como BBS, IRC, ICQ e MSN até os sites e aplicativos mais populares atualmente, como Facebook, Twitter e Instagram, as redes sociais online interferem na forma como o público produz, recebe e distribui informação e igualmente, na forma como as empresas de mídia, antes detentoras da maior parte dessas operações, realizam os seus papeis de produção, broadcasting e interação com o consumidor. Recuero (2008) esclarece que os sites de redes sociais, como Facebook e o falecido Orkut, são uma consequência da apropriação de ferramentas de interação mediada por computador pelos atores sociais. No entanto, esses sites se diferenciam de outros tipos de software de interação social pela forma como permitem a visibilidade e a articulação da rede e dos laços entre seus participantes. De acordo com pesquisa do Pew Research Center2, o site de rede social que mais se sobressai para o consumo de informações é o Facebook. Segundo a pesquisa, 64% dos entrevistados usam o serviço e dentre esses, 30% obtém notícias diariamente por meio dele. Além de receber informações, metade dos usuários de redes sociais on-line compartilhou notícias, imagens ou vídeos, ou ainda, discutiu um evento noticioso dentro da rede. Ao mesmo tempo em que revela uma conexão entre notícias e redes sociais, a pesquisa também indica que os leitores que chegam ao site jornalístico via mídia social ou ferramentas de busca tendem a ser mais rápidos em suas visitas e menos exploradores de outras páginas e links internos, em comparação aos leitores que chegam ao site diretamente via home do site3. Em outro estudo de 2010 realizado pelo Pew Research Center, os dados indicam que seis em cada dez americanos consomem notícias a partir de uma combinação de plataformas on-line e off-line, e a Internet é a terceira plataforma mais popular, atrás somente das redes local e nacional de televisão. No novo ambiente multi-plataforma de notícias, o relacionamento das pessoas com as notícias está se tornando portátil, personalizado e participativo. Chama-se a atenção para as novas métricas: portabilidade, 33% dos donos de telefones celulares acessão notícias em seus dispositivos; personalização, 28% dos usuários de Internet customizaram suas homepages para incluir noticias e tópicos de seu interesse; participação, 37% dos usuários de Internet comentaram ou compartilharam noticias em sites de redes sociais como Facebook e Twitter (Purcell, 2010, p.2).

O estudo afirma ainda que o consumo de noticias é uma atividade socialmente orientada e engajadora, na medida em que o público é parte do processo no compartilhamento destes produtos. Outro ponto da pesquisa, trata do fato que uma 2.  http://www.pewresearch.org/fact-tank/2014/09/24/how-social-media-is-reshaping-news/ 3.  http://www.journalism.org/2013/10/24/the-facebook-news-experience/

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porção significativa dos entrevistados afirmou julgar os sites de notícias pelo grau com que eles facilitam o compartilhamento destas em redes sociais e usam esse critério como definidor na hora de escolher a partir de qual local irão postar as informações que desejam.  Como se pode perceber pelos dados apresentados até aqui, as transformações acarretadas pela tecnologia e apropriação desta pelos consumidores geram uma fragmentação no consumo de informação e uma consequente especialização da oferta por parte das empresas de comunicação. Picard (2013) entende o desenvolvimento comunicacional desta forma e aponta que a tecnologia ajuda a redefinir as lógicas da oferta e da procura que, por sua vez, acabam definindo o valor da informação. “Por mais de cem anos o negócio das organizações noticiosas não era o conteúdo e os seus consumidores, mas sim a oferta de audiência para os anunciantes (p. 21)”. O autor esclarece como o conceito de valor dentro das organizações jornalísticas acaba por ser ressignificado diante das atuais transformações por que passa o mercado. “A aplicação do conceito de criação de valor nos media é relativamente nova e o seu uso é crucial por conta da mudança do controle sobre o conteúdo dos media para as audiências que estão em desenvolvimento nas sociedades da informação (p. 25)”. Segundo ele, na tentativa de resgatar o interesse do público, as empresas de comunicação procuram levar aos consumidores conteúdos que estes queiram ler, ver e ouvir. Como é impossível atender aos desejos de cada membro do público, as redações fazem pesquisas de opinião e optam por publicar o que acreditam ser o desejo da maioria dos leitores. Isso significa que as notícias se reduzem e aumentam as informações sobre saúde, relacionamentos, entretenimento e estilo de vida. De acordo com Picard, isso faz com que os concorrentes acabem por encaixar-se também no mesmo segmento, fornecendo produtos muito parecidos, com informações e contexto semelhantes, buscando atender o mesmo tipo de público. “O resultado é uma variedade muito pequena da concorrência de mídia, enquanto o público é servido por uma igualdade excessiva, projetada para fornecer serviços comuns a fim de atrair maiores audiências (p. 29)”. Dentro do contexto aqui apresentado, buscamos observar a atuação dos dois maiores jornais de São Paulo (maior Estado do Brasil em número de habitantes) no Facebook, Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo. Isto porque, desejamos observar, de forma inicial e não participante, como ocorre a inserção destes veículos dentro dos sites de redes sociais a partir da ótica da criação de valor na empresa jornalística. Questionamos se esta pode ser encaixada no movimento apresentado por Picard (2013) onde, na busca de recuperação de uma crise financeira e de consumo, as empresas jornalísticas acabam por reduzir a produção de notícias mais relevantes e focam na distribuição de material leve, sobre assuntos mais casuais. A partir desta observação e cruzamento com os dados teóricos, pretendemos apresentar uma visão inicial de um trabalho piloto acerca da atuação das empresas jornalísticas dentro de sites de redes sociais.

1. CRIAÇÃO DE VALOR POR EMPRESAS JORNALÍSTICAS Picard (2013) defende que o declínio no interesse do público pelas empresas jornalísticas e seus produtos ocorre porque estas não acompanharam o desenvolvimento

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da sociedade e a mudança estrutural no comportamentos dos indivíduos enquanto consumidores de informação e tecnologia. Segundo o autor, os conteúdos produzidos hoje ainda estão centrados em instituições e formatos tradicionais do século passado, que não refletem os interesses de uma parte significativa do público. Falta às empresas a capacidade de cobrir e noticiar as novas formas de envolvimento dos sujeitos com as instituições, a economia e também o Estado. Tabernero (2013) também acredita que a crise enfrentada pelos meios de comunicação não se dá apenas por uma questão econômica e tecnológica, mas por uma mudança geral de hábitos na sociedade que envolvem o desenvolvimento territorial, mudanças na forma de se locomover, a questão da habitação e também as transformações nas posições de trabalho e profissão. A adaptação dos meios a essas transformações e às exigências do público, acrescida de elementos objetivos e subjetivos da indústria jornalística, pode levar à configuração de um produto com altos níveis de qualidade e consumo. A crise que vem sendo enfrentada pela indústria jornalística nos últimos anos força gestores e empresários a tentar encontrar alternativas de financiamento para os produtos noticiosos. Muitas são as possibilidades já implantadas ou pensadas como crowdfunding, paywall, micropagamentos e native advertisement. Todas elas, em maior ou menor grau, demandam a conquista do público e o convencimento a ele de que vale a pena pegar pelo conteúdo produzido e distribuído pela empresa em questão. Isso significa que, ao demandar o financiamento por parte do consumidor, é preciso considerar profundamente o valor que está sendo criado e oferecido para que convença-o da validade do investimento financeiro. A disposição do público em pagar por um conteúdo está diretamente relacionada ao valor que este atribui ao produto que lhe é oferecido. A marca, a qualidade e o serviço presentes ali precisam, necessariamente, ser relevantes para o indivíduo em si para que ele possa definir sua posição quanto ao pagamento da publicação. Num movimento atual em que a economia da escassez é substituída pela economia da abundância, a decisão sobre consumir um produto específico e ainda pagar por ele está cada vez mais nas mãos dos consumidores. Nas décadas de 1970 e 1980, momento do apogeu da cultura de massa, o contexto vivido pelos públicos era de uma economia da escassez de escolhas. Havia um número específico de canais de televisão e estações de rádio disponíveis para serem consumidos. A circulação de jornais e revistas estava limitada geograficamente aos locais onde era viável a sua distribuição, levando em conta os recursos financeiros empregados no processo e os interesses das empresas. O contexto em que se vive hoje se apresenta de forma diferente. Vive-se um momento de economia da abundância de escolhas. Há um número muito maior de canais de televisão em função da TV por assinatura e a quantidade de estações de rádio também cresceu. Além disso, não é preciso estar no lugar de origem dessas estações de rádio e TV para ter acesso ao seu conteúdo, grande parte dos veículos de comunicação está presente na Internet e seus produtos podem ser acessados de qualquer lugar do mundo. Da mesma forma ocorre com jornais e revistas. A circulação dessas publicações hoje é geográfica e temporalmente irrestrita. Os jornais são lidos através do computador e sua atualização é feita continuamente. As revistas,

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além de estarem disponíveis online, criam conteúdos diferenciados e inéditos para quem acessa o material pela Internet. Através das redes sociais, das trocas de arquivos pela rede, da banda larga, o acesso à produção musical e até mesmo à participação nesta indústria é largamente facilitado (ANDERSON, 2006). Picard (2013) divide os tipos de valores envolvidos com o trabalho das empresas jornalísticas. Valor social é aquele ligado a interesses amplos e coletivos; comunitários; valor individual é aquele ligado aos desejos e necessidades individuais dos sujeitos, variando de pessoa para pessoa; valor econômico é, obviamente, aquele que envolve dinheiro tanto de um lado quanto de outro da equação. Além disso, também é preciso levar em consideração os valores de troca e de uso. O primeiro está ligado ao quanto o usuário está disposto a investir naquele conteúdo, seja na forma de tempo ou dinheiro. O segundo trata do quão útil aquele produto é para o sujeito e o quanto ele atinge os valores individuais do consumidor. A semelhança entre os produtos jornalísticos, a dependência e uso das mesmas agências de notícias, a falta de criatividade dos jornalistas e a comoditização da notícia faz com que o valor do conteúdo produzido caia e seja percebido pelo leitor como mais do mesmo, levando-o, possivelmente, a um pensamento de “por que pagar por algo que posso ter de graça e igual via outra fonte?”. Diferenciação, exclusividade, aprofundamento e originalidade são alguns dos valores que podem tornar um conteúdo jornalístico mais útil ao consumidor criando, consequentemente, valor individual, econômico, de troca e uso.

2. DADOS, OBSERVAÇÃO E APONTAMENTOS Os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo ocupam respectivamente a quarta e a primeira posição no ranking nacional de circulação de jornais, de acordo com a Associação Nacional de Jornais4. Em São Paulo, são os dois maiores periódicos diários em circulação no Estado e capital, ambos com média superior a 200 mil exemplares. Em suas versões para a web, os dois jornais possuem o sistema de paywall, onde o usuário pode visualizar uma parte das notícias gratuitamente, sendo, num segundo momento, obrigado a fazer um cadastro para continuar, e após esse passo, o leitor precisa pagar pelo acesso para ler o material completo da publicação. Nas suas presenças nas redes sociais, os dois jornais têm comportamentos semelhantes, apesar de a Folha possui uma quantidade maior de fãs. No mês escolhido, de forma aleatória, para análise, a Folha de São Paulo tinha 4.846.240 fãs em sua página no Facebook e o Estado de São Paulo totalizava 2.818.963 fãs. Ao longo do dia, os jornais vão postando em suas linhas do tempo as notícias mais atuais publicadas em seus sites e também as reportagens que saíram na edição do dia do jornal impresso. Não há um número fixo de postagens diárias e os intervalos entre cada publicação tendem a ser de aproximadamente 10 a 20 minutos, variando conforme a quantidade de notícias que surgem no dia. Para realizar a observação piloto do comportamento destas empresas no Facebook, foram escolhidos três dias aleatórios no mês de janeiro, definindo apenas que um 4.  http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-jornais-do-brasil

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estaria no final de semana e os outros no começo da semana, para identificar possíveis diferenças nos comportamentos das publicações feitas. Optamos pelos dias 24, 25 e 26 de janeiro, respectivamente, domingo, segunda-feira e terça-feira. Durante a observação, as postagens feitas pelos jornais foram divididas em categorias, a fim de que pudessem ser melhor catalogadas. Dividimos as categorias da seguinte maneira: 1) Esporte, com informações que envolvessem qualquer prática esportiva, times etc; 2) Entretenimento, com publicações que envolvessem celebridades, cultura, shows e música; 3) Cotidiano leve, com informações leves sobre o cotidiano de cidades, como previsão do tempo, matrículas em escolas, loterias; 4) Cotidiano hard, com informações mais pesadas como enchentes, crise hídrica, assaltos; 5) Mundo, com o noticiário internacional; 6) Opinião, com artigos e colunas; 7) Economia, com as informações da economia nacional e internacional; 8) Política, com o noticiário envolvendo os três poderes e denúncias de corrupção; 9) Ciência, com publicações que envolvessem divulgação de informações ligadas a descobertas científicas. Tabela 1. Catalogação de publicações feitas pela Folha de S.Paulo Folha (4.846.240 fãs)

24/01

25/01

26/01

Esporte

4

11

2

Entretenimento

8

13

7

Cotidiano leve

3

11

7

Cotidiano hard

6

6

3

Mundo

3

7

4

Opinião

1

2

0

Economia

5

1

2

Política

2

3

4

Ciência

1

0

0

Total

33

54

29

Tabela 2. Catalogação de publicações feitas pelo Estado de S.Paulo Estadão (2.818.963 fãs)

24/01

25/01

26/01

Esporte

1

1

4

Entretenimento

5

3

10

Cotidiano leve

3

7

12

Cotidiano hard

2

4

8

Mundo

3

2

5

Opinião

1

3

2

Economia

3

1

5

Política

4

5

8

Ciência

3

0

2

Total

25

26

56

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Ao longo da observação realizada durante os três dias, podemos perceber que, os dois jornais publicaram muitas informações de categorias leves e casuais, mas não eximiram-se por completo de apresentar o noticiário do dia com informações cotidianas e de política. Além disso, percebemos também que nos dias de semana, o número de informações casuais foi maior do que no final de semana. Para fins de comparação, os dados finais dão conta que, no primeiro dia, 45% das informações publicadas pela Folha de S.Paulo foram de entretenimento, esporte ou cotidiano leve. No segundo dia, o total subiu para 65% e, no terceiro, 55%. Quando comparamos os números com o total de notícias de linha mais hard news (economia, política e cotidiano hard), vemos que, no primeiro dia, do total de postagens da Folha, 39% pertenceu a esta categoria, no segundo dia temos 19% e, no terceiro dia, 31%. Ou seja, há uma distribuição maior de informações casuais e leves do que do noticiário ligado a questões políticas e econômicas. No primeiro dia de observação, o Estado de S. Paulo, publicou 36% de informações pertencentes às categorias de entretenimento, esportes e cotidiano leve. No segundo-dia, foram 42% e, no terceiro, 47%. No comparativo com o total de notícias de linha mais hard news (economia, política e cotidiano hard), temos, no primeiro dia, 36% de postagens nesta categoria, no segundo dia, 39%, e, no terceiro dia, 38%. Embora a área de publicações casuais esteja acima no comparativo, os números mostram-se próximos e não tão discrepantes. Por se tratar de uma observação curta e experimental, não se pode afirmar categoricamente que as empresas de mídia aqui vistas estão tomando o rumo da publicação de informações mais populares e casuais na tentativa de buscar a audiência e atender a um suposto desejo do público. No entanto, podemos ver um indicativo de que este movimento está latente no comportamento das empresas jornalísticas e que um olhar mais atento à crises enfrentada pelo meio pode mostrar caminhos diferentes a serem tomados que não acabem por desqualificar o produto noticioso. Anderson, Bell e Shirky (2013) são categóricos em dizer que não há como o jornalismo sobreviver seguindo o formato praticado nos últimos 50 anos, uma vez que as condições técnicas, materiais e de modo de produção já não se aplicam ao século 21. A crise atual vivida pela indústria jornalística dá conta de um processo de estagnação de um modelo de negócios baseado na venda de espaço publicitário. Ao longo de sua história, a imprensa manteve-se a partir da oferta de audiência para os anunciantes. No momento em que a audiência adquire poderes de produção, controle maior do consumo e redistribuição do conteúdo a um custo muito baixo, as empresas entram em crise, pois já não são as únicas detentoras de espaço e opção de conquista para os anunciantes. “A fonte básica do subsídio publicitário é a falta de opção; enquanto o anunciante tiver de contar com o meio de comunicação para aparecer, esse meio vai poder usar os fundos obtidos para bancar o jornalismo, independentemente da preferencia do anunciante (p.34)”. Os autores seguem afirmando que além das mudanças trazidas pela própria tecnologia em si, os sites de redes sociais online fizeram com que surgisse uma nova categoria de anúncio publicitário de contato mais eficaz com a audiência e que acaba não entrando no subsídio de conteúdo jornalístico. “Quando um número satisfatório de empresas decidiu que redes sociais eram um meio aceitável, o estoque disponível de anúncios passou a ser em função do (ilimitado) interesse das pessoas umas nas outras, e não da capacidade do veículo de comunicação de criar conteúdo ou manter a

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audiência (p.35)”. A Internet permitiu que se medisse com profunda precisão o alcance da publicidade, criando uma lógica muito mais favorável ao marketing direto. Além disso, as transformações na indústria agora demandam um contato maior do jornalista com seu público. Entender o que o atrai, como ele chega à notícia, o que faz com que ele distribua o conteúdo, são fatores fundamentais para conquistar o consumidor de conteúdo do novo século. Também é preciso ter em mente que, nos dias atuais, levando em conta aspectos como mobilidade e mídias sociais, o público chega à notícia muito mais através de sua rede de contatos do que pela própria homepage da publicação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A atuação das empresas jornalísticas nas redes sociais quando voltadas somente para uma tentativa de estar presente no ambiente digital, sem estratégia definida e como tentativa de inovação na criação de valor e superação da crise da indústria acaba caindo na generalização de conteúdos e falta de distinção ente concorrentes. Picard (2013) diz que quando gestores de comunicação realizam avaliações sobre o que acreditam ser o desejo da audiência de forma generalizante acabam por reduzir a quantidade de notícias relevantes publicadas e optando pela postagem de informações mais leves sobre saúde, relacionamentos, entretenimento e estilo de vida. De acordo com o autor, este tipo de atitude incorre na homogeneização da concorrência que acaba por localizar-se nos mesmos segmentos e na publicação de informações semelhantes, comportamento que pode ser considerado auto sabotador em tempos de redes sociais on-line e proliferação de conteúdo gratuito na rede. Projetar o futuro da indústria de notícias em termos simplistas (transmitindo o que se acredita que a audiência deseja) também é problemático, uma vez que esta é uma fórmula para a destruição de valor. Há sempre alguém que pode fazê-lo mais barato e de forma mais atraente. O consumo de notícias e informações está diretamente ligado às condições de oferta e procura, como em outros mercados. Se a procura por assuntos relacionados a entretenimento e lazer aumenta, consequentemente aumentará também a produção deste tipo de conteúdo nas plataformas distribuidoras. Da mesma forma, se um veículo de comunicação cria um produto de sucesso entre o público, a tendência é que outras empresas sigam pela mesma linha e acabem criando algo semelhante para aproveitar a direção aberta. As ofertas mais habituais em cada mercado ajudam a criar hábitos de consumo entre o público. No entanto, o momento atual demanda que o mercado jornalístico se diferencie dos outros. Trabalhamos com uma indústria de informações, não com uma indústria de chocolates. É preciso ter consciência do papel social representado pela instituição jornalística, mas não apenas isso, é preciso também ter consciência da evolução do público, da maior possibilidade de conhece-lo individualmente e da demanda de oferta de produtos personalizados e geograficamente contextualizados. A crise da indústria jornalística precisa ser encarada como um momento não somente de buscar um novo modelo de receita, mas também um novo modelo de negócios que afetará a produção, a distribuição, o consumo de informações e também a essência da profissão que precisa estar atenta às necessidades do público e da sociedade digital do novo século.

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Redes sociais e empresas jornalísticas: como o novo comportamento de consumo pode afetar estratégias digitais Stefanie C. da Silveira

REFERÊNCIAS ANDERSON, C.W.; BELL, Emily & SHIRKY, Clay. Post-Industrial Journalism - Adapting to the Present, Tow Center for Digital Journalism, Columbia Journalism School, 2013. Recuperado em 25 de setembro de 2013 de: http://towcenter.org/research/ post-industrial-journalism ANDERSON, Chris. A Cauda Longa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. ANDERSON, Monica; CAUMONT, Andrea. How social media is reshaping news. 2014. Pew Research. Recuperado em 13 de outubro de 2014 de: http://www.pewresearch.org/ fact-tank/2014/09/24/how-social-media-is-reshaping-news/ PICARD, Robert. Criação de valor e o futuro das organizações jornalísticas. Porto: media XXI, 2013. PURCELL, Kristen et al. Understanding the participatory news consumer: How Internet and cell phone users have turned news into a social experience, Pew Internet & American Life Project, 2010. RECUERO, R. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2008.   TABERNERO, Alfonso Sánchez. Os conteúdos dos meios de comunicação. Porto: media XXI, 2013.

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Telejornalismo transmídia no JN: a aproximação com o telespectador via Facebook Telejournalism transmedia in JN – the closer to the viewer via Facebook V a l q u í r i a A pa r e c i d a P a s s o s K n e i pp 1

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a utilização da mídia social Facebook pelo Jornal Nacional, da TV Globo, através de estratégias de transmidiação do âncora e editor chefe Willian Bonner com os telespectadores. Desde 18 de dezembro de 2014 o mesmo grava uma chamada via celular, com um tom mais informal que a linguagem coloquial adotada pelo telejornalismo. Partiu-se da hipótese de que a queda da audiência está mudando a maneira de construção da notícia com a busca de aproximação com o receptor, o que de certa forma vem transformando a televisão em uma segunda tela. Com esta pesquisa buscou-se responder como e porque o Jornal Nacional vem reformulando o processo de produção de notícias? O instrumental metodológico contou com observação, transcrição e análise do conteúdo das chamadas postadas no Facebook, caracterizando um estudo de caso. Os fundamentos teóricos baseiamse na teoria da midiatização, por meio de autores como Sodré, Braga, entre outros e ainda lança mão de conceitos como estratégias de transmidiação e jornalismo transmídia propostos por Renó e Fechine. Verificou-se a utilização de estratégias de transmidiação como forma de aproximação com o telespectador, corroborando para a efetivação do telejornalismo transmídia.

Palavras-Chave: Transmídia. Telejornalismo. Jornal Nacional. Midiatização. Abstract: This article aims to analyze the use of Facebook social media by the National Journal, TV Globo, through transmidiação strategies anchor and managing editor William Bonner with viewers. Since December 18, 2014 the same record a cellular call, with a more informal tone that the colloquial language adopted by television journalism. Started from the hypothesis that the fall of the audience is changing the way news of the construction with the search closer to the receiver, which somehow has transformed the TV on a second screen. This research sought to answer how and why the National Journal has been reshaping the news production process? The methodological tools included observation, transcription and analysis of the content of calls posted on Facebook, featuring a case study. The theoretical foundations are based on the theory of media coverage, by authors such as Sodré, Braga, among others, and also makes 1.  Doutora, professora da UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (desde 2009), [email protected]

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use of concepts such as transmidiação strategies and transmedia journalism proposed by Renó and Fechine. It was the use of transmidiação strategies as a way to approach with the viewer and may contribute to the realization of transmedia TV journalism.

Keywords: Transmedia. TV Jounalism. Jornal Nacional. Mediatization.

1. TRAJETÓRIA DO JN ATÉ A ERA TRANSMÍDIA OMO OBJETIVO analisar a utilização da mídia social Facebook pelo Jornal Nacional,

C

por meio da interatividade do apresentador e editor chefe - Willian Bonner com os telespectadores, este estudo faz parte de uma pesquisa em desenvolvimento no âmbito institucional da UFRN, desde junho de 2013, e que deverá encerrar em junho de 2015. Um grupo de estudantes de graduação voluntários e, com bolsa de iniciação científica auxiliam na pesquisa. O estudo envolve o principal telejornal brasileiro, em termos de audiência e também o que está há mais tempo no ar, no país, por isso, a escolha dele como recorte. Partiu-se da hipótese de que a queda da audiência está mudando a maneira de construção da notícia com a busca de interação com o receptor, o que de certa forma vem transformando a televisão em uma segunda tela. Com esta pesquisa buscou-se responder como e porque o Jornal Nacional vem reformulando o processo de produção de notícias? No primeiro momento levantou-se a trajetória do JN desde a sua criação até a contemporaneidade, com o intuito de mapear e compreender o estágio atual do mesmo. Identificou-se que o telejornal saiu do analógico para o digital e agora caminha para o virtual. Depois uma discussão teórico-conceitual acerca de transmídia, estratégias de transmidiação e jornalismos transmídia. Ao final análise propriamente dita dos vídeos postados no Facebook por Bonner. O Jornal Nacional nasceu num momento emblemático da história do Brasil, em plena ditadura militar em 1969, ele trouxe uma inovação baseada no modelo americano, contribuindo para a criação de um modelo de telejornalismo, que ao longo dos anos foi replicado e copiado por praticamente todas as outras emissoras brasileiras. O Jornal Nacional foi uma cópia do que já existia nos Estados Unidos, mas a sua execução só foi possível devido à inauguração, pela Embratel, do denominado tronco sul, que foi capaz de integrar o Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Curitiba. O novo telejornal tinha uma preocupação de ser diferente do seu concorrente, o Repórter Esso (o primeiro telejornal de sucesso no rádio e na televisão), e, com isso, criou uma estrutura onde a manchete principal fosse exibida no final do jornal, de uma forma bem mais apurada para conduzir, no retorno ao apresentador a uma “boa noite” que fosse tranquilizador. Essa fórmula animadora de encerar o telejornal prevaleceu até o final dos anos 80. O Jornal Nacional protagonizou, também, a primeira entrada ao vivo de um repórter. O fato aconteceu em junho de 1977 e a repórter que pioneira do “ao vivo” foi Glória Maria, em condições adversas, pois a iluminação falhou e ela teve que fazer a sua entrada praticamente deitada no chão, para ser iluminada pelo farol da viatura da reportagem. Nos anos 80, a emissora buscou fazer do JN um telejornal manchetado, mas encontrou grandes dificuldades para encontrar uma linguagem apropriada aos tempos da

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abertura política que o país vivia. Os jornalistas tiveram que reaprender a trabalhar com a liberdade, pois a ditadura havia deixado muitas sequelas, entre eles, como a autocensura, por exemplo. A preocupação dos jornalistas deixa de ser com o formato e passa a se fixar no conteúdo: “a forma está definida, a filosofia é pacífica, isto é, um jornal de “hard news”, “manchetado”, absolutamente substantivo, que não se arraste que seja seletivo – este é o Jornal Nacional”, declarou, na época, Armando Nogueira (MELLO E SOUZA, 1984: 268). Mas no final dos anos 80 acabaram trazendo muitos problemas polêmicos de credibilidade para o JN: a campanha das diretas em 1984 e o debate Collor X Lula, em 1989. No primeiro caso, o JN não teria mostrado o megacomício realizado em 25 de janeiro, na Praça da Sé, em São Paulo. O destaque da matéria foi o aniversário da cidade e não o movimento pelas diretas, que estava em curso em todo o país. No segundo caso, o JN teria editado o último debate entre os dois candidatos de forma que Collor parecesse ter massacrado Lula, dando um minuto e meio a mais de tempo para o primeiro candidato. A edição também utilizou os melhores momentos de Collor, em contrapartida aos piores de Lula. O resultado desse segundo caso foi a saída do diretor de jornalismo da Globo, Armando Nogueira, e a subida para o posto do jornalista Alberico Souza Cruz, que foi apontado como mentor intelectual da edição do debate. A credibilidade do JN só foi restabelecida totalmente em 2004, quando o telejornal completou 35 anos e fez uma grande reflexão sobre a sua história, colocando todos os personagens para darem as sua versão dos fatos no livro Memória Globo – Jornal Nacional - A notícia faz a história. Uma grande reportagem sobre os bastidores do JN também foi publicada pela revista Veja, em 1º de setembro do mesmo ano (edição 1869 ano 37 -nº. 35 de 1º de setembro de 2004 páginas 100 até 108). Nesta reportagem de Veja o vice-presidente das organizações Globo, João Roberto Marinho faz uma reflexão: Aos poucos, depois de refletir sobre o assunto e com o distanciamento que o tempo dá, eu tenho uma avaliação diferente dos fatos. Depois desses anos todos, eu acredito que as duas edições (a exibida no Jornal Hoje e a mostrada no Jornal Nacional) estavam erradas: uma exagerou para um lado e a outra ficou aquém para o outro. De qualquer forma, eu debito os dois erros à inexperiência de todos na época. É preciso sempre ter em mente que aquela era a primeira eleição para presidente na era da televisão de massa. Não passa pela minha cabeça que os equívocos tenham sido cometidos por má-fé. (revista Veja edição 1869 ano 37 -nº. 35 p. 105)

Nos anos 90 segundo Borelli e Priolli (2000) devido a posturas críticas do telespectador em relação ao telejornal levaram a perda significativa de público, “Ao que tudo indica, a crise foi se construindo ao longo dos anos, parte dela germinada na década anterior” (200; 62). Para os autores neste percurso de crise está o que eles chamam de invasão mexicana (grifo dos autores) a estreia em 1991 do popularesco informativo Aqui Agora. Neste momento também pesou, “o crescente tensionamento da tradição oficialesca do telejornal, resultando primeiramente, neste caso, em crise de credibilidade” (200; 63). Ocorre o que os autores denominam de esgotamento da fórmula, com uma crise ancorada em dois eixos: credibilidade e fidelidade.

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Vê-se, pois, o Jornal Nacional diante de um dilema, oscilando entre a busca de popularidade ou de prestígio, ambos abalados. Se, de um lado, imperam críticas ao formato engessado do informativo, extremamente problemáticas têm sido as tentativas de flexibilizar, seja o noticiário, seja seu formato, incluindo-se aí a mudança de apresentadores e de cenário (Borelli e Priolli; 200; 63).

Algumas estratégias são adotadas pelo JN, como a reconstituição de crimes, reportagens com câmera oculta, outra tendência foi serialização, com picos (grifo dos autores) de aproximação entre os gêneros documental e ficcional, o telejornalismo, de modo destacado o Jornal Nacional, passou a seguir algumas regras, próprias do melodrama, em suas edições diárias. A regra central é o permanente conflito entre bem e mal, que culmina no “boa-noite” [...]. A cada respiração, vem uma moral da história. [...] porque o telejornal fala um pouco à cabeça, mas fala muito mais ao coração (Borelli e Priolli; 2000; 67, apud Bucci).

O jeito que JN encontrou foi mudar para sobreviver. Com a nova direção de jornalismo a cargo de Evandro Carlos de Andrade são afastados da apresentação do telejornal, em 29 de março de 1996, Cid Moreira e Sérgio Chapelin. Em 1999, uma norma fórmula é implementada, onde os apresentadores Willian Bonner e Fátima Bernardes são também editores e acompanham a produção de notícias (Borelli e Priolli, 2000, 75). Nos anos 80 e 90 o JN detinha cerca de 80% da audiência, sendo considerado uma referência em termos de informação, já em 2013% essa audiência chega a 27%. De acordo com Castilho essa alteração não pode ser atribuída às questões técnicas ou concorrência de outro telejornal, A Globo continua usando o que há de mais moderno em matéria de tecnologia, mantém o maior e mais bem pago plantel de jornalistas da TV brasileira e nenhuma outra emissora consegue bater a Vênus Platinada em matéria de coberturas internacionais, de temas políticos ou econômicos, e na mobilidade das equipes de reportagem.2

Para Castilho, uma possibilidade para explicar a queda de audiência do JN pode estar nos canais fechados e seus similares, que tenham levado os públicos A e B para um nicho informativo mais exclusivo, deixando a TV aberta como um reduto das classes C e D, supostamente menos interessados em jornalismo. Mesmo que ambas as possibilidades o modelo adotado seja dêntico. A explicação para a perda de audiência do Jornal Nacional está fora da emissora. Está nos quase 150 milhões de brasileiros que todas as noites ligam a TV. Este público perdeu a atração quase mística pelo noticiário na televisão, como acontecia entre os anos 1970 a 90, passando para um posicionamento desconfiado, distante e cético.3

2.  Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/posts/view/queda_da_audiencia_do_jn_ e_um_alerta_para_a_imprensa. 3.  Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/posts/view/queda_da_audiencia_do_jn_ e_um_alerta_para_a_imprensa

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No final de 2011 o JN promoveu uma mudança estética e profissional na bancada de apresentação. A partir de 6 de dezembro de 2011 saiu Fátima Bernardes que estava há 13 anos na apresentação e entrou a jornalista Patrícia Poeta. Mas a mudança não foi bem sucedida como se esperava. Em 2012 o telejornal bate a sua pior queda de audiência da história 28,1% de média do IBOPE da grande São Paulo. Até então, de acordo com Faria (2012), a pior audiência do JN teria sido em 2010 com 29,8 pontos. A melhor média registrada a partir dos anos 2000 foi de 35,4 pontos, em 2006. Gomes (2011) apresenta duas tendências que configuram o telejornalismo no século XXI – telejornalismo popular e o embaralhamento de fronteiras entre jornalismo e entretenimento o infotainemnt. No caso do JN o processo é um pouco mais lento, Uma política deliberada da emissora implicou uma mudança na atuação de seus jornalistas, apresentadores e repórteres, que cada vez mais precisam mostrar-se próximos do telespectador, são levados a abandonar o teleprompter e ganham alguma autonomia para comentários (Gomes, 2011; 63).

Esta aproximação identificada por Gomes (2011) vem de encontro com iniciativa do editor-chefe e âncora do Jornal Nacional – Willian Bonner vem implementando na rotina do telejornal, ou seja, ele quer estar perto do espectador e se o mesmo está na rede social é lá que o jornalismo vai também.

2. O TELEJORNAL E O PROCESSO DE MIDIATIZAÇÃO DA SOCIEDADE O telejornal ao que tudo indica é um dos últimos a assimilar o processo de midiatização da sociedade contemporânea, por conter, em sua essência, as possibilidades propaladas pelo mesmo – áudio e vídeo. Autores nacionais e internacionais já refletiram sobre o tema apresentando várias possibilidades de interpretação, conceitos e definições. Para Hjarvard (2012) a midiatização surgiu como um novo quadro teórico para reconsiderar questões antigas, embora fundamentais, sobre o papel e a influencia da mídia na cultura e na sociedade. De acordo com ele a midiatização é um processo que vem ocorrendo na sociedade com a característica de dupla face (grifo do autor) no qual a mídia se transformou em uma instituição semi-independente (grifo do autor) à qual outras instituições têm que se adaptar. Concomitante a este processo, a mídia se integrou às rotinas (grifo do autor) de outras instituições, como política, família, trabalho e religião, visto que um número cada vez maior das atividades destes domínios institucionais é realizado através tanto dos meios de comunicação interativos quanto dos meios de comunicação de massa (HJARVARD; 2012, 53). No caso do telejornal houve um retardamento em se dar conta desta necessidade de ir onde a audiência está, talvez, por isso, ficou durante muito tempo usando a internet e as mídias sociais para chamar o espectador para a televisão. Braga também entende a midiatização como um processo. Temos processos sociais que já existiam sem a mídia e, portanto, as interações ocorriam fora de qualquer interferência midiática. Aos poucos, esses processos passam a ser midiatizados, perpassados pela mídia. [...] Os eventos passam a se organizar segundo o olhar midiático. [...] Do ponto de vista social geral, a partir daí percebo a midiatização como processo interacional de referência (BRAGA, 2009; 1).

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De acordo com Hjarvard (2012), o conceito foi utilizado pela primeira vez pelo pesquisador sueco Kent Asp, numa aplicação ao impacto dos meios de comunicação na comunicação política e outros efeitos na política, “um sistema político é, em alto grau, influenciado pelas e ajustado às demandas dos meios de comunicação de massa em sua cobertura política” (HJARVARD, 2012 Apud ASP, 1986; 359). O conceito de midiatização é utilizado para descrever a influencia da mídia em áreas como a política, a ciência e a religião. Além disso, ele também é relacionado a uma teoria mais abrangente sobre a modernidade, conforme o faz o sociólogo John B. Thompson (1990, 1995), que vê a midiatização como parte integral do desenvolvimento da sociedade. Ele enxerga uma forte conexão entre a midiatização e suas consequências culturais e o surgimento de grandes organizações de mídia em níveis nacional e global. A produção e distribuição de produtos simbólicos por parte dessas corporações mudou os fluxos de comunicação na sociedade, tanto entre instituições quanto entre instituições e indivíduos (HJARVARD, 2012; 59).

Sodré atenta para a diferenciação entre midiatização e mediação, pois a segunda distingue-se sutilmente de “interação”, que é um dos níveis do processo mediador. Já midiatização é uma ordem de mediações socialmente realizadas no sentido da comunicação entendida como processo informacional, a reboque de organizações empresariais e com ênfase num tipo particular de interação – a que poderíamos chamar de “tecnointeração” -, caracterizada por espécie de prótese tecnológica e mercadológica da realidade sensível, denominada médium (SODRÉ, 2002; 21).

A midiatização segundo o autor implica em uma qualificação particular da vida, um novo modo de presença no mundo ou em um novo bios midiático, uma nova forma de vida não é meramente acadêmica, uma vez que já se acha inscrita no imaginário contemporâneo sob a forma de ficções escritas e cinematográficas [..] o bios midiático implica de fato uma reconfiguração do mundo pela ideologia norte-americana (portanto, uma espécie de narrativa política), caucionada pelo fascínio da tecnologia e do mercado (SODRÉ, 2002; 25 e 28)

O processo de midiatização foi impulsionado pela convergência midiática, que por sua vez foi impulsionada pela internet, possibilitou a junção e convivência de várias mídias em colaboração. Henry Jenkins em seu livro “Cultura da convergência” foi um dos pioneiros a identificar este fenômeno, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca de experiências de entretenimento que desejam. (JENKINS, 2009; 29)

Além do suporte físico e tecnológico, Jenkins atenta para o comportamento das pessoas diante das novas possibilidades. “A convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outro” (JENKINS;

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2009; 30). O autor se referia também a um consumidor com mais liberdade de escolha e com a possibilidade de participação por meio da interatividade. Para ele a convergência provoca mudanças nas duas extremidades envolvidas no processo de comunicação – emissor e receptor, porque, “altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento” (JENKINS, 2009; 43). E o processo de transformação não para por aí, acontece também uma espécie de democratização e coloca a mídia em cheque no que tange a participação. “A convergência envolve uma transformação na forma de produzir quanto na forma de consumir os meios de comunicação” (JENKINS, 2009; 44). Não é mais possível manter um mesmo padrão de produção diante de um consumidor mais exigente e com mais possibilidades de escolha. Existe uma necessidade de aproximação com o espectador. Para o autor existe também uma visível migração do público das mídias tradicionais para as novas mídias, “cada vez que deslocam um espectador, digamos, da televisão para a internet, há o risco de ele não voltar mais” (JENKINS, 2009; 47). E isso faz com que a mídia de uma forma geral se reinvente e promova uma verdadeira revolução no seu modus operandi, alterando desde a forma até o conteúdo e, ainda, propicie mais liberdade e participação para o público. Diante do cenário de convergência midiática se faz necessário uma série de mudanças a começar pela narrativa, que passa a ser pensada e construída em uma espécie de parceria com o público. “A narrativa transmídia refere-se a uma nova estética que surgiu em resposta a convergência das mídias – uma estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa das comunidades de conhecimento” (JENKINS, 2009; 49). Essa narrativa transmídia consiste em construir, “uma história desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo” (JENKINS, 2009; 138). Não é mais possível ter o telejornal exibido somente na hora da transmissão. Ele precisa ter desdobramentos, antecedentes e continuidade em outras mídias. Fechine (2013) alerta para certa imprecisão conceitual ao termo transmídia no Brasil, a partir da ideia inicial de Jenkins, porque as mesmas estão apoiadas na experiência da indústria americana de entretenimento. Em pouco tempo, no mercado e na academia, as expressões “transmídia” e “transmidiação” foram adquirindo tamanho grau de generalização que passaram a se confundir com as noções mais amplas de convergência de mídias ou cultura participativa, que são precondições para a emergência do fenômeno (FECHINE et al., 2013; 22).

Na busca de maior precisão conceitual a autora propõe tratar transmidiação como uma ação estratégica da indústria da mídia. Um modelo de produção orientado pela distribuição em distintas mídias e plataformas tecnológicas de conteúdos associados entre si e cuja articulação está ancorada em estratégias e práticas interacionais propiciadas pela cultura participativa estimulada pelo ambiente de convergência. Por envolver uma cadeia multiplataforma, esse modelo de produção é adotado mais frequentemente por corporações que atuam em distintas mídias (FECHINE et al., 2013; 26).

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A narrativa transmídia começou a ser identificada no jornalismo, ou pelo menos é isso que Porto e Flores, entre outros autores, observaram, e em parte esta pesquisa vem buscando identificar. Para essa vertente específica dentro do jornalismo, que passamos a nomear de jornalismo transmídia porque, “é que se torna uma forma de linguagem jornalística proporcionando, ao mesmo tempo, a mídia diferente, com diferentes linguagens e narrativas de muitos meios diferentes visando usuários e tudo graças à interatividade da mensagem” (PORTO, FLORES; 2012, 16, tradução nossa)4. Diferente do jornalismo tradicional, o jornalismo transmídia não tem limites em termos de forma, conteúdo e meio de divulgação, “se adotam recursos audiovisuais, interativos e de mobilidade e a sua difusão a partir de distintos meios, como os blogs e as redes sociais” (PORTO, FLORES; 2012, 16, tradução nossa) ··. O jornalismo transmídia tem uma narrativa diferente porque permite aproveitar as possibilidades de comunicação presentes na sociedade pós-moderna, “onde mobilidade e liquidez estruturas, ou seja, a interatividade, assumir papéis importantes no campo da comunicação, a fim de envolver e atrair o receptor para a interpretação participativa da mensagem” (PORTO e FLORES; 2012, 16, tradução nossa) 5. Pelas definições e características o jornalismo transmídia é um gênero ou formato, que tem bases muito similares ao jornalismo impresso, mas que se utiliza de outros formatos, com o diferencial da mobilidade e da participação do público. Esta nova possibilidade de telejornalismo transmídia, que de acordo com Fechine, resultam de estratégias e praticas transmídias, “resultado de ações que emanam de uma instancia produtora, ou em outros termos, como e resultado de um fazer querer, de um destinador corporativo ou institucional” (2013; 29).

3. A APROXIMAÇÃO COM TELESPECTADOR POR MEIO DO FACEBOOK O editor chefe e âncora do JN - Willian Bonner vem ao longo dos últimos anos empreendendo ações individuais, num esforço de se relacionar com o telespectador. A primeira ação foi em 2009 quando Bonner entrou no twitter, (que conta atualmente com 6,99 mi de seguidores) usou durante um tempo o twitter com certa intensidade, fazendo votações para escolha da gravata a ser usada, mas com o tempo foi diminuindo a intensidade de publicações talvez devido as críticas e polêmicas que se envolveu. Atualmente registra 9.804 tweets. De acordo com estudo anterior realizado pela autora, onde foi possível identificar a interatividade entre Bonner e os telespectadores, que usaram a rede social para alertar em relação a uma informação errada, que foi imediatamente corrigida pelo âncora no bloco seguinte. Desde 18 de dezembro de 2014 Willian Bonner começou a gravar uma chamada via celular, com um tom mais informal que a linguagem coloquial adotada pelo telejornalismo, sem a leitura do teleprompter, onde ele mostra parte dos bastidores da redação, e está sem terno e gravata, e muitas vezes andando pelos corredores e redação do JN. 4.  Texto original: “es que viene a ser una forma de lenguaje periodístico que contempla, al mismo tiempo, distintos medios, con diversos lenguajes y narrativas a partir de muchos medios dirigidos a diferentes usuários y todo esto gracias a la interactividad del mensaje”. 5.  Texto original: “donde la movilidad y la liquidez de estructuras, es decir, la interactividad, asumen papeles importantes en el campo de la comunicación con el objetivo de involucrar y atraer el receptor para la interpretación participativa del mensaje”.

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Esta chamada é postada na rede social Facebook. Este é o recorte desta pesquisa, que contou com observação, transcrição e análise do conteúdo das chamadas postadas no Facebook, caracterizando um estudo de caso. O Jornal Nacional começou, por meio do Facebook, um processo intenso de aproximação com o telespectador. Visto que o que vinha sendo feito antes deste período era um post informando “O JN está no ar”, como uma espécie de convocação para que o espectador “vá diante da televisão assistir o telejornal”. Está inovação, que de acordo com Fechine pode ser considerada uma estratégia de transmidiação, por que: correspondem aos diversos programas de engajamento propostos pelos destinadores-produtores aos seus destinatários, explorando suas competências para buscar e articular conteúdos, nas diversas plataformas, bem como sua motivação para desenvolver o que estamos denominando de conteúdos habilitados por serem gerados pelos consumidores em espaços criados pelo projeto multimídia (2013; 30).

Uma destas estratégias consiste na realização de vídeos de curta duração, como uma espécie de selfie, com uma câmera na mão, texto improvisado, sem teleprompter, e algumas vezes em movimento, mostrando os bastidores do telejornal, com roupas e linguagem informais. Neste caso específico dos vídeos publicadas no Facebook é possível identificar uma estratégia de propagação, com conteúdos reformatados, que servem tanto para antecipação quanto para a recuperação de informações. A antecipação é identificada porque os vídeos são sempre postados, na rede social, horas antes da transmissão ao vivo pela televisão. Já a recuperação ocorre toda vez que algum internauta assiste ao vídeo pela rede social após a exibição do telejornal pela televisão, ou qualquer outro dia subsequente. No recorte do primeiro vídeo publicado no Facebook é possível identificar uma linguagem muito coloquial, com conteúdo improvisado, usando gírias como: “como é que os caras” sempre mostrando o destaque da edição. O tom coloquial chega ao extremo ao mencionar os presidentes dos Estados Unidos e de Cuba sem um pronome de tratamento: “pelo Obama e pelo Raul Castro”. No campo estético, os bastidores da redação são mostrados desvendando a curiosidade do telespectador. Uma tentativa de aproximação se percebe quando Bonner pergunta: “Se faz ideia de quantos brasileiros passam fome?” como se estivesse numa conversa bem pessoal, em primeira pessoa. Segue abaixo a transcrição do primeiro vídeo: Bom destaque no Jornal Nacional de Hoje claro o capítulo seguinte desse momento histórico que é a retomada das relações diplomáticas entre Estados Unidos e Cuba. Os correspondentes Helter Duarte e Luciano Rodrigues foram até Little Havana, que fica em Miami, a maior colônia Cubana nos Estados Unidos pra ver como é que os caras reagiram por lá. E o clima não é de festa não, tem muita gente criticando. Muita gente insatisfeita com esse passo histórico dado pelo Obama e pelo Raul Castro. O Jornal Nacional vai falar também de fome, porque o IBGE divulgou números sobre a fome no Brasil. Se faz ideia de quantos brasileiros efetivamente passam fome? Vai falar disso. E a gente vai ver claro as ultimas sobre as investigações de corrupção na Petrobras. Hoje no Jornal Nacional.6 6.  Disponível em: https://www.facebook.com/video.php?v=733021836788205&set=vb.159354314154963&

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Com 48” de duração, o primeiro vídeo teve 686.495 visualizações. A iniciativa que cada dia apresentava uma inovação, mostrou os dois apresentadores juntos na bancada com roupas informais, Bonner com barba grande em férias, Renata Vasconcellos gravando a chamada e Bonner espiando, a reunião de pauta com os outros editores regionais, fazendo o nó da gravata, apresentando os editores, etc. Ao todo foram 36 vídeos, mas desde o dia 05 de março não está mais sendo publicado na página do Jornal Nacional no Facebook. As visualizações chegaram ao pico de 1.955.166. O próprio Bonner repercutiu a sua iniciativa no Twitter quando postou o primeiro vídeo dizendo: “Quem viu a chamada que o tio gravou no clular pro JN de hoje lá no fêice-búqui? Nunca tinha feito”7. Configurando desta maneira mais uma estratégia de transmidiação. Pelo horário da postagem 8h49 da noite esta postagem caracteriza uma estratégia de recuperação, pois permite a quem não viu a chamada no Facebook, mas leu o Twitter tenha a possibilidade de ver. A linguagem intimista usada por Bonner reafirma a tentativa de aproximação com o espectador. A postagem dos vídeos no Facebook repercutiu em toda a imprensa brasileira, jornais, revistas e sites de informação noticiaram o fato como a novidade da linguagem do telejornal. O Observatório da Imprensa reproduzindo texto de Jimenez da Folha de S. Paulo revela algumas possibilidades para essa ação como: “esse parece ser o caminho das mudanças na linguagem do JN que Bonner disse estar promovendo no noticiário”8. Outra revelação, mas sem mencionar a fonte informa que: além dessa busca por alcançar a audiência em redes sociais, com vídeos descontraídos, selfies e via “segunda tela” (tablets, celulares), o “JN” e outros noticiários da rede devem mostrar mais os bastidores da notícia e tentar aproximar a plateia de âncoras e repórteres9.

Ainda de acordo com a matéria, a linguagem dos jornalistas deve ficar mais leve, e eles serão mostrados como pessoas reais, e não como seres inalcançáveis, protegidos por bancadas e teleprompters. Confirmando assim a mudança na rotina de produção do JN e buscando uma aproximação com espectador, por meio das redes sociais, o que aos poucos vai transformando a TV na segunda tela. Essa premissa de transformação da televisão em uma segunda tela se fortalece ao analisarmos que de acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídia 2015 do Governo Federal, que 48% dos brasileiros têm acesso à internet, 26% tem acesso a TV a cabo e 23% a parabólica, e mesmo a TV aberta sendo a campeã de audiência com 72%, existe uma variável na pesquisa que revela que as pessoas realizem outra atividade enquanto assistem. Entre as mais mencionadas pelos entrevistados estão: comer alguma coisa (49%), conversar com outra pessoa (28%), realizar alguma atividade doméstica (21%), usar o celular (19%) e usar a internet (12%) – 23% disseram que não realizam nenhuma atividade enquanto assistem à televisão10. type=2&theater 7.  Disponível em: https://twitter.com/realwbonner 8.  Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed831_jn_procura_renovacao_com_ videos_caseiros_e_redes_sociais 9.  Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed831_jn_procura_renovacao_com_ videos_caseiros_e_redes_sociais 10.  http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-de-

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A pesquisa aponta três possibilidades para esse consumo de TV pelo brasileiro: a TV ligada não é sinônimo de recepção do conteúdo veiculado, visto que a atenção pode estar dividida com outras atividades; a televisão possui um componente aglutinador, porque funciona como pano de fundo para conversas entre pessoas; e há uma interação entre o hábito de assistir à TV e o uso da internet porque usar o celular, a internet e trocar mensagens instantâneas pressupõe alguma conexão com a rede de computadores. Estas possibilidades colaboram para o entendimento de que a televisão está se transformando em uma segunda tela.

CONSIDERAÇÕES A crescente queda da audiência observada no Jornal Nacional ao longo de toda a sua trajetória é fato. As mudanças ocorridas no país ao longo desse tempo e a dificuldade de despertar o interesse do espectador estão relacionadas a perda da credibilidade. O aparato técnico que o telejornal dispõe não impede a migração do telespectador para as mais variadas mídias novas, colocando a televisão, mesmo depois do processo de digitalização, no campo dos velhos meios. O telejornal vive um interstício, ou seja, um período de grandes transformações, onde o que está mais evidente neste momento, além da queda da audiência e da credibilidade é a chamada “crise de identidade” (Fechine, 2013). O transbordamento do conteúdo televisivo para a uma segunda tela está mudando a maneira de construção da notícia. A busca de interação com o receptor é a palavra de ordem do momento. O Jornal Nacional vem reformulando suas rotinas de produção, numa tentativa de aproximação do espectador, de forma que os vídeos publicados no Facebook do JN configuram-se numa estratégia de transmidiação porque eles conseguem antecipar uma parte do conteúdo do telejornal, e também conseguem recuperar este mesmo conteúdo a qualquer momento. A repercussão no Twitter de Bonner recupera as ações empreendidas pelo mesmo e o aproxima do espectador. A inciativa que teve curta duração impôs um ritmo novo na redação, pois além toda a correria diária para se fechar um telejornal, a mesma equipe teve que pensar em estratégias criativas para se aproximar do telespectador. Essa talvez tenha sido a causa do abandono do projeto de produção de vídeos intimistas, pelo celular, durante o processo de feitura do telejornal. A utilização de estratégias de transmidiação, além de aproximar e configurar um processo de interação com o telespectador também contribue para a efetivação do telejornalismo transmídia, que se caracteriza pela utilização de diversas plataformas, com conteúdos que se complementam.

REFERÊNCIAS BRAGA, José Luiz (2009) Midiatização: a complexidade de um novo processo social. Revista do Instituto Humanitas – Unisinos; número 289; Ano 2009. Disponível em: http://www. ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2477&sec ao=289. Data de acesso: 07 de julho de 2014. contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf

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Telejornalismo transmídia no JN:a aproximação com o telespectador via Facebook 

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Novas Diretrizes Curriculares: desafios no ensino do Fotojornalismo New Curriculum Guidelines: challenges in the teaching of Photojournalism Tá s s i a C a r o l i n e Z a n i n i 1

Resumo: A linha de discussão aqui proposta visa elaborar algumas questões base para pensar o cenário da disciplina de Fotojornalismo no contexto das novas diretrizes curriculares para o curso de jornalismo, homologadas pelo Ministério da Educação e em fase de implementação pelas instituições de ensino superior no Brasil. Buscando um olhar sobre os eixos de formação propostos no projeto apresentado, este artigo pretende introduzir uma lógica de discussão que privilegie identificar os possíveis desafios inerentes ao cenário específico da disciplina de Fotojornalismo, a fim de preparar o terreno para pesquisas posteriores, que possam responder às questões aqui levantadas, pensando essa nova abordagem para a área no país não apenas em relação às demandas do curso como um todo, mas também a partir das potencialidades de atuação das várias disciplinas que compõem cada matriz curricular.

Palavras-Chave: Fotojornalismo. Jornalismo. Diretrizes curriculares. Abstract: The discussion line proposed here aims to develop some questions to think the base scenario of Photojournalism discipline in the context of new curriculum guidelines for the journalism course, approved by the Ministry of Education and being implemented by higher education institutions in Brazil. Seeking a look at the formation of axes proposed in the project presented, this article intends to introduce a discussion of logic that favors identify possible challenges to the specific scenario of Photojournalism discipline in order to prepare the ground for further research, which can respond to issues raised here, thinking this new approach to the area in the country not only in relation to the demands of the course as a whole, but also from the performance potential of the various disciplines that make up each curriculum.

Keywords: Photojournalism. Journalism. Curriculum guidelines.

1.  Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista – UNESP; graduada em Comunicação Social – Jornalismo e especialista em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Professora do departamento de Comunicação do Centro Universitário Belas Artes e do Centro Universitário FIAM-FAAM; aluna especial do doutorado em Meios e Processos Audiovisuais da Universidade de São Paulo – ECA/USP e pós-graduanda em Docência no Ensino Superior pelo Centro Universitário Senac. E-mail: [email protected].

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Novas Diretrizes Curriculares: desafios no ensino do Fotojornalismo Tássia Caroline Zanini

INTRODUÇÃO PÓS QUATRO anos em debate, o Ministério da Educação (MEC) homologou, em

A

setembro de 2013, as novas diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em Jornalismo (BRASIL, 2013), formuladas em 2009 por especialistas da área, pesquisadores e profissionais – Alfredo Eurico Vizeu Pereira Junior, Eduardo Barreto Vianna Meditsch, Lucia Maria Araújo, Luiz Gonzaga Motta, Manuel Carlos da Conceição Chaparro, Sergio Augusto Soares Mattos e Sonia Virgínia Moreira, presididos por José Marques de Melo (BRASIL, 2009). Com a medida, as instituições de ensino superior (IES) foram orientadas a adequarem, até 2015, sua infraestrutura, Projetos Político Pedagógicos (PPP) e matrizes curriculares às novas regras instituídas. Entre os objetivos principais, está o estreitamento das relações entre a metodologia de ensino e a prática exercida no mercado, a fim de formar profissionais com uma visão mais crítica sobre a área de atuação, em acordo com as demandas da sociedade atual. E uma das principais mudanças diz respeito ao caráter mais prático a ser explorado nos cursos, agora com obrigatoriedade de representar 50% das aulas. Diante desse cenário, muitos pesquisadores têm se voltado a discutir o tema, apontando benefícios e fragilidades nas diretrizes, ou propondo olhares sobre o universo da profissão no cenário atual e suas demandas em constante atualização. Aos poucos, as IES vêm adequando suas propostas curriculares, e os órgãos colegiados, corpo docente, diretórios acadêmicos e corpo discente aprofundando a discussão em torno das propostas, particulares a cada curso e cenários regionais. Uma vez que o relatório final da comissão de especialistas e as novas diretrizes já têm sido bastante abordadas, a proposta aqui não é focar na formação do jornalista no Brasil2, discutir o perfil do profissional desejado (particular à cada proposta institucional) ou a aplicabilidade das diretrizes na atualidade, mas estender esse debate ao micro universo das disciplinas do curso, a fim de aproximar professores e pesquisadores de temas, gêneros e áreas mais específicas dentro do jornalismo, pensando nos reflexos e aplicabilidades das novas demandas nos casos particulares à cada disciplina. Assim, o interesse aqui é voltado à disciplina de Fotojornalismo3, geralmente inserida nas matrizes curriculares do curso (embora com módulos e cargas horárias particulares à cada IES), a fim de refletir como as principais mudanças sugeridas podem ser pensadas nesse universo; nas aulas e atividades voltadas à área, e, assim, propor ampliar o debate entre os professores voltados ao ensino da disciplina. O intuito é estabelecer um estudo inicial dos reflexos dessas diretrizes no campo geral da disciplina, a fim de identificar desafios e preparar o terreno para pesquisas posteriores – que podem considerar ementas específicas e comparar mudanças necessárias e possibilidades a serem exploradas. Portanto, a abordagem aqui se volta aos dados relevantes a serem considerados para esse universo particular, com base na análise da Resolução CNE/CES nº 1, de 27 de setembro de 2013, e suas instruções para o projeto pedagógico do curso.

2.  A esse respeito, ver Almeida (2014), Aguiar (2013) e Lopes (2013 e 2014). 3.  O interesse específico na disciplina justifica-se na área de atuação docente da autora, com abordagem específica no ensino do Fotojornalismo e disciplinas adjacentes desde o início da formação docente, a partir de 2009.

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NOVAS DIRETRIZES EM CONTEXTO O texto do relatório da comissão de especialistas que se voltaram a analisar e discutir as diretrizes curriculares para o ensino do jornalismo no país (BRASIL, 2009) fundamenta-se e justifica-se, primeiramente, nas demandas atuais frente ao cenário em contínuas transformações no qual o profissional está inserido – sobretudo do ponto de vista tecnológico e imediatista dos instrumentos de difusão instantânea universal (FRANCISCATO, 2005) e da expansão de práticas e estruturas de democracia participativa (TRAQUINA; MESQUITA, 2003), que vêm avançando sobre os modelos tradicionais, questionando-os: A nova fisionomia do Jornalismo relativiza teorias e crenças que historicamente sustentavam o poder hegemônico das redações tradicionais. A atualidade fazia parte do Jornalismo, ao qual servia como fonte de matéria-prima. Hoje, ao contrário, é o Jornalismo que faz parte da atualidade, e a serve, como linguagem macro-interlocutória socialmente eficaz (BRASIL, 2009, p. 6).

Assim, o relatório aponta para o contexto de que hoje são outras as expectativas da sociedade frente ao jornalismo, e essa nova fisionomia da atualidade também traz ao campo problemas novos e inesperados. Em tal cenário, “urge clarear conceitos plurais – éticos, técnicos, estéticos – para uma nova compreensão do Jornalismo” (BRASIL, 2009, p. 4). Após contextualizar esses cenários nos quais a profissão está inserida, o relatório aborda a formação do jornalista, discutindo a criação do curso no Brasil e a experiência de pelo menos seis décadas na formação universitária de jornalistas, até a elaboração de novas diretrizes para a área em 20024. Segundo a comissão, as práticas pedagógicas na área mesclavam o padrão europeu (estudo teórico) com o modelo americano (aprendizagem pragmática), visando consolidar uma abordagem de caráter críticoexperimental de ensino-pesquisa. Nesse ponto, o relatório traça uma visão histórica e política importante para a compreensão da especificidade do curso de jornalismo, discutindo a incoerência de sua inserção enquanto habilitação da Comunicação Social, herança da adoção do modelo de ensino proposto pela Unesco para o Terceiro Mundo, no contexto da ditadura militar: O aniquilamento das profissões consolidadas no campo era então justificado com o argumento do Terceiro Mundo “não necessitar do jornalismo tal qual o existente nas sociedades desenvolvidas”, mas sim de uma outra forma de Comunicação Social, voltada ao desenvolvimento econômico e educacional. Conforme o mesmo raciocínio, só uma vez alcançado este desenvolvimento, é que então se justificaria a existência do Jornalismo nas sociedades antes subdesenvolvidas. Tal formulação teórica foi evidentemente forjada no contexto da Guerra Fria, quando a maior parte das nações ao Sul do Equador se encontrava sob controle ditatorial e não podia admitir a existência de uma prática profissional da Comunicação baseada na liberdade de expressão, no direito à informação e na fiscalização do poder (BRASIL, 2009, p. 10). 4.  A partir da entrada em vigor da Resolução CNE/CES 16, de 13 de março de 2002, os cursos de jornalismo seguem as referências das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Área de Comunicação Social e suas habilitações – que, segundo o relatório (BRASIL, 2009, p. 9), conduzem a interpretações equivocadas, por confundirem os cursos de graduação voltados para a formação profissional com a área acadêmica da Comunicação.

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Embora, com o tempo, essa proposta do “comunicador polivalente” tenha sido esquecida, por não corresponder mais às demandas sociais, esta proposta de estrutura em habilitações da Comunicação Social sobreviveu; parte em função da dinâmica interna da área acadêmica da Comunicação e seu contexto de origem, nos anos 40, em meio à Segunda Guerra Mundial. Assim, o estudo apontado pelos especialistas demonstra que essa imposição de um modelo único para o curso de Comunicação Social, em substituição ao curso de Jornalismo, teve consequências bastante prejudiciais para a formação universitária da profissão – entre elas, o desaparecimento de disciplinas que abordavam conteúdos essenciais específicos (como Ética, Deontologia, História e Teoria do Jornalismo) ou sua dissolução em conteúdos gerais para todas as habilitações (Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas, Editoração, etc), que não respondem questões particulares geradas pela prática profissional. Aí está um dos maiores problemas apontados pelo estudo: a ruptura entre teoria e prática nos cursos de comunicação. Portanto, entre os caminhos apontados para as novas diretrizes, estão a constituição de um olhar voltado para a graduação específica em jornalismo, a vinculação legítima entre abordagem teórica, formação voltada para a prática e análise reflexiva do cenário profissional, bem como o retorno à legitimidade da área em sua especificidade.

O FOTOJORNALISMO EM FOCO Contextualizado o cenário político e histórico que embasa as mudanças propostas, as diretrizes apresentadas dividem-se entre 1) estrutura e organização do curso; 2) projeto pedagógico; 3) perfil do formando/do egresso na área; 4) competências: conhecimentos, habilidades, atitudes e valores a serem desenvolvidos, gerais e específicos; 5) organização dos conteúdos curriculares, com eixos de fundamentação humanística, específica, contextual, profissional, processual e laboratorial5; e 6) acompanhamento e avaliação. Embora seja de extrema importância considerar a complexidade de cada item para a formação didático-pedagógica do aluno, na abordagem aqui proposta, frente aos desafios e possibilidades inerentes à disciplina de Fotojornalismo, propõe-se destacar enquanto ponto de partida para pensar a especificidade da abordagem um olhar a partir do tópico 5, elencando os eixos de fundamentação com base nos conteúdos inerentes à base da ementa da disciplina, geralmente comum à maioria dos perfis dos cursos. Para tanto, propõe-se aqui apresentar questões pertinentes à reflexão no âmbito dos conteúdos da disciplina, considerando os seis eixos principais propostos pela Resolução N° 1, de 27 de setembro de 2013: I - Eixo de fundamentação humanística, cujo objetivo é capacitar o jornalista para exercer a sua função intelectual de produtor e difusor de informações e conhecimentos de interesse para a cidadania, privilegiando a realidade brasileira, como formação histórica, estrutura jurídica e instituições políticas contemporâneas; sua geografia humana e economia política; suas raízes étnicas, regiões ecológicas, cultura popular, crenças e tradições; arte, literatura, 5.  Estão inclusas aqui as observações pertinentes ao Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), ao estágio curricular supervisionado e às atividades complementares, de caráter didático e acadêmico (BRASIL, 2009, p. 21-23).

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ciência, tecnologia, bem como os fatores essenciais para o fortalecimento da democracia, entre eles as relações internacionais, a diversidade cultural, os direitos individuais e coletivos; as políticas públicas, o desenvolvimento sustentável, as oportunidades de esportes, lazer e entretenimento e o acesso aos bens culturais da humanidade, sem se descuidar dos processos de globalização, regionalização e das singularidades locais, comunitárias e da vida cotidiana. II - Eixo de fundamentação específica, cuja função é proporcionar ao jornalista clareza conceitual e visão crítica sobre a especificidade de sua profissão, tais como: fundamentos históricos, taxonômicos, éticos, epistemológicos; ordenamento jurídico e deontológico; instituições, pensadores e obras canônicas; manifestações públicas, industriais e comunitárias; os instrumentos de autorregulação; observação crítica; análise comparada; revisão da pesquisa científica sobre os paradigmas hegemônicos e as tendências emergentes. III - Eixo de fundamentação contextual, que tem por escopo embasar o conhecimento das teorias da comunicação, informação e cibercultura, em suas dimensões filosóficas, políticas, psicológicas e socioculturais, o que deve incluir as rotinas de produção e os processos de recepção, bem como a regulamentação dos sistemas midiáticos, em função do mercado potencial, além dos princípios que regem as áreas conexas. IV - Eixo de formação profissional, que objetiva fundamentar o conhecimento teórico e prático, familiarizando os estudantes com os processos de gestão, produção, métodos e técnicas de apuração, redação e edição jornalística, possibilitando-lhes investigar os acontecimentos relatados pelas fontes, bem como capacitá-los a exercer a crítica e a prática redacional em língua portuguesa, de acordo com os gêneros e os formatos jornalísticos instituídos, as inovações tecnológicas, retóricas e argumentativas. V - Eixo de aplicação processual, cujo objetivo é o de fornecer ao jornalista ferramentas técnicas e metodológicas, de modo que possa efetuar coberturas em diferentes suportes: jornalismo impresso, radiojornalismo, telejornalismo, webjornalismo, assessorias de imprensa e outras demandas do mercado de trabalho. VI - Eixo de prática laboratorial, que tem por objetivo adquirir conhecimentos e desenvolver habilidades inerentes à profissão a partir da aplicação de informações e valores. Possui a função de integrar os demais eixos, alicerçado em projetos editoriais definidos e orientados a públicos reais, com publicação efetiva e periodicidade regular, tais como: jornal, revista e livro, jornal mural, radiojornal, telejornal, webjornal, agência de notícias, assessoria de imprensa, entre outros (BRASIL, 2013, p. 4-5).

Tomando como base os conteúdos pertinentes à disciplina de Fotojornalismo, frente às demandas apontadas nos seis eixos acima, destacam-se aqui as seguintes questões: 1) De que maneira a disciplina pode propor um olhar sobre o eixo de formação humanística? A abordagem teórica em torno de importantes movimentos históricos, de linguagem e estéticos do fotojornalismo privilegia pensar em autores e temáticas voltadas à lógica cidadã e democrática? As correntes do fotodocumentarismo, sobretudo as voltadas para as abordagens de denúncia social, podem ser pensadas enquanto ferramentas adequadas a esses saberes? 2) A respeito do eixo de fundamentação específica, os conteúdos inerentes à disciplina de Fotojornalismo propiciam um olhar a respeito do profissional de fotojornalismo, inserido em seu ambiente de trabalho? É possível pensar e discutir nesse cenário as

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demandas da profissão, seus riscos e dificuldades no cotidiano de trabalho, bem como esse profissional deve se portar no exercício de sua função? 3) Sobre a abordagem contextual: a matriz curricular do curso possibilita uma posição adequada da disciplina de Fotojornalismo frente à lógica curricular? Disciplinas voltadas para a base teórica da área e suas dimensões adjacentes, bem como a respeito das rotinas de produção, foram cursadas antes na grade curricular, propiciando um saber contextual adequado e introdutório à lógica das disciplinas práticas? 4) Quanto à formação profissional, como o estudante é introduzido, por meio da disciplina de Fotojornalismo, nas práticas profissionais voltadas a esse saber? De que forma está organizado o eixo teórico-prático da disciplina, bem como sua estruturação com as outras disciplinas voltadas para a prática textual, indispensáveis para aprofundar a lógica da produção fotojornalística? Há abordagem multidisciplinar nesse contexto? 5) Sendo o eixo de aplicação processual um dos mais importantes na abordagem das disciplinas teórico-práticas, de que forma o estudante é levado a pensar a imagem enquanto suporte de aplicação em outros contextos do jornalismo? As demandas em relação aos equipamentos técnicos, suporte de softwares de edição e contextualização na atual era digital são supridas adequadamente? 6) Sendo o Fotojornalismo uma disciplina essencialmente laboratorial, de que maneira ela está inserida nos projetos editoriais desenvolvidos pelo curso? A produção é escoada em agências de notícia, jornais laboratórios, livros, revistas, suportes web, exposições, catálogos, atividades complementares e experimentais, bem como projetos de pesquisa e extensão? Em que lugares os saberes adquiridos são testados e expostos, articulando o eixo teórico-prático? Muitas outras questões podem ser ligadas a essa abordagem em função dos eixos de formação propostos pelas novas diretrizes, e cada uma delas merece uma análise profunda do caráter da disciplina, sua visão dentro da matriz curricular do curso e de seu projeto político pedagógico. Assim, faz-se necessário primeiro um olhar preliminar quanto a esses contextos, que dialogam, antes do eixo do conteúdo curricular, com a lógica estrutural do curso, seus objetivos, infraestrutura e proposta pedagógica, para que cada tópico possa ser respondido em sua profundidade, e para que fragilidades e potências possam ser identificadas na lógica pertinente à cada IES.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A abordagem aqui proposta, como mencionado no início do texto, não visa esgotar o assunto, tampouco responder a todas as questões propostas; do contrário, busca introduzir uma discussão mais aprofundada no eixo curricular específico de cada desdobramento profissional orientado pelas disciplinas, sobretudo as laboratoriais ou de caráter teórico-prático. Assim, buscou-se propor um olhar para pesquisas futuras, que aliem as disciplinas e suas ementas aos eixos propostos pelas diretrizes, a fim de encontrar caminhos mais férteis para a formação dos jornalistas, agentes a serem inseridos em tantos e tão diversos eixos de atuação. Faz-se necessário aproximar dessa discussão a lógica de estruturação da matriz curricular; a disposição das disciplinas, seus pré-requisitos e vinculações inter e multidisciplinares, bem como os conteúdos relativos a esses espaços – suas necessidades, desdobramentos e competências.

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Com a liberdade que as IES gozam de propor um perfil específico de profissional (com formação mais voltada à cultura, às novas tecnologias, ou a práticas cidadãs, por exemplo) a ser desejado no aluno egresso, cada currículo poderá dispor de abordagem própria, que, por recomendação das novas diretrizes, deve ser coerente com o contexto regional em que se insere. Um bom exemplo é a experiência da disciplina de Fotojornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), relatada pelo Prof. Atílio Avancini (2014)6, cuja proposta é estruturada em práticas essencialmente culturais e cidadãs, propiciadas pelo desenvolvimento de projetos de extensão e parceria com a empresa estudantil Jornalismo Júnior (Jota). Práticas assim podem orientar não só um perfil de egresso do curso como um todo, mas evidenciar áreas de abordagem específicas às disciplinas, destacando ainda mais suas potencialidades enquanto ferramentas pedagógicas específicas. Por fim, destaca-se também que embora as novas diretrizes em implementação representem possíveis avanços em relação à formação do profissional específico da área, elas também não se encerram enquanto cartilha exclusiva a ser seguida. O cenário profissional e as análises em torno do tema apontam que ainda são muitos os caminhos a serem pensados de modo mais crítico na formação do jornalista atual, como os sistemas de regulação da mídia em debate e a postura dos profissionais frente aos oligopólios econômicos representados pelas grandes corporações de comunicação e informação, assunto quase não tocado pela comissão de especialistas7. Assim, muitas são as discussões pertinentes a serem aprofundadas nessa temática; daí a importância de estudos futuros articularem ainda mais essas vinculações específicas das disciplinas no cenário atual.

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6.  Ver experiência da disciplina de Fotojornalismo no curso da ECA/USP em Avancini (2014). 7.  Ver artigo de opinião publicado na revista Carta Capital em 19 de maio de 2013 (POMAR, 2013).

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Novas Diretrizes Curriculares: desafios no ensino do Fotojornalismo Tássia Caroline Zanini

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Diretrizes curriculares e radiojornalismo: bases para uma discussão Curriculum guidelines and radio journalism: basis for a discussion E d ga r d P a t r í c i o 1

Resumo: As novas diretrizes curriculares do Curso de Jornalismo foram aprovadas em 2013. Iniciou-se, então, uma corrida dos cursos para uma atualização das matrizes curriculares e dos projetos pedagógicos, referenciados às novas diretrizes. No Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC) esse processo deu-se início ainda em 2013. A estratégia de trabalho contemplou a realização de workshops, que tinham como orientação a discussão sobre as demandas atuais de formação para o profissional jornalista. Foram realizados cinco workshops. Um deles tratou especificamente das demandas de formação do jornalista para a prática do radiojornalismo. A partir das discussões, levantamos alguns questionamentos: como esses discursos percebem as transformações que ocorrem no Jornalismo? E como essas transformações, a partir desses discursos, podem repercutir na formação do profissional jornalista que exerce a prática do radiojornalismo?

Palavras-Chave: Diretrizes curriculares. Jornalismo. Radiojornalismo. Abstract: The new curriculum guidelines Journalism Course were approved in 2013. It started then a rush of courses for an update of curriculum matrices and teaching projects, referenced to the new guidelines. In Journalism Course at the Federal University of Ceará (UFC) beginning this process still took place in 2013. The strategy work included conducting workshops, they had to guide the discussion on the current training demands for the professional journalist. From the discussions, raise some questions: how these discourses realize the changes that occur in Journalism? And as these transformations, from these speeches, may impact on the formation of a professional journalist who carries out the practice of radio journalism?

Keywords: Curriculum guidelines. Journalism. Radio journalism.

1.  Doutor, Universidade Federal do Ceará, [email protected].

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Diretrizes curriculares e radiojornalismo:bases para uma discussão Edgard Patrício

1. OS DEBATES EM TORNO DA ELABORAÇÃO DAS NOVAS DIRETRIZES 1.1 O processo de elaboração PROCESSO DE elaboração das novas diretrizes curriculares do Jornalismo chegou

O

ao fim depois de um intenso debate sobre a individualização da habilitação de Jornalismo em curso de graduação, com a possibilidade de apartamento do Curso de Comunicação Social. Uma comissão de especialistas foi montada para conduzir os trabalhos. A Comissão tinha na coordenação o professor José Marques de Melo. Ainda eram membros Alfredo Vizeu, Carlos Chaparro, Eduardo Meditsch, Luiz Gonzaga Motta, Lucia Araújo, Sergio Mattos e Sonia Virginia Moreira. Foram realizadas três audiências públicas, abertas à participação de agentes dos processos jornalísticos: no Rio de Janeiro, professores, estudantes, pesquisadores, dirigentes de escolas, cursos, departamentos de ensino e pesquisa expressaram suas aspirações, representando a comunidade acadêmica; no Recife, foi a vez da comunidade profissional, representada pelas organizações sindicais ou corporativas: empresas, setor público e terceiro setor; em São Paulo manifestaram-se lideranças e representantes da sociedade civil organizada: advogados, psicólogos, educadores, religiosos, ecologistas, bem como outros segmentos comunitários. Os cidadãos interessados na questão tiveram oportunidade de encaminhar recomendações por meio de uma consulta pública, realizada pelo portal do MEC, na internet, o que permitiu o recebimento de uma centena de sugestões. O processo teve início em 2009. Depois de elaborada a proposta da Comissão, o documento foi encaminhado ao Conselho Nacional de Educação (CNE) em 15 de abril de 2010. Dois meses depois, em 9 de junho de 2010, foi distribuído para parecer à Comissão formada pelos Conselheiros Arthur Roquete de Macedo (presidente) e Reynaldo Fernandes (relator). A Comissão do CNE realizou audiência pública em Brasília, no dia 8 de outubro de 2010. Nessa audiência, segundo o Parecer da Comissão dado a conhecer depois2, e distribuído inicialmente de maneira informal entre alguns pesquisadores da área, diversos representantes de entidades profissionais e acadêmicas ligadas ao jornalismo manifestaram “apoio à proposta elaborada pela Comissão de Especialistas”. Entre essas entidades “destacamos a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), o Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (FNPJ) e a Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor)”. Também foi disponibilizado o correio eletrônico [email protected]. br para que outras contribuições pudessem ser enviadas à Comissão do CNE. Ainda segundo o relato da Comissão, “Diversos professores e coordenadores de cursos de Comunicação/Jornalismo participaram e encaminharam sugestões sobre diversos pontos específicos da proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais”. Mas destaca que duas instituições se manifestaram claramente “contrárias à proposta”. No relato, são identificadas como opositoras ao texto das novas diretrizes a Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós) e a Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (Enecos).

2. “Parecer Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Jornalismo – 23001-000087/2010-91”.

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1.2 Os posicionamentos de entidades representativas 3 Pelo tom divergente da proposta formulada pela comissão de especialistas, e pela representatividade que detêm junto à área de Comunicação, destacamos aqui os posicionamentos de duas entidades em torno da discussão. A Compós, ainda segundo o Parecer, via “com preocupação o estabelecimento de Diretrizes Curriculares Nacionais específicas para os Cursos de Jornalismo, separadas das Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Comunicação Social”. Em documento formal encaminhado ao CNE, a Compós diz-se preocupada com a atomização do campo comunicacional que a adoção das diretrizes propostas poderia vir a causar numa área que vem tentando se construir do ponto de vista acadêmico-científico e suas consequências para a formação do aluno de Comunicação e para o Jornalista, para a formação para a docência e para a pesquisa.

A Compós ainda afirma que a proposta da Comissão de Especialistas “deixa entrever uma perspectiva ‘separatista’ que em nenhum sentido contribui com a formação do jornalista ou com a consolidação da área no Brasil”, se traduzindo em uma visão fragmentada e limitada da formação jornalística. Estaria presa a um “pensamento tecnicista e disciplinar, enquanto no resto do mundo centros de pesquisa e pesquisadores tornam-se cada vez menos apegados a rótulos disciplinares e a objetos nitidamente recortados”. Para a COMPÓS, a relação entre Jornalismo, Comunicação e Ciências Sociais Aplicadas e o contexto contemporâneo prevê ou favorece o comunicador polivalente: tecnologias, ampliação dos mercados, relação entre desigualdade social e diversidade cultural, o que demandaria um jornalista com capacidade de olhar mais amplamente a sociedade.

Do mesmo modo, a Enecos se manifestou de forma contrária a existência de Diretrizes Curriculares Nacionais específicas para os Cursos de Jornalismo. O estabelecimento de tais Diretrizes daria início a um processo de “separação” das habilitações que hoje compõem a Comunicação Social e, como consequência, levaria à extinção da área. Em e-mail enviado ao CNE, a Enecos afirma que “o que está colocado para nós com a NDJ (Novas Diretrizes Curriculares para o Curso de Jornalismo) é a extinção da área de Comunicação Social como área de conhecimento”. A Enecos questiona também a forma pela qual o processo foi conduzido, uma vez que o mesmo não teria possibilitado a ampla participação dos interessados. Especificamente em relação às audiências públicas realizadas, para ausculta da sociedade, a Enecos afirma que “a constituição de três audiências públicas (Rio de Janeiro, São Paulo e Recife) para a formulação pública da proposta de NDJ (Novas Diretrizes Curriculares para o Curso de Jornalismo) não contempla nem 1% das escolas de comunicação existentes no Brasil”. E defende “que a proposta de Diretrizes Curriculares para o Jornalismo, neste momento, seja paralisada, ou seja, que não se aprove as NDJ e que se reabram audiências públicas e debates políticos em todos os estados do Brasil”. 3.  É interessante observar, nesse momento, os posicionamentos que pautaram as discussões durante o processo de elaboração da proposta das novas Diretrizes pela Comissão de Especialistas. Quando da discussão sobre a reforma curricular do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, poderemos ver as aproximações e distanciamentos dos participantes dos workshops em relação a essas ideias do debate nacional.

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1.3. O pensamento que embasou a resolução do MEC 4 O Parecer, que embasou a instituição da Resolução das novas Diretrizes, inicialmente situa o ponto de partida para o rumo das discussões. Como destacado, grande parte das críticas a atual proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para Jornalismo é, na verdade, uma crítica à existência de Diretrizes específicas para o Curso de Jornalismo. Então, a primeira questão a ser respondida seria: deveríamos ter Diretrizes Curriculares Nacionais específicas para Jornalismo? Caso a resposta seja afirmativa, a segunda questão seria: a proposta elaborada pela Comissão de Especialista é adequada?

Daí seguem suas argumentações. Uma primeira constatação, indicada pelo Parecer, é que a instituição de diretrizes específicas para o Jornalismo, além de orientar a formação do jornalista, ensejaria o estímulo para a criação de bacharelados específicos na área. E resume claramente as divergências percebidas frente à questão, estabelecendo uma dicotomia ante os posicionamentos. Para alguns a ênfase em questões e teorias gerais da Comunicação seria positiva para formação do jornalista. Ela proporcionaria aos futuros profissionais a necessária capacidade de “olhar mais amplamente a sociedade”, evitando assim uma formação estritamente “tecnicista”. Por outro lado, os que defendem o modelo de bacharelados específicos de Jornalismo alegam que o atual modelo reduz demasiadamente o espaço para discussões fundamentais à atividade do Jornalismo em troca de discussões de natureza mais abstratas sobre comunicação e o papel da mídia.

Ante a dicotomia, estabelece seu parâmetro de juízo pelo qual irá se pautar, na formulação do Parecer. Uma vez que a questão diz respeito à melhor maneira de formar um jornalista, parece razoável considerar que a posição que deva prevalecer é aquela de maior respaldo entre os que militam no Jornalismo e que, de algum modo, estejam pensando sobre a formação do profissional.

O problema é que o parâmetro soa distorcido quando não leva em consideração o teor da argumentação das entidades ‘não representativas da área’, mas simplesmente sua ‘aproximação’ ou não ao campo do Jornalismo. E o quê mediria essa distância? A princípio, depreende-se que pela presença ou não do nome ‘jornalismo’ em sua denominação. Nesse aspecto é importante destacar que as manifestações recebidas pela Comissão do CNE e provenientes de entidades profissionais e acadêmicas ligadas ao jornalismo (FENAJ, FNPJ e SBPJor), professores de jornalismo e jornalistas ou foram favoráveis a existência de Diretrizes Curriculares Nacionais específicas para o Curso de Graduação em Jornalismo ou se limitavam a discutir pontos específicos da proposta. O posicionamento contrário 4.  Importa nos determos, de forma mais acurada, no Parecer que deu sustentação à Resolução do MEC que instituiu as novas Diretrizes. É no Parecer que podemos divisar o posicionamento do MEC sobre os debates havidos no processo de elaboração, que fogem à frieza do texto da Resolução, embora o mesmo seja embasado no texto do Parecer.

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à definição de Diretrizes Curriculares Nacionais específicas para Jornalismo surgiu de associações ligadas à área geral de Comunicação Social, como são a Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (COMPÓS) e a Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (Enecos).

Um segundo, e último, argumento utilizado pelo Parecer do CNE, em prol das diretrizes específicas para o Jornalismo, aponta a ausência de ineditismo desse fato, uma feita que o Curso de Cinema e Audiovisual já teria se desmembrado da área geral de Comunicação Social, ao estabelecer diretrizes próprias em 2006. Argumento também falho por não alisar os desdobramentos que se seguiram ao estabelecimento dessas diretrizes específicas.

2. O QUÊ DIZEM AS NOVAS DIRETRIZES Foi a Resolução CNE nº 1, de 27 de setembro de 2013, que estabeleceu o texto das novas diretrizes curriculares nacionais para o curso de graduação em Jornalismo, na modalidade bacharelado. É no artigo 4º, do texto da Resolução, que podem ser percebidos os primeiros indicativos do direcionamento para a formação específica do jornalista. Quando, também, se sobressai a compreensão sobre a atuação profissional e o contexto de atuação. O artigo, em seus incisos, orienta a elaboração dos novos projetos pedagógicos do Curso de Jornalismo. Alguns desses incisos merecem destaque, pela relevância que assumem ao dar conta da especificidade da profissão. Por sua compreensão, o projeto pedagógico deve: II - enfatizar, em sua formação, o espírito empreendedor e o domínio científico, de forma que sejam capazes de produzir pesquisa, conceber, executar e avaliar projetos inovadores que respondam às exigências contemporâneas e ampliem a atuação profissional em novos campos, projetando a função social da profissão em contextos ainda não delineados no presente; III - orientar a formação teórica e técnica para as especificidades do jornalismo, com grande atenção à prática profissional, dentro de padrões internacionalmente reconhecidos, comprometidos com a liberdade de expressão, o direito à informação, a dignidade do exercício profissional e o interesse público; VI - ter como horizonte profissional o ambiente regido pela convergência tecnológica, em que o jornalismo impresso, embora conserve a sua importância no conjunto midiático, não seja a espinha dorsal do espaço de trabalho, nem dite as referências da profissão; VIII - atentar para a necessidade de preparar profissionais que possam exercer dignamente a atividade como autônomos em contexto econômico cuja oferta de emprego não cresce na mesma proporção que a oferta de mão-de-obra. O artigo 5º é representativo do tom ‘conciliador’ das novas Diretrizes, ao tentar estabelecer uma ponte entre o pensamento dos ‘generalistas’ e dos ‘especificistas’ quanto à formação profissional do jornalista. O concluinte do curso de Jornalismo deve estar apto para o desempenho profissional de jornalista, com formação acadêmica generalista, humanista, crítica, ética e reflexiva, capacitando-o, dessa forma, a atuar como produtor intelectual e agente da cidadania, capaz de

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responder, por um lado, à complexidade e ao pluralismo característicos da sociedade e da cultura contemporâneas, e, por outro, possuir os fundamentos teóricos e técnicos especializados, o que lhe proporcionará clareza e segurança para o exercício de sua função social específica, de identidade profissional singular e diferenciada em relação ao campo maior da comunicação social.

Esses princípios gerais e competências específicas estão sistematizados no estabelecimento dos eixos de formação, que delineiam o perfil do egresso. São seis eixos. I - Eixo de fundamentação humanística, cujo objetivo é capacitar o jornalista para exercer a sua função intelectual de produtor e difusor de informações e conhecimentos de interesse para a cidadania, privilegiando a realidade brasileira, como formação histórica, estrutura jurídica e instituições políticas contemporâneas; sua geografia humana e economia política; suas raízes étnicas, regiões ecológicas, cultura popular, crenças e tradições; arte, literatura, ciência, tecnologia, bem como os fatores essenciais para o fortalecimento da democracia, entre eles as relações internacionais, a diversidade cultural, os direitos individuais e coletivos; as políticas públicas, o desenvolvimento sustentável, as oportunidades de esportes, lazer e entretenimento e o acesso aos bens culturais da humanidade, sem se descuidar dos processos de globalização, regionalização e das singularidades locais, comunitárias e da vida cotidiana. II - Eixo de fundamentação específica, cuja função é proporcionar ao jornalista clareza conceitual e visão crítica sobre a especificidade de sua profissão, tais como: fundamentos históricos, taxonômicos, éticos, epistemológicos; ordenamento jurídico e deontológico; instituições, pensadores e obras canônicas; manifestações públicas, industriais e comunitárias; os instrumentos de autorregulação; observação crítica; análise comparada; revisão da pesquisa científica sobre os paradigmas hegemônicos e as tendências emergentes. III - Eixo de fundamentação contextual, que tem por escopo embasar o conhecimento das teorias da comunicação, informação e cibercultura, em suas dimensões filosóficas, políticas, psicológicas e socioculturais, o que deve incluir as rotinas de produção e os processos de recepção, bem como a regulamentação dos sistemas midiáticos, em função do mercado potencial, além dos princípios que regem as áreas conexas. IV - Eixo de formação profissional, que objetiva fundamentar o conhecimento teórico e prático, familiarizando os estudantes com os processos de gestão, produção, métodos e técnicas de apuração, redação e edição jornalística, possibilitando-lhes investigar os acontecimentos relatados pelas fontes, bem como capacitá-los a exercer a crítica e a prática redacional em língua portuguesa, de acordo com os gêneros e os formatos jornalísticos instituídos, as inovações tecnológicas, retóricas e argumentativas. V - Eixo de aplicação processual, cujo objetivo é o de fornecer ao jornalista ferramentas técnicas e metodológicas, de modo que possa efetuar coberturas em diferentes suportes: jornalismo impresso, radiojornalismo, telejornalismo, webjornalismo, assessorias de imprensa e outras demandas do mercado de trabalho. VI - Eixo de prática laboratorial, que tem por objetivo adquirir conhecimentos e desenvolver habilidades inerentes à profissão a partir da aplicação de informações e valores. Possui a função de integrar os demais eixos, alicerçado em projetos editoriais

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definidos e orientados a públicos reais, com publicação efetiva e periodicidade regular, tais como: jornal, revista e livro, jornal mural, radiojornal, telejornal, webjornal, agência de notícias, assessoria de imprensa, entre outros.

3. O QUÊ DIZEM OS INTERESSADOS PELAS DIRETRIZES 3.4. A ‘escuta’ realizada pelo Curso de Jornalismo da UFC Vencidos os primeiros momentos, de consultas, elaboração e aprovação, iniciou-se uma corrida dos cursos de graduação em Comunicação Social em estabelecer os processos de atualização das matrizes curriculares e dos projetos pedagógicos, referenciados às novas diretrizes. O Curso de Jornalismo da Universidade de Blumenau foi o primeiro curso no Brasil a ser implantado, em 2014, tendo sua proposta sido elaborada já a partir das novas diretrizes. No Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), o processo de atualização curricular não foi diferente. Tão logo a aprovação das Diretrizes se tornou ato oficial, foi estruturada uma Comissão, ainda em 2013, envolvendo seis professores e dois estudantes, para dar início às discussões sobre o processo de atualização da proposta do Curso. E, da mesma forma que a comissão nacional, a comissão local de implantação das novas diretrizes curriculares do Curso de Jornalismo da UFC estruturou um processo de ‘escuta’ dos diversos segmentos envolvidos e com interesses no processo. A estratégia de trabalho contemplou a realização de workshops, que tinham como orientação, para as discussões, a seguinte pergunta: quais as demandas atuais de formação para o profissional jornalista? De cada um dos workshops participaram representantes de segmentos perpassados pela atuação do jornalista: representante das empresas de comunicação, representante do professorado do Curso de Jornalismo da UFC, profissional com experiência na prática do mercado, profissional recentemente ingresso no mercado de trabalho e estudante concludente do Curso. Os representantes das empresas de comunicação e os profissionais convidados poderiam estar vinculados a movimentos sociais e sindicatos. Foram realizados cinco workshops, os quatro primeiros enfocando os suportes em que se trabalha o Jornalismo no Curso da UFC (jornalismo impresso, telejornalismo, radiojornalismo e jornalismo na internet) e o quinto abarcando os espaços de trabalho transversais, representados pelos processos envolvendo assessoria de comunicação, trabalhos desenvolvidos no chamado terceiro setor e empreendedorismo, dentre outros. Em cada um dos workshops, cada representante falava por 20 minutos, sendo que as falas eram complementadas por discussões com o público em torno de 60 minutos. Os áudios dos workshops foram registrados e transcritos. É a partir desses registros que abrimos a possibilidade de uma discussão que estabelece uma relação entre os discursos institucionais que estão por trás da implantação das novas diretrizes curriculares do Jornalismo. Ao mesmo tempo, outra possibilidade que se estabeleceu foi o contraponto entre os discursos institucionais e profissionais ligados à prática jornalística. O quê nos dizem esses discursos? Como esses discursos percebem as transformações que ocorrem no Jornalismo? E como essas transformações, a partir desses discursos, podem repercutir na formação do profissional jornalista?

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Pela extensão dos debates que ocorreram, e de nosso espaço nesse artigo, vamos nos deter aqui sobre as percepções das demandas de formação em torno do radiojornalismo. O workshop foi realizado no dia 4 de abril de 2014. Participaram um professor da área de rádio do Curso de Jornalismo da UFC; o coordenador de jornalismo de uma rádio de Fortaleza, uma repórter de outra rádio de Fortaleza, dedicada ao Jornalismo; e de uma graduanda do Curso de Jornalismo da UFC, mas já com atuação em rádio.

3.5. A percepção das demandas de formação a partir do radiojornalismo 3.5.1. Os princípios da formação – o vai e vem da especificidade e da abrangência Uma compreensão inicial, em relação aos participantes do workshop, foi em torno da importância da Universidade no processo de formação do profissional que vai atuar no radiojornalismo. A estudante de graduação em Jornalismo tem questionamentos sobre isso, ao afirmar que “a graduação ela tem a obrigação de dar um algo a mais pra gente”. Mas, ao mesmo tempo se pergunta “que algo a mais é esse? E onde é que a gente encontra isso, entendeu?! Em que cadeiras, em que experiências que a Universidade oferece isso pra gente que faz a gente deixar de ser um radialista pra ser um jornalista, enfim”. Ela arrisca uma resposta, ao considerar uma experiência de extensão que realizou numa das disciplinas da matriz curricular. O trabalho foi de acompanhamento de uma rádio escolar, com estudantes da educação básica da rede pública de Fortaleza, que aderiu ao Programa Mais Educação –o Programa repassa às escolas um kit de equipamentos que possibilita a montagem de uma rádio escolar. Durante a iniciativa, “a gente foi lá compartilhar um conhecimento que nem a gente sabia que a gente tinha. É incrível perceber que é ensinando que se aprende mesmo. E foi muito bom, sabe?! Foi muito bom mesmo”. O professor do Curso de Jornalismo relembra que, à época de seu curso de graduação, não havia uma infraestrutura laboratorial que desse conta das atividades práticas. Então, o que aprendeu? (...) o que eu aprendi foi o que eu considero a coisa mais importante dentro da Universidade, que é o exercício do pensar. Que é esse esforço que eu falei aqui de pensar em transformação, de compartilhar o saber, ter uma visão crítica do mundo, isso aí é o essencial e, pra mim, foi o ponto básico. Eu acho que o ensino da Universidade todo precisa dar essa dimensão. Pra gente não ficar só reproduzindo coisas sem o devido cuidado do pensar.

Essa formação, de caráter mais amplo, possibilitaria que o jornalista de rádio buscasse constantemente o saber, compartilhasse esse saber e tivesse compromisso verdadeiro com as transformações, ainda segundo o professor. Uma visão bem próxima das novas diretrizes curriculares do jornalismo (NDCJ) quando estabelece que um dos eixos de formação profissional deva ser o eixo de fundamentação específica, de caráter mais abrangente sobre a compreensão e clareza do seu papel no exercício da profissão. Mas, se deve haver abertura para a formação mais ampla, as questões de formação específica também estão no centro das preocupações dos participantes do workshop. E essa preocupação parte das próprias especificidades do rádio, como lembra o coordenador de jornalismo da rádio.

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A linguagem do rádio sempre, sempre, sempre vai ser coloquial, objetiva, clara, concisa. São três, quatro, cinco linhas no máximo e seguida de uma sonora. Então quanto mais você tem sonora, mais você qualifica a informação que você tá tendo e reitera aquilo que o entrevistado vai falar. É assim que você consegue, cada vez mais, ter a sintonia do público.

Se as características da linguagem radiofônica puxam para a especificidade da formação, ao considerarmos o processo de produção do radiojornalismo essa especificidade sofre outra inflexão, e mais uma vez tende à formação abrangente. O coordenador de jornalismo constata a inexperiência dos que chegam para estagiar na empresa de comunicação. O diferencial seria a ideia de produção. “(...) não é só você saber escrever a matéria, é você saber produzir. Se um jornalista ou a pessoa que estiver terminando o curso de jornalismo chegar à redação e perguntar pro editor ou pra mim ‘Eu vou fazer o quê?’, é complicado. É muito complicado”. A repórter de rádio recém-graduada estabelece essa aparente contradição ao dizer que no “radiojornalismo, não existe um produtor que vá fazer uma pautinha toda bonitinha pra você. Então o repórter sai, faz a reportagem, volta, edita, monta a matéria, grava o off e pronto. Aí você vê seu trabalho todo completinho do jeito que você quer”. Mas isso tem um custo, que é a desenvoltura que o profissional jornalista deve ter em torno dos processos de edição. Nisso, as estratégias da formação na graduação ainda são falhas, o que as NDCJ buscam equacional com o eixo de formação profissional. (...) essa questão da edição, por exemplo, aqui no curso eu tive muito pouco o ensino de edição. Tanto que eu lembro claramente que eu tinha medo, na época em que fiz a disciplina de radiojornalismo, quando o professor passava um trabalho de rádio jornal eu dizia que ia fazer a reportagem e deixava a edição pro resto da equipe porque não fazia a menor ideia de como fazia a edição da matéria.

Da visão abrangente novamente para as demandas específicas. Ao mesmo tempo em que requer uma formação técnica ampla, os participantes do workshop chamam atenção para a necessidade da especialização do jornalista em rádio, percepção que está para além dos meios ou suportes de produção. Como atesta o professor do Curso de Jornalismo. “Por que o jornalista não pode associar a sua formação em jornalismo com um conhecimento de uma determinada área? Então, você quer ser um jornalista com um domínio maior da área da saúde? Por que não?”. É nesse ponto que poderia ocorrer uma diferenciação entre a formação para o jornalismo impresso e a formação para o jornalista com atuação em rádio. Essa diferenciação seria necessária a partir da prática do jornalismo, como levanta a jornalista de rádio. Essa questão do jornalista faz tudo, de jornalista saber de tudo. Assim, você hoje está falando de política, amanhã de economia, depois sobre alguma coisa de saúde, então fica realmente complicado pra gente ser especialista em tudo. Principalmente pra gente do rádio que não tem essa divisão como se tem no jornal impresso. O jornal tem suas editorias e, querendo ou não, muita gente vai parar numa editoria de política, por exemplo, sem ter sido essa a sua intenção. Mas como o repórter tá lá vivenciando política diariamente, ele vai acabar se

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especializando naquilo. No rádio a gente não tem isso. (...) Então, eu senti falta de ter uma maior explicação sobre como os outros cursos podem ajudar a gente, já que o estudante tem uma gama de disciplinas optativas pra cursar. Eu acho que deveria ter maior orientação quanto a isso.

3.5.2. As transformações no jornalismo e os reflexos na formação do radiojornalista O jornalismo passa por transformações. Talvez essa percepção não tenha passado despercebida pelas NDCJ, ao proporem o eixo de formação contextual presumivelmente para dar conta de uma análise crítica dessas transformações. Mas o conhecimento desses processos é apenas o fio da meada, que vai passar, necessariamente, pelas alterações dos processos de produção da prática jornalística. E isso também afeta o radiojornalismo. “Nós não podemos mais fazer o rádio como nós fazíamos há 30 ou 20 anos. Quer dizer, o rádio tem uma permanência e, ao mesmo tempo tem um conjunto de transformações”, coo afirma o professor do Curso de Jornalismo. Uma dessas transformações seria na velocidade de produção e consumo da informação. “Quinze minutos depois aquela matéria não interessa mais. O que interessa é o desdobramento dela, a partir de então”, como exemplifica o coordenador de jornalismo da rádio. Um dos fatores que predispõem essas transformações é a tecnologia. E a inserção tecnológica no rádio, num aspecto mais amplo, e na produção do radiojornalismo, de forma mais específica, tem trazido outras demandas de formação para o profissional do meio, como constata o professor. Outra coisa importante hoje seria o conhecimento das práticas e técnicas de gravação e edição digitais. Isso é imprescindível, não dá mais pra você ficar esperando o operador. Você tem que ter o domínio disso tudo. Hoje você compra um aparelho desses (aponta para um celular) por 400 reais e ele tem tudo o que você precisa pra gravar e editar um áudio, ele tem toda a estrutura técnica. Depois eu acho que agente precisaria ousar mais, ou seja, pesquisar mais, insistir mais no novo. Por que é na Universidade que se tem esse compromisso, essa obrigação mais imediata de buscar novas perspectivas para a estética radiofônica.

A mesma visão é compartilhada pelo mercado, a partir da fala do coordenador de jornalismo. “Porque hoje todo mundo usa o podcast, (...) a professora Cida [refere-se à mediadora do workshop] acabar de dar uma entrevista de 30 ou 40 minutos e daqui a uma ou duas horas, no máximo já está no site”. E quando se avalia a inserção tecnológica nos outros meios, sobressai a perspectiva da convergência midiática, o que repercute está para além do radiojornalismo, mas também se vincula a ele, como atesta o professor participante do workshop, indo ao encontro das preocupações das NDCJ ao destacarem a importância de uma eixo de formação em prática laboratorial. (...) nós estamos falando de radio, de radiojornalismo, mas se a gente for ver como é que se comporta hoje o conjunto das mídias, todas elas articuladas, na prática não há uma distância assim tão grande entre o jornalismo impresso, o rádio, a televisão, etc. É claro que cada mídia tem suas especificidades, mas, quando vai pra internet, vai tudo. (...) Então, em suma, a gente teria que rever essa forma com a qual a gente tá trabalhando.

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Mas uma formação que dê conta do processo de transformações tecnológicas por que vem passando o radiojornalismo também expõe uma das mazelas da realidade universitária, notadamente das instituições públicas, relacionada à deficiência de atualização tecnológica. E essa deficiência é sentida principalmente pelos estudantes, que se veem entre essa realidade a as exigências do mercado de trabalho. Discussão que traz reflexos no processo de reforma curricular, a partir das novas diretrizes. A estudante graduanda chama atenção para essa situação. (...) do quê que adianta a reforma curricular, com uma grade incrível, se o nosso curso não oferece a estrutura que vai absorver essa grade curricular e fazer a nossa formação ser completa? (...) Mas, no rádio, por mais que em tese seja mais fácil, porque é só gravar ali o áudio com o celular e a edição é bem mais fácil, mas é aquilo que eu tava falando: ninguém tem o costume de fazer os áudios e publicar. Não é um costume nosso. Então a gente não faz. Não existe um estimulo natural pra isso, porque não é uma coisa da nossa geração, e ainda não existe o estímulo técnico da Universidade.

O ambiente deficitário em tecnologia também alcança os processos mais amplos de formação. E revela outras necessidades, até mesmo em relação às estratégias pedagógicas, como destaca a recém-graduanda, ao referir-se novamente à necessidade de conteúdos formativos em edição no jornalismo. Eu acho que deveria haver um laboratório que possibilitasse que os alunos fizessem todas as etapas do trabalho na própria faculdade e não em casa. Porque quando o professor passa um trabalho e diz: ‘Faça em casa e volte com ele pronto’, fica essa coisa de gente que tem medo de editar matéria porque não sabe acabar passando essa trabalho pro colega que sabe. Isso é um pouco complicado e eu vejo que poderia ser resolvido se a gente tivesse um local onde todo o processo de produção fosse feito na própria faculdade.

Mesmo com toda a preocupação com a inserção tecnológica e as demandas de formação daí resultantes, ainda há preocupação com a formação mais teórica dos futuros profissionais de rádio. É a graduanda em jornalismo que chama atenção, quando observa que a estrutura curricular da graduação ainda “peca por falta de um plano de aula um pouco mais teórico, porque a gente vai chegar ao mercado qualquer hora e vai ter a oportunidade da prática, mas a teoria é aqui! Então, se não for aqui, meu filho, vai ser onde?”.

4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DERRADEIRAS As novas diretrizes curriculares do curso de jornalismo parecem, de certa maneira, estar em sintonia com as demandas de formação do profissional jornalista que atua no setor do radiojornalismo –seu caráter amplo orienta para isso. A reflexão sobre as técnicas de produção envolvidas, em sua dinâmica processual, também pode ser realizada a partir das novas diretrizes. No entanto, e os depoimentos aqui colocados atestam isso, são os elementos vinculados às estratégias pedagógicas que parecem sugerir um diferencial na efetividade da aproximação entre demandas e processos de formação. Ao mesmo tempo, sugere-se que as especificidades do suporte começam a sofrer a influência mais decisiva dos aspectos da convergência midiática, resultantes da inserção

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tecnológica nos procedimentos de produção. Em relação a isso, caberia indagar como vão se comportar as novas diretrizes curriculares pensadas para os cursos de Rádio, TV e Internet, já em gestação? Haveria especificidades suficientes que condicionassem esse detalhamento? Ou seria um contrassenso se investir em especificidades vinculadas ao suporte quando a realidade aponta para uma convergência de produção do jornalismo? Um debate que, certamente, passa por aspectos mais intangíveis, de difícil mensuração, mas que aproxima aqueles que fazem jornalismo no rádio. Como sugere nossa estudante graduanda. (...) a nossa geração é muito mais do audiovisual. A gente tem o costume de produzir um vídeozinho e postar lá no Youtube, mas é difícil a gente produzir um áudio e colocar num Soundcloud. (...) A gente se pauta muito pela imagem. Então, talvez não exista de cara o interesse da gente de querer trabalhar com o rádio. Mas, depois que a gente faz qualquer coisa, qualquer experiência, até na faculdade com as cadeiras de rádio, a gente já se encanta.

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O futuro hoje: a formação em Radiojornalismo na era da convergência dos media L o u r i va l

da

C r u z G a lvã o J ú n i o r 1

Resumo: Este trabalho surge da emergência de um novo pensar sobre como os alunos são preparados para assumir a função de jornalistas em emissoras de rádio que também estão na internet. O objetivo foi analisar a ocorrência, no processo de formação acadêmica, de ações vinculando os conteúdos teórico/práticos à Convergência dos Media. O distanciamento entre a formação e a realidade e a falta de atividades relacionando Convergência e Radiojornalismo surgiram como hipótese. A metodologia baseou-se em estudo de caso que teve como recorte às disciplinas “Radiojornalismo” e “Projetos em Rádio” que são ministradas no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (CJE - ECA/USP). O estudo detectou que a Convergência dos Media não está integrada às ações teórico/práticas, mas ficou evidente a ocorrência das convergências tecnológicas e de conteúdos. Concluise que há uma aproximação parcial da realidade na qual o Radiojornalismo é inserido. De outro lado, a falta de propostas relativas à Convergência dos Media mostrou-se desfavorável à formação por não possibilitar, aos estudantes, conhecimento pleno desse fenômeno que ocorre no ambiente digital.

Palavras-Chave: Formação Acadêmica. Radiojornalismo. Convergência dos Media. Tecnologias Digitais

Abstract: This work stems from the emergence of a new thinking about how students are prepared to take on the task of journalists in radio stations that are also on the internet. The objective was to analyze the occurrence, in the process of academic education, stock linking theoretical/practical content to the Convergence of Media. The gap between the training and the reality and the lack of activities relating Convergence and Radiojournalism emerged as hypothesis. The methodology was based on case study was to cut the disciplines “Radiojornalismo” and “Projetos em Rádio” that are taught in the Department of Journalism and Publishing at the School of Communications and Arts of the University of São Paulo (CJE - ECA/USP ). The study found that the Convergence of Media is not integrated with the theoretical actions/practices, but it was evident the occurrence of technological convergence and content. We conclude that there is a partial approximation of reality in which the Radiojournalism is inserted. On the other hand, the lack of proposals on the Convergence of 1.  Doutorando em Ciências da Comunicação – Interfaces Sociais da Comunicação – pelo Programa de Pósgraduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Brasil. É também professor de Radiojornalismo do Departamento de Comunicação Social da Universidade de Taubaté (UNITAU), Brasil.

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O futuro hoje: a formação em Radiojornalismo na era da convergência dos media Lourival da Cruz Galvão Júnior

Media proved to be unfavorable to the formation by not providing to students, knowledge of this phenomenon occurring in the digital environment.

Keywords: Education. Radiojournalism. Convergence of Media. Digital Technologies

A

S TRANSFORMAÇÕES em vigência na contemporaneidade indicam o estabe-

lecimento de valores globalizados, próximos à homogeneização. Não se deve descartar, todavia, as identidades que definem cada área de atuação, independentemente dos contextos nos quais os segmentos estão inseridos. Essa perspectiva, extensiva à formação de estudantes que serão jornalistas em rádios que convergem com outros media no ambiente digital não deve desprezar as oportunidades de reconfiguração dos procedimentos educacionais vigentes sem que, para tanto, seja preciso afastar-se de princípios elementares à Educação, como a promoção da cidadania e a qualificação ética para o trabalho. Quando o assunto é a formação em jornalismo no rádio2, doravante Radiojornalismo, nota-se uma escassez de ações que tratam da formação acadêmica na área. No contexto das tecnologias digitais e da Convergência dos Media, no qual o fazer jornalístico na rádio sofre uma reconfiguração abrangente, a formação acadêmica mantém a missão de capacitar profissionais críticos, socialmente comprometidos e preparados para atuar em medias que passam por transformações profundas, contínuas e sem volta. No Radiojornalismo, o preparo de profissionais aptos a encarar os desafios atuais e futuros exige, dos docentes, constante reavaliação dos conteúdos ministrados em salas de aula e laboratórios, sem que se descaracterizem conceitos e fundamentos que consolidam esse segmento comunicacional. Ao considerar a afirmação de Cury e Barbosa (2012: 82) de que “o futuro do jornalismo passa menos pela mídia que vai publicar o acontecimento e mais pela formação de profissionais, especialmente na universidade, para que estes aprendam as novas linguagens e saibam produzir notícias para a chamada era digital”, analisa-se, a seguir, se ações teórico/práticos relacionam a Convergência dos Media aos conteúdos das disciplinas Radiojornalismo e Projetos em Rádio que são ministradas no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (CJE - ECA/USP)3.

A RÁDIO NA ERA DA CONVERGÊNCIA DOS MEDIA Os Media estão à mercê da revolução desencadeada pela internet. Rádio e televisão, assim como jornais e revistas, perderam a hegemonia por causa da concorrência de novos artefatos que, gradativamente, tornam-se acessíveis a diversos segmentos sociais. As tecnologias, agora digitais, estão nas mãos de indivíduos ativos que manipulam não apenas aquilo que querem ouvir ou ver, mas tudo que desejam ampliar, repercutir, 2.  Neste trabalho, a palavra rádio surge como a rádio e o rádio. Essa distinção observa as considerações de Meditsch (2001, p. 25) que indicou, no Brasil, o uso do termo o rádio para designar os aparelhos de recepção e o meio de comunicação de massa, enquanto a rádio referia-se à emissora ou à empresa de radiodifusão. 3.  O critério de validação da amostra observou o fato de que a Instituição escolhida mantém posição internacional de destaque: a USP é a segunda principal Instituição de Ensino Superior da América Latina, de acordo com dados de 2014 da QS (Quacquarelli Symonds University Rankings). Recuperado em 7 de julho de 2014, em: http://www.topuniversities.com/latin-american-rankings

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produzir e interagir na Web. Os media migram para o ambiente digital e produzem uma infinidade de novas mensagens, nos mais diversos formatos e linguagens presentes em suportes tecnológicos que deslocam sons, imagens e textos para um mesmo entorno virtual, onde ocorre o que Henry Jenkins (2006) denominou de convergência dos meios de comunicação ou convergência dos media. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam estar falando. [...] No mundo da convergência dos media, toda história importante é contada, toda marca é vendida e todo consumidor é cortejado por múltiplos suportes de media (JENKINS, 2006, p. 27).

A Convergência dos media é apenas uma das tipificações atribuídas ao fenômeno relacionado ao ato ou efeito de convergir, verbo que tem na raiz etimológica o conceito de tender algo ou alguma coisa a um mesmo ponto. Mas a convergência vai além dessa compreensão, assim como a junção das palavras Convergência e Media que representam um segmento autônomo de características particulares que também sofre transformações contínuas. Nos anos 1970, o termo Convergência das Media referia-se à aproximação entre os setores de computação e de telecomunicações. A partir de 1990, a intensificação da transposição do analógico para o digital, seguida da digitalização das formas de produção, de distribuição e de consumo dos serviços de comunicações fez com que Convergência indicasse um fenômeno de aproximação e integração entre setores mediáticos, de telecomunicações e de informática. Na última década surgiram várias tipificações4, sendo que a Convergência Tecnológica destacou-se por estabelecer uma nova relação entre aparatos que antes operavam de forma separada, como o telefone, a rádio e a televisão. A convergência tecnológica decorre de empresas de telecomunicações, de produtores de dispositivos de informática e de desenvolvedores de aplicativos digitais (Salaverría, 2010: 33). Possibilidades tecnológicas se converteram em demandas de serviços que os media estão obrigados a satisfazer. No jornalismo, esse modelo reconfigurou as rotinas internas das redações a partir do final dos anos 1980, estimulando a inclusão de novas ferramentas de produção e a digitalização. A convergência empresarial é outra tipificação relacionada às empresas de comunicação que reconfiguram estruturas e processos de produção para responder às imposições de um mercado que, devido à internet, passou a seguir regras administrativas e comerciais diferentes das anteriores. O fator econômico liga-se ainda a Convergência Profissional ou Jornalística, que modificou o perfil daqueles que exercem a função. As novas tecnologias, que permitem o manejo de diversas ferramentas e o acesso a multiplataformas, demandam novas aptidões dos profissionais, hoje inseridos em uma forma de organização laboral diferenciada. Exige-se a polivalência – palavra que representa uma parcela do motivo da degradação da profissão (Salaverría, 2010: 36). 4.  Neste trabalho priorizam-se as tipificações apresentadas pelo pesquisador espanhol Ramón Salaverría Aliaga (2010, 2008), diretor do Departamento de Proyectos Periodísticos (DPP) da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra, Espanha. Salaverría é especialista em mídias digitais e autor de estudos que relacionam convergência e jornalismo.

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Outra tipificação refere-se à Convergência dos Conteúdos ou Comunicacional, gerada por mudanças deflagradas por causa dos aparatos tecnológicos, dos processos logísticos e do perfil dos profissionais. Salaverría (2010: 38) chama essas condições de multimidialidade, fenômeno que não é exclusivo dos media no ciberespaço e que afeta os media tradicionais, uma vez que condiciona linguagens distintas e específicas a um processo de fusão de conteúdos textuais e/ou audiovisuais. Tais tipificações são corroboradas por Carlos Alberto Scolari (2011) que, em entrevista à revista MATRIZes5 cita o trabalho do colega espanhol ao ser questionado sobre as transformações culturais que poderiam ser indicadas no atual quadro de convergência configurado a partir do pensamento de Henry Jenkins. Além de indicar que cada tipificação “inclui uma série de tendências e processos, como a fusão de empresas, a união de redações digitais e analógicas ou a aparição de perfis profissionais híbridos como o jornalista multimídia ou multiplataforma”, o autor menciona a existência de uma Convergência Semiótica “onde as diferentes linguagens e sistemas de significação se cruzam e se contaminam entre si – e de uma convergência narrativa na qual os relatos saltam de um meio a outro” (op. cit.: 133). Scolari ressalta o conceito de Jenkins que inclui as Narrativas Transmediáticas ou Transmedia Storytelling, relativas a experiências comunicacionais expressivas e amplificadas em diversos meios físicos ou plataformas tradicionais, como a televisão e os meios impressos, ou digitais, como o computador e os aparelhos de telefonia móvel (Idem, Ibidem). Hoje, o rádio enquadra-se às várias tipificações convergentes. O media está presente em aparatos tecnológicos renovados continuamente, como os telefones móveis que oferecem gratuitamente, na grande maioria dos modelos, um dispositivo que dá acesso ao áudio emitido em tempo real pelas rádios locais. Há nesses suportes a ligação à internet e acesso aos sites das estações convencionais. Além do áudio emitido em formato digital via streaming6, as emissoras oferecem na internet uma gama de informações sonoras, visuais e textuais, dentre outros atrativos que cativam as audiências. Uma novidade são as Webradios que, ao contrário das emissoras convencionais, existem apenas na internet, não estão sujeitas às limitações e controles das concessões públicas e atendem às mais diversas localidades, tendências, gostos e públicos. O acesso se dá por uma URL, endereço virtual que indica a hospedagem em um endereço da Web pelo qual é possível chegar a uma homepage onde “aparecem o nome da emissora, geralmente um slogan que resume o tipo de programação e vários hiperlinks para os outros sites que abrigam as diversas atividades desenvolvidas pela rádio” (Prata, 2009: 59). É comum encontrar nas Webradios serviços de busca, chats, podcasts7, fóruns de discussão, infografias, fotos, textos e vídeos, entre conteúdos e dispositivos virtuais que atuam de forma acessória ou complementar à mensagem sonora, ainda escopo principal da radiodifusão. 5.  Entrevista dada em dezembro de 2010 a profa. Dra. Maria Cristina Mungioli, da ECA/USP, publicada na edição nº 2, jan./jun. 2011, pp. 127-136. Nascido na Argentina, Scolari é professor do Departamento de Comunicação da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, Espanha. Autor de diversas obras referentes às mídias digitais, ele mantém na internet Hipermidiaciones – conversaciones sobre la comunicacíon digital interactiva. Recuperado em 15 de novembro de 2014, em: http://hipermediaciones.com 6.  Forma de transmissão de áudio e vídeo na Web que não exige downloads dos conteúdos/programas. 7.  Acrônimo criado pela união do sufixo Pod (do tocador de MP3 da empresa norte-americana Apple, de nome comercial iPod) com a palavra broadcasting (transmissão). Consiste em áudios gravados em formatos como o MP3 que são disponibilizados para audição ou download na Web. O podcasting indica o conjunto relativo ao processo, enquanto o podcast designa os conteúdos oferecidos e recebidos (Herreros, 2008: 198-199).

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Devido ao novo contexto convergente, o rádio experimenta uma polifonia8 comunicacional desencadeada no ciberespaço, onde o mundo real migra para esferas de interações virtuais imediatas que permitem a combinação de diversos formatos, conteúdos e linguagens. É uma ambiência de dimensões imensuráveis no qual o tempo e o espaço estabelecem uma realidade social de caráter virtual remodelada a cada novo momento – não se opondo àquilo que é real, mas oferecendo novos contornos ao que é atual. “O virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que se chama um processo de resolução: a atualização” (Lévy, 1996: 16). Há no ciberespaço uma efetiva soma de outras vozes que são reverberadas pelas ondas hertzianas9 e também nos cabos de fibra ótica e em outros condutores que permitem a interconexão à internet. Prata (2009) diz que a década de 1990 foi crucial para o rádio por causa da popularização e posterior massificação da internet, que passou a atender vários segmentos sociais. Hoje, o exponencial aumento no acesso à rede mundial de computadores levou o rádio e demais media a consolidarem-se no ambiente digital. Segundo relatório Mensuração da Sociedade da Informação, divulgado em 2013 pela UIT10, a estimativa é de que 40% da população mundial teria, até o fim daquele ano, acesso online à internet. O dado revela a banda larga móvel mais acessível do que a banda larga fixa, o que significa mais notebooks, tablets e telefones móveis conectados à internet. O número de assinaturas de banda larga móvel alcançou 2,3 bilhões, com 55% delas em países em desenvolvimento. As estimativas eram de que, globalmente, a penetração da banda larga móvel será de 32% até o final 2014 – quase o dobro da taxa de do registrado três anos antes. A telefonia móvel se tornou a responsável por promover o acesso a Web. De acordo com o relatório, o planeta registrou até o final de 2013 a marca de 6,8 bilhões de assinaturas nesse segmento, sendo que desse total 2,7 bilhões teriam possibilidade de acessar a internet. O número de telemóveis no mundo está próximo de alcançar a população da Terra. Dentre os usuários, o relatório revela que 30% dos jovens no mundo são considerados nativos digitais. Em 2012 havia cerca de 363 milhões de indivíduos que se encaixavam nesse perfil, o que representava 5,2% da população mundial estimada em 7 bilhões de habitantes. O relatório da UIT informou que os jovens com idades entre 15 a 24 anos têm cinco ou mais anos de experiência online (op. cit.: 20). Eles fazem parte de uma geração que nasceu em meio à vasta disponibilidade de informações rápidas e acessíveis obtidas na Web a partir das novas tecnologias digitais. Ao convergir com outras expressividades comunicacionais na internet, o rádio é desafiado a rever suas rotinas. Observa-se, nas ações jornalísticas empreendidas por inúmeras emissoras no Brasil e no exterior, que a procura por uma reconfiguração 8.  Conceito formulado pelo pensador russo Mikhail Bakhtin que, ao criticar o objetivismo abstrato que via a língua como um sistema monológico, salientou que a palavra é polivalente e o dialogismo configura-se como uma condição constitutiva do sujeito, que não pode ser concebido fora das relações que o ligam aos outros indivíduos (BAKHTIN, 1988). 9.  Adota-se este termo em referência a Heinrich Hertz (1857-1894), que “construiu um aparelho com o qual confirmou a existência das ondas eletromagnéticas” (COSTELLA, 1994, p. 149). Pelas ondas hertzianas foi possível transmitir, inicialmente, o código Morse e, posteriormente, o som. 10.  Agência especializada em Tecnologias de Informação e Comunicação, vinculada à Organização das Nações Unidas – ONU (Em Inglês, International Telecommunication Union – ITU). Recuperado em 10 de maio de 2014, em: http://www.itu.int/en/Pages/default.aspx

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ocorre de maneira gradativa, uma vez que é possível dispor, no ambiente virtual, de acesso em tempo real a um número incalculável de fontes, agências de notícias, portais e outros meios online (Del Bianco, 2004: 2). As transformações são mais significativas e revelam um Radiojornalismo que procura firmar-se na internet. Fazem parte dessas mudanças à ampliação do processo de interação com os ouvintes por intermédio das redes sociais e o oferecimento de conteúdos sonoros exclusivos que convergem com outras expressividades na Web.

FORMAÇÃO EM RADIOJORNALISMO: O CASO BRASILEIRO A Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) foi criada como o nome de Escola de Comunicações Culturais por um decreto assinado pelo Governo do Estado de São Paulo em 15 de junho de 1966. O nome atual foi atribuído em 1970 na reforma do ensino na USP, momento em que a escola ampliou o número de cursos e acrescentou Editoração, Música e Artes Plásticas. A ECA/USP foi pioneira, no Brasil, no ensino de Pós-Graduação, iniciando em 1972 um curso de mestrado em Ciências da Comunicação (Marques de Melo, 1974: 60-61). Em 2014, a ECA/USP ofereceu 24 cursos de graduação11, sendo que Jornalismo dispôs de 87 disciplinas divididas em obrigatórias e optativas livres12. O curso intercala conteúdos teóricos e práticos nesses segmentos. O conteúdo é ministrado em, no mínimo, oito semestres e, no máximo, 12 semestres, com carga horária de 4.590 horas. O CJE oferece 60 vagas para o curso de Jornalismo, sendo 30 para o período matutino e outras 30 para o noturno. As disciplinas destinadas ao rádio são obrigatórias, semestrais e totalizam 420 horas na grade curricular do CJE. Apesar de distintas, as áreas têm destinações comuns e indicam um desenvolvimento gradativo dos conteúdos. A primeira delas, Jornalismo no Rádio e na TV (CJE 0600) é introdutória e oferecida aos alunos do 1º período pelo Prof. Dr. Luiz Fernando Santoro13. Outras duas disciplinas, Radiojornalismo (CJE 0603) e Projetos em Rádio (CJE 0532) são ministradas sequencialmente pelo Prof. Dr. Luciano Victor Barros Maluly14 a partir do 5º semestre. As atividades teórico/práticas ocorrem em salas de aula com estrutura multimedia e nos laboratórios de informática e de rádio, sendo este último dotado de infraestrutura para elaboração e apresentação de programas e outras atividades jornalísticas, como entrevistas e debates. O plano de estudos de Radiojornalismo propõe o estudo e a avaliação das manifestações jornalísticas no 11.  Números relativos às licenciaturas, bacharelados e habilitações. Os cursos são nas áreas de Artes Cênicas (4 bacharelados, 2 habilitações 1 ciclo básico e 1 licenciatura), Biblioteconomia, Comunicação Social (4 habilitações: Editoração, Jornalismo, Publicidade e Propaganda e relações Públicas), Áudio Visual, Educação Artística (2 licenciaturas), Educomunicação, Música (4 bacharelados) e Turismo. Recuperado em 3 de novembro de 2014, em: http://www3.eca.usp.br/graduacao/cursos 12.  As informações estão disponíveis para consulta pública no site ECA/USP. Os dados sobre o número de disciplinas foram atualizados em 2011, enquanto o de professores e de servidores foram atualizados em 2010. Recuperado em 4 de dezembro de 2014, em: http://www3.eca.usp.br 13.  Graduado em Comunicação (Rádio e TV) pela Escola de Comunicação e Artes da USP (1977), Mestre em Artes Contemporâneas pela Université de Provence, França (1979) e Doutor em Ciência da Comunicação pela USP (1988). Recuperado em 5 de março de 2014, em: http://lattes.cnpq.br/5338933760422537 14.  Graduado em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina (1995), Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (1998) e Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2002),com Pós-doutorado na Universidade do Minho/Portugal (2011). Recuperado em 5 de março de 2014, em: http://lattes.cnpq.br/8327819994771588

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rádio no sentido de permitir o conhecimento e o emprego das técnicas de elaboração dos programas radiojornalísticos, com destaque para o Radiojornal. O processo disponibiliza conhecimentos sobre as potencialidades do rádio e alia o estudo crítico do jornalismo na atualidade. O plano ainda aborda questões sobre o conteúdo programático, linguagens oral e radiofônica e as conformações noticiosas do rádio, indo da relação com as fontes, passando pelas regras redacionais e de emissão sonora e chegando a expressão de opiniões, com a realização de entrevistas e debates. Há maior dosagem entre o conteúdo teórico e prático que, além da produção e da apresentação dos programas radiojornalísticos, avalia a elaboração de uma monografia relacionada à pesquisa em emissoras, dentre outras estratégias. A disciplina Projetos em Rádio, aplicada concomitantemente a Radiojornalismo, tem, em seu plano de estudos, uma proposta prática ao indicar a produção de programas com diferentes formatos jornalísticos na rádio. A intenção é viabilizar maior conhecimento e domínio das especificidades da rádio como meio difusor de notícias. Luciano Maluly15, docente das duas últimas disciplinas, relata que a primeira relaciona-se à descoberta do rádio no campo teórico e prático que ocorre nas experimentações que envolvem a produção sonora, com embasamento no referencial teórico. Radiojornalismo expõe-se como conceitual e de base, voltada à análise e aplicação prática de questões relacionadas a aspectos sobre a estrutura, o funcionamento e os estilos relativos ao Rádio e ao Jornalismo. Para o professor, nessa disciplina “os alunos já produzem programas, mas básicos, como o radiojornal, que tem uma estrutura baseada naquilo que já existe [no mercado]”. Já a segunda disciplina sob a responsabilidade de Maluly permite a produção de programas alternativos que oferecem descobertas e experimentações reais que são compartilhadas com as audiências. O professor explica que a complexidade é ampliada porque, nessa fase, os estudantes tiveram a oportunidade, nas outras matérias que compõem a grade, de se familiarizar com as bases, os conceitos e os fundamentos do Radiojornalismo. Para a efetivação dos trabalhos de maior densidade técnica e operacional, os alunos formam grupos com quatro pessoas. A intenção é que cada equipe faça quatro programas por semestre, sendo que esse número pode aumentar devido ao desdobramento dos trabalhos. O diferencial é que, após serem finalizadas e avaliadas, as produções não são condicionadas à audiência restrita dos alunos, técnicos e professores. Elas encontram reverberação entre públicos diversos, pois são exibidas de forma convencional e também virtual pela Rádio USP FM. Criada em 11 de outubro de 1977, a emissora tem estúdios na Cidade Universitária, no Butantã, São Paulo, transmitindo por onda hertziana e pela internet ao vivo no site da emissora. Os trabalhos dos alunos de Radiojornalismo e Projetos em Rádio têm 30 minutos de duração e são emitidos aos domingos, às 11h30, no programa Universidade 93,7. A iniciativa, criada pelo CJE em 2008, possui três formatos: entrevistas, temas especializados e audiobiografias. Os programas tratam de assuntos de interesse público, como saúde, educação, segurança, habitação e esportes, entre outros. Na homepage da Rádio USP há um link do programa onde são publicadas outras informações. 15.  Entrevista gravada em áudio feita em 27 de junho de 2014 no CJE.

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O site do CJE16 ainda abriga uma homepage própria para exposição dos conteúdos17. No topo da página há links que dão acesso a informações sobre o projeto, onde é possível identificar no texto disponível para consulta o caráter de transversalidade do curso de Jornalismo da ECA/USP. “O interesse é estimular o exercício do Radiojornalismo diante do conteúdo, formato e estrutura, como forma de rediscutir a atual produção radiofônica no Brasil”, salienta o texto disposto na Web. O site ainda apresenta links com a bibliografia usada nas duas disciplinas e com um expediente que identifica os responsáveis pela orientação acadêmica, produção radiofônica e Web Designer. A iniciativa conta com a supervisão da coordenação de programação da Rádio USP. A veiculação convencional pelas ondas da Rádio USP e a disponibilização do material transmitido no suporte virtual são estratégias que inserem os futuros profissionais numa condição próxima ao contexto do Radiojornalismo. “O trabalho em rádio é uma alternativa para os futuros profissionais de comunicação, principalmente dos que desejam conduzir o Jornalismo como forma de conhecimento, democratizando assim à informação”, completa o texto do item o projeto. A variedade de assuntos e de fontes consultadas chama a atenção quando é realizada a audição dos programas radiojornalísticos, que também são apresentados em grande número no decorrer do ano. Entre 20 de março a 11 de dezembro de 2014, o site do Universidade 93,7 recebeu 24 novos trabalhos18 feitos pelos alunos. As produções somam-se a um acervo composto por 260 trabalhos elaborados desde a criação do projeto. Cada edição é disponibilizada para audiência, seja pelo computador ou por outras tecnologias digitais com acesso à internet. Se o ouvinte desejar é possível fazer o download dos áudios. Maluly diz19 que, nos programas, os alunos trabalham a questão da responsabilidade profissional, não apenas quanto à qualidade dos conteúdos e formas emitidas, mas pelo cumprimento de metas comuns à rotina de diversas redações. “Ele [o aluno] tem responsabilidade sobre aquilo. É o nome dele que está ali, claro que com a supervisão do professor”, enfatizou o docente. Outra característica dessa iniciativa pedagógica é o estímulo à divulgação das produções acadêmicas por intermédio do uso das potencialidades do ambiente digital. Os alunos, segundo Maluly, se encarregam em dar visibilidade às ações nos canais institucionais da Universidade, como a Agência, a Rádio e o Jornal da USP, ou então elaborando cartazes que são fixados nas dependências da escola. Em alguns trabalhos os estudantes criam ainda conteúdos complementares que convergem com os programas de rádio disponibilizados na internet. Making of, vídeos, fotos e ilustrações, entre outras expressividades, são adicionados ao lado do mecanismo virtual que dá acesso, no site, aos conteúdos em áudio. O mesmo ocorre com conteúdos excedentes dos programas de áudio que não vão ao ar na rádio, mas que são colocados no site que dá a ficha técnica completa do grupo, indicando a locução, a reportagem, a produção, a edição e a coordenação do trabalho. Ainda ocorre no âmbito virtual a divulgação dos alunos 16.  Acesso ao site do CJE: http://www.usp.br/cje 17.  Acesso ao programa Universidade 93,7: http://www.radiojornalismo.jornall.com.br 18.  Torna-se oportuno ressaltar que, em 2014, a produção foi afetada por conta do movimento grevista ocorrido na USP que perdurou entre os meses de maio a outubro. 19.  Depoimento obtido em entrevista gravada.

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nas redes sociais, com destaque para postagens no Facebook20 onde foi criada uma fan page – interface específica do Universidade 93,7. Dentre os conteúdos disponibilizados, a página oferece links aos programas, além de imagens, vídeos e textos relacionados aos trabalhos radiojornalísticos dos estudantes que, nessa ambiência, reverberam seus trabalhos em Radiojornalismo para públicos que podem não ser atingidos pelas emissões da Rádio USP. Apesar do empenho dos alunos na apresentação de elementos comunicacionais adicionais somados às expressividades radiojornalísticas na internet, a prioridade do projeto é o conteúdo em áudio. Essa preocupação, além de priorizar a principal essência do rádio, mostra-se oportuna no sentido de qualificar profissionais que atuarão em emissoras que, hoje, não aparentam ter a atenção concentrada aos aspectos sensoriais. Para Maluly, os programas devem se adequar às formas de captação sonora que tem se consolidado perante as audiências, como pelo fone de ouvido ligado ao smartphone ou pelos autofalantes do computador ou notebook. A orientação é para a composição de sons que não sejam agressivos ao ouvido e que ofereçam uma linguagem acessível – condição preconizada nos referenciais teóricos relativos à produção de rádio, mas que no cotidiano das emissoras, principalmente às de apelo popular, tornou-se quase que inexistente. Questionado sobre a viabilidade em relacionar Radiojornalismo e a convergência dos media no processo de formação acadêmica, o professor diz que o importante é o trato da informação manifestada pelas sonoridades. O que ocorre na atualidade, principalmente nas grandes emissoras é, para Maluly, um processo mais próximo à complementaridade do que a convergência. “A foto e o vídeo são mais complementares do que convergentes. Eles podem ilustrar, mas não vão representar um programa de rádio”, salientou o docente. Ao verificar os planos de estudo e a iniciativa proposta pelo programa Universidade 93,7 como projeto que amplifica e dinamiza as atividades educacionais foi possível constatar que a convergência dos media não aparece, de fato, integrada às ações teórico/práticas promovidas pelas disciplinas Radiojornalismo e Projetos em Rádio. Porém, ficou evidente no processo de formação a ocorrência das convergências tecnológicas e de conteúdos, como tipifica Salaverría (2010). A constatação revela-se como positiva, pois aproxima os alunos da realidade na qual está inserido o Radiojornalismo. De outro lado, os planos de estudo e a ação analisada indicam a ausência, nas disciplinas oferecidas pelo CJE da ECA/USP, de propostas que explorem efetivamente a convergência dos media. Essa condição pode ser considerada adversa no sentido de não possibilitar, aos estudantes, envolvimento pleno a esse fenômeno que, de acordo com Jenkins (2006), formata-se como estimulador de uma ampla transformação cultural na medida em que os indivíduos, ao incorporarem o papel de consumidores, são incentivados a buscar novas informações e a estabelecer interações com outras pessoas e conteúdos, em meio aos mais diversos conteúdos mediáticos disponíveis no ciberespaço.

20.  A interface pode ser acessada pelo endereço https://www.facebook.com/pages/ProgramaUniversidade937/286428344773141

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A formação em Radiojornalismo, atingida por transmutações que se intensificam por conta da disseminação dos novos aparatos tecnológicos e da convergência mediática no ambiente digital enfrenta o desafio de capacitar profissionais que devem, acima de tudo, prezar pelas premissas do Jornalismo. A operação de softwares e o manuseio de artefatos de última geração revelaram-se como importantes a essa intenção, mas estar conectado e dominar as tecnologias digitais não são aptidões que suplantam o ensino. Não basta apenas operar equipamentos, mas compreender que eles são instrumentos que permitem a ponderação, a crítica e a construção coletiva de saberes. O cuidado com a formação proporcionada nas salas de aula e laboratórios vai além das tecnologias, assim como o Jornalismo vai além da Rádio. Observou-se que a intenção das disciplinas Radiojornalismo e Projetos em Rádio não foi o provimento de habilidades instrumentais, mas a capacitação de profissionais aptos a compreender tudo o que os envolve. No caso pesquisado, notou-se um trato diferenciado dos conteúdos, resultando em um volume de produção maior de trabalhos práticos por conta da utilização da internet e das tecnologias digitais. As estruturas disponíveis para a aplicação dos conteúdos não se expressaram como empecilho às atividades teórico/práticas realizadas mediante orientação docente constante. O caso analisado revelou conforto quanto à estrutura, mas não demonstrou acomodação por conta disso. A internet foi usada como meio convergente para as sonoridades elaboradas pelos alunos, que também tiveram contato com softwares e equipamentos digitais similares aos vigentes no campo profissional. A participação dos universitários foi efetiva, lançando as ações nascidas em sala de aula e nos laboratórios para o patamar da virtualidade, onde outros públicos conferir as produções baseadas na discussão e na prática profissional. Os trabalhos não foram relegados ao esquecimento e ganharam projeção planetária. A tipificação convergente mostrou-se evidente não somente nos planos de ensino analisados, mas também nas iniciativas teórico/práticas empreendidas no caso pesquisado. As ações indicaram que a convergência de conteúdos destacou-se nesse processo educacional, apesar de a convergência com os media não ter se efetivado. As atividades promovidas nas disciplinas Radiojornalismo e Projetos em Rádio permitiram compreender que a adequação do processo de formação torna-se um desafio contínuo para os educadores. Apesar dos esforços empreendidos, a busca pela aderência do ensino à realidade não se expôs de forma plena, uma vez que não foram empreendidas ações relacionando a convergência dos media aos conteúdos apresentados. Em contrapartida, a tipificação convergente identificada nas ações teórico/práticas permitiu uma aproximação parcial ao atual contexto. A formação oscilou entre o preparo de jornalistas para o ingresso em emissoras de rádio tradicionais e a qualificação de profissionais habilitados para a compreensão de ações radiojornalísticas convergentes no ambiente digital, essencialmente às tecnologias e de conteúdos. Deduz-se tal condição como próxima a de muitas emissoras de rádio que experimentam a transição do meio analógico para o digital sem, contudo, decidirem para qual lado vão definitivamente se acomodar. No caso pesquisado, o propósito de educar tendo a comunicação como elemento fundamental mostrou-se maior do que barreiras e limitações encontradas no caminho. Buscou-se adequar o ensino a realidade, apesar dos esforços empreendidos não terem

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O futuro hoje: a formação em Radiojornalismo na era da convergência dos media Lourival da Cruz Galvão Júnior

alcançado êxito integral. Acima de tudo foi possível constatar a busca pela superação de um dos maiores problemas enfrentados no ambiente escolar – o esquema da classe frontal, na qual o aluno se vê como um ser passivo e reduzido a um receptáculo de conhecimento – alusão metafórica de Kaplún (2002: 49-50) ao modelo bancário de Paulo Freire. Os esforços empreendidos na formação em Radiojornalismo apontam ainda para duas premissas de Kaplún. A primeira trata da apropriação do conhecimento que quando os estudantes são instituídos e potencializados como emissores, e não como receptores, enquanto a segunda entende que educar é envolver-se em um processo constituído por múltiplas interações, sendo que um sistema será tanto mais educativo quanto mais rica for a trama de fluxos comunicacionais colocados à disposição dos estudantes (op. cit.: 60-61). Considera-se, assim, a força da construção coletiva dos saberes como uma condição fundamental que deve ser extensiva e priorizada a todas as ações educacionais. Dentre elas está a formação em Radiojornalismo que se depara com os desafios da Convergência dos Media na ambiência sem fim do universo virtual.

REFERÊNCIAS Bakhtin, M. (1988). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec. Bonixe, L. (2012). A informação radiofônica: rotinas de produção e valores-notícia da reprodução da realidade na rádio portuguesa. Lisboa: Horizonte. Coleção Media e Jornalismo. Costella, A. F. (1985). Comunicação – do grito ao satélite. São Paulo: Mantiqueira. Cury, L.; Barbosa, A. (2012). Em pauta: o jornalismo do futuro. IN: Cury, Lucilene (Org.). Tecnologias digitais nas interfaces da Comunicação/Educação: desafios e perspectivas. Curitiba: Editora CRV. Del Bianco, N. R. (2004). Radiojornalismo em Mutação na Era Digital. XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação - Intercom, Porto Alegre, 2004. Recuperado em 10 de agosto de 2014, de: http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/17663/1/ R0278-1.pdf Jenkins, H. (2006). Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph. Prata, N. (2009). Webradio: novos gêneros, novas formas de interação. Florianópolis: Insular. Herreros, M. C. (2008). La radio em internet. Buenos Aires: La Crujía. Kaplún, M. (2002). Una pedagogía de la comunicación: el comunicador popular. La Habana: Editorial Caminos. LÉVY, P. (1996). O que é o virtual? São Paulo: 34 Editora. Marques de Melo, J. (1974). Contribuições para uma pedagogia da Comunicação. São Paulo: Paulinas. MENDES, R. (2012). Os Jornalistas e a Primeira Licenciatura em Comunicação Social em Portugal - 1979. Lisboa: Escritório Editora. Salaverria, R. (2010). Estructura de la convergencia. In: Lopez, Xosé e Pereira, Xosé (Orgs.) Convergencia digital: reconfiguración de los medios de comunicación en España. Santiago de Compostela: Servicio Ed. de la Universidad de Santiago de Compostela, pp. 27-40. Scolari, C. A. (2011). A construção de mundos possíveis se tornou um processo coletivo. São Paulo: MATRIZes (Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo), n. 2, jan./jun. 2011, pp. 127-136.

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O Audiovisual e o Documentário nos Cursos de Jornalismo: algumas considerações sobre as Novas Diretrizes Curriculares Film and Documentary in Journalism Studies: some comments about Brazilian new curriculum guidelines R enato L e v i1

Resumo: O Documentário está para o jornalismo audiovisual assim como o new journalism está para o jornalismo impresso. Hoje é possível realizar documentários a custos reduzidos mas a formação do jornalista não privilegia alguns aspectos fundamentais um desenvolvimento mais aprofundado nesta área. Nas novas diretrizes desenhadas para os cursos de jornalismo um aspecto que chama a atenção é a ínfima menção a aspectos específicos da área da produção audiovisual. Esta carência pode ser explicada pelo fato de que os cursos historicamente costumam ser mais focados na prática do texto ainda que o audiovisual venha ganhando importância crescente. Existe uma tensão entre documentário e ficção relacionada com as dificuldades em se assumir alguns recursos da linguagem audiovisual como relevantes e legítimos. São questões que ensejam uma abordagem dialética e dinâmica para permitir uma leitura subjetiva mais ampla para além da mera narrativas dos fatos. O audiovisual é campo profícuo para o exercício de um jornalismo aprofundado, independente e instigante. Trazendo elementos do campo do cinema e da literatura este tipo de produção incorpora aspectos que problematizam alguns dos desafios atuais do jornalismo.

Palavras-Chave: documentário. audiovisual. ficção. Abstract: Documentary films stand for the audio-visual world as new journalism to printed media. In our days, it is easy to produce documentaries with very small budgets. But most journalism courses in Brazil do not emphasize aspects that are fundamental to an adequate understanding of the documentary as a field of audiovisual production. Brazilian new curriculum guidelines don’t even consider specific aspects of the field. This absence seems to be related to these courses’ historical building process, mainly focused on written text, in remarkable contrast with the increasing importance of the audio-visual production in the last decades. There is a tension between documentary and fiction related with difficulties in considering some aspects of film language relevant and legitimate per se. These issues call for a dialectic approach that can offer an open, dynamic and subjective reading beyond the simple narrative of facts. Audio-visual is a promising field to the development of independent 1.  Universidade de São Paulo (Brasil).

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and investigative journalism. Mixing elements of film and literature production, it can deal with some challenges faced by journalism in our time.

Keywords: documentary; film, fiction.

INTRODUÇÃO IMPRENSA E o jornalismo se estabeleceram na modernidade e experimenta-

A

ram um crescimento exponencial até se consolidarem como o que se convencionou chamar de quarto poder das sociedades contemporâneas. Mas este poder enfrenta hoje uma de suas crises mais profundas, desde que se estabeleceu como principal mediador entre um mundo que se pretendia iluminado, iluminista e positivista e seu público, historicamente configurado como ávido consumidor do espetáculo da notícia-mercadoria. Apesar da disponibilidade diária de uma avalanche de informações, múltiplos fatores contribuem para a crise do jornalismo tradicional e um dos principais diz respeito a uma mudança substancial no comportamento do público. Numa sociedade conectada, o leitor/espectador pode se tornar também emissor, produzindo, acessando e processando imagens, textos e sons provenientes de infinitas fontes. Os fluxos da comunicação midiática, que antes se davam de forma vertical, unidirecional e hierarquizada, agora são também crescentemente horizontais, anárquicos, em rede. Nesse contexto, a seleção, a comunicação e a interpretação dos fatos já não é mais atividade exclusiva dos grandes veículos. A diversidade de fontes amplia os critérios de relevância e passa a contemplar cada vez mais outras camadas semânticas que passam a ser decisivas na disputa por audiência. Nesse sentido, os jornalistas perdem sua primazia como mediadores, ao mesmo tempo em que entram em campo usuários dotados de ferramentas colaborativas capazes de ampliar a cobertura em diversos aspectos, como, por exemplo, na contextualização não apenas a do fato em si, agora sem depender dos limites econômicos, editoriais e ideológicos dos veículos tradicionais, mas também a revelação de omissões, erros e implicações das pautas e interesses. Nessa reconfiguração de práticas, outras dimensões se impõem, como aquelas relativas às esferas social e afetiva. Enquanto a modernidade trouxe em seu bojo a “problematização da representação da realidade”, agora o pós-modernismo “questiona a própria natureza da realidade representada” (LASH, 1990, apud, KUMAR, 1997, p. 129). Este movimento explicita as mutações dessas formas de representação e das forças em ação, antes mais “políticas” e “objetivas”, agora expandidas, subjetivas e multifacetadas, atuando permanentemente na criação de “verdades”, diluindo fronteiras e resultando num sentimento de relativismo permanente e desconfiança generalizada. É possível que juntamente com o enfraquecimento da primazia da empresa de imprensa e seus efeitos negativos sobre as vendas e a audiência dos veículos tradicionais, esteja ocorrendo um movimento de fortalecimento de posturas mais ativas e questionadoras do leitor/espectador, que pode, ele próprio, em tempo real, se tornar produtor, comentarista e editor do seu próprio noticiário. Esta reconfiguração do jornalismo tradicional, que se notabilizou por “entregar” as notícias relevantes, coloca em xeque permanente a leitura desse tipo de narrativa, explicita o hibridismo dessas representações: reconfigura a plausibilidade e expande as possibilidades de aderência ao real.

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Esse estado de coisas naturalmente vem tendo reflexos no ensino do jornalismo, que enfrenta contratempos em apreender, teorizar e realizar para além de uma reprodução de modelos conhecidos. Para além das infinitas discussões que os dilemas e paradoxos entre teoria e prática ensejam, as Novas Diretrizes Curriculares (NDC) para os cursos de jornalismo definidas pelo MEC em 2013 reafirmam a necessidade de um trabalho final de curso (Trabalho de Conclusão de Curso, o TCC) como um lócus privilegiado de reflexão e dialogo entre o saber e o fazer. Um aspecto que chama a atenção nas novas diretrizes para os cursos de jornalismo é a ínfima menção a aspectos específicos da área da produção audiovisual, o que pode ser explicado pelo fato de que os cursos historicamente costumam ser mais focados na prática do texto. Esta vocação histórica pode indicar certa dificuldade da academia em reagir às demandas da contemporaneidade, em que o audiovisual, assim como a produção de notícias, cresce exponencialmente, em grande parte por conta de iniciativas independentes dos grandes veículos. As NDC definem ainda que o TCC seja realizado individualmente, o que coloca questões e desafios importantes para a produção de imagem e som, área que abrange técnicas e funções diversas. Mas se o jornalismo e seu ensino, tal qual o conhecemos hoje, enfrenta crises e dilemas, o mesmo não se pode dizer da produção de narrativas, que continuam sendo fundamentais como instrumento de comunicação, socialização e construção de identidade. Em particular, num contexto de saturação de imagens, reafirma-se a importância dos documentários como dispositivo privilegiado, capaz de religar imagens em narrativas, promovendo resignificados num território fértil para a expressão, o conhecimento, a reflexão e o reconhecimento de indivíduos e grupos. Investindo na experimentação de narrativas que deem conta dessa complexidade, a universidade pode contribuir para a formação de cidadãos aptos a compreender e se relacionar com o mundo, promovendo diálogos num contexto de práticas e modelos em rápida transformação.

JORNALISMO E AUDIOVISUAL O audiovisual é uma linguagem híbrida, exibe simultaneamente uma multiplicidade de discursos e, dependendo do tema, da enunciação e dos recursos utilizados, pode permitir ao espectador diversas perspectivas de leitura a partir do conteúdo apresentado. A agilidade e a acessibilidade fizeram dos veículos de comunicação de massa os principais meios de difusão de notícias, onde a ênfase na rapidez cresce em detrimento do aprofundamento. Fatos complexos são difundidos em tempos exíguos, tendo que disputar espaço com uma série de acontecimentos banais, banalizados e espetacularizados. Nesse contexto não há muito espaço para a complexidade e a reflexão. Apesar das infinitas possibilidades dadas pelo caráter híbrido das linguagens audiovisuais, os formatos informativos da televisão massificada são, em geral, repetitivos, limitados. Essa monotonia estética está alicerçada paradoxalmente em recursos cada vez mais sofisticados, tais como cenários virtuais, animações gráficas e transmissões ao vivo. Toda esta parafernália é sintomática de um certo afastamento do público na direção de uma visualização cada vez mais apática e, quem sabe, desconfiada.

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Justamente pela sua natureza de meio de comunicação de massa e pelo interminável fluxo audiovisual, é no universo da televisão que a crise de legitimidade do jornalismo se percebe a de forma mais explícita. O funcionamento da televisão gera um mal estar terrível do qual as pessoas estão perfeitamente conscientes. Em cena apenas os porta vozes autorizados, classificados, ou então papeis codificados, engessados. E nada daquilo que rege este tratamento da palavra sem nenhum respeito, grosseiro, feito de cortes, de tesouras, de eliminação dos silêncios, das hesitações, do pulsar da língua, deixa qualquer pessoa indiferente. [...] Como o lugar onde o poder é exercido sobre os outros a televisão é exemplar. [...] É verdade também que as pessoas veem televisão, mas não acreditam nela. (COMOLLI, 2008, p. 57)

A caducidade da grande maioria dos formatos do jornalismo na televisão resulta em que muito do que se apresenta acaba resvalando numa mise-en-scène caricatural que constrói, cristaliza padrões e formatos, mas é dissimulada, ao pretender, em nome da seriedade, da objetividade e da precisão, impor sentidos unívocos. Pela dificuldade de associação das imagens a referentes confiáveis, o jornalismo da televisão acaba adquirindo uma tessitura aproximada daquela da ficção. O grande desafio para quem produz imagens é justamente saber em que sentido é possível extrair imagens dos clichês... Se tudo nos parece uma ficção, uma ficção de ficção, se tudo parece conspirar para uma desmaterialização do mundo, se temos dificuldade em viver a história, é porque tudo parece já ter sido programado, preestabelecido, construído, calculado de forma a nos tirar o poder de fabulação. (PARENTE, 1999, p. 25).

No entanto, essa explicitação do caráter ficcional do jornalismo não se dá na direção de assumir alguma relativização nas construções, o que poderia favorecer conteúdos e leituras mais sofisticados e suprir uma audiência menos ingênua. Ao contrário, parece demandar do espectador uma crença quase dogmática. E são muitos os sintomas dessa espécie de mal estar da civilização televisada. Na área da ironia e do deboche, fazem enorme sucesso os erros e acidentes que subvertem a seriedade e a rigidez da TV, e são inúmeros os que se dedicam a ridicularizar suas celebridades e seus personagens burlescos. Na área do drama acontece uma exploração exacerbada da emoção em diversos formatos de programa. O jornalismo insiste numa cobertura que, por vezes, assume ares de melodrama, ao seriar tragédias, explorando ao máximo o sofrimento, a desgraça ou a felicidade, buscando dosar a curva da emoção a cada capítulo do telejornal diário. Disseminar aspectos emotivos não é necessariamente melhor ou pior para o resultado de um programa ou filme, depende obviamente da natureza desse conteúdo e das intenções do realizador. Grosso modo, podemos dizer que alternar razão e emoção, assim como dosar entretenimento e informação, favorece maiores parcelas do público a acessarem aquele conteúdo e multiplica as possibilidades de entendimento e apreensão. Ocorre que emoção sem contexto acaba sendo apenas uma solução fácil do ponto de vista da massificação e da conquista de audiência. O simples acesso a emoção alheia, seja ela no âmbito da desgraça ou da felicidade, sem maiores aspectos da complexidade das vidas e dos percursos que qualificariam aquelas emoções resulta apenas numa comoção alienada, fruto de abuso exploratório e espetacularizado.

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JORNALISMO E DOCUMENTÁRIO Realizar documentários em que se possa aprofundar temas e experienciar a linguagem audiovisual é um terreno bastante profícuo para o ensino do jornalismo. É um lugar privilegiado em que se pode discutir as pautas em profundidade, ao mesmo tempo em que se pode construir expressão capaz de problematizar aspectos fundamentais para a prática de um jornalismo que se pretende ético e responsável. Nesse sentido, o documentário está para o jornalismo audiovisual assim como o new journalism está para o texto. Enfoca-se aqui um certo tipo de documentário, em geral autoral, cuja produção e estilo puderam ser gestados de forma independente das pressões do mercado e dos formatos seriados. É um tipo de produção onde busca-se um espaço de liberdade que favorece a experimentação, onde se pode praticar certa alteridade e desdobrar pontos de vista. Nesse formato é possível acessar camadas semânticas que melhorem a apreensão sobre os fatos ao mesmo tempo em que provocam, por exemplo, questionamentos acerca da objetividade. É um contexto onde assuntos complexos podem ser tratados com maior profundidade, a partir da expressão da diversidade e multiplicidade de interesses envolvidos. É neste sentido que este tipo de documentário se aproxima das características literárias e estilísticas que o new journalism consagrou. Os custos cada vez mais acessíveis e as diversas plataformas de divulgação democratizaram o acesso e multiplicaram enormemente a produção do audiovisual independente. Esta realidade foi aos poucos chegando aos cursos de jornalismo, historicamente mais ligados à produção de texto, característica que se reflete em seu corpo docente, em sua carga horária e na natureza das disciplinas oferecidas. Porém, ainda que os custos de produção venham caindo, a realização audiovisual demanda atualização constante dos profissionais e da estrutura de apoio à produção, questões que raramente os cursos têm condições de suprir a contento. Uma das razões é que os custos envolvidos com a produção audiovisual são, via de regra, muito superiores àqueles da área dos veículos de texto. As disciplinas teóricas e práticas, assim como os trabalhos de conclusão de curso, que envolvem a realização audiovisual em geral, se dividem em dois grandes grupos: um grupo é ligado à televisão e ao telejornalismo e o outro ao cinema e ao documentário. Do ponto de vista da lógica de produção, o primeiro grupo lida com uma produção realizada em equipe, com funções definidas e, em geral, a partir de formatos preestabelecidos. Esta lógica leva em conta a consolidação de modelos eficientes para uma potencial produção em série. A serialização dos produtos barateia os custos, reduz imprevistos e se adequa perfeitamente às grades de programação das emissoras. Já o que aqui chamamos de documentário independente, tende a funcionar de forma autônoma e pode ser viabilizado com equipes menores onde as funções não são necessariamente tão rígidas e estanques. Nesse cenário, cada realização possui uma lógica distinta de produção e pode, por isso mesmo, engendrar os elementos da linguagem audiovisual de forma mais ampla e independente. No contexto dos cursos de jornalismo, a esfera do documentário é um caminho promissor para a discussão de diversas questões, a começar das estéticas. Temos um nível de exigência moldado a partir de uma linguagem televisiva padronizada. Além

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disso, este tipo de formato, até pela sua lógica de produção, flerta com uma rigidez e com uma pretensa sobriedade que não combina com o frescor e o experimentalismo desejado das primeiras produções. Nos programas realizados em estúdio, a pauta, os convidados e as enunciações devem se adaptar aos formatos previamente propostos. No caso do documentário, os temas, as locações, os personagens, os recursos utilizados e as relações entre estes elementos engendradas pelo filme é que influenciam (ou pelo menos deveriam influenciar) a estruturação do formato e na escolha dos recursos narrativos. Assim, como herdeiros da literatura e da história, podem se voltar, como observa Jacques Rancière, para as “camadas subterrâneas dos anônimos” e assim, a partir da produção de imagens “despojadas”, reconfigurar uma lógica nascida no romantismo onde “o banal torna-se belo como rastro do verdadeiro” (RANCIÈRE, 2005, p. 50). É justamente da qualidade - que aqui não se confunde com apuro técnico exigido pela TV - dessa espécie de garimpo realizado nas existências, operando e explicitando ferramentas da negociação permanente entre realizador e personagens, que se constrói uma das camadas semânticas fundamentais para o vigor desse tipo de documentário. Significa, por exemplo, ao registrar uma situação ou personagem, dar tempo ao espectador para que ele possa perceber a expressividade nos silêncios, nas indecisões, nas contradições e emoções. Afinal “longe de filmar a realidade-tal-como-ela-se-dá, o cinema só pode apreendê-la como acumulação de relações, a maior parte delas abstratas ou não representáveis não visíveis, não mostráveis”... (COMOLLI, 2008, p. 80). A tensão aqui colocada entre os campos do documentário e do telejornalismo obviamente não implica necessariamente uma garantia de qualidade de um formato sobre outro. Nesse sentido não se propõe aqui que os cursos de jornalismo simplesmente abandonem as práticas mais ligadas aos formatos televisivos seriados. Este tipo de laboratório pode ser bastante profícuo se, por exemplo, puder questionar as dimensões de contexto presentes em cada pauta e evidenciar as possíveis limitações do que foi possível apurar. Assim, para além da reprodução de modelos, os ambientes voltados à formação devem buscar uma experimentação permanente.

JORNALISMO, AUDIOVISUAL E AUTORIA É no campo do documentário que uma questão fundamental tem condição de se manifestar a ponto de qualificar as narrativas: a autoria. Esta pode enunciar-se de diversas maneiras, de forma objetiva e subjetiva, operando, por exemplo, no tom do texto, na presença física do realizador, na qualidade da relação e no diálogo que se estabelece com os entrevistados. A importância desta autoria é reafirmada no contexto do ensino do jornalismo, na medida em que, como mencionado, as Novas Diretrizes Curriculares exigem um trabalho final de curso individual. O desafio que está colocado é dar conta dos diversos aspetos técnicos e editoriais envolvidos quando se trata de um trabalho realizado em suporte audiovisual. O testemunho e a entrevista surgem como possibilidade expressiva para os filmes documentários na década de 1960, a partir da articulação de aparatos e tecnologias que permitiram captar com agilidade e mobilidade a imagem e o som em campo para depois sincronizá-los na exibição. Esta possibilidade abriu uma enorme gama de interlocuções

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que revolucionou o formato dos filmes trazendo o diálogo e suas inflexões como alternativa reveladora e expressiva. Em formatos televisivos, tais como os telejornais e os programas de estúdio, a autoria é deliberadamente obnubilada, em geral em prol de uma pretensa neutralidade ou sobriedade. Na estrutura empresarial da televisão, via de regra as produções são fruto de longos processos que envolvem grandes equipes e forte hierarquia. O processo de serialização da produção segue a lógica de linha de montagem industrial, visando reduzir custos, maximizar resultados e formatar para fidelizar (ou adestrar) o espectador. Nesse cenário de padronização, a autoria fica difusa e não deve aqui ser confundida com a possível presença de um repórter, apresentador ou comentarista, opções que não eliminam a estandardização de comportamentos ou a demarcação de um campo de autoridade. Obviamente a realização audiovisual é resultado de processos técnicos e editoriais complexos e, por isso mesmo, geralmente demanda uma equipe para dar conta das diversas especificidades envolvidas. Mesmo assim, a noção de autoria tem melhores condições de se afirmar no documentário onde um aparato mais discreto e menos invasivo pode se organizar de modo a favorecer a proximidade e a qualidade da interlocução. Como dar conta, por exemplo, das implicações ligadas à autoridade e questionar possíveis traços de autoritarismo presentes nas relações de poder que sempre envolvem a produção de conteúdo: quem faz o filme? Sobre o que é o filme, quem é produzido e de que forma? Quem é questionado e enquadrado como objeto ou personagem? E, finalmente, a quem se destina o filme? Experienciar estas questões, ainda que de forma indireta, pode revelar aspectos sobre a complexidade estética e política que envolve cada ato de tentativa de “captura” do real. É nesse processo que o audiovisual pode adquirir sua potência, não como tradutor de uma pretensa verdade, mas como uma espécie de mediador subversivo, deixando entrever algumas das verdades possíveis presentes em cada uma das enunciações desenvolvidas no ato cinematográfico. Nesse sentido, Jacques Rancière chama a atenção para uma linha divisória, traçada por Aristóteles, entre as duas histórias, a dos historiadores e as dos poetas ou da realidade e da ficção. Para ele, esta linha está revogada, já que agora “o testemunho e a ficção pertencem a um mesmo regime de sentido”. Assim, a cinematografia é herdeira da literatura, e “eleva a sua maior potência o duplo expediente da impressão muda que fala e da montagem que calcula as potências de significância e os valores de verdade. E o cinema documentário, o cinema que se dedica ao ‘real’ é, neste sentido, capaz de uma invenção ficcional mais forte que o cinema de ficção, que se dedica facilmente a certa estereotipia das ações e dos tipos característicos”. (RANCIÈRE, 2005, p. 56-57). Ao se aproximar da poesia, o documentário pode tentar se distanciar de um tipo de jornalismo com viés restritivo, ligado a manuais, veículos consolidados e à praticas industriais de produção e consumo. Por poder articular simultaneamente questões da ordem do simbólico, do racional e da emoção, o cinema e o documentário são capazes de produzir uma interlocução privilegiada, que demanda uma postura diferente, um espectador especial.

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Há, sem dúvida, duas formas, ou melhor dois pensamentos sobre o cinema em luta desde os primórdios [...]. O cinema nasce ao mesmo tempo como sistema de escrita com (o campo/o fora de campo; a velocidade/a duração – paradigmas ativos desde “o primeiro filme”) e como empresa de espetáculo (janela aberta para... tudo o que se deseja ver). Essas duas matrizes fabricam dois pensamentos sobre o espectador [...]. A primeira é a indústria do espetáculo, madrasta do cinema [...]. Ela postula um espectador fixado em um lugar assinalado: o lugar do consumidor de efeitos. Esse espectador supostamente não se mexe; ele não deve mudar, deve engolir, deve ingurgitar até a náusea. Esse pensamento, põe-supõe- impõe a ideia de um sujeito menor e minorado cuja inquietação deve ser adulada e cujos desejos devem ser atendidos. A outra é a cinematografia, filha bastarda da pintura (via fotografia) e da musica (via ritmo e duração). Ele pressupõe um espectador maior, um sujeito de relações complexas, de emoções contraditórias, móvel, em suma convidado a ocupar não um lugar no filme mas vários. Situação plural precária, mutável em que há o risco e a perda [...]. O mundo é atingido por uma dúvida, existência se aprofunda em uma dimensão critica – como a do próprio espectador.” (COMOLLI, 2008, p. 64-65)

Essa cinematografia, ao propiciar a articulação e a interlocução expandida de narrativas, pode dialogar com os fatos para além da racionalidade e da objetividade. Essa busca em se trazer outras dimensões do conhecimento é sintomática do redesenho das novas dimensões da cultura numa época de crise de valores. Claro que contemplar estas camadas por si só não garante filmes de excelência, nem que, por outro lado, os produtos que seguem o rigor formal do telejornalismo e da televisão serializada não sejam capazes de engendrar narrativas relevantes e instigantes. Trata-se apenas de dar atenção a dispositivos fundamentais na construção de linguagens que propiciam certo grau de flerte com o real.

MOMENTOS DE TENSÃO E ARREBATAMENTO A desconfiança das pretensas verdades impostas por um modelo em crise e a saturação de grande parte do público com os formatos jornalísticos da TV comercial traz a necessidade de narrativas mais sofisticadas. Ao incorporar camadas semânticas diversas para dar conta de assuntos complexos as histórias podem impactar de forma mais ampla e instigante a audiência. Nesse sentido vale a pena flexibilizar as fronteiras entre ficção e documentário, buscando contaminações e diálogos que podem resultar num espectador mais ativo, na medida em que se oferece espaço para que também ele se questione e se coloque. Paradoxalmente, é pautando e problematizando aspectos de ficção presentes nos documentários que sua possibilidade de verdade pode atingir maior eficácia. Para além da verossimilhança e da imersão catártica, alguns momentos cinematográficos podem trazer tensão e arrebatamento ao desestabilizar o espectador em suas noções de negação e crença. Não se trata apenas dos mecanismos que permitem deslocar o espectador de seu conforto com tal narrativa, relativizando suas certezas a partir de uma reviravolta no roteiro. A relação do espectador com o cinema pode atingir uma potência especial de arrebatamento em momentos em que existe fricção, acontecem interferências mútuas e opacidade nas fronteiras entre elementos identificados como da ordem da invenção e da imaginação e outros ligados a realidade e a autenticidade.

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Como afirma Jean-Louis Comolli, “A negação cinematográfica é dialética... a crença tem necessidade da consciência que a ameaça... para se reforçar” (COMOLLI, 2008, p. 84). Em filmes de ficção, o uso de material documental busca reafirmar e, ao mesmo tempo, reconfigurar esta realidade da qual o filme se pretende porta-voz. Aqui, não basta que nosso mecanismo crítico de alerta relaxe e se deixar levar pela fruição de um enredo plausível e coerente. Na hora em que aparecem indícios de uma realidade explícita, nosso entusiasmo anterior pode transformar-se. Se o filme é baseado em fatos ou histórias reais e existe material documental diretamente ligado aos eventos e personagens tratados no enredo, o uso deste recurso se torna irresistível. Ficamos com a fruição anterior, já dada pela narrativa ficcional, mas agora potencializada novamente pela emergência do real, daquele real que já estava lá, ainda que encenado e reconstruído. O encontro desses dois registros, o da ficção e o documental, promove um duplo movimento: a construção se explicita e a comoção e o envolvimento se agudizam. A verossimilhança vira verdade e agora estamos tocados simultaneamente em diversas camadas que se retroalimentam: tocados pelo enredo, comovidos com a confirmação daqueles fatos e com nossa crença no cinema e na história. Como que alçados a um estado místico de uma revelação, ficamos enternecidos também com nossa própria emoção e sensibilidade, que afinal tem mais uma razão de ser: realmente aconteceu. Diários de motocicleta, de Walter Salles, realizado em 2004, é um bom exemplo do uso desse recurso. Trata-se de um filme de estrada que conta a saga épica de dois amigos pelo continente sul americano. Próximo ao final do filme os amigos se despedem no aeroporto. Um embarca num avião e vai cumprir seu destino histórico e se tornar o mítico Che Guevara. Quem fica no aeroporto é seu companheiro que nessa viajem iniciática. Ouvimos seus pensamentos e sentimentos a partir de uma narração em off que, entre outras coisas, questiona a jornada. “...foi nossa visão muito estreita, muito parcial, muito apressada?” logo após a imagem se apaga lançando o espectador num vazio (espaço para o inconsciente?). A digressão prossegue no escuro: “este vagar sem rumo por nossa imensa América me mudou mais do que pensei... eu... já não sou eu! Pelo menos não sou o mesmo eu interior”. A partir daí a imagem volta, agora com diversas cenas em preto e branco que, buscando nova camada expressiva, revisita diversos personagens coadjuvantes da história. Eles estão “posando” desconcertados num registro que, de forma ambígua, se pretende fábula, documento e encenação. O que ouvimos é somente a trilha sonora, de maneira que agora nossos pensamentos tem espaço para fluir sem a interferência direta de qualquer texto. Temos então a possibilidade de revisitar o filme e revisitar nossas emoções agora potencializadas a partir da provocação formulada pelo narrador. Este clima de comoção contamina e se reafirma nas imagens estáticas dos coadjuvantes (reais?) encarnando essa América pobre e desigual. Depois dessa sequência, uma legenda em tela preta nos atualiza o que ocorreu com os dois personagens: nos informa do assassinato de Che Guevara na Bolívia e da vida atual de Alberto Granato em Cuba. Se segue o epílogo onde ouvimos um som de avião e depois, em close, o rosto de um velho. Nada é dito sobre aquele senhor, o verdadeiro Alberto Granato, que nunca antes havia aparecido no filme. A presença física real de um dos protagonistas vem coroar este processo de curto circuito entre a ficção e os registros históricos e documentais, alguns simulados e outros

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revisitados pelos relatos dos reais protagonistas (que são a base do roteiro do filme). Agora a imagem não retrata mais um ator, mas o verdadeiro Alberto Granato, que viveu tudo aquilo. Houve um deslocamento nas diversas dobras do tempo criadas e recriadas pelo filme. Seu olhar melancólico acentua o testemunho do inexorável drama da vida e o acesso a esta perspectiva nos contamina e potencializa nossa emoção e arrebatamento. Em documentários, momentos de tensão e arrebatamento dependem, como em toda obra cinematográfica, do sucesso da relação que se estabelece entre filme e espectador. Além disso, a pauta do documentário pode incorporar de forma criativa uma dimensão fundamental que muitas vezes fica subjugada. Trata-se da inevitável construção de imagens, tanto as imagens técnicas, como também imagens públicas de um personagem, do que ele representa, do que quer representar ou daquilo que o filme pretende que ele represente. Estas “imagens” são dinâmicas, produtos do processo cinematográfico, que sofrem contaminações e se retroalimentam o tempo todo. As relações de poder estão presentes em dimensões diversas. Não por acaso, daí afloram e se explicitam conceitos e preconceitos, constituindo um campo fértil para a formação e a confirmação dos estereótipos sejam eles do realizador, dos entrevistados e da audiência. O acesso a tais camadas semânticas envolvidas no documentário pode ser possibilitado a partir do uso simultâneo de diversos recursos. Nesse sentido, construir uma edição oscilante com a presença de narrativas paralelas, pode trazer uma visão mais sofisticada dos fatos a partir do vislumbre de sua complexidade no deslocamento entre perspectivas diversas. Nesse sentido, buscar relatos de caráter épico e lírico dá espaço para que os entrevistados se coloquem como protagonistas e fortalece as narrativas. Ao demandar visões distintas, de caráter geral e pessoal, e de natureza objetiva e subjetiva, podemos favorecer um posicionamento mais amplo dos personagens. A presença da contradição nos coloca em alerta para aspectos da complexidade dos fatos e dos processos de sua construção histórica e política. O acesso a diferentes perspectivas suscita nosso posicionamento, não só diretamente com relação ao assunto tratado, mas também por favorecer uma postura instigante, contaminando nosso ânimo e estado de espírito. A dúvida e a incerteza ajudam ao desestabilizar e relativizar verdades, mas o mais subversivo acontecimento é o questionamento dos papéis. Este é mais eloquente em filmes que se utilizam do dispositivo da entrevista. Como produto de um acordo consensual, é raro que os entrevistados subvertam seu papel. Cabe então ao realizador tentar criar condições para que esta postura subversiva possa emergir. É um processo delicado, pois depende de dosar certo desconforto ao provocar o entrevistado com perguntas ou situações que favoreçam reações e manifestações que fujam do conformismo do registro cordial, formal e insípido. Diz o critico e ensaísta Jean-Claude Bernardet, “os documentários que me parecem mais motivadores atualmente são aqueles em que, de uma forma ou de outra, a entrevista encontra-se problematizada” (BERNARDET, 2003, p. 288). Nesse sentido, diversos momentos de subversão e inúmeras camadas simultâneas de grande riqueza expressiva estão presentes em À Margem da Imagem de Evaldo Mocarzel, realizado em 2002. Jean-Claude comenta: “... me dá a impressão de ser um filme de crise, e por isso particularmente estimulante – a crise do filme documentário

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de entrevistas” (BERNARDET, 2003, p. 296). Uma crise que por um lado sinaliza um eventual esgotamento, mas pode ajudar também a refletir sobre questões presentes nos métodos e dispositivos basilares adotados neste modelo. Trata-se de um documentário que pretende falar do universo dos moradores de rua da cidade de São Paulo. Para tanto, entrevistas buscam resgatar as histórias de vida desses personagens que acabaram na rua abordando questões de âmbito geral e pessoal. Uma narrativa paralela é dada a partir de uma segunda câmera que nos revela aspectos dessa construção fílmica: a negociação para incluir tal personagem, pagamentos, autorizações, discussões, desconfiança, aparato, equipe, etc. Soma-se a esta camada algumas perguntas que suscitam uma reflexão sobre a imagem procurando aspectos de sua construção: que imagem o depoente gostaria de passar, qual seria a imagem que se tem do morador de rua, qual a serventia da câmera, etc. Quase todos os entrevistados são moradores de rua com exceção de Ivete, uma freira. Subvertendo a generalização e o distanciamento do especialista, Ivete assume logo no início do filme a posição de uma protagonista envolvida na questão quando diz: “nós temos sido explorados demais na imagem”. Em outro momento Ivete desestabiliza o filme ao relatar uma estratégia do morador de rua da grande cidade. “... você pode ser versátil, hoje você pode estar chegando, amanhã você pode ser roubado, você cada dia conta uma história para um, que ninguém te conhece, o que não pode acontecer numa cidade pequena. Então a cidade dá essa liberdade através do anonimato. ... então eu posso inventar a questão do acharque [sic.], que acharcar [sic.] na rua é o seguinte, você ganhar dinheiro contando uma história que comova o transuente [sic.]” (À margem da imagem, 2002)

Incrivelmente esta fala não resulta num distanciamento crítico que atrapalhe a nossa fruição e comoção com as histórias e dramas relatados. Próximo ao final é apresentado um segmento em que a produção leva todos os depoentes para assistir ao documentário e depois comentá-lo. Esse dispositivo traz uma dimensão reveladora das relações de poder e hierarquia envolvidas no ato cinematográfico que se propõe a documentar alguma realidade possível. Cinema não é feito por qualquer um e tampouco é acessível a todos. Assim uma das primeiras “comentaristas” declara: “eu gostei, nunca tinha entrado num cinema antes”. Outros comentários vão se sucedendo, alguns esperançosos com o poder que o filme poderia ter: “a sociedade vai ter uma posição melhor daquilo que é o povo de rua, que na verdade nós não somos bicho...” e “depois eu queria que você levasse este filme para o Brasil inteiro, mas chamasse os políticos, estes que estão no poder, ver a realidade do povo...” e outros mais céticos: “há muitas coisas que às vezes podem ser em vão, porque você pode tar exibindo esse filme aí, mas na sociedade existe muita barreira, entendeu, pro pobre, pro rico, aí fica muito difícil”. ... Um dos depoentes finais aparece reclamando de “um fundo musical que não teve” e que “terminou sem graça, sem um fim” um final que para ele foi “pálido” (contraditoriamente estas reclamações compõe um final menos pálido já que elas aparecem em lugar privilegiado na edição final). Esse mesmo depoente mais tarde retorna, em terceira pessoa declara: “faltou mostrar quando ele pede, que ele bate numa casa, que ele se expressa

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com uma pessoa...”. E prossegue, cada vez mais indignado, chamando a atenção para o fugaz momento de exceção que vive diante da câmera: “...a pessoa agora naturalmente tá me vendo, né, mas geralmente estas pessoas, amanhã, não vai me ver, não vai me conhecer”. E vai ficando mais incisivo: “se eu apertar a campainha de uma casa, ela vai falar para o porteiro, não atendo, não conheço. Então é isso, ele tem que mostrar isso no filme. Tem que mostrar a pessoa apertando numa casa, pedindo um prato de comida, pedindo isso, pedindo aquilo, tal para poder ser um filme verdadeiro, esse o diretor esqueceu”. (À margem da imagem, 2002)

O diretor rapidamente agradece em off: “tá bom, valeu, obrigado”. Esta aparente frieza e conformismo do diretor acentua ainda mais a indignação do depoente que insiste, e desloca sua fala da terceira para a primeira pessoa e dispara: “Entendeu, porque se eu chegar na sua casa e bater na sua campainha, eu tenho certeza que você não vai me receber, só hoje, amanhã você não me recebe mais”. Fim. Créditos. Essa fala explícita, quase uma acusação, está personificada e direcionada à pessoa do diretor. Assim ganha eloquência como ato verbal, fugindo do conformismo cordial. Mas além de ver o outro (o diretor) enfrentando a animosidade, o espectador sabe que o recado se estende também a ele, afinal “filmar é evidentemente arriscar; e também, neste caso, arriscar-se, arriscar alguma coisa do seu lugar, de seu espectro subjetivo, nessa relação violenta com o outro que toda filmagem acaba sendo.” (COMOLLI, 2008, p. 68) e a opção de assim encerrar o filme evidencia a emergência do problema. Assim, o audiovisual e em especial os formatos que dialogam com o documentário, são campo profícuo para o exercício de um jornalismo aprofundado, independente e instigante, capaz de problematizar assuntos complexos. Trazendo elementos do campo do cinema e da literatura e incrementando as narrativas com possibilidades expressivas questionadoras, este tipo de documentário incorpora aspectos que problematizam alguns dos desafios atuais do jornalismo. Num momento em que virtualmente “todos” podem produzir e publicar, é imperativa a necessidade de selecionar e de encontrar sentidos possíveis em meio ao caos da multiplicidade e da diversidade. Assim, produzir num ambiente de ensino envolve necessariamente questionar o que se faz e contextualizar sobre o que eventualmente “poderia” ter sido feito. Para além da mera informação “objetiva” dos veículos tradicionais, esta produção pode provocar um diálogo transformador com o espectador e a partir dai se espalhar de forma autônoma chegando ao público de maneira colaborativa pelas novas plataformas de difusão.

REFERÊNCIAS Bernardet, J. C. (2003) Cineastas e imagens do povo, São Paulo: Cia das Letras. Comolli, J. L. (2008) Ver e poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG. Kumar, K. (1997). Da Sociedade pós industrial a pós-moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Parente, A. (1999). O Virtual e o hipertextual. Rio de Janeiro: Pazulin. Rancière, J. (2005). A Partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: 34.

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O campo do jornalismo entre recursos e estratégias de conversão na economia da diplomação The journalism field between resources and conversion strategies in economy of diplomation O s wa l d o R i b e i r o Cristina Ramos

da

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S i lva 1

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Resumo: Este estudo delineou-se a partir de questões do campo do Jornalismo, precisamente as colocadas nas últimas décadas do século XX, tais como a suspensão da exigência do diploma, inicialmente provisória, depois definitiva, para o exercício da profissão no Brasil. Neste contexto o campo sobrevive, há pelo menos cinco anos, desde 2009, sem a regulamentação da profissão. A recorrência a essas questões, nos limites desta pesquisa, está vinculada ao exercício do encontro de um objeto, a economia dos documentos curriculares e das estratégias paralelas de recomposição do campo jornalístico. Este trabalho está orientado pela hipótese de que os documentos curriculares e as estratégias paralelas são recursos de poder e estratégias de (re)conversão - a defesa do diploma como força de distinção - em um campo determinado por crises de autonomia e legitimidade, que acabam por criar condições para o aparecimento de uma illusio, o campo jornalístico existe apenas/ou é legítimo e autônomo, se houver a diplomação. Em conclusão, no processo de formação do jornalista, os documentos curriculares, bem como a estratégias paralelas atuam como forma de estabelecer acesa a chama de um campo de forças com agentes interessados na manutenção de seus poderes e investimentos em relações permanentes e constantes.

Palavras-Chave: Currículo. Documentos Curriculares. Formação do Jornalista. Diplomação. Jornalismo.

Abstract: This study was drafted from questions of the Journalism field, precisely the ones placed in the last decades of the twentieth century, such as the suspension of the requirement of the diploma, that it was temporary in the beginning, and at the end, it was definitely, for those that want to be a journalist in Brazil. In this context, at least for five years, since 2009, the journalistic field survives without the profession´s regulation. The recurrence of these issues, in the limits of this research, is linked to the exercise of the encounter of an object, the economy 1.  Doutor em Educação pela UFMS, Professor e Coordenador do Curso de Jornalismo da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) e Professor-Pesquisador e Coordenador do grupo: Pesquisa em Jornalismo: Ensino Superior, Tecnologia/Fator Humano na Profissão, Mercado de Trabalho/Emprego (PIBIC/UCDB). E-mail: [email protected] 2.  Mestra em Estudos de Linguagens pela UFMS, Professora do Curso de Jornalismo da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) e Professora-Pesquisadora do grupo: Pesquisa em Jornalismo: Ensino Superior, Tecnologia/Fator Humano na Profissão, Mercado de Trabalho/Emprego (PIBIC/UCDB). E-mail: [email protected]

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of curriculum documents and parallel strategies for rebuilding the journalistic field. This paperwork is based on the hypothesis that the curriculum documents and parallel strategies are power resources and strategies (re) conversion - the defense of the statute as a force of distinction - in an amount determined by crises of autonomy and legitimacy field that eventually create conditions for the emergence of a illusio, the journalistic field only exists/or is legitimate and autonomous, if the graduation. In conclusion, in the training process of the journalist, the curriculum documents, as well as parallel strategies act as a way to establish the flame of a field of forces with stakeholders in maintaining their power and investment in permanent and constant relations.

Keywords: Curriculum. Curriculum documents. Training process of the journalist. Graduation. Journalism.

NOTAS INTRODUTÓRIAS: A ECONOMIA DOS DOCUMENTOS CURRICULARES E DAS PRÁTICAS DE RECOMPOSIÇÃO DO CAMPO JORNALÍSTICO STE ESTUDO delineou-se a partir de questões do campo do Jornalismo, precisa-

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mente as colocadas nas últimas décadas do século XX, tais como a suspensão da exigência do diploma, inicialmente provisória, depois definitiva, para o exercício da profissão no Brasil. Neste contexto o campo sobrevive, há pelo menos cinco anos, desde 2009, sem a regulamentação da profissão. A recorrência a essa ideia, nos limites desta pesquisa, esteve vinculada ao exercício do encontro de um objeto, a economia dos documentos curriculares e das práticas de recomposição do campo jornalístico, que veio configurando-se no processo de interlocução com as práticas idealizadas na formação do jornalista. Apple (2006, p. 53) aponta que o currículo nunca é uma montagem neutra de conhecimentos, que de alguma forma aparece nos livros e nas salas de aula de um país. Sempre parte de uma tradição seletiva, da seleção feita por alguém, da visão que algum grupo tem do que seja o conhecimento legítimo. Ele é produzido pelos conflitos, tensões e compromissos culturais, políticos e econômicos que organizam e desorganizam um povo. Pacheco (2003, p. 115) complementa essa ideia, afirmando que uma teoria pública de decisão sobre a construção do currículo pode ser enquadrada nos parâmetros conceituais e pragmáticos, ou seja, “parâmetros que servem para elucidar os processos e as práticas de construção do currículo nos contextos de influência, de produção dos normativos, da prática escolar, dos resultados e da estratégia política”. O estudo do currículo na formação do jornalista ganha relevância por conta do “esmagador poder de socialização que os meios de comunicação de massa adquiriram” (PÉREZ GÓMEZ, 2001, p. 104), dos quais os jornalistas são importantes operadores. Os meios de comunicação de massa adquiriram uma nova dimensão com a revolução eletrônica, capaz de transportar a informação em forma de imagens e em tempo real a todos os cantos do planeta. A comunicação e a tecnologia comprimiram o espaço e o tempo de maneira tal que se transforma e acelera o ritmo da mudança no mundo que queremos conhecer e nos meios que utilizamos para conhecê-lo. (PEREZ GÓMEZ, 2001, p. 105).

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Por conta disso, esta pesquisa objetivou analisar os documentos curriculares organizados pela UNESCO em 2007 e pelo Ministério da Educação em 2009, bem como a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), a suspensão provisória do diploma pela Justiça Federal e definitiva pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a queda da Lei de Imprensa e, posteriormente, a elaboração de Propostas de Emendas Constitucionais (PEC), na perspectiva da economia da análise da gênese das disposições dos agentes confrontados à linguagem e ao poder simbólico. Para tanto, produziu processos de identificação e análise da disposição dos agentes no confronto ou consolidação do poder simbólico das fontes documentais e dialógicas no campo do Jornalismo. Tais objetivos visavam responder a hipótese delineada, que parte da premissa, de que os documentos curriculares e as práticas seriam recursos de poder e estratégias de (re)conversão - a defesa do diploma como força de distinção - em um campo determinado por crises de autonomia e legitimidade, que acabaram por criar condições para o aparecimento de uma illusio, o campo jornalístico existe apenas/ou é legítimo e autônomo, se houver a diplomação. No processo de identificação de alguns indicadores de nova leitura do exercício de análise construído ao longo desta pesquisa, recorremos a Thompson (1998) com os conceitos de ação, poder e comunicação, que entendemos presentes nos textos dos documentos curriculares. A ação, no documento de 2007, desenvolveu-se na perspectiva dos indivíduos, isto é, no sentido de responder às necessidades apresentadas à Instituição, e ainda ouvir especialistas do campo em vários continentes mundiais para chegar a um texto que contemplasse a todos os envolvidos. Indivíduos ligados à organização mundial ficaram encarregados de um documento inicial, que também contou com a colaboração de professores reconhecidos na área, deixando nítido, neste procedimento, a ação de agentes no sentido de enunciar o documento. Na ação e no poder, os indivíduos dependem das posições ocupadas dentro campo, arquitetadas num contexto social estruturado. Nesta perspectiva, a UNESCO e o MEC, constituídos por indivíduos, normalmente, conquistaram poder entre os seus pares do campo ao longo do trabalho desenvolvido, além de estudos e pesquisas realizados, reconhecidos também como poder. Os que faziam parte das comissões consultadas por estes dois órgãos ocupavam lugar de destaque, não sendo recém-formados ou profissionais com pouca experiência no Jornalismo, construíram no campo, posições ligadas ao poder que tinham e que viriam a acumular. Thompson (1998) classifica o poder como um fenômeno social característico de diferentes formas de ação. A ação é importante no caminho em busca do poder, de acordo com as análises realizadas, pois os indivíduos do campo do Jornalismo buscam determinados interesses ligados ao grupo como um todo, sem perder, nesta trajetória, a oportunidade de determinar seu próprio poder. No caso dos documentos analisados, a participação de representantes que encabeçaram as discussões e promoveram o caminho a ser percorrido até a sua consecução, foi um exemplo dessa busca. Em relação aos campos da Comunicação e do Jornalismo ligados ao espaço social, o poder simbólico parece nascer da atividade de produção, transmissão e recepção de significado das formas simbólicas. Na perspectiva de como os jornalistas formados desempenharão sua profissão nestes veículos de produção simbólica, os documentos

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analisados orientam práticas pelas quais os agentes dominariam todas as fases do processo de produção, passando pela transmissão até a recepção. Sendo assim, operadores desta espécie de capital, ao mesmo tempo, seriam operados por ele. Dito de outra forma parece existir um reforço ao uso dos meios de comunicação mediada como parte importante para o entendimento do fenômeno social, isso ocorre, pois, preveem habilidades e competências, além de formas de conhecimento empregadas no processo já citado. A base dos documentos curriculares, defendemos, foi a distribuição de conhecimentos para que os futuros operadores destes meios pudessem desenvolver técnicas e estratégias para explorar da melhor forma possível os espaços de comunicação e informação. A partir deste cenário, segundo os especialistas que atuaram para os organismos que desenvolveram estes documentos curriculares, foi preciso clarear conceitos plurais éticos, técnicos, estéticos - para uma nova compreensão de Jornalismo, que assumiria uma linguagem narrativa e uma eficácia argumentativa, no espaço público. Neste sentido nos documentos curriculares a ideia da eficácia representa interesses desenvolvimentistas, já que as habilidades e as competências para operar os meios de comunicação estão ao alcance de qualquer cidadão incluído no processo das tecnologias de comunicação e informação. Ou seja, dividir este poder, que ao longo do século XX foi apenas do jornalista, pareceu um problema a ser solucionado na formação dos profissionais, que devem acompanhar e responder a todas as necessidades impostas pela tecnologia. Esse procedimento, de acordo com Thompson (1998) faz parte da primeira característica da comunicação mediada ou mídia, que é a utilização dos meios técnicos para o avanço e as possibilidades de produção de conteúdo. Entendemos que a profissionalização sugerida nos documentos curriculares é peça-chave, pois estão previstas na formação as capacidades de escrever, ilustrar, editar, produzir material para diferentes formatos de mídia (jornais e revistas, rádio e televisão, e meios on-line e multimídia), bem como o conhecimento da legislação da comunicação, da informação e sobre a economia política da mídia, incluindo tópicos como propriedade dos meios, estrutura organizacional e competição. Quanto ao campo do Jornalismo propriamente dito, os documentos curriculares o tratam com destaque, já que as propostas são direcionadas exatamente para a formação deste profissional. Traquina (2005, p. 19) classifica algumas características de um campo como “a disputa de um prêmio pelos agentes sociais e a existência de um grupo especializado que afirma possuir um monopólio de conhecimentos e saberes especializados”. Dessa forma os documentos analisados apresentam, ainda, o que Bourdieu (2007, p. 139), destaca como sendo uma contradição patronal, na diplomação de profissionais de área específica. Sendo que o objetivo é “conservar as vantagens que a titulação oferece à classe dominante, sem deixar de controlar o acesso das outras classes ao poderes conferidos pelo diploma”. Tanto a UNESCO quanto o MEC defendem a diplomação dos jornalistas por meio da utilização do currículo na formação dos mesmos. A UNESCO, como um órgão internacional entende as diferenças entre os modelos educacionais dos países interessados, mas sugere a formação em nível superior como adequada aos interesses das chamadas democracias emergentes.

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No caso brasileiro, como a discussão é específica, o diploma para os jornalistas é a principal defesa realizada, e a construção argumentativa para tal encontra no documento curricular, as justificativas históricas para o posicionamento dos especialistas responsáveis. De um lado, não é dada qualquer concessão para os interesses diferentes daquele que balizam o ensino superior em Jornalismo e a diplomação dos profissionais formados por ele; de outro, a estratégia foi ouvir todos os participantes do processo jornalístico em audiências públicas e os outros canais abertos para a manifestação de qualquer cidadão interessado no processo apresentado. O desenho dos documentos curriculares revela estratégias de reconversão dos agentes do campo do Jornalismo, qual seja, de um lado, a UNESCO (2007) preocupada com o controle social pelo estabelecimento de recursos de poder, considerando para tais interesses internacionais como parte de suas estratégias; de outro, o caso documento do MEC (2009), elaborando como estratégia de conversão a transformação do diploma no poder simbólico do campo, mesmo com sua suspensão pelo STF, pois inserido no campo educativo, o documento tem garantia de validade. Como possibilidade de análise deste movimento, o que parecia ser o fim de todas as possibilidades do campo acabou por representar o começo, pois quase que, simultaneamente, o MEC recebeu da comissão de especialistas do campo um documento essencial, estratégico para o campo do Jornalismo, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Jornalismo, que atualizaram o cenário caótico, inclusive, fazendo menção no texto do documento sobre a suspensão da obrigatoriedade do diploma para o exercício do Jornalismo. O documento do MEC vem reforçar todos os limites que haviam sofrido tensão por causa da decisão do STF e representa como defendemos: a expressão mais objetiva dos recursos e estratégias dos agentes. Como documento para o campo traz uma possível autonomia com intenção de conservar, mesmo que com transformações, os limites e apresentam-se como lei própria, determinando o que os agentes interessados podem e o não se podem fazer. O documento brasileiro cria o espaço para o agente estabelecer suas relações objetivas, oferecendo ainda volume para os capitais disponíveis. O documento do MEC proporciona por meio destes capitais, os reconhecimentos de competência e de autoridade aos operadores e operados por ele. Obviamente que para todos os agentes do campo, o primeiro impacto deste período foi o da suspensão do diploma de forma definitiva, mas logo depois o documento do MEC veio trazer possibilidade de lucro para os agentes do campo. Pelo conceito de estratégia, o documento curricular do MEC é a sustentação da estrutura do campo, clamando por sua conservação, já que neste momento de crise instaurada, ganha um suspiro de vida para que os agentes possam investir objetivamente em capitais que poderão trazer lucros e sustentar todos os depósitos feitos na conta do campo, pelos que lá já estavam como profissionais ou professores, estudantes e daqueles que possam vir a fazer parte dos limites impostos. Este documento é a possibilidade dos agentes traçarem relações de reconversão dos capitais que até então utilizavam como forma de manter a autonomia nas suas posições internas. Daí a confirmação de que ele, neste momento, é o capital mais rentável para os ocupantes deste campo instável. A aposta é única, não existem outras alternativas

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que deem aos agentes, as chamadas oportunidades reais de lucro. Com elas autorizadas pelo governo brasileiro, a possibilidade do diploma voltar a ser o documento de maior valor do campo tem condições de ocorrer. Justamente neste sentido, este documento passa a ser a principal estratégia para o reconhecimento da formação do jornalista como único limite para a entrada e permanência no campo. Estrategicamente isso pode dar um valor absoluto ao diploma como documento essencial para estas operações internas e externas do campo jornalístico. Todos os investimentos dos agentes devem ser feitos neste sentido de depositar no diploma os valores mais disputados e fazer com que ele reconquiste o seu posicionamento na estrutura de sustentação do campo. Para o Brasil, o documento do MEC é o único caminho possível para que esta estratégia seja institucionalizada. Por conta disso, entendemos que o único capital que pode ser distribuído no campo do Jornalismo é o que veio por meio do diploma de jornalista no ensino superior, outras práticas como chamamos, também incidem nesta proposta, mas o único homologado/ autorizado/reconhecido até agora, primeiro semestre de 2015, é o do MEC. Todas as possibilidades de lucro do campo apontam para o diploma como dispositivo com maior potencial de limite para a estabilidade. Por consequência, entendemos o habitus que precisa ganhar permanência e durabilidade é apenas aquele ligado aos que detém o diploma, conseguido somente nos bancos escolares do ensino superior. O diploma representa para os agentes uma forma de resistir às forças externas ao campo, que provocaram e mantiveram as tensões e crises ao longo da primeira década deste século, notadamente no território brasileiro. Como força de resistência, o habitus orienta estudantes, professores e profissionais no sentido da sustentação pela instituição de um diploma e o documento curricular brasileiro trata de reforçar este limite, levando em conta inclusive o cenário de instabilidade provocado pela queda da exigência do diploma para o exercício da profissão. E mesmo com ele suspenso, no campo da Educação continua com sua validade e ganha valor por ser balizado como único meio de ter acesso ao campo de forma organizada, pelo conhecimento legítimo e autorizado. Nesta contradição, o mercado de trabalho/ emprego, também de forma estratégica e assumindo o habitus empresarial prefere contratar os oriundos do diploma e da formação superior. Diante disso, a instabilidade se apresenta, nas articulações dos agentes do campo que sustentam todas as modificações impostas e conseguem, mesmo que com grandes dificuldades, manter os limites, provocar investimentos e estabelecer regras para os que pretendem transitar pelo campo e toda a complexidade que a estrutura enfrenta pela sua autonomia na busca pela legitimidade não só interna como externa também. Não fossem os habitus dos agentes, as forças externas ao campo poderiam tê-lo desfigurado e a possibilidade de configurar e reconfigurar seria mais complicada, ou então, inexistente. Os capitais dos agentes do Jornalismo foram e são base para que os limites continuem a existir e as lutas incessantes sejam travadas no jogo, sempre na intenção de fortalecer o campo para que todos, em suas disposições, lucrem com os depósitos e investimentos feitos no espaço da formação do jornalista. Desta forma, os que não estão bem colocados no espaço do campo, terão que se reposicionar ou não farão mais parte dele.

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O documento do MEC evidencia que no movimento de reconfiguração do campo, a partir destes conceitos analisados, pelo menos, neste momento, é o único documento de suporte das estratégias e dos habitus dos agentes interessados e envolvidos pelos limites do campo. Ao mesmo tempo que dá suporte, é expressão deles. Como suporte e expressão não se pode flexibilizar para que os limites sejam alterados e modificados, as articulações ou a falta delas em determinados momentos acabaram por complicar sobremaneira a existência do campo do Jornalismo, suas estratégias de conversão e reconversão de capitais e também os habitus sustentados pelos agentes integrantes e interessados nos lucros obtidos pelo jogo e as movimentações de forças na constituição do campo. Entendemos que os responsáveis pelo documento brasileiro preocupados com o cenário de crises insistentes que o campo vinha passando, souberam canalizar e expressar os investimentos que poderiam ser feitos pelos agentes a partir de apenas um dispositivo que é o diploma. Valorizando este documento, todos os envolvidos poderiam direcionar seus esforços para a autonomia e legitimação do documento curricular e do resultado dele na formação em nível superior de jornalistas, só desta forma os limites poderiam ser estabelecidos fortemente entre os agentes. O diploma é apresentando como um capital mais rentável e legítimo para dar autonomia ao campo e neste momento apenas o único que oferece ao agente as oportunidades reais de lucro. Neste ponto defendemos que ele, como resultado do documento curricular, também é expressão dos recursos de poder e da estratégia de conversão. Todo este contrato está descrito e prescrito nas vinte seis páginas do documento do MEC. São habitus que deverão ser incorporados pelos agentes como estudantes, professores e profissionais, pois eles serão os principais atingidos por estes capitais disponibilizados para os autorizados a entrar no campo do Jornalismo. Resultado e expressão de tensões e crises, o documento do MEC pretende estabelecer por meio de maneiras duráveis e permanentes resistência às forças internas e externas, estas últimas as que precisam ser limitadas com mais urgência. O limite é palavra-chave no caso do documento brasileiro, pois com o diploma suspenso por decisão do STF, no campo da Educação continua com o seu valor e ganha mais ainda por que se encontra homologado pelo Ministério da Educação. Com a estrutura delimitada de forma textual, o documento do MEC oferece posições bem estáveis para os agentes, pelo menos teoricamente. Defendemos que ainda teóricas, elas são as únicas disponíveis para aqueles que podem investir capitais e acumular lucros com este movimento. O documento do MEC prescreve pela conservação e estrutura do campo do Jornalismo, deste modo impulsiona a legitimação da formação do jornalista e o diploma como lutas prováveis e necessárias na perspectiva de dar autonomia aos investidores dos mais variados capitais disponíveis no espaço do processo de formação dos jornalistas. O documento do MEC revela características de um currículo com estratégias bastante claras com relação aos objetivos que pretende atender em consonância com todos os interesses disponíveis e importantes para os agentes permanecerem na crença de investimentos ligados ao diploma e todos os benefícios e poderes que pode trazer aos autorizados por ele. Seguindo a análise, agora a partir do que denominamos de crises, Bourdieu (2008, p. 37) nos lembra que existe a necessidade de se fazer a história social da emergência

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dos problemas, de como são constituídos progressivamente, “para não ser objecto dos problemas que se tomam para objecto”. Ele ainda diz que este trabalho é coletivo, realizado na concorrência e na luta, o que provoca o reconhecimento destes problemas como legítimos e oficiais. Desta maneira percebemos a construção da “história social da emergência desses problemas” revelando-se como fundamentação necessária para mapear as grandes crises do campo. Como identificamos na investigação, a primeira ocorre na força dos campos de Comunicação e do Jornalismo e nos passos iniciais da formação do jornalista, instaurando a dúvida sobre a profissão, suas funções e disfunções. A segunda com a diplomação e suas suspensões provisória e definitiva, como estratégias para contornálas identificamos as propostas do Conselho Federal de Jornalismo e das Emendas Constitucionais, bem como a que consideramos a principal, os documentos curriculares da UNESCO (2007) e do MEC (2009).

NOTAS FINAIS: RECURSOS DE PODER E ESTRATÉGIAS DE CONVERSÃO NO CAMPO JORNALÍSTICO Com o futuro incerto por conta destas crises, alguns desistiram dos cursos, do mercado de trabalho/emprego, enfim dos investimentos nos limites do campo. Mas muitos persistiram na defesa da profissão, tanto que mesmo seis anos depois, no ano de 2015, os agentes continuam depositando seus mais diversos capitais no Jornalismo, bem como em estratégias para reverter esta situação a partir de documentos em várias áreas e por eles tentando reforçar o habitus da profissão. Talvez, inclusive, esta investigação faça parte deste tipo de capital. Na análise deste poder, aos agentes do campo do Jornalismo resta o investimento nestes recursos e estratégias de conversão disponíveis que apontam para uma economia da diplomação. Os documentos curriculares analisados apresentam-se como expressão destes recursos e estratégias e revelam o diploma como a distinção possível e recurso para todos os investimentos dos agentes interessados nos limites do campo. Entendemos que o ritual imposto pelo diploma, as palavras contidas neste documento enunciam os limites, impõem pela competência técnica mesmo que ela não seja perfeita, oferecem os lucros para aqueles que o detém, além de trazer também o ônus. É possível determinar que os agentes do campo do Jornalismo, empossados pelo diploma que só o campo educativo pode oferecer, transformam-se em locutores legítimos que podem exercer a profissão com autoridade. Eles conquistam, a partir deste documento, o direito de usufruir de uma competência social e, o poder simbólico conquistado pela autonomia das palavras inscritas no diploma, demonstra competência ampliada com relação ao mercado de trabalho/emprego. O grupo de agentes diplomados ganha força, pois investe com este objetivo. Com o diploma, a estrutura do mercado de trabalho/emprego relaciona-se com a competência dos jornalistas, mas somente com aqueles que passaram por uma formação. Nesta perspectiva, os diplomados são os locutores legítimos do campo, pois resultado de uma situação legítima e constituídos por um mercado com forma também legitimada. O diploma estabelece as leis do poder simbólico instituído, a partir das relações em que ele foi produzido no mercado.

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Defendemos que sem o diploma, os agentes do campo estão condenados a uma luta interna e externa pela defesa de um capital ameaçado. Nesta trajetória o diploma oferece aos agentes detentores dele um valor distintivo, ou seja, um valor social. Este lucro, ou mesmo a possibilidade dele, só pode ser alcançado pela formação no sistema de ensino superior brasileiro e como sugestão em nível internacional, levando em conta a UNESCO, pela mesma trajetória em 193 países, integrantes da organização mundial. Entendemos que, desta forma, o mercado apresenta-se estável, estruturado por este reforço coletivo em torno de uma chance objetiva de lucro. Este estudo realizado expressa como registro da trajetória dos agentes do campo do Jornalismo, mais um recurso de poder e estratégia de (re)conversão das crises, que ainda insistem em permanecer no campo, na tentativa de posicionar outros objetos neste processo de formação do jornalista, entre eles os documentos curriculares com forma de estabelecer acesa a chama de um campo de forças com agentes interessados na manutenção de seus poderes e investimentos em relações permanentes e constantes, que representam resistências, no sentido de transformar e conservar as forças instituídas ao longo de uma construção sócio-histórica ou histórico social estruturada. Nesta construção em andamento é importante destacar o que já identificamos sobre a importância do agente/estudante, do mercado de trabalho/emprego e da academia neste suporte ao campo do Jornalismo. Para Bourdieu (2007), poderes novos e antigos transitam pelo campo e, de forma natural, o agente/estudante está mais disposto a operar com os novos poderes que lhes são oferecidos. A energia destes estudantes sempre foi utilizada no sentido de engrossar as frentes do exército que defende as fronteiras do campo. Se dispostos estrategicamente no campo educativo com toda energia para entenderem os limites e possibilidades da profissão que decidiram para a vida toda, investem nos novos poderes, pois tem mais facilidades para empreender reconversões do que aqueles que estavam ligados aos velhos poderes da profissão regulamentada. Estes agentes, compostos por professores e profissionais formados, tiveram à disposição a estabilidade, a autonomia e a legitimação, por isso têm mais dificuldade em fazer movimentos de reconversão dentro do campo. Mas notadamente a experiência que tiveram serve para injetar combustível nos agentes mais interessados em conseguir o diploma. Este discurso estratégico é multiplicado na academia, que tem seus interesses no processo de diplomação, pois é alimentado por ele, e de forma consciente utiliza da capacidade do agente/estudante como empreendedor do poder simbólico disponível para limitar o campo do Jornalismo. Entendemos que este processo encontra eco no mercado de trabalho/emprego onde também o agente/estudante frequenta como estagiário. Ao mesmo tempo, que serve para estabilizar as oportunidades, pois neste espaço, mesmo com a possibilidade de contração sem diploma, ainda a opção é pelo diplomado - o agente/estudante sofre com as mazelas de exercer a profissão ainda sem diploma, mas com a consciência limpa de que logo terá, depois de cumprir todas as disciplinas e exigências de aprovação curricular, como resultado de tudo, direito ao diploma de jornalista. Como é agente mais novo no campo do Jornalismo e nele permanece por cerca de quatro anos, na academia pelo menos, está disposto às reconversões necessárias na defesa do seu grupo e, para tanto, todas as indicações idealizadas na trajetória em busca do

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diploma são aceitas. Aceitas porque entendem a necessidade de atuação conjunta com os outros agentes interessados na preservação do campo. Como agentes interessados acessam toda a sua rede de ligações utilizáveis, como diria Bourdieu (2007), no sentido de convencer a si mesmos e os outros dos possíveis lucros que virão. O agente/estudante encampa estratégias de investimento social e acaba por ser resultado delas, uma vez que na academia utiliza-se da rede de ligações no intuito de cumprir as disciplinas, fazer os trabalhos, participar das atividades do curso e quando necessário depositar recursos que vem recebendo pela autonomia e legitimidade do campo. No mercado de trabalho/emprego, o sistema de ensino também é reproduzido pelo agente/estudante ao defender o diploma, mesmo que de forma inconsciente, pois nas redações que estagia representa os investimentos do campo educativo na hierarquização do certificado escolar. A sua presença é poder simbólico do movimento estratégico do campo do Jornalismo reproduzindo-se em toda estrutura social. Nas tentativas da academia em controlar a entrada de profissionais formados, também faz concessões e admite as distorções para que continue a estabelecer os posicionamentos junto ao mercado de trabalho/emprego. Sendo assim, os agentes da academia tanto professores quanto estudantes precisam manter esta rede de ligações, como definiria Bourdieu (2007), com o mercado de trabalho como recurso de poder e estratégia de conversão disponíveis para ser acessadas quando necessário. Estas relações devem tornar-se eletivas para ser, de acordo com Bourdieu (2007, p. 68), “subjetivamente sentidas (sentimentos de reconhecimento, de respeito, de amizade, etc.) ou institucionalmente garantidas (direitos)”. O mercado de trabalho/ emprego aplica o mesmo movimento com a relação à acadêmica e seus representantes, as relações também ocorrem de forma necessária e eletiva apontando para interesses econômicos, políticos e sociais, que garantem ainda sentimentos e diretos. O diploma entendemos nesta relação entre academia e mercado, pode ser encarado como direito e sentimento, simultaneamente. Para a academia e os agentes dela, os investimentos são no sentido dele ser encarado apenas como direito, mas, neste momento em que está suspenso no campo jurídico, uma relação sentimental com ele pode parecer suficiente. Partindo desta ideia, entre uma das possíveis leituras e análises, a que descreve e prescreve trajetórias para a instituição do diploma, como única força estável para a manutenção do poder simbólico da profissão de jornalista, parece ganhar corpo a cada dia. É tentativa para todos os agentes interessados em instituir o rito e reforçar a representação do campo que também fazemos parte, investimos recursos e apostamos forças para mantê-la, pois precisamos de um campo para lutar, de um jogo para jogar. No poder relativo que temos dentro do campo, este estudo se apresenta como contribuição para o movimento histórico social vivido nos anos de regulamentação e suspensão da profissão de jornalista, com todas estas redes de ligações instituídas. Por fim, a formação do jornalista realizada na academia e, o mercado de trabalho/ emprego que recebe este profissional, apresentam-se como sínteses da construção pretendida, isto é, os recursos de poder e estratégias de conversão estiveram canalizados, principalmente, desde o final do século passado e a primeira década deste, no sentido de sustentar as redes de ligação entre estes dois espaços sociais e, desta forma manter

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as relações sociais utilizáveis. Este elo é o diploma, que só o jornalista formado por uma instituição de ensino superior tem direto institucional e, consciente ou inconscientemente, nutre sentimentos por ele e pelo campo em que ele é produzido.

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A autorreferencialidade na construção da narrativa jornalística: um estudo das reportagens de Antônio Callado sobre o Vietnã do Norte The self-referentiality in construction of narrative journalism: a study of Antônio Callado’s articles about North Vietnam Lilian Juliana M artins1

Resumo: Desdobramento do projeto de pesquisa de Doutorado do programa de pós-graduação em Comunicação Midiática da Unesp, este trabalho apresenta como as marcas da autorreferencialidade na produção jornalística de Antônio Callado potencializam as estratégias enunciativas da reportagem e amplificam a produção de sentidos do fato narrado. Tendo como objeto as reportagem sobre o Vietnã do Norte, publicadas pelo Jornal do Brasil, em 1968, e posteriormente reunidas no livro “Vietnã do Norte: Advertência aos Agressores”, o artigo mostra que a presença de Callado em suas reportagens apresenta aos leitores o jornalista imerso em complexas relações para a operação da linguagem. Considerando os estudos de Antônio Fausto Neto e de Eloísa da Cunha Klein, sobre jornalismo e autorreferencialidade, esta investigação indica a técnica apurada do jornalista e, a partir de uma análise aproximada de sua narrativa, expõe caminhos para o estudo conceitual e para a prática da reportagem.

Palavras-Chave: Reportagem. Antônio Callado. Autorreferencialidade. Abstract: Consequence of Doctor research project of graduate studies in Media Communication in Unesp, this work shows how the features of selfreferentiality in the Antônio Callado’s journalistic productions potentiate the expository strategies of report and amplify the production of meaning from the fact narrated. Having as object the report on North Vietnam, published by Jornal do Brasil, in 1968, and after gathered in the book “Vietnã do Norte: Advertência aos Agressores”, this paper introduce that the Callado presence in his articles represents to the readers the journalist immersed in complex relations for the operation of language. Considering the studies of Antonio Fausto Neto and Eloisa da Cunha Klein, about journalism and self-referentiality, this investigation indicates the refined technique of the journalist and, from an approximate analysis about his narrative, expose ways for the conceptual studying and for the practice report.

Keywords: Report. Antônio Callado. Self-referentiality.

1.  Doutoranda do programa de Comunicação Midiática da Universidade Estadual Paulista - UNESP - Bauru. Lilian é mestre pela mesma universidade. Email: [email protected].

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E

M UM momento em que o jornalismo, em suas diferentes formas de representação,

reconhece-se em crise, a investigação sobre a utilização das técnicas narrativas capazes de revitalizar o gênero reportagem mostra sua urgente importância. De que forma a reportagem pode suscitar no leitor/receptor não só o interesse e envolvimento pelo assunto da pauta como também estabelecer com ele um vínculo de interação discursiva? Como alcançar um contrato de honestidade entre jornalista e leitor sobre o que está sendo narrado? Para responder tais questionamentos, a produção jornalística de Antônio Callado apresenta um caminho fecundo para investigação. Apesar da impressionante qualidade narrativa das produções jornalísticas de Antônio Callado, o destaque para sua obra fixase em seus trabalhos como romancista, especialmente em Quarup (1967), considerado seu livro mais famoso. As reportagens de Callado sinalizam uma importante contribuição para o entendimento de como a autorreferencialidade pode contribuir na estratégia discursiva para a construção de narrativas. Para tanto, o livro “Vietnã do Norte: Advertência aos Agressores” apresenta-se como exemplo ilustrativo do que Callado realizou como jornalista. Foi às vésperas do endurecimento da Ditadura Militar no país que o Jornal do Brasil empreendeu uma de suas mais ousadas reportagens, enviando Callado à Guerra do Vietnã, em 1968. A série de reportagens do Jornal do Brasil foi reunida no livro publicado pela editora Civilização Brasileira, em 1969. O único jornalista da América Latina a conseguir chegar no Vietnã do Norte, Callado percorreu o território sob ataque tentando entender como um país miserável derrotou a França em 1954 e estava conseguindo resistir a fúria dos bombardeios norte-americanos desde 1964. Para isso, conversou com toda a gente que se colocava em seu caminho: dos plantadores de arroz participantes da resistência vietnamita aos líderes do Comitê Permanente da Assembleia Legislativa. Além de fazer uma descrição detalhada sobre os cenários e os personagens que encontrou, Callado coloca-se na narrativa. As marcas de autorreferencialidade se apresentam em cada página da reportagem e colaboram para o entendimento daquilo que o jornalista pretende apresentar. O trecho a seguir exemplifica as marcas autorreferenciais de Callado no texto: Diante de mim sentou-se um administrador local, da nacionalidade Muong. Perguntei-lhe por que estavam tão viçosas as lavouras numa província tão castigada pelos franceses até 1954, e pelos americanos, a partir de 1964. Ele bate a cabeça, fita pensativo, no terreiro da aldeia, o sino que convoca os habitantes para reuniões ou repica o alarme antiaéreo. O sino é a parte superior de uma bomba que não explodiu. Indago se é uma bomba americana e meu intérprete de todos os momentos traduz: - Sim, mas jogada pelos franceses no tempo de Dien Bien Phu. Bomba de auxílio americano. Estou diante dele, sentado no chão, meu livro de apontamentos aberto. Ele tira do bolso com orgulho um livro de apontamentos. - Nós éramos, aqui, analfabetos 99 por cento. Eu também era. Quem sabia ler lia vietnamita porque nossa língua não tinha nem escrita. Agora você pode parar na estrada e perguntar que todo mundo sabe ler. E temos nossa escrita também. (Callado, 1977, p.17)

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As escolhas discursivas de Callado podem revelar seu conhecimento sobre os caminhos para a produção de sentidos de uma narrativa jornalística. No trecho assinalado, Callado não só se coloca no texto - “Diante de mim sentou-se”, “Perguntei-lhe por que”, “Indago se é uma bomba”, “Estou diante dele” – como também utiliza outras marcas de autorreferencialidade para ampliar a percepção do leitor sobre o que está sendo narrado. Contar que está com seu livro de apontamentos aberto é revelador como símbolo do que narra a seguir: “Ele tira do bolso com orgulho um livro de apontamentos”. O objeto comum aos dois iguala entrevistador e entrevistado e responde como signo potencial a pergunta de Callado sobre o motivo pelo qual as lavouras, apesar da guerra, estarem viçosas: elas foram resultado do grande esforço nacional em levar a educação a todas as camadas da população e, em consequência disso, a conquista do aprimoramento das práticas de plantio. Antônio Fausto Neto em seu artigo “Enunciação, autorreferencialidade e incompletude” (2007) sugere que leituras como essa só são possíveis de acordo com a forma com que o jornalista decide operar sua narrativa. Duas perspectivas são assinaladas como possíveis escolhas para o narrador: De um lado, a linguagem enquanto dimensão “instrumental” e que, segundo nosso ponto de vista, continua guiando a postura jornalística sobre a concepção de prática discursiva. De outro, a perspectiva “construcionista”, que ao definir linguagem de um ponto de vista analítico, enfatiza a importância de seu papel constituinte como elemento vital para construir as operações enunciativas que vão engendrar as manifestações discursivas. (Fausto Neto, 2007, p.78)

Para melhor compreensão sobre a dimensão “instrumental”, explica o autor, a linguagem estaria apenas a serviço do “ato de fala”, independente das injunções que determinaram sua constituição. Fausto Neto exemplifica essa perspectiva com a matéria jornalística do correspondente do New York Times no Brasil que acusou o então presidente Lula de hábitos alcoólicos. Quando chamado à Justiça para defender sua versão, o jornalista declarou: “O artigo limita-se apenas a veicular comentários, não conhecendo nenhum juízo de valor do próprio requerente” (in Fausto Neto, 2007, p. 79). Sobre sua declaração, o autor comenta: Ou seja, confessa a noção de linguagem apenas como um meio, ao “desconhecer” que a construção do texto passa por complexas operações, pois é dele enquanto enunciador ao escutar pessoas (fontes), ao selecionar materiais, extrair seus fragmentos e agrupá-los no seu próprio texto. Naturaliza seu trabalho, ao “camuflar” seu processo produtivo. (Fausto Neto, 2007, p.79)

Compreendida a perspectiva “instrumental”, coloca-se, na contramão, a dimensão “construcionista” como aquela que entende o sujeito falante da enunciação jornalística imerso em complexas relações para operação da linguagem. Por essa segunda noção sobre a utilização da linguagem, a produção jornalística de Antônio Callado poderia ser localizada. Suas marcas autorreferenciais contrariam a noção de objetividade apresentada pela escolha instrumental. Fausto Neto lembra que operações do repórter

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não se fazem no vazio. Elas se acoplam e subordinam-se a complexas situações do aparelho da enunciação que, enquanto dispositivo, podem ser entendidas como marcas da subjetividade na estrutura da língua. Além disso, estabelecendo possibilidades para que os leitores percebam o processo produtivo pelo qual passou a reportagem, seria possível, segundo o autor, transformá-los em “co-sujeitos” do ato discursivo. Eloísa Joseana da Cunha Klein, em seu artigo “Autorreferencialidade e Jornalismo: reflexões teórico-analíticas sobre a processualidade além do discurso intencional da mídia”, publicado na Compós, em 2013, assinala de que forma a autorreferencialidade contribui para ampliar as leituras possíveis a partir de uma única pauta. Entendemos que, ao tratar do que “se fez para fazer”, os textos midiáticos terminam por fazer outras coisas e exploram a redação continua com as características contextuais de tempo, sociedade, instituição, com as implicações técnicas e materiais e com as pessoas com as quais interage. (Klein, 2013, p.2)

Esses desdobramentos de leituras nas reportagens de Vietnã do Norte se tornam perceptíveis ao se atentar as escolhas discursivas de Antônio Callado.

A NARRATIVA MARCADA PELA SUBJETIVIDADE Joel Silveira, que assina a orelha do livro “Vietnã do Norte: Advertência aos Agressores” destaca a honestidade de Callado em deixar claro em seu texto de que se trata de um registro baseado em sua perspectiva pessoal. O repórter Antônio Callado se conduz, nos seus contactos com a terra e a gente vietnamita, bem como na sua maneira de observar as motivações e a estratégia da fabulosa luta popular, como um pintor impressionista diante da paisagem ou da figura que tem diante dos olhos e que tocou sua sensibilidade. Nada do que vem contado neste livro, que não receio em incluir entre os mais importantes que já foram escritos, em todo o mundo, sobre o drama do sudeste asiático, traz a marca da inautenticidade, da montagem engenhosa, da falsificação bem composta. Pelo contrário, não só pela crueza do que retrata, mas, principalmente, pela exata apreensão dos tons daquilo que foi retratado, as reportagens de Callado que forma o presente livro lembram mais as foto-reportagens de um Cartier-Bresson. (Silveira in Callado, 1977)

A “montagem engenhosa” e a “falsificação bem composta” mencionadas por Joel Silveira se atrelariam a perspectiva “instrumental” do uso da linguagem, indicada por Fausto Neto, àquela dos textos que se constroem a partir da objetividade. Ao usar as marcas da autorreferencialidade, entendidas a partir da dimensão “construcionista”, Callado deixa claro ao leitor que, tal qual uma fotografia, sua narrativa é seu enquadramento sobre o Vietnã. Por esse aspecto, a comparação que Joel Silveira faz entre Antônio Callado e o fotógrafo Henri Cartier-Bresson pode ser reforçada. Para Bresson, que produziu boa parte das fotos mais conhecidas do século XX, as imagens fotografadas devem contar uma história, proporcionar informação suficiente para que o espectador entenda o contexto a partir do qual ela existe e possa imaginar o que vem em seguida. O fotógrafo gostava

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de dizer que sua principal função era “observar, observar e observar”2 e, a partir dessa observação metodológica, encontrar o “instante decisivo” 3 capaz de sintetizar a experiência social contida na imagem. A foto dos chineses apertando-se em uma fila para entrar em um banco em Xangai é ilustrativa sobre esse aspecto. Fotografada em 1948 por Bresson, às vésperas da Revolução, a cena demarca o provável contexto de desespero e insegurança dos chineses com o futuro do país, ávidos por resgatar suas economias.

Figura 1. Foto de Henri Cartier-Bresson mostra a fila de clientes de banco em Xangai na China pré-revolução em 1948 4.

A comparação entre Bresson e Callado é possível. Como o fotógrafo, Callado utiliza como método a observação incansável em busca do “instante decisivo”. No jornalista, essa definição está associada ao momento em que uma conversa ou o comportamento de um personagem revela o contexto em qual ele está inserido. Ao presenciar a “situação decisiva” reveladora de um contexto Callado decide sublinhá-la em seu texto. Sob o subtítulo “A Mulher do Vietnã”, o jornalista demarca um desses momentos ao escolher quais detalhes seriam registrados a partir do encontro que teve com a presidente do Comitê Administrativo na pequena cidade marítima de Sam-son, devastada pelas bombas da aviação americana. 2.  A conhecida declaração de Henri Cartier-Bresson é mencionada no texto “Entre o antes e o depois da fotografia, Henri Cartier-Bresson”. Disponível em . Acesso em: 16 de mar. 2015. 3.  A definição “instante decisivo” foi utilizada por Bresson para formar o título do prefácio de seu primeiro livro, “Images à la Sauvette”, publicado em 1952. O texto de seu prefácio é um registro sobre sua prática, ética e metodologia ao fotografar. “Instante decisivo” é parte de um axioma de Jean-François Paul de Gondi (1613-1679), cardeal de Retz, segundo o qual “não há nada no mundo que não tenha o seu momento decisivo”. Informações disponíveis no link do idem acima. Acesso em: 16 de mar. 2015. 4.  Disponível em: . Acesso em: 16 de mar. 2015.

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A uns 200 metros do mar, à sombra dos coqueiros, a mesa tosca, com um bule e xícaras de chá de porcelana lisa, sem os graciosos desenhos de costume. - Não repare a louça grosseira - disse Thi Chot. - Foi tudo quebrado num bombardeio. E emendou: - Minhas saudações fraternais às mulheres do Brasil! (...) Nguyen Thi Chot era gorduchinha, atarracada e enérgica. Prometi transmitir suas saudações e observei que o serviço de chá podia não ser tão bonito quanto o de costume, mas que, em compensação, era linda a tenda de seda branca que nos dava sombra. - É nylon daqueles pára-quedas americanos que trazem flares para iluminar os bombardeios noturnos. A nova mulher do Vietnã explica, em parte, o êxito do país contra os inimigos e contra a ignorância em que vivia. Como sua pátria, a mulher vietnamita passou sem transição do feudalismo e colonialismo para uma esplêndida posso de si mesma. (Callado, 1977, p.18).

O registro sobre a louça grosseira, consequência dos bombardeios, contrastando com a beleza da tenda branca feita com os restos do nylon de um paraquedas americano revela a adaptação dos vietnamitas à circunstância de guerra. É importante notar que a observação de Callado fica demarcada por sua autorreferencialidade: “observei que o serviço de chá”. O contraste entre o que o rude e o belo observado e indicado no texto reforça a temática em foco por Callado nesse momento: o empoderamento da mulher vietnamita. A mulher em “Vietnã do Norte: advertência aos agressores” não é apenas tema de subcapítulo como eixo para a condução da narrativa. As mulheres percorrem toda a reportagem como personagens heroicos e representativos da resistência vietnamita. A capa da primeira edição do livro, publicada em 1969, pela editora Civilização Brasileira mostra essa intenção representativa de Callado. O jornalista com a cabeça baixa aparece ao lado de uma mulher vietnamita que segura um fuzil. Muito mais alto que sua personagem, Callado parece referenciar a figura feminina ao seu lado.

Figura 2. Capa da primeira edição de “Vietnã do Norte: advertência aos agressores”. Callado parece referenciar a jovem com o fuzil. 5 5.  CALLADO, Antônio. Vietnã do Norte: Advertência aos Agressores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

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Ao aparecer na capa de seu livro ao lado de uma mulher vietnamita, Callado dá a primeira pista ao leitor sobre o que virá nas páginas que seguem: a história da resistência do Vietnã do Norte contada a partir do seu ponto de vista assumido durante todo o percurso da reportagem.

A OBJETIVIDADE EM XEQUE Não é apenas com Callado que a objetividade, determinante no jornalismo convencional, é deixada de lado na tentativa de ampliar as percepções do leitor sobre um texto jornalístico. Em diferentes momentos da história da imprensa tradicional, a forma padronizada de fazer jornalismo é apontada como cerceadora de uma escrita jornalística mais livre e, por isso mesmo, mais reveladora tanto sobre a pauta narrada quanto sobre o entendimento do que significa o processo de produção da reportagem. Condicionados à percepção de quem observa, os fatos são entendidos e organizados a partir de uma complexa lógica cognitiva do jornalista que os confronta. Como indicado por Fausto Neto (2007), a enunciação jornalística, quando atrelada a linearidades e determinações pretensamente objetivas, não dá conta de apresentar as múltiplas indeterminações utilizadas pelo jornalista para construir sua narrativa. Fausto Neto suger que as marcas dessa dimensão situacional na enunciação jornalística indicam a passagem de uma “sociedade do meio”, marcada por uma típica atividade de natureza representacional, para a “sociedade da midiatização”, onde a mídia colocaria suas marcas de autorreferencialidade para sinalizar-se como uma “porta de acesso” dos atores sociais ao mundo de sistemas abstratos. Esse tipo de jornalismo que apresenta suas engrenagens para a construção da narrativa está associado, principalmente, às produções contemporâneas. O programa Profissão Repórter, da Rede Globo, por exemplo, apresenta a autorrefencialidade como o eixo organizador do material noticioso. Mas tais marcas estão presentes em grandes jornalistas referenciados no estudo sobre a teoria e a prática da reportagem ao longo da história do jornalismo. O Novo Jornalismo, por exemplo, colocou na trilha de nomes que marcaram a produção jornalística caracterizada pela liberdade discursiva, aproximada à literatura e marcada por elementos de autorreferencialidade, Truman Capote, Gay Talese, Tom Wolfe, Norman Mailer e Hunter Thompson. Tom Wolfe conta que os jornalistas do New Journalism não se intimidavam com as restrições à utilização da subjetividade do jornalismo tradicional. Pelo contrário, as técnicas utilizadas, muitas delas vindas literatura, eram adotadas justamente para corresponder à dimensão máxima subjetiva intencionada, fisgando de vez os leitores para a reflexão. Wolfe conta a intenção provocativa de seus textos. Gostava da ideia de começar uma história deixando o leitor, via narrador, falar com os personagens, intimidá-los, insultá-los, provocá-los com ironia ou condescendência, ou seja lá o que for. Por que o leitor teria de se limitar a ficar ali quieto e deixar essa gente passar num tropel como se sua cabeça fosse catraca de metrô? (Wolfe, 2004, p.31)

No Brasil, quem investiga as referências de jornalistas que aproximam sua escrita da literatura e apontam marcas de autorreferencialidade, notadamente encontrada em

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A autorreferencialidade na construção da narrativa jornalística: um estudo das reportagens de Antônio Callado sobre o Vietnã do Norte Lilian Juliana Martins

Lima Barreto, João Antônio, Joel Silveira, na experiência dos jornalistas da Revista Realidade – especialmente entre 1964 e 1968 - e em nomes contemporâneos como Caco Barcellos, Zuenir Ventura e Eliane Brum, exemplos de reportagens que apresentam a experiência do repórter como estratégia discursiva. A leitura do início do texto “O Sapo”, de Eliane Brum, é bastante ilustrativa sobre a forma com que esses jornalistas se colocam em seus textos. No texto, a apresentação da jornalista é fundamental para o sentido conotativo desejado pela narradora. O personagem do texto é Seu Vico, um homem paralítico que pedia esmolas no centro de Porto Alegre. Acostumada a passar pelo centro e encontrar diariamente com a figura por anos, a repórter abaixa-se e conhece quem é o homem-sapo. O mais incrível é que o Sapo estava ali havia 30 anos. E há mais de uma década nos cruzávamos na Rua da Praia. Minha cabeça no alto, a dele no rés-do-chão. Eu mirando seu rosto. Ele, os meus pés. Só dias atrás tive a coragem de me agachar e nivelar nossos olhares, subvertendo a regra do jogo de que ambos participávamos. Não nos reconhecemos. Descobri que o nome dele é Alverindo. Ele soube que me chamo Eliane. Contou-me que os amigos o conhecem por “seu Vico”, e o povo da rua por Sapo. Por causa da eterna posição lambendo com a barriga as pedras da rua. Contei-lhe que sou jornalista e escreveria sobre ele. E então apertamos as mãos (...) (Brum, 2006, p. 60).

As reportagens de Eliane Brum foram tema de dissertação de mestrado da autora deste artigo em 2010 e continuam sendo foco de estudos acadêmicos. Já Antônio Callado, mesmo fazendo parte do cenário de jornalistas brasileiros que deixam de lado a pretensa objetividade, é raramente mencionado nos estudos sobre produções jornalísticas que apresentam elementos literários e indicam autorreferencialidade. A técnica utilizada por Callado nas reportagens da série “Vietnã do Norte: Advertência aos Agressores” é, mais uma vez, destacada Joel Silveira: O quem convém destacar nesta magnífica e ao mesmo tempo pungente reportagem de Antônio Callado é o seu tom isento: sente-se, lendo-a, que o seu ator não saiu do Brasil com ideias preconcebidas, levando, senão no bolso, pelo menos na cabeça, o roteiro adredemente preparado do que iria ver e o rol de assuntos sobre os quais iria escrever - capciosa esquematização que tem feito de tanto “repórter”, entre nós e no mundo inteiro, um ser execrável a serviço das mais ignóbeis farsas e das mais deslavadas pulhices (...). Quanto à qualidade literária deste soberbo documentário, desnecessário ressaltá-la: Antônio Callado é um autêntico escritor (...). Podemos, portanto, dizer que destas reportagens de Antônio Callado que Hemingway e Ehrenburg, grandes escritores e repórteres, não as teriam feito melhor. (Silveira in Callado, 1977).

No trecho selecionado, Joel Silveira assinala, além da qualidade do texto de Callado, uma importante constatação: diferentemente de grande parte dos jornalistas que saem da redação com um roteiro pronto de perspectivas a serem abordadas, Callado assume um contrato de honestidade com o leitor ao deixar suas marcas de autorreferencialidade no texto.

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A autorreferencialidade na construção da narrativa jornalística: um estudo das reportagens de Antônio Callado sobre o Vietnã do Norte Lilian Juliana Martins

Apresentadas as considerações sobre a técnica narrativa adotada por Antônio Callado em suas reportagens, sobretudo nos textos de “Vietnã do Norte: Advertência aos Agressores”, sublinha-se, ao final deste artigo, a importância da autorreferencialidade como aspecto amplificador da produção de sentidos do fato narrado. Tal entendimento merece ser considerado no estudo e na produção da reportagem.

REFERÊNCIAS Bulhões, M. (2007). Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática. Brum, E. (2006). A Vida que Ninguém Vê. Porto Alegre: Arquipélago. Callado, A. (1977). Vietnã do Norte: Advertência aos Agressores; Esqueleto na Lagoa Verde. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Castro, G; & Ganelo, A. (Org.). (2002) Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras. Costa, C. (2001). Pena de Aluguel. São Paulo: Companhia das Letras. Faro, J. S. (1999) Revista Realidade: 1966-1968. Tempo da reportagem na imprensa brasileira. Porto Alegre: Da Ulbra. Fausto Neto, A. (2006). Da ‘construção da realidade’ à ‘realidade da construção’. In: Edição em Jornalismo - Ensino, Teoria e Prática. Santa Cruz do Sul: EDUNISC. Fausto Neto, A. (2006).. Enunciação, autorreferencialidade e incompletude. Revista Famecos. 78-85. issn.1415-0549.v1,n.34.p78-85. Klein, E. Autorreferencialidade e jornalismo: reflexões teórico-analíticas sobre a processualidade além do discurso intencional da mídia. XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013. Martins, L. (2010). Aproximações entre Jornalismo e Literatura no debate sobre a crise do jornal: o caso de Eliane Brum. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Social, UNESP. Bauru. Recuperada em 16 de março, 2015, de: https://www.faac.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/Comunicacao/DissertacoesDefendidas/lilianmartins.pdf Moraes Lietie, L.(1982). Antônio Callado. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação. Sodré, M. (2009). A narração do fato. Notas para uma teoria do acontecimento. Petropólis: Editora Vozes. Wolfe, T.(1992). Radical Chique e o novo jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras.

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Aprender jornalismo com jornalistas: uma relação crítica com as narrativas da profissão To study journalism with journalists lives: a critical approach A l i c e M i t i k a K o s h i ya m a 1

Resumo: Este trabalho relata parte de uma pesquisa sobre jornalistas e suas histórias de vida. Lançamos a pergunta: Quem são os jornalistas na história e quais são os limites e possibilidades para agir na profissão? Selecionamos depoimentos de alguns personagens da prática do jornalismo que trabalham no Brasil há mais de 50 anos: Luiz Cláudio Cunha, Jânio de Freitas, Lúcio Flávio Pinto e Elio Gaspari. E estudamos o depoimento de Soledad Gallego-Díaz, jornalista do jornal El País, avaliando o jornalismo em 2012. Os textos dos jornalistas são documentos históricos que nos revelam fatos de histórias de vida e suas relações com as conjunturas e estruturas sociais. Em nossa amostra de jornalistas vimos que a complexidade das práticas da profissão, envolve conhecimentos técnicos, opções éticas e perspectiva política no trabalho em jornalismo. Concluímos que os jornalistas pesquisados representam uma parcela dos profissionais defensores do interesse público. Palavras-chave: Historia de Jornalistas, Jornalismo e Cidadania, Éticas, Brasil, Espanha.

Abstract: This paper discuss the history of some brazilian journalists now and answer the question: Is the Journalism a job for the public interest? The spanish journalist Soledad Gallego Dias analyses the history of the journalism and the ideas about the journalists actions in the democratic countries. The values of journalism are different of the values of the communication. We study the ethic, the expertise and the professional ways of the some brazilian journalists: Luiz Cláudio Cunha, Jânio de Freitas, Lúcio Flávio Pinto and Elio Gaspari. They agree with Soledad Gallego-Díaz: jornalists have to make the investigative journalism, to search the best information against the enemies of the democratic society. Keywords: History of Journalists, Journalism and Citizenship, Ethics , Brazil, Spain

PERSONAGENS E TEXTOS S ESCOLHAS dos sujeitos deste estudo foram definidas pela qualificação profis-

A

sional nos quesitos competência técnica, e opções éticas na profissão,e por terem enfrentado, no trabalho quotidiano, diferentes conjunturas históricas a partir da segunda metade do século XX. 1.  Livre-Docente da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), docente do Curso de Graduação em Jornalismo e do PPGCOM em Ciências da Comunicação. E-mail:almitika@ gmail.com .

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Aprender jornalismo com jornalistas: uma relação crítica com as narrativas da profissão Alice Mitika Koshiyama

Reputamos que os profissionais selecionados demonstraram ao longo de suas carreiras ações que podemos apresentar como possibilidades exemplares de trabalho, mantendo os valores a serem preservados e difundidos para a profissão. Também os escolhemos pela diversidade na forma de trabalhar e por serem, em nossa avaliação, pessoas que souberam preservar os valores do jornalismo, que são diferentes daqueles que pautam a comunicação. Destacamos os documentos que diretamente nos inpiraram a escrever este trabalho: 1 - Luiz Cláudio Cunha. “Todos temos que lembrar”, discurso título de doutor “honoris causa” em jornalismo2 L. C. Cunha. “Generais omitiram até os 22 dias que Dilma Rousseff amargou no DOI CODI” 3 2- Élio Gaspari. 9º Congresso da Abraji4 3 - Jânio de Freitas. Jornalismo, carreira, vida. Roda Viva/ Tv. Cultura SP , transmitido ao vivo em 06/08/2012 5 Janio de Freitas, O Mercado de Notícias - Entrevista publicado em 26 de abr de 2014, Íntegra da entrevista para o documentário sobre mídia e democracia, “O Mercado de Notícias”, dirigido por Jorge Furtado.6 4 - Lúcio Flávio Pinto. OInaTv(1/3) - Lucio Flávio e o Jornal Pessoal - 20/12/20117 OInaTv(2/3) - Lucio Flávio e o Jornal Pessoal - 20/12/20118 OInaTv(3/3) - Lucio Flávio e o Jornal Pessoal - 20/12/20119 Para contrapor aos 4 jornalistas brasileiros, escolhemos o texto da jornalista e mestra, a espanhola Soledad Gallego-Díaz, pela maneira como ela integra os conhecimentos do jornalismo como profissão e como ação pela democracia na história e o seu apelo à cidadania dos jornalistas no instigante texto: Si te van a matar, no te suicides10, apresentado na abertura do 26º curso da Escuela de Periodismo EL PAÍS, em 15/03/2012. Pronunciado para uma platéia, em que também estavam presentes executivos e jornalistas da direção de EL PAÍS, no momento de intensos debates internos sobre os rumos do jornalismo e dos negócios da empresa. E que terminou com a reestruturação da equipe, com cerca de 1/3 dos jornalistas despedidos em outubro de 2012. Cerca de 130 profissionais experientes perderam seus postos, e na avaliação do processo criaram um lugar na internet11 para relatar os acontecimentos e o confronto com a direção do principal executivo da PRISA, jornalista Juan Luis Cebrián.

2.  http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=5052 3.  http://jornalja.com.br/generais-omitiram-ate-os-22-dias-que-dilma-rousseff-amargou-no-doi-codi/ 4.  https://www.youtube.com/watch?v=3Z2w0RAug-0&feature=youtu.be 5.  https://www.youtube.com/watch?v=N0ZJ1ZFRA3Y 6.  www.omercadodenoticias.com.br 7.  http://www.youtube.com/watch?v=JaGyhj0zD30&feature=related 8.  https://www.youtube.com/watch?v=qzabpLT24uk 9.  https://www.youtube.com/watch?v=sdlWj7cqdoY 10.  http://elpais.com/elpais/2012/03/15/opinion/1331836802_010235.html 11.  http://elpaiscomite.blogspot.com.br/

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JORNALISMO, INFORMAÇÃO E DEMOCRACIA Soledad Diaz reconhece: vivemos em um momento revolucionário, com mudanças tecnológicas e profundos desafios para as empresas voltadas para o jornalismo. Os jornalistas devem assumir os aspectos positivos das tecnologias e compreender que temos que atuar em um mundo em transformação, recomenda que há práticas e valores que pertencem ao jornalismo como profissão fundamental para o estado democrático que não podem ser destruidos. Ela lembra: o descrédito sobre o papel da imprensa é acompanhado pelo descrédito à democracia. A jornalista que foi uma das responsáveis pela criação e consolidação do jornal El País, frisou que os jornalistas “De puro medo da morte dos periódicos, os jornalistas terminarão por dar um tiro no jornalismo. Limitar-se a divulgar distintas versões sobre o que aconteceu: é pior maneira de se suicidar. Jornalismo é investigar e buscar a verdade.” 12 Lembrando que há 26 anos atua em El País, Soledad Diaz destacou: “a mudança no modelo da empresa jornalística que se transformou em empresa de comunicação e se investigarmos, de telecomunicação, e provocou uma alteração no modelo de negócios, e consequentemente das formas de trabalhar e destruindo conceitos inamovíveis até então” 13

Como o jornalismo sobreviverá a essa nova realidade na história? Ela reflete sobre as possibilidades para enfrentar as mudanças, e condena tanto a nostalgia do jornalismo do passado e a passiva aceitação de que a profissão de jornalista está morta. Enfim, não é possível aceitar que tudo é comunicação e ela explica as suas razões. Resumimos suas proposições: a) Uma forma de suicidar-se é acreditar que o jornalismo é “nosso”, de uma geração determinada de jornalistas (...). Essa é uma idéia muito letal e funesta, pois leva a não aceitar mudanças, a negar novas realidades e, sobretudo, impede precisamente o que é mais necessário, o debate abero entre jornalistas de todas as gerações e de todos os meios, que nos permita recuperar a importancia como profissionais. b) O problema não é se continuará a haver periódicos em papel ou em meios eletrônicos. O problema é: o que é o jornalismo nesta nova época, como as novas ferramentas o afetam e se essas ferramentas e novos processos podem deteriorar, ou mesmo destruir as regras básicas de nossa profissão. c) Outro modo de se suicidar é confundir jornalismoe comunicação. Quanto mais sei do mundo da comunicação, mais exigente eu fico como mundo do jornalismo. Tudo é jornalismo? De imediato que não. Talvez tudo seja comunicação, porém o jornalismo tem regras, normas e objetivos determinados. Que regras são esssa? Sao as elaboradas por Kovach e Rossenstiel em seu livro “Elementos do jornalismo”: 12.  De puro miedo a la muerte de los periódicos, los periodistas terminaremos pegándole un tiro al periodismo. La peor manera de suicidarse es limitarse a vocear distintas versiones. Periodismo es indagar y buscar la verdad. 13.  (...) un profundo cambio del modelo de la empresa periodística, que es ya una empresa de comunicación y, si me apuran, de telecomunicación, un cambio del modelo de negocio, y, consecuentemente, de las formas de trabajar; una revolución, incluso de conceptos que parecían inconmovibles y que han saltado por los aires.

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“A primeira obrigação de um jornlista é a verdade”. Deve lealdade a todos os cidadãos. Sua essência é a disciplina da verificação. Deve manter a independência em relação àqueles a quem informa. (E também em relação às suas fontes, diria eu). Deve exercer um controle independente do poder.” d) (...) Gostaria também de lembrar as recomendações de Albert Camus aos jornalistas. Suas regras. Eram estas: “Identificar o totalitarismo e denunciar-lo. Não mentir e saber confessar o que se ignora. Negar-se a qualquer forma de despotismo, ainda que contingencial.”. Querem nos convencer de que a verdade não existe. Mas claro que ela existe. Não se trata de verdades filosóficas, nem religiosas, nem judiciais, mas apenas a verdade relacionada aos fatos. É essa verdade que ajuda a sustentação da democracia, porque dá ao cidadão instrumentos para chegar às suas próprias conclusões. E que da aos cidadãos conhecimentos necessários par serem mais autônomos. e) Outra maneira de suicidar-nos é se entregar à pressa. Sempre houve pressas neste ofício.(...) Porém, uma coisa é trabalhar com pressa, e outra é suprimir completamente o contexto dos fatos para ganhar tempo. Um periódico é uma publicação que transmite fatos, contextos, análises e opinião a respeito desses fatos, em um momento concreto. Além disso, gera um espaço público de discussão, de discussão política não de comunicação. f) O pior modo de se suicidar é deixar de perguntar aos fatos e limitar-se a dar voz a diferentes versões. Isto não é jornalismo. Voltamos à comunicação, que consiste em compartilhar mensagens e não em investigar o que elas dizem de correto. Jornalismo, insistamos, é investigar fatos, acontecimentos que tenham interesse público e fazê-lo respeitando algumas regras. O que é de interesse público? . A definição mais clara que encontrei é a que nos oferece o Código de Prática da “Press Complain Comission” do Reino Unido. Diz ele: “É de interesse público detectar e expor delitos ou graves transgressões. Detectar ou expor uma séria conduta antisocial. Proteger a segurança e a saúde pública. Evitar que os cidadão sejam desorientados por declarações ou atos de um indivíduo” (Especialmente se sua conduta contraria aquilo que ele prega.)” g) (...) Não sabemos nada sobre o futuro. Os jornalistas sabem menos ainda. Limitemos a descrever o que acontece no presente e expliquemos porque acontece. As utopias regressivas não nos servem. Porém não nos suicidemos com utopias sobre o que virá. A nós o que é nosso. Percamos essa cultua defensiva que no prende e nos paralisa e comecemos a pensar e a discutir. O jornalismo serviu à democracia e à sociedade e continua sendo vital para sua sustentação. Principalmente, nessas épocas de incerteza. Jornalismo continua sendo a investigação dos fatos em busca da verdade. Porém para saber investigar os fatos, para saber perguntar sobre a verdade, falta ter treinamento e ofício. E orgulho e deterrminação.14 14.  a) Una manera de suicidarse es creer que el periodismo es “nuestro”, de una generación determinada de periodistas. Esa es una idea bastante letal y funesta, porque lleva a no aceptar cambios, a negarse a ver las nuevas realidades y, sobre todo, porque impide precisamente lo que más necesitamos, un debate abierto entre periodistas de todas las generaciones y de todos los distintos medios, que nos permita recuperar influencia como profesionales. b) El problema no es si sigue existiendo el periódico en papel o en la tableta. El problema

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JORNALISTAS EM DIÁLOGO Os jornalistas brasileiros que estudamos também publicam na internet usam às tecnologias digitais para levantar dados, organizar seus trabalhos e manter comunicação com suas fontes e seus leitores, mas não abandonam os princípios do jornalismo, lembrados por Soledad Gallego Díaz. Percebemos que existe da parte deles uma percepção do valor de uso do jornalismo, que transcende a posição de um negócio empresarial. Todos com mais de sessenta anos de idade, reconhecem as injunções econômicas e sociais do mercado, a ideologia que condiciona o trabalho. Mas justamente por terem definições claras do que buscam enquanto e cidadãos, podem avaliar criticamente os seus percursos profissionais ao longo do tempo. No debate sobre os problemas do jornalismo impresso, houve uma perspectiva de que as dificuldades eram principalmente do jornalismo que se pratica hoje. Os grandes jornais não devem abrir mão do seu dever de selecionar as notícias, narrar os fatos de modo intelígivel e interpretar os dados de modo claro e suscinto nas páginas impressas, diz Jânio de Freitas. Criticou a prática de alguns veículos que postam a mensagem para o leitor: buscar na internet o que o impresso não ofereceu. Por que as pessoas iriam comprar um jornal que não lhes oferece uma informação completa? Ele pode sempre procurar detalhes na internet, não o principal O jornal impresso comete suicídio ao procurar imitar a internet, a qual não deve ser vista nem como concorrente, muito es: qué es el periodismo en esta nueva época, cómo le afectan esas nuevas herramientas y si esas herramientas y nuevos procesos pueden deteriorar, o romper incluso, las reglas básicas de nuestra profesión. c)Otro modo de suicidarse es confundir periodismo y comunicación. Cuanto más sé del mundo de la comunicación, más exigente me vuelvo con el mundo del periodismo. ¿Todo es periodismo? Desde luego que no. Quizás todo es comunicación, pero el periodismo tiene reglas, normas y objetivos determinados. ¿Qué reglas son esas? Las que elaboraron Kovach y Rosenstiel en su libro “Elementos del periodismo” “La primera obligación de un periodista es la verdad. Debe lealtad ante todo a los ciudadanos. Su esencia es la disciplina de la verificación. Debe mantener la independencia con respecto a aquellos a quienes informa. (Y con respecto a sus fuentes, diría yo). Debe ejercer un control independiente del poder...” d) (...) Me gustaría también recordar las recomendaciones de Albert Camus a los periodistas. Sus reglas. Eran estas: “Reconocer el totalitarismo y denunciarlo. No mentir y saber confesar lo que se ignora Negarse a cualquier clase de despotismo, incluso provisional”. Quieren convencernos de que no existe la verdad. Pero existe, claro que existe. No se trata de verdades filosóficas, ni religiosas, ni judiciales, sino de la verdad relacionada con los hechos. Es esa verdad la que ayuda al sostenimiento de la democracia, porque le da al ciudadano instrumentos para llegar a sus propias conclusiones. Que les proporciona conocimientos necesarios para ser más autónomos. e) Otra manera de suicidarnos es rendirse a la prisa. Siempre ha habido prisas en este oficio. (...) Pero una cosa es trabajar con prisas y otra, suprimir completamente el contexto de los hechos para ganar tiempo. Un periódico es una publicación que transmite hechos, contextos, análisis y opinión al respecto de esos hechos en un momento concreto. Además genera un espacio público de discusión, de discusión política, no de comunicación. f) La peor manera de suicidarse es dejar de indagar los hechos y limitarse a vocear las distintas versiones. Eso no es periodismo. Volvemos a la comunicación, que consiste en compartir mensajes, y no en averiguar qué tienen de cierto. Periodismo, insistamos, es indagar en hechos, acontecimientos que tienen interés público y hacerlo respetando unas reglas. ¿Qué es de interés público?, La definición más clara que he encontrado es la que proporciona el Código de Práctica de la Press Complain Commission, del Reino Unido. Dice así: “Es de interés público detectar y exponer delitos o graves fechorías. Detectar o exponer una seria conducta antisocial. Proteger la seguridad y la salud pública. Evitar que los ciudadanos sean confundidos por declaraciones o hechos de un individuo”. (Especialmente si su conducta no se ajusta a lo que predica) g) (...) Nadie sabe nada del futuro. Los periodistas, menos que nadie. Limitemos a describir lo que pasa en el presente y expliquemos por qué pasa. Las utopías regresivas no sirven de nada. Pero tampoco nos suicidemos con utopías venideras. Nosotros, a lo nuestro. Perdamos esta especie de cultura defensiva que nos atenaza y nos paraliza y empecemos a pensar y a discutir. El periodismo ha servido a la democracia y a la sociedad y sigue siendo vital para su sostenimiento. Sobre todo en estas épocas de incertidumbre. Periodismo sigue siendo la indagación de los hechos en busca de la verdad. Pero para saber indagar en los hechos, para saber preguntar por la verdad, hace falta tener entrenamiento y oficio. Y orgullo y determinación.

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menos como modelo. Jânio de Freitas e afirma: Jornalistas têm que estudar, e olhar o jornalismo que se pratica, estudar jornalismo e ler e criticar o seu próprio jornal.15 Outro ensinamento dele é sobre a importância das fontes de informação, que podem trazer dados exclusivos e confidenciais, na medida em que o jornalista souber respeitá-las e houver um pacto de confiança mútua. Destaca que o êxito em seu trabalho de colunista de um jornal como a Folha de S. Paulo deve-se à confiança de leitores, e vários deles enviavam informações exclusivas por saber que ele iria publicá-las, mas teria sempre o cuidado de preservar o sigilo da fonte.“A chave é a fonte, não o jornalista.” afirma Jânio de Freitas,16. O que exige dos jornalistas o trabalho de constante verificação dos dados e de fazer o confronto entre as informações que recebem e saber filtrar os interesses que as acompanham. Antes de 1964 havia a partidarização da imprensa, mas o leitor sabia quais eram as preferências de cada jornal. Durante a ditadura, nos anos de maior repressão, Jânio de Freitas trabalhou em outro setor, para voltar ao jornalismo nos anos oitenta. Hoje nota a falta rigor na apuração de vários fatos fartamente divulgados e as redações precárias desses trabalhos. Também observa atos irresponsáveis de jornalistas, que divulgam fatos e não medem as consequências da publicação da notícia, verdadeira ou não, para os envolvidos. Até em casos sem interesse público acontecem atentados à privacidade das pessoas. O jornalista Lúcio Flávio Pinto também elabora a importância de respeitar as fontes de informação e lembra que só pode desenvolver seu trabalho pela relação de confiança construída ao longo de sua vida profissionalcom suas fontes e seuas leitores. Relata situações em que teve acesso a dados com exclusividade porque repórteres de jornais locais recusaram a publicar as informações, como em um caso envolvendo a Polícia Federal e a repressão ao narcotráfico, em que ele foi o único que entrevistou um delegado porque os outros jornalistas presentes foram embora. Reconhece que alguns assuntos e pessoas são censuradas no noticiário, mas nem sempre é a empresa ou o patrão quem manda censurar. Jornalistas também praticam a autocensura. Lúcio Flávio Pinto é radical, defende o princípio ético da busca da verdade dos fatos. É o único repórter, redator, editor de sua publicação do seu pequeno quinzenário, oJornal Pessoal, do Pará, publicado em papel A-4 e impresso em off-set. Lúcio Flávio Pinto, sociólogo paraense que se transformou no mais importante jornalista da Amazônia, um exemplo de luta diante do arbítrio e da truculência da grande imprensa da região. Lúcio Flávio foi agraciado em 2005 com o International Press Freedom pelas denúncias que faz em defesa da Amazônia e dos Direitos Humanos. A credibilidade é o seu maior capital e relata as tentativas feitas por interessados em comprar sua opinião, em troca de anúncios, contribuições financeiras ocasionais ou permanentes. As formas de pressão para fazê-lo desistir vão dos atos de violência física, de ameaças de morte e dos inúmeros processos abertos na Justiça que tomam tempo e dinheiro, embora ele nunca tenha tido informação desmentida pelos desafetos. Para ele o jornal impresso é o documento que tem mais condições de permanência e confiabilidade, ele mantem a publicação na internet, mas com atraso em relação ao jornal que circula, vendido em bancas e para 15.  https://www.youtube.com/watch?v=N0ZJ1ZFRA3Y 16.  www.omercadodenotícias.com br

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assinantes. Relata casos em que destaca a importância de estudar o lugar, o ambiente, as pessoas, os interesses concretos que as motivam, para elaborar suas pautas e executar investigações que resultam em matérias de interesse público, o que faz mesmo que isso desagrade um suposto amigo. Ele explica que trabalhou 18 anos em O Estado de S. Paulo, conheceu a profissão como repórter e fez muitas viagens custeadas pela empresa. Ao sair de lá, aplicou o dinheiro das indenizações trabalhistas para fazer o seu Jornal Pessoal e decidiu viver modestamente para ter a liberdade de publicar de forma independente. Conhecer o contexto dos fatos é que permite desvendá-los, por isso sempre estuda os temas que se tornarão notícias. Saber fazer perguntas e registrar as respostas, avaliá-las e continuar formulando novas perguntas e cuidar de fixar o que se descobre, é a síntese das idéias do jornalista Luiz Cláudio Cunha, apresentadas no seu resumo crítico da história do jornalismo ao receber o título de “doutor honoris causa” em Jornalismo pela UNB. E destaca que o trabalho para os jornalistas brasileiros hoje é fazer perguntas em busca de respostas para temas e problemas da sociedade é. Tendo como cenário os fatos não esclarecidos que ocorreram na ditadura brasileira dos anos 60 e 70 no Brasil, o jornalista julga, em 2011: Os atuais comandantes militares brasileiros foram cínicos nas críticas que fizeram ao projeto do próprio Governo sobre a Comissão Nacional da Verdade, destinada a investigar violações da ditadura aos direitos humanos. Falando em nome do Exército, Marinha e Aeronáutica, no documento revelado pelo jornal O Globo em março passado, os oficiais-generais escrevem: “Passaram-se quase 30 anos do fim do governo chamado militar...”. Só um raciocínio de má-fé explícita impede que se identifique o finado regime de 64 pela palavra que o define com precisão: uma ditadura, nascida do golpe que derrubou o presidente constitucional, trocado pelo rodízio no poder de cinco generais, com atos de força que esmagavam a Constituição, apoiados num dispositivo repressivo que prendia, torturava e matava, julgando civis em tribunais militares, sufocando a política, impondo censura, decretando cassação e forçando o exílio. Pergunto: Os militares fizeram tudo aquilo e ainda duvidam do que fizeram? Afinal, querem que chamem tudo aquilo do quê? Lamento que quase ninguém, na imprensa ou no Parlamento, tenha repudiado este desrespeito oficial para com a história recente do país. É justo lembrar que, nesse pedaço feio da história, os militares não estavam sós. Tinham ao seu lado toda a grande imprensa brasileira, não apenas nos editoriais raivosos, mas na conspiração científica que mobilizou o empresariado nacional nos três anos que antecederam o golpe – como revelou em 1981 o historiador e cientista político uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003), professor da Universidade Federal Fluminense, em seu clássico 1964: A conquista do Estado.17

Coerente com suas posições éticas e políticas, Luiz Cláudio Cunha chegou a participar da Comissão Nacional da Verdade, mas saiu por divergências operacionais. Escreveu uma reportagem que historia a ação da repressão política na ditadura, a 17.  http://jornalja.com.br/generais-omitiram-ate-os-22-dias-que-dilma-rousseff-amargou-no-doi-codi/

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partir de documentos que corroboram a existência de fatos negados pelas autoridades militares. A resposta genérica dos comandantes foi contraposta aos documentos levantados junto aos órgãos de repressão. Inicialmente, surgiu em um jornal impresso com o título original: “Afinal, quem mente? Dilma ou os generais? no jornal JÁ (Porto Alegre, RS), 31/07/2014; O texto foi veiculado depois no Observatório da Imprensa, em 05/08/2014, mas não repercutiu em outros órgãos de informação, na área de reportagens. Este trabalho é repleto de dados, mas há uma posição editorial do seu autor sobre o que foi apurado, conforme vemos nos recortes da matéria: Para atender a um minucioso requerimento de 115 páginas enviado em 18 de fevereiro passado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), as Forças Armadas (FFAA) reuniram suas tropas para produzir um monumento à insensatez e ao deboche: um palavroso, maçante, insolente, imprestável conjunto de 455 páginas de relatórios militares que não relatam, de sindicâncias que não investigam, de perguntas não respondidas, de respostas não perguntadas e de conclusões nada conclusivas, camufladas em um cipoal de decretos, leis, portarias, ofícios e velhos recortes de jornais falecidos. Um histórico fiasco que passou em branco pela indolente imprensa brasileira, confinada a um registro burocrático, preguiçoso, sobre o sonso documento de resposta das FFAA. A maçaroca militar ignorada pelos jornalistas tem de tudo. Tudo para defender o indefensável, para sustentar o insustentável, para dizer o indizível na novilíngua dos generais: nunca houve tortura, nunca aconteceu nenhuma grave violação aos direitos humanos nos quartéis nos 21 anos do regime militar imposto em 1964 pelas Forças Armadas que derrubaram o presidente João Goulart. A sindicância das FFAA lembra, mais pela tragédia do que pela piada, a histórica charge do humorista e jornalista Millôr Fernandes (1923-2012) na edição de maio de 1974 da revista Veja, que mostra um preso esquálido pendurado na parede de uma masmorra. Da fresta na porta da cela surge o comentário consolador do carcereiro: “Nada consta”. Por causa da piada, a ditadura sem graça dos generais endureceu ainda mais a censura sobre a revista então dirigida por Mino Carta. Em resumo, é a pilhéria que repetem exatos 40 anos depois os militares brasileiros, diante das indagações da CNV sobre tortura e morte em seus quartéis: “Nada consta”. Para expor esta cômica contradição em termos, que põe em dúvida até a existência da ditadura, os generais brasileiros recorreram a um arsenal de papel concentrado em 268 páginas do relatório da Marinha, 145 da Aeronáutica e 42 do Exército, um conjunto sem serventia que a Comissão Nacional da Verdade fuzilou sem dó nem piedade. Durante meses, os pesquisadores da CNV, auxiliados por especialistas da Universidade de São Paulo (USP), juntaram documentos, testemunhos e perícias para montar um consistente relatório que prova a ocorrência de graves violações aos direitos humanos nos sete endereços mais notórios da repressão coordenada pelos militares, situados no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. No início de 1970, naquele lugar listado pela CNV, padeceu durante 22 dias de suplício uma estudante mineira de 22 anos, integrante dos quadros de comando do grupo guerrilheiro Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), onde era conhecida pelos

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codinomes de ‘Estela’ ou ‘Vanda’. Na ficha da polícia, ela era identificada como Dilma Vana Rousseff, ou Linhares, seu nome de casada. Passadas quatro décadas, a guerrilheira, presa e martirizada ‘Estela’ tornou-se a presidente da República Dilma Rousseff. Foi investida assim, pela força da democracia, na condição de Comandante-Suprema das Forças Armadas. A torturada Dilma é, desde 2011, a chefe incontestável dos comandantes militares que hoje negam a tortura. Cria-se, assim, uma insuperável contradição ética e institucional entre a autoridade máxima do País e seus comandados de farda: Quem está dizendo a verdade? A presidente da República ou os comandantes das FFAA? Ou, dito de outra forma, quem está mentindo? Dilma ou os generais?18

O jornalista Luiz Cláudio Cunha protesta reportando, opinando, mostrando como deve ser o trabalho dos jornalistas e não se furtou em chamar a imprensa brasileira de “indolente”, “burocrática”, “preguiçosa”. Seu trabalho, impresso em um jornal alternativo de Porto Alegre que tirava cerca de 2.000 exemplares passaria despercebido para a maioria dos brasileiros. Mas foi marcante pelo levantamento de dados e pelo questionamento da despolitização do tema e pelo exemplo de como podemos ligar os fatos da história com a prática do jornalismo. Nenhuma faculdade consegue formar jornalistas prontos. É preciso manter a corrente de experiências entre os que vivenciaram o jornalismo em outros tempos e os novos que estão chegando na profissão. E mostrar o que pode ser feito hoje ainda que as condições sejam difíceis, mas não incontornáveis é o que anima jornalistas experientes. A universidade pode preparar estudantes para iniciar a prática nas redações, sob condições reais de produção. A formação profissional é contínua, lembra Jânio de Freitas: “Jornalistas tem que estudar sempre, olhar o jornalismo que se pratica, estudar jornalismo e ler e criticar o seu próprio jornal.” A aprendizagem na iniciação ao trabalho com os mais experientes é lembrada por Elio Gaspari que, em suas memórias. Expulso da universidade -- foi desligado da UFRJ pela participação no movimento estudantil pós-golpe de 64 -- , voltou-se para o trabalho. Ele lembrou que seus chefes o formaram. Como Luiz Paulo Gazzaneo, e Novos Rumos , jornal do PCB, uma redação pequena conduzida com muito afeto. E Ibraim Sued, com quem trabalhou na coleta de dados para a coluna social dele, observador atento dos erros, organizador do trabalho e um homen educado com todos. Seus anos de formação o ensinaram trabalhar com as fontes, conforme a importância que elas davam à informação e ao tratamento oferecido aos seus entrevistadores, o qual podia ser uma interlocução respeitosa ou chegar ao total desprezo à inteligência. Ele aprendeu fazer o trabalho, saber ouvir, saber pergutar, pesquisar dados com quem sabe, valorizar os colegas que podem agregar dados novos A informação e os contatos feitos na prática do jornalismo e seu interesse pela história o tornaram um dos autores importantes sobre a história da ditadura no Brasil, a partir do golpe de 1964, com a publicação de 4 volumes sobre a história da ditadura na perspectiva dos governanes militares. Lembra importância de organizar informações em arquivos específicos para os jornalistas.

18.  http://jornalja.com.br/generais-omitiram-ate-os-22-dias-que-dilma-rousseff-amargou-no-doi-codi/

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A INFORMAÇÃO CONTRA O MEDO As observações sobre parte das histórias de vida, das obras e das idéias dos jornalistas que examinamos mostram que, de alguma forma, todos defendem o interesse público tal como definiu Soledad Gallego Díaz em seu texto. Que esta não é uma profissão para cínicos, diz ela, citando Kapuzcinski. Ela comenta o documento publicado pelos jornalistas guatemaltecos, talvez um dos mais ameaçados no mundo: “Nada diz que foi fácil para os jornalistas perder o medo diante dos poderosos. Mas, para que serve o jornalismo, se não é para que o resto da sociedade tenha a informação para enfrentar esses medos?” É importante para a sociedade o trabalho com jornalismo investigativo. Exige contexto, credibilidade, testemunho, verificação. Todas essas técnicas exigem um certo tempo e em nenhuma circunstâcia devemos abandoná-las. Devemos ter clareza sobre este ponto. Se as abandonamos, nos suicidamos.19

REFERÊNCIAS Comitê El País (2012). Sítio organizado pelos jornalistas despedidos de El País. Comité El País, http://elpaiscomite.blogspot.com.br/ . Última consulta em 20/03/2015. CUNHA, Luiz Cláudio. (2011) “Todos temos que lembrar”, discurso título de doutor “honoris causa” em jornalismo, in: http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia. php?id=5052 . Última consulta em 15/03/2015. ______ . (2014). “Generais omitiram até os 22 dias que Dilma Rousseff amargou no DOI CODI.”. http://jornalja.com.br/generais-omitiram-ate-os-22-dias-que-dilma-rousseff-amargou-no-doi-codi/ , no jornal JÁ (Porto Alegre, RS), 31/07/2014. Veiculado no Observatório da Imprensa, em 05/08/2014, http://www.observatoriodaimprensa.com. br/news/view/_ed810_quem_mente_a_presidente_ou_os_generais . Última consulta em 15/03/2015. FREITAS, Jânio de. (2012) Jornalismo, carreira, vida. Roda Viva/ Tv. Cultura SP , transmitido ao vivo em 06/08/2012 https://www.youtube.com/watch?v=N0ZJ1ZFRA3Y . Consulta em 26/02/2015. ______ . (2014). O Mercado de Notícias - Entrevista publicada em 26/04/2014. https://www. youtube.com/watch?v=Qy5ek6Z9Q2I Íntegra da entrevista para o documentário sobre mídia e democracia, “O Mercado de Notícias”, dirigido por Jorge Furtado. www.omercadodenoticias.com.br . Consulta em 20/03/2015 GASPARI, Elio. (2014). 9º Congresso da ABRAJI, publicado em 05/08/2014, em https:// www.youtube.com/watch?v=3Z2w0RAug-0&feature=youtu.be . Última consulta em 03/03/2015. 19.  “Nadie dijo que fuera fácil para los periodistas perder el miedo ante los poderosos. Pero, ¿para que sirve el periodismo, si no es para que el resto de la sociedad tenga información con la que enfrentar esos miedos?”. El periodismo de indagación sigue siendo un trabajo importante para la sociedad. Exige contexto, credibilidad, testimonio, verificación. Todas esas técnicas exigen un cierto tiempo y no deben abandonarse por ninguna circunstancia. Eso es algo que debemos tener claro. Si lo abandonamos, nos suicidamos.

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GALLEGO-DÍAZ, Soledad. (2012). “Si te van a matar, no te suicides”, apresentado na abertura do 26º curso da Escuela de Periodismo EL PAÍS, em 15/03/2012 http://elpais.com/ elpais/2012/03/15/opinion/1331836802_010235.html. Última consulta em 20/03/2015. PINTO, Lúcio Flávio. (2011) OInaTv (1/3) - Lucio Flávio e o Jornal Pessoal - 20/12/2011 http://www.youtube.com/watch?v=JaGyhj0zD30&feature=related OInaTv (2/3) - Lucio Flávio e o Jornal Pessoal - 20/12/2011. https://www.youtube.com/ watch?v=qzabpLT24uk OInaTv (3/3) - Lucio Flávio e o Jornal Pessoal - 20/12/2011. https://www.youtube.com/ watch?v=sdlWj7cqdoY. Última consulta em 15/03/2015.

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O sofrimento e o prazer no trabalho do jornalista na perspectiva teórica da psicodinâmica do trabalho Suffering and pleasure at journalist’s work in the theorical perspective of work psychodynamic Cristiane Oliveira Reimberg1 Resumo: Neste artigo, analisamos quando o trabalho é fonte de sofrimento e quando ele é fonte de prazer, a partir da subjetividade de 21 jornalistas entrevistados, de diferentes gerações e com experiências diversificadas, ouvidos para nossa pesquisa de doutorado - “O exercício da atividade jornalística na visão dos profissionais: sofrimento e prazer na perspectiva teórica da psicodinâmica do trabalho”. Fazemos uma pesquisa qualitativa que usa a análise de conteúdo, conforme Bardin, e utilizamos a psicodinâmica do trabalho, delineada por Christophe Dejours, como referencial teórico para pensar a relação entre sofrimento e prazer. O sofrimento no trabalho está atrelado à organização do trabalho, ao próprio conteúdo do trabalho e ao ineditismo da atividade. Os jornalistas suportam os sofrimentos do trabalho e conseguem em muitos casos transformá-los em prazer pelo sentido que dão ao trabalho. Eles acreditam no jornalismo e no seu papel democrático, que pode contribuir para a disseminação de direitos e até para a transformação da realidade. O sentido do trabalho aliado ao reconhecimento do outro e de si mesmo sobre o seu trabalho fazem com que seja possível encontrar a satisfação profissional.

Palavras-Chave: Jornalismo. Trabalho. Jornalista. Sofrimento. Prazer. Abstract: In this paper, we analyze how work can be the source of suffering and how it can be source of pleasure, beginning from the subjectivity of 21 interviewed journalists, from different generations and with different experiences, listen to our PhD research – “The exercise of the journalistic activity from the professionals point of view: suffering and pleasure in the theorical perspective of work psychodynamic”. We did a qualitative research which uses the contents analysis, according to Bardin, and we used work psychodynamic, going through Christophe Dejours studies as theorical reference to think about the relationship between suffering and pleasure. Suffering at work is related to work organization, to own work content and to originality of the activity. Journalists support the sufferings of work and can in many cases turn them into pleasure by giving meaning to work. They believe in journalism and its democratic role, which may contribute to the spread of rights and even the transformation of reality. The meaning of work combined with the recognition of others and yourself about your work mean you can find professional satisfaction.

Keywords: Journalism. Work. Journalist. Suffering. Pleasure. 1.  Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP e Analista em Ciência e Tecnologia da Fundacentro, [email protected]

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INTRODUÇÃO STE ARTIGO se baseia em pesquisa de doutorado iniciada em 2011, no Programa de

E

Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP, sob a orientação da Profa. Dra. Alice Mitika Koshiyama. A tese apresenta como se dá a organização do trabalho no jornalismo, refletindo sobre a relação de sofrimento e prazer no trabalho do jornalista. Para realizá-la, partimos da perspectiva de que a saúde no trabalho é um direito de cidadania. Assim relacionamos estudos sobre a organização do trabalho e saúde do trabalhador com a história do jornalismo e suas práticas organizacionais. Esta pesquisa também originou em 2014 o projeto “O cotidiano jornalístico: organização do trabalho, práticas, prazer e sofrimento”, dentro do Programa Organização do Trabalho e Adoecimento - Proort, da Fundacentro, instituição de pesquisa em segurança e saúde do trabalhador, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego. Trilhamos um caminho de reconstrução das palavras e recuperação das vivências dos jornalistas para perceber os impactos dessa organização à saúde e como são as relações de prazer e sofrimento no trabalho por meio de 21 entrevistas semiabertas com trabalhadores de diferentes gerações. Essas pessoas foram consideradas, levandose em conta a carreira por elas desenvolvida, a pluralidade de veículos, faixa etária e envolvimento profissional. Todo o material foi transcrito e analisado, segundo critérios da pesquisa qualitativa e da análise de conteúdo. Utilizamos ainda a psicodinâmica do trabalho como referencial teórico, não fazendo uso de sua metodologia2. Os estudos de Dejours sobre prazer e sofrimento norteiam a nossa reflexão sobre o trabalho do jornalista. A mediação dessa teoria foi fundamental para analisar o conteúdo das entrevistas. Sem ela, esse trabalho não seria o mesmo. Dejours (1992) mostra que o sofrimento auxilia a produtividade através do uso que se faz dos mecanismos de defesa usados contra ele. No jornalismo, percebemos que há tanto a exploração da tensão e do medo, quanto à neutralização do medo para enfrentar os riscos da profissão em coberturas perigosas. Por outro lado, percebe-se a existência de um prazer proveniente do conteúdo significativo e simbólico do trabalho, o que pode ser indício de uma ideologia defensiva para enfrentar as precariedades do dia a dia. Como afirma Dejours (2012, p.14), o trabalho pode também abrir “as portas ao prazer” e desempenhar “um papel de mediador na construção da saúde”. Além isso, 2.  Dejours (1992, p.141-158) descreve o procedimento metodológico que utiliza. A pesquisa se inicia a partir da demanda dos trabalhadores. Primeiramente é realizada uma fase documental sobre o processo de trabalho e de visita ao local de trabalho. A pesquisa em si se realiza com um grupo de trabalhadores, e os pesquisadores se apresentam e mostram claramente o enunciado do estudo. Depois os trabalhadores expressam suas opiniões. Há uma elaboração coletiva dos temas discutidos nessas reuniões. “O alvo da pesquisa é a relação do coletivo com o trabalho e os efeitos mascarados dos sistemas coletivos de defesa em relação ao sofrimento” (Ibid., p. 145). O material de análise da pesquisa é resultado da discussão coletiva, os comentários são analisados, inclusive as posições contraditórias no grupo. Não se trata apenas da descrição dos fatos apresentados, é feita uma observação clínica pela equipe de pesquisadores e a interpretação das defesas coletivas. O método de investigação consiste na análise do trabalho psíquico imposto ao sujeito. Todo esse material é validado, durante a própria pesquisa, no desenvolvimento da investigação, e em um segundo momento, quando se reúnem os trabalhadores que participaram da pesquisa para lhes devolver uma síntese dos resultados, podendo-se modificar o relatório final a partir das novas contribuições dessa discussão. Essa é a base do procedimento metodológico da psicodinâmica do trabalho, o qual não é utilizado nesta pesquisa. Nós nos baseamos na teoria desenvolvida pelo autor para pensar o sofrimento e o prazer no trabalho dos jornalistas a partir da análise de conteúdo das entrevistas realizadas.

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“o trabalho vivo não consiste apenas em produzir, mas implica ainda transformar-se a si próprio” (p.20). Essa dimensão transformadora do trabalho também é latente no trabalho do jornalista. A psicodinâmica do trabalho pleiteia em favor da hipótese segundo a qual o trabalho não é redutível a uma atividade de produção no mundo objetivo. O trabalho é sempre uma provação para a subjetividade, da qual esta sai sempre ampliada, engrandecida ou, ao contrário, reduzida, mortificada. Trabalhar constitui, para a subjetividade, uma provação que a transforma. Trabalhar não é apenas produzir, mas ainda transformar-se a si próprio e, no melhor dos casos, é uma ocasião oferecida à subjetividade de provar-se a si mesma, de realizar-se. (DEJOURS, 2012, p. 33-34)

OS SUJEITOS DA PESQUISA Para realizar as entrevistas, formamos um grupo heterogêneo com profissionais de diferentes faixas etárias e com experiência em diferentes veículos de comunicação (jornais, revistas, internet, TV e rádio), mesmo freelancers, pois eles também estão submetidos à forma como o jornalismo está organizado e fazem parte dessa organização, em um ambiente permeado de terceirizações, quarteirizações e casos de profissionais que são contratados como pessoa jurídica. Dessa forma, criamos seis grupos divididos por faixa etária: 20 a 29 anos, 30 a 39 anos, 40 a 49 anos, 50 a 59 anos, 60 a 69 anos e mais de 70 anos. Para termos a visão de diferentes gerações, estipulamos que cada grupo teria pelo menos dois entrevistados. Entramos em contato com 41 jornalistas, dos 70 nomes levantados inicialmente. De alguns conseguimos retorno, outros não manifestaram interesse. Por fim, realizamos 21 entrevistas semiabertas, um dos tipos possíveis de entrevista individual em profundidade, buscando um material qualitativo. Foram entrevistados quatro jornalistas do grupo de 20 a 29 anos (Aline Scarso, João3, Priscilla Nery, Vivian Fernandes), cinco jornalistas do grupo de 30 a 39 anos (Bruno Torturra, Leonardo Sakamoto, Maria, Miguel, Pedro), três jornalistas do grupo de 40 a 49 anos (Antonio, Fernanda Cirenza, Ivan Marsiglia), três jornalistas do grupo de 50 a 59 anos (Bob Fernandes, Marilu Cabañas, Paula Puliti), três jornalistas do grupo de 60 a 69 anos (Aureliano Biancarelli, Lúcio Flávio Pinto, Ricardo Kotscho) e três jornalistas do grupo com mais de 70 anos (Alberto Dines, Audálio Dantas, Clóvis Rossi). Optamos por uma análise temática das entrevistas, que, segundo Bardin (2009, p.37) trata-se de uma análise dos significados. A análise temática “é transversal, isto é, recorta o conjunto das entrevistas através de uma grelha de categorias projetada sobre os conteúdos. Não se têm em conta a dinâmica e a organização, mas a frequência dos temas extraídos do conjunto dos discursos” (Ibid., p.220). O tratamento descritivo seria a primeira fase da análise de conteúdo. A criação de categorias permite “a classificação dos elementos de significação constitutivos da mensagem” em espécie de “gavetas ou rubricas significativas” (p.39). Essa classificação tenta fazer emergir um sentido para a análise. Na análise que fizemos, tentamos aliar 3.  Os jornalistas apresentados só pelo primeiro nome optaram por não revelar sua identidade, assim escolhemos um nome fictício para representá-los.

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a busca de um ponto de vista geral, que emerge do todo das entrevistas, com as singularidades específicas de cada entrevistado. Dessa forma, mostramos semelhanças e diferenças, dando espaço também para a história pessoal de cada sujeito. O sofrimento no trabalho e o prazer no trabalho estão entre as categorias utilizadas nesta pesquisa. Apresentamos, assim, neste artigo, parte dos resultados alcançados em nossa tese de doutorado.

ENTRE O SOFRIMENTO E O PRAZER NO TRABALHO O sofrimento no trabalho no jornalismo aparece no descumprimento dos direitos trabalhistas e na forma como o trabalho é organizado. Percebe-se que o sofrimento sempre está presente no trabalho, a questão é se ele terá a possibilidade de ser transformado em prazer. Para Dejours (2012, p. 25), “o real se deixa conhecer pelo sujeito por sua resistência aos procedimentos, aos saber-fazer, à técnica, ao conhecimento, isto é, pelo fracasso imposto ao domínio sobre ele – o real”. O sujeito é confrontado pelo mundo real, de modo afetivo, e se depara com o fracasso. Ao provar a resistência do mundo, a afetividade se manifesta ao sujeito. “Assim, é nessa relação primordial de sofrimento no trabalho que o corpo realiza a um só tempo a experiência do mundo e de si mesmo”. Mas esse não é o fim e sim o começo de uma ação que pode levar à ampliação da subjetividade: O sofrimento é também um ponto de partida. Nesta experiência, concentra-se a subjetividade, o sofrimento torna-se um ponto de origem visto que esta condensação da subjetividade sobre si mesma anuncia um tempo de dilatação, de desdobramento, de reexpansão que lhe sucede. O sofrimento não é apenas uma consequência última da relação com o real, é ainda proteção da subjetividade rumo ao mundo em busca de meios para agir sobre o mundo, para transformar este sofrimento encontrando os meios de superação da resistência do real. Assim o sofrimento será ao mesmo tempo impressão subjetiva do mundo e origem do movimento de conquista do mundo. O sofrimento, enquanto é afetividade absoluta, está na origem desta inteligência que parte em busca do mundo para experimentar-se a si próprio, para transformar-se, para ampliar-se. Neste movimento que parte do real do mundo como resistência à vontade ou ao desejo, para completar-se como inteligência e em poder de transformação do mundo, neste movimento, portanto a subjetividade transforma-se, amplia-se e revela-se a si mesma. (DEJOURS, 2012, p.26)

As colocações mostram um sujeito ativo com possibilidades de ação. Ele pode transformar, mas a dureza da organização do trabalho pode limitar esse sujeito, quando vai contra os desejos e as necessidades dele e bloqueia esta expansão. Heloani (2006, p.194), ao avaliar os resultados encontrados a partir de 44 entrevistas com jornalistas, chega a discutir a questão do sofrimento no trabalho desses profissionais. Para ele, há “um claro indicador de que as práticas organizacionais trouxeram, como efeito colateral danoso, não apenas a corrosão de certos valores básicos, mas, principalmente, a cisão da ideia de qualidade de vida e excelência no trabalho”. Os jornalistas postergam a felicidade, o tempo para a família, para os filhos, para o lazer e para o amor. “Alguns chegam a alegar que fora do ambiente de trabalho só fazem o imprescindível, faltando tempo para namorar”.

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Grisci e Rodrigues (2007, p. 51), que entrevistaram seis jornalistas do Rio Grande do Sul, também chegam a pontuar a questão do sofrimento psíquico a partir da reflexão dos entrevistados sobre organização do trabalho e mostram alguns “pontos de conflito entre vida e trabalho indicados pelos participantes: sensações de desconforto – físico e psíquico –, taquicardia, decepção com a profissão, reivindicações caladas, inspirações frustradas, impactos na vida social”. Ferraciolli (2000), por sua vez, entrevistou 19 jornalistas do Paraná, para a sua dissertação de mestrado, em que avaliou o sofrimento no trabalho desses profissionais. O autor aponta o sofrimento gerado pela organização do trabalho, nem sempre é percebido pelos jornalistas, os quais são tão envolvidos pelo trabalho, que não chegam a refletir sobre suas próprias condições de vida (Ibid., p.7). Há uma naturalização da velocidade do processo produtivo (Ibid., p.61). Outras fontes de sofrimento são os baixos salários, a falta de possibilidade de planejar o futuro e a ausência de reconhecimento pelos outros (Ibid., p.89). Até mesmo o fato de alguns entrevistados se considerarem naturalmente jornalistas (nasceram para isso) gera sofrimento, pois há “um comprometimento intrínseco com a profissão que, quando não é mantido, faz com que o sofrimento apareça na forma de insuficiência com as atividades que realiza” (Ibid., p.99). A questão do sofrimento no trabalho do jornalista também foi tratada durante as entrevistas realizadas para nossa pesquisa de doutorado. Os próprios entrevistados apresentaram o que consideram sofrimento, a partir da pergunta: “O que vê como sofrimento no seu trabalho de jornalista?” Também entram nessa análise outros itens apontados no decorrer das falas, quando houve o uso do termo sofrimento ou algum equivalente. Dessa forma, é a própria percepção do sujeito sobre sofrimento que aparece. Outros sofrimentos, que vieram de questões específicas feitas durante a entrevista, também foram abordados no estudo, mas não serão discutidos neste artigo, são eles: dores e adoecimento, assédio moral, estresse, riscos e violência, álcool e drogas. Os jornalistas convivem diariamente com o sofrimento no trabalho. Há um grande envolvimento com a profissão e não há separação entre trabalho e vida pessoal. O trabalho dá sentido à vida, e o envolvimento e a mistificação da profissão fazem com que se aceitem as condições organizacionais, como o excesso de trabalho, longa jornada, ritmo e pressão, ainda que essas condições sejam fatores de sofrimento. Nas entrevistas realizadas para a tese, esse sofrimento atrelado à organização do trabalho aparece nas falas dos jornalistas entrevistados. As condições de trabalho e a precariedade, as jornadas exaustivas, a pressão contra o relógio e pelo prazo do fechamento, o desgaste físico e emocional, o próprio trabalhar e suas etapas foram citados na questão sobre sofrimento no trabalho. Outros itens considerados sofrimento foram: o fechamento; fazer o trabalho em tempo curto e não ter as melhores condições para realizá-lo; baixa remuneração (não conseguir pagar as contas com seu trabalho); trabalhar fim de semana; a falta de reconhecimento. Também apareceram questões ligadas à subjetividade, autonomia e realização profissional. Assim foram apontados como sofrimento no trabalho: tratar de temas para os quais você não está preparado; falta de espaço para reflexão; cobrir o que não gosta; perseguição e não poder desenvolver o seu trabalho; frustração de não poder dizer tudo; frustração de não trabalhar no que queria; frustração em relação à matéria; fazer pauta

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sem identificação; não ter liberdade para se expressar; não conseguir fazer o jornalismo em que acredita. Pelas falas é possível perceber que o sofrimento faz parte do trabalho como mostra a psicodinâmica. A própria escrita foi citada como um processo doloroso pelo jornalista Ivan Marsiglia – “Escrever a matéria é o mais difícil e desgastante pra mim, porque tem as questões das suas exigências, o que você quer fazer, o que você quer publicar, você quer colocar no material. Esse é o momento mais dramático mesmo, mais cansativo”. As reportagens mais longas são as que mais causam sofrimento, mas, ao mesmo tempo, as que mais lhe trazem alegria depois. Produzir um bom texto, o ato de escrever, é sofrimento para Fernanda Cirenza. “É uma construção. Conseguir pra mim é sofrer. Não é eu fui lá, que delícia, estou escrevendo... Texto de revista é muito diferente de jornal, é pedra sobre pedra, é palavra por palavra...” As condições de trabalho também podem causar sofrimento: o contratante não lhe pagar pelo serviço, você não ter carro para fazer a cobertura, “o seu computador quebrar e ninguém arrumar, isso é sofrido”. O não reconhecimento também a faz sofrer: “o que é sofrido mesmo é você achar que fez um bom texto e alguém olhar e falar não, está tudo errado. Isso dói, às vezes a pessoa melhora o seu texto e às vezes não melhora, isso é sofrível”. O sofrimento na elaboração da matéria também apareceu no depoimento de Audálio Dantas, que se definiu como um sofredor do texto. Para ele, “o jornalista é um angustiado”. Com a pressão do tempo, aliada à preocupação dele com a elaboração do texto, sentia uma angústia muito grande. “Eu estou incluído entre aqueles jornalistas que se chamam o sofredor do texto. É o jornalista que busca a elaboração do texto mais aperfeiçoado possível”. Outro sofrimento relatado por Audálio “é a frustração que certamente existiu e continua a existir de você não poder dizer tudo que você vê”. Na avaliação dele, os jornais atualmente são editorializados, e muitos fatos buscados pelos repórteres não são noticiados. Essa frustração é compartilhada por Lúcio Flávio Pinto, o que ele completa com a falta de repercussão de fatos importantes: É não poder divulgar a informação e, divulgando, que ela não tenha compreensão sobre sua importância. Essa é a principal fonte de sofrimento. Por isso eu criei um jornal que eu sei que vai ser minha fonte permanente de novos sofrimentos, porque tem momentos que eu gostaria que meu jornal tivesse duas mãos pra pegar o leitor e puxar ele pela lapela e dizer, o seu desgraçado, isso aqui é importante. Eu tenho a seguinte diretriz, se eu fizer determinado tipo de matéria, o jornal vende - matéria política, matéria de fofoca, bastidores do poder, todo mundo quer ler. Mas Carajás ninguém quer ler... O jornalismo não é apenas pra reproduzir os fatos, mas também pra mostrar pro leitor a importância daquele fato, para a ação do leitor como personagem da história. Então tem uma função didática importantíssima, pedagógica.... Então esse é um momento que você vê a história passando, você alerta, vamos fazer, vamos fazer, e você está falando pro deserto – Lúcio Flávio Pinto.

Para Clóvis Rossi, sofrimento é não conseguir fazer a matéria que tinha na cabeça quando começou a trabalhar nela ou quando não se tem o espaço suficiente para publicar a matéria, no tamanho que considera ideal, ou ainda “não ter nem espaço para publicar

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nada”, o que às vezes acontece. Já para Alberto Dines sofrimento é “fazer o que você não gosta, escrever o que você não gostaria de escrever, não conseguir colocar a sua energia, a sua vitalidade”. Há ainda aqueles sofrimentos que marcam a trajetória de uma pessoa. Para Alberto Dines, as demissões que sofreu foram dolorosas. Ele calcula cerca de dez demissões, que trouxeram punição pelo que ele expressava: “Você está defendendo o ponto de vista que são aqueles que você acredita melhores pra democracia, pra vida brasileira, e de repente você leva um soco na cara desse...” Um dos episódios mais duros que sofreu foi a saída do Jornal do Brasil: Eu fui saído, e foi saído também o meu substituto, houve um corte muito brusco na cadeia de comando, mas mesmo assim o jornal manteve... A minha saída foi uma das coisas mais sórdidas que eu já assisti alguém fazer, por sorte eu estava muito bem amparado, já fazia análise naquela época, mesmo assim eu tive o baque, porque mudou minha vida... – Alberto Dines.

A demissão de Aureliano Biancarelli da Folha também lhe causou sofrimento. “Eu me senti muito injustiçado. Eu fui mandado embora nas férias, na minha primeira semana de férias, só me avisaram, quando eu voltasse das férias eu estaria demitido”. Ele conta que sentiu “um baque muito grande”, porque tinha seu espaço, seu horário, autonomia, credibilidade: “Eu tinha um nome no meio que circulava e tendo o jornal como porta voz, meio de divulgar, eu ganhava muita força, era um jornalista da Folha de S. Paulo”. O trabalho lhe dava a possibilidade de transformar pequenos temas em assuntos com destaque, como questões sobre diversidade e transexualidade. “Foram temas que eu comecei”. E tinha essa sensação, não que nunca fosse sair da Folha, mas de que nesse veículo eu não seria cortado dessa maneira. E aí eu fiquei tão surpreendido com isso, que eu acho que eu não lidei da melhor maneira, eu deveria ter aproveitado esse momento pra fazer contatos com as redações e retomar meu posto em outra redação, mas como eu já estava há muitos anos lá, tinha sido chefe de redação, eu tinha um bom salário, que os outros não iriam me oferecer... – Aureliano Biancarelli.

Biancarelli passou a fazer trabalhos como freelancer. Foram trabalhos ligados aos temas que cobria como uma publicação sobre crianças com câncer. Mas ele que sempre quis apenas ser repórter, apesar de ter sido chefe duas vezes, sente falta do jornal e do reconhecimento que esse trabalho trazia: Agora passaram dez e eu continuo fazendo essas coisas. Se me perguntasse se eu gosto de fazer essas coisas que eu estou fazendo, eu diria que não. Claro que é melhor do que muita coisa que anda sendo feita por aí, em qualquer publicação, em qualquer veículo, mas na reportagem, no texto, com visibilidade, com repercussão, tenho certeza que não vou ter mais chance de fazer. E acho que eu perco muito com isso, acho que o outro lado perde também – Aureliano Biancarelli.

Marilu Cabañas também passou pelo sofrimento da demissão no SBT. Ela já havia tido problemas éticos em relação a algumas coberturas, com os quais não concordava. Lá chegou a ouvir que tinha um lado na história. Em outra ocasião queriam que ela filmasse escondido um velório de uma criança vítima de explosão:

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Até que um dia teve uma fatalidade. Um carro explodiu, um cinegrafista estava passando e filmou a explosão desse carro. Tinha uma mãe, que tinha resgatado uma filha, e quando foi pegar o menino, explodiu com o filho dentro. E eles colocavam de tempo em tempo, o tan tan tan, assista ao Aqui e Agora, com aquela imagem. E me falaram assim: – Você vai cobrir o velório. – Mas cobrir o velório? Pra quê? – Não, vamos cobrir o caso. – Mas qual o sentido? – Não, é pra cobrir.

A falta de identificação com a pauta e o questionamento sobre o sentido do trabalho já ilustram quando o sofrimento aparece. A jornalista foi com a equipe até o local e pediu que eles a aguardassem. Ela preferiu tentar contato com a família sozinha. Para a tia da criança falou que estava lá em nome do SBT e perguntou no que podia ajudar. “Foi a única coisa que eu consegui falar”. A tia pediu que retirassem a imagem sensacionalista do ar. Marilu repassou o pedido ao seu chefe: – A família não quer falar e pediu para tirar a imagem do ar. Eu dei a minha palavra, por favor, retire agora. – Espera um pouco. Ele foi falar com alguém acima. Não sei quem. Ele voltou e falou para mim: – Marilu, a ordem é para você filmar escondido. Eu falei: – Como é que é? – É para você filmar escondido. – Eu estou com tanto nojo do que você está falando, que eu nem vou voltar para pegar o meu carro no estacionamento. Vou de metrô pra casa. Tchau. E fui embora. No dia seguinte eu voltei para pegar o carro, entrei na redação, não me deram nenhuma matéria – Marilu Cabañas.

Depois desse episódio, Marilu foi trabalhar no Jornal do SBT e acabou sendo demitida como toda a equipe, quando a apresentadora Lílian Witte Fibe foi para a TV Globo. “Eu fiquei muito mal. Já tinha todo um problema no Aqui Agora, questões éticas... Quando eu fui demitida, bom, não sei te definir se fiquei em depressão, mas fiquei dois anos parada”. Ela nunca havia sido demitida. Durante o período, foi fazer análise. Chegou a receber convite para trabalhar na então TV Manchete, mas não quis. Na avaliação de Marilu Cabañas, a perseguição e a falta de liberdade em relação à pauta são os maiores sofrimentos que se pode ter no trabalho. Já Aureliano Biancarelli aponta os sofrimentos cotidianos oriundos do confronto com o real do trabalho: Você esperar e não conseguir falar com a pessoa. Não conseguir achar a fonte que você está procurando. Não conseguir confirmar alguma coisa que você tem como suspeita. Acompanhar a trajetória de pessoas que estão sofrendo injustiças e você não conseguir fazer nada, está conseguindo apenas relatar, você está envolvido de certa forma com isso – Aureliano Biancarelli.

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Outra questão levantada por Aureliano é o luto. Para ele, falta preparo psicológico do jornalista para fazer coberturas de tragédias e lidar com a morte: “Você recebe uma pauta e diz, caiu um avião, pode ter muitos mortos, mas como você vai absorver isso? O jornal não te dá nenhuma retaguarda. Não é uma preocupação do jornal como é que você vai lidar com isso”. Ele recorda como foi a cobertura da queda do avião da Tam: O jornalista acaba no momento do fato tão envolvido com a coisa que, geralmente, ele segura as emoções. Eu vi 100 corpos juntos do avião fokker da Tam no chão. Não me lembro de ter ficado caído em prantos, eu tinha que pegar a informação, quantos corpos eram, se tinha sobrevivente, se não tinha, e depois no dia seguinte você continuava tocando as coisas. Não que você deixasse de sentir – Aureliano Biancarelli.

O sofrimento que o trabalhador sente quando se depara com o inédito do real também aparece na fala de Ricardo Kotscho. “Sofrimento é uma coisa permanente, porque qualquer matéria que você for fazer, importante ou não, grande ou pequena, você nunca sabe o que vai encontrar, o que você vai conseguir”. O jornalista precisa encontrar a personagem, chegar ao local, obter as informações para contar a história. “É um desafio diário, permanente, que você só termina quando você entrega a matéria, e a matéria é editada no jornal.” Para ele, o sofrimento faz parte, e “a insegurança é uma coisa a favor do jornalista”, porque, quem se sente seguro e acha que sabe tudo não é surpreendido por uma boa matéria. “Acho que nesse sentido é sempre bom ser foca a vida inteira... E claro que quando você não consegue, você fica frustrado como qualquer ser humano”. O jovem João, assim como Kotscho, detém-se ao ato de trabalhar quando fala dos sofrimentos: o fechamento, conseguir aquela fonte, fazer o texto mais completo, reunir as melhores opiniões, esgotar todas as possibilidades. “Então se você tem que ouvir todos os lados, ir ouvir todos os lados. E fazer tudo isso em um tempo curto, com condições nem sempre as melhores, acho que isso é o grande sofrimento da profissão.” O próprio fazer jornalístico continua aparecendo em algumas falas sobre o sofrimento no trabalho do jornalista assim como as questões organizacionais. Para Paula Puliti, a pressão contra o relógio é o sofrimento maior. Já Bob Fernandes aponta “as eventuais condições precárias” e um ambiente de trabalho ruim. Ivan Marsiglia, por sua vez, considera a jornada de trabalho extensa e a quantidade de trabalho simultâneo que é preciso realizar como fontes de sofrimento. Para Antonio, o jornalista sofre para produzir a matéria, para o resultado agradar a direção e aos chefes imediatos e com a repercussão entre os leitores. “Se você não cria uma casca pra aquilo, se você não cria métodos pra se desligar ou pra se imunizar disso, eu acho que isso me causa certo sofrimento”. Ele também acrescenta a esse ciclo de produção as condições ruins de trabalho, que fazem com que o jornalista nunca se desligue, ou seja, obrigado a se desligar quando adoece ou porque tomou remédio. “Isso é o que causa maior sofrimento. E numa perspectiva futura saber que aquilo não tem condições de melhorar a não ser que eu saia dessa atividade, que as coisas só vão piorar em termo de condições de trabalho.” O sofrimento no trabalho, com condições ruins e “descompensação da chefia”, aliado à doença na família fez com que Maria deixasse um dos locais em que trabalhou. “Eu não tinha condição emocional de aguentar aquilo.” Sobre a situação atual que vive, Maria fala

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sobre o sofrimento que é fazer parte da Comissão de Empregados e trabalhar em uma empresa pública4, com a sensação de que você está “numa empresa privada fazendo matéria tipo Globo”. Ela coloca como sofrimento “a própria missão do jornalismo. Você não conseguir fazer o jornalismo que você acreditou na faculdade. Eu acho que isso é um sofrimento que eu vejo em muitos colegas...” A jornalista ainda destaca a jornada de trabalho muito pesada com pouco retorno financeiro. Em termos de direitos sociais e de tudo é muito ruim pra vida do jornalista. E isso é sofrer. Então, você trabalha, hora extra, não pagam. Você ter que fazer 10 matérias no dia, e o chefe não quer saber, você tem que fazer de qualquer jeito. Você tem essa pressão, principalmente quem é do mercado, se você não fizer, tem um exército de reserva prontinho pra ocupar sua vaga. Isso eu acho muito cruel... A regulação da profissão do jornalista pelo mercado vai afetar a vida pessoal e causar sofrimento, ela já causa, embora muita gente não perceba que essa é uma relação com o capital, acha que é só uma relação com a sua chefia, no seu microcosmo - Maria.

A questão das longas jornadas de trabalho também foi apontada como sofrimento por Pedro. “Não conseguir ter uma vida social fora do trabalho, ter plantões excessivos no final de semana, ser muito exigido, são esses problemas que eu falei. Não sei se tem algum outro tipo de sofrimento. É isso.” Já para Leonardo Sakamoto “a maior violência é você não poder exercer sua profissão por problemas causados internamente na redação ou externamente na sociedade, (...) e ser tratado da uma forma indigna como um trabalhador”. Miguel também coloca como sofrimento a precariedade do trabalho e as limitações de organização das redações, que obrigam o jornalista a ter jornadas exaustivas, tratar de coisas para as quais não está preparado ou não tem conhecimento suficiente pra tratar. Como Aureliano Biancarelli, levanta o sofrimento de lidar com a morte, a cobertura de grandes tragédias e dos problemas sociais do país. “É um desafio você trabalhar no jornalismo, pensar nisso, e tentar fazer a sua parte.” Ele ainda relata que quando trabalhou na TV e no portal de notícias do interior, teve que fazer cobertura policial, assunto com o qual não tem afinidade e isso lhe causava angústia. Fazer pauta com a qual não se identifica também é causa de sofrimento para Aline Scarso. Outro sofrimento apontado pela jornalista é não ter liberdade para se expressar, apesar de afirmar não passar por isso. “Mas eu acho que é muito triste você não conseguir fazer algo porque alguém te impede”. Ela ainda fala sobre o sofrimento da precarização e de ter que trabalhar nos finais de semana e feriado. “Ontem, por exemplo, eu só tive o dia. Minha mãe emendou, minha irmã emendou, então é triste, eu queria estar com elas e não posso por conta da minha profissão.” Bruno Torturra, por sua vez, vê como sofrimento a falta de recursos para viabilizar seu projeto jornalístico e as injustiças do mundo. “Isso me oprime, me deixa muito triste, me massacra. Ver o que a polícia faz com as pessoas, essa coisa de direitos humanos me afeta muito, me deixa muito revoltado.” Para ele, o jornalismo se conecta com esses 4.  A jornalista na trabalha na EBC,

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problemas intensamente, porque “é uma forma de você lutar por um mundo mais justo, mas também é uma forma de você trabalhar dentro do esgoto”. Priscilla Nery foca o sofrimento na organização do trabalho. A pressão é o grande problema, seja quando ocorre devido à chefia, seja quando vem da própria demanda do trabalho, o que ocorre no seu caso. Deixar de publicar algo por interesses comerciais ou ser injusto com a fonte podem ser outros sofrimentos. Ela fala sobre uma situação que vivenciou quando trabalhou com internet, que foi contra a idealização que se tem da profissão: Não era uma coisa super séria, que ia prejudicar, mas era algo que eu achava que deveria ser dito. Então foi uma omissão, que eu achava importante e me causou sofrimento psicológico. A gente tem uma profissão idealizada de que a gente vai poder sempre falar a verdade, desmascarar as coisas erradas... Eu acho que a maioria dos jornalistas acredita nisso ainda. Aí você chega numa empresa e às vezes dá mais espaço para uma coisa que você acredita que não faz diferença nenhuma e dá menos espaço para algo importante, relevante ou você não poder ouvir alguma fonte. Eu acho que tudo isso causa um sofrimento – Priscilla Nery.

Vivian Fernandes é outra entrevistada a abordar questões organizacionais como fontes de sofrimento, mas também foca no trabalhar. Há um sofrimento físico oriundo das longas jornadas, de se passar muito tempo usando o computador. “Eu acho que é algo que o corpo sente. É uma forma de sofrimento, que às vezes é combatido com álcool ou com medicamentos, dorflex da vida, acho que tem esse sofrimento físico.” Existe o sofrimento emocional, que é a cobrança de o jornalista ter que fazer uma matéria que agrade, escrever um bom texto, conseguir apurar e falar com as pessoas. “Essa dependência do outro, de ter que conseguir, de ficar em um ambiente competitivo, tal, causa um sofrimento emocional muito grande, um stress, aquele sufoco do dia a dia, que acaba sendo naturalizado, mas que ele ocorre, ele ocorre.” Suportar esses sofrimentos e ter prazer no trabalho, apesar deles, tem muito a ver com o sentido que o trabalho tem para os jornalistas e o grande espaço que ele ocupa em suas vidas. Acreditamos ser possível perceber uma identidade coletiva. As condições de trabalho são criticadas, como foi demonstrado nos capítulos anteriores, mas a visão idealizada da profissão é mantida, o que tem relação direta ao sentido que os jornalistas dão ao trabalho e ao significado que permeia o jornalismo. De forma geral, percebe-se com as entrevistas que o imaginário sobre a profissão continua idealizado. Os sentidos de missão, vocação, papel a cumprir à sociedade estão implícitos nos discursos e gestos dos entrevistados durante toda a entrevista. Continua havendo uma adesão à profissão, e o trabalho dá sentido à vida dos jornalistas. O prazer está ligado ao envolvimento que o trabalhador jornalista tem com a profissão e ao sentido que atribui ao jornalismo. O reconhecimento de seu trabalho, tanto pelo outro como por si próprio, quando aferi um sentido positivo ao trabalho realizado, faz com que o sofrimento possa ser transformado em prazer. Segundo Dejours (2012, p.105-106), a retribuição esperada pelo sujeito no trabalho é de natureza simbólica: o reconhecimento, tanto no sentido de constatação – “reconhecimento da realidade que constitui a contribuição do sujeito à organização do trabalho”, quanto no de gratidão pela contribuição dada.

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O trabalho é apontado como fonte de prazer quando se consegue realizar um trabalho bem apurado e bem feito; trata-se de temas com os quais se tem afinidade; há autonomia. Características apontadas quando falam sobre o que é ser jornalista também são colocadas como fonte de prazer. Os entrevistados consideraram prazer: o próprio resultado do trabalho; a matéria que dá certo; ter o nome no jornal; ver a matéria publicada com o seu nome ainda que o leitor nem repare nisso; ter o reconhecimento dos leitores (casos em que escrevem para a redação agradecendo pela utilidade da matéria); trabalhar no local em que você gostaria de trabalhar (por exemplo, jornalista que cita a vaidade de trabalhar na Folha); ver o texto terminado e achar que ficou bom; o alívio de entregar uma matéria e ter ficado legal; sentir-se participando do mundo; ter contato com as pessoas e aprender com elas; ajudar a transformar uma situação; a possibilidade de influenciar a sociedade e ter impacto na vida das pessoas; acesso ao conhecimento; conhecer diferentes realidades; mostrar o que existe; fazer a pauta e ter reconhecimento; ver que o trabalho tem resultado; a intensidade do trabalho e das entrevistas; o prazer de conseguir a informação; a apuração rigorosa; o prazer de contar histórias e de ser lido. Os jornalistas entrevitados acreditam no jornalismo e no seu papel democrático, que pode contribuir para a disseminação de direitos e até para a transformação da realidade. O sentido do trabalho aliado ao reconhecimento do outro e de si mesmo sobre o seu trabalho fazem com seja possível encontrar a satisfação profissional.

REFERÊNCIAS Dejours, C. (1992). A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré. Dejours, C. (2012). Trabalho Vivo II: Trabalho e emancipação. Brasília: Paralelo 15, 2012. Ferraciolli, M. C (2000). A gente nem comenta porque isso, no dia a dia, acontece com todo mundo: trabalho e sofrimento - o caso dos jornalistas. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, UFSC. Florianópolis. Recuperado em 11 de novembro, 2014, de: http://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/78958/173227. pdf?sequence=1&isAllowed=y Grisci, C. L. I. & Rodrigues, P. H. (2007). Trabalho imaterial e sofrimento psíquico: o pós-fordismo no jornalismo industrial. Psicologia & Sociedade, 19 (2), 48-56. Retirado 15 de agosto de 2013, a partir de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822007000200007&lng=en&tlng=pt. 10.1590 / S0102-71822007000200007. Heloani, J. R. (2006). O trabalho do jornalista: estresse e qualidade de vida. Interações, 12 (22), 171-178. issn:1413-2907

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O jornalismo é maior do que os jornais? Implicações do episódio Charlie Hebdo no debate sobre a crise do setor Journalism is greater than the newspapers? Implications of the episode Charlie Hebdo the debate on industry crisis R i ca r d o J o s é T o r r e s 1 K érley Winques 2 Rogério Christofoletti3

Resumo: Em um ecossistema estruturado na lógica multiplataforma com acesso facilitado às informações, buscamos compreender como o atentado ao jornal francês Charlie Hebdo, ocorrido em janeiro de 2015, contribui para o debate sobre a importância do jornalismo nas sociedades democráticas contemporâneas. Em queda de tiragem como outros veículos, o Charlie era um exemplo típico de como a chamada crise dos impressos estava asfixiando parte da indústria jornalística. A manutenção de sua irônica linha editorial, o enxugamento de postos da redação e a batalha diária pela audiência contra os meios online, tudo isso pautava o Charlie antes das ações que ocasionaram 20 mortes, 17 inocentes. O jornalismo sobrevive ao esgotamento financeiro, à intolerância de grupos bélicos e à cultura de consumo gratuito? Como pensar a crise dos jornais num ambiente tão conturbado socialmente?

Palavras-Chave: Crise dos jornais; Mídias Sociais; Charlie Hebdo; Liberdade de imprensa.

Abstract: In an ecosystem structured on multiple platforms with easy access to information, we seek to understand how the attack on Charlie Hebdo French newspaper (January 2015) contributes to the debate about the importance of journalism in contemporary democratic societies. In fall of drawing as other vehicles, Charlie was a typical example of how the so-called crisis of printed was choking of the newspaper industry. Maintaining his ironic guidelines, the downsizing and the daily battle for audience against online media, all this was ruled Charlie before the actions that caused 20 deaths, 17 innocent. Journalism will survive the financial exhaustion, intolerance of military groups and culture of free consumption? How to think the crisis of newspapers in troubled social environment?

Keywords: Crisis of newspapers; Social Medias; Charlie Hebdo; Press Freedom. 1.  Jornalista, especialista em Marketing Digital e Mídias Sociais e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC, Brasil. 2.  Jornalista e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC, Brasil. 3.  Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista de Produtividade do CNPq. Florianópolis, SC, Brasil.

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O jornalismo é maior do que os jornais? Implicações do episódio Charlie Hebdo no debate sobre a crise do setor Ricardo José Torres • Kérley Winques • Rogério Christofoletti

INTRODUÇÃO ATENTADO À redação do jornal francês Charlie Hebdo, em 7 de janeiro de 2015,

O

insuflou uma série de reflexões relacionadas a questões centrais do jornalismo. Aspectos como liberdade de imprensa, limites éticos da atividade jornalística e tensões políticas, ultrapassaram as paredes acadêmicas e o debate segmentado dos meios de comunicação para ganhar as ruas, principalmente na Europa. Após o trágico fato, cidadãos de diferentes lugares do planeta manifestaram apoio ou repúdio às publicações polêmicas do jornal. Os favoráveis enalteceram a importância do ato de expressar opiniões e transmitir informações, enquanto aqueles que são contrários manifestaram a falta de limites éticos das publicações. Os debates reafirmaram a manutenção da importância do jornalismo nas sociedades democráticas contemporâneas. Charlie Hebdo sobreviveu em meio à crise da imprensa que em geral atinge todos os países, sempre enfrentando processos da Igreja, dos ministros, dos políticos, dos partidos, da extrema direita, dos movimentos religiosos extremistas. Judeus, rabinos, Jesus, o papa, eram tão polemizados quanto muçulmanos e seu profeta Maomé. Mas em 1981, ano em que o socialista François Mitterrand foi eleito presidente da França, Charlie Hebdo parou de circular por problemas financeiros. Não foi a censura direta, mas os processos movidos pelas autoridades levaram o jornal a fechar suas portas. O silêncio durou 11 anos. Em 1992, eles voltaram com tudo, trazendo a bordo suas armas de combate mais perigosas: o traço genial dos caricaturistas (ADGHIRNI, 2015, online).

Após o atentado, a tiragem do Charlie Hebdo subiu vertiginosamente de 60 mil para sete milhões de exemplares, aumento diretamente relacionado à tragédia, oportunismo e interesse que despertou globalmente. Para Costa (2015), o atentado ao Charlie Hebdo apresenta temáticas que a imprensa tem dificuldade de encarar, relacionadas às deficiências do sistema econômico predominante e ao modelo de organização do Estado democrático. Diante da grande diversidade de valores oriunda da globalização, o autor questiona: “Se ações extremas como a dos terroristas precisam ser evitadas, para que não imponham o caos à sociedade, quais seriam, nos limites do tolerável, os recursos do Estado em defesa do processo civilizatório?”. O jornal francês apresenta características semelhantes a de vários outros jornais impressos ao redor do mundo, que estão vivenciando uma etapa singular no processo de evolução do jornalismo, com o emprego de novas ferramentas e de suas potencialidades. Esse cenário pode impulsionar o debate propositivo e construtivo na formatação de informações relevantes e essenciais para a sociedade. A história recente do jornalismo apresenta um longo período de estagnação e comodidade por parte da maioria dos veículos de comunicação tradicionais que encaravam as inovações que surgiam com receio, incompreensão, sem nem um tipo de ação planejada. Diante deste cenário conturbado e a partir de um dos episódios mais tristes da história do jornalismo recente, este estudo apresenta análises de jornalistas e observadores dos sites Pragmatismo Político4, Observatório de Imprensa5 e Carta Capital6 que tematizam aspectos ligados ao atentado terrorista e a crise dos jornais. 4.  Disponível em: http://migre.me/p1O59. Acesso em: 10 de mar. de 2015. 5.  Disponível em: http://migre.me/p1Obn. Acesso em: 10 de mar. de 2015. 6.  Disponível em: http://migre.me/p1OfX. Acesso em: 10 de mar. de 2015.

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LIBERDADE DE IMPRENSA Os diferentes discursos que envolvem a liberdade de imprensa servem, antes de tudo, para autenticar um modelo de imprensa que se desenvolveu a partir do século XVIII e início do século XIX, período marcado pelas democracias liberais/ocidentais. Foi nessa época que as discussões sobre a imprensa estavam embasadas nas divisões entre liberdade, abuso, imprensa e democracia. Herança do Iluminismo, a ideia de encarar a liberdade de imprensa como uma das mais importantes liberdades também é compartilhada por liberais como Voltaire, Diderot e Rousseau. Essa era considerada um dos pilares dos Estados. Por outro lado, a ausência desse direito e a censura significariam a destruição de todas as demais liberdades. O ideal defendido pelos iluministas dificilmente é adotado tal como era no século vivenciado pelos pensadores liberais. Os instrumentos de manutenção e aprimoramento da democracia sempre foram limitados, porém, atualmente com a chegada da internet e o aperfeiçoamento dos produtos tecnológicos, percebemos um avanço no que diz respeito à democracia e a liberdade. Autores como Maia e Pereira defendem: Partimos da constatação de que o conceito de liberdade de imprensa não pode ser tratado como uma verdade inquestionável ou que a incapacidade de aplicá-la seria, na verdade, uma falha no funcionamento do jornalismo. Tal noção liberdade está certamente presente no cotidiano dos jornalistas, mas no plano simbólico e discursivo. E é nesse âmbito que ela deve ser analisada (MAIA e PEREIRA, 2010, p. 192).

Roberto Amaral, colunista da Carta Capital, argumenta que não cabem limites na defesa da livre expressão. Segundo ele, o jornal brasileiro Pasquim, desaparecido das bancas mas não da história, é lembrado por sua crítica política e humor. Considerado superior ao seu colega parisiense. Neste ponto, o autor é claro, “mas gosto e religião (de que me afasto) não se discutem. Discute-se (dever-se-ia discutir) o empobrecimento da imprensa de humor no Brasil, justamente quando recuperamos a liberdade” (AMARAL, 2015, online). Firme em seu discurso Amaral faz um apelo: “Que o nosso Je suis Charlie seja, portanto, um abraço de solidariedade em Wolinski e seus companheiros, mas seja também nossa homenagem ao Pasquim, ao Pif-Paf, ao Planeta Diário, ao Lampião, todos também devorados” (2015, online). Defensor da ampla liberdade de imprensa, o autor classifica Charlie como um anarquista de esquerda, de uma esquerda que também era alvo de sua irreverência. “Sem mas, porém ou todavia, com ou sem explicações sociológicas, antropológicas ou históricas, a liberdade de expressão é o princípio, e a repressão, o crime” (AMARAL, 2015, online, grifo do autor). Quando se fala em livre expressão, estamos falando em assegurar a palavra daquele que discorda. O profissional da comunicação, humorista ou não, deve ter a percepção de que todos somos responsáveis, moral e juridicamente, pelas nossas publicações, ações, desenhos, palavras, fotos, dentre outros. Nisso tudo, “há o limite subjetivo, do qual o fôro íntimo é o senhor, e há as limitações legais. A Constituição brasileira, por exemplo, proíbe a apologia do crime e o incitamento à guerra, tanto quanto o racismo etc” (AMARAL, 2015, online). Para o autor, a liberdade de expressão caminha para além da liberdade de imprensa. Implica o conflito de ideias e opiniões com a possibilidade de livre circulação.

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No Observatório da Imprensa, Rosildo Brito reflete sobre a repercussão do atentado e constata uma certa confusão conceitual, de natureza perceptiva em torno do que denominamos de liberdade, liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Para Brito, a falta de entendimento comum se dá inicialmente a partir da diversidade conceitual em torno do significado da liberdade. Ele afirma que o “desentendimento” se inicia a partir dos diferentes pontos de vista apresentados por pensadores da Filosofia clássica, campo em que a liberdade sempre foi muito discutida. Enquanto para Sartre, filósofo do existencialismo, a liberdade representa condição ontológica do ser humano, para Schopenhauer a ação humana não é totalmente livre e está condicionada a níveis de objetivação de sua vontade. “Dito de outra forma, vemos aqui uma diferença entre a liberdade vista sob o ponto de vista ontológico, natural, e a mesma vista sob um prisma mais, social, ou diríamos, sociopolítico” (BRITO, 2015, online). Brito ressalta que a partir do episódio envolvendo o Charlie Hebdo é importante refletirmos de maneira mais aprofundada acerca da denominação “ataque à liberdade de expressão, liberdade de imprensa”, para não confundirmos, como querem, segundo ele, os donos dos conglomerados da mídia em todo o mundo, “coisas como: marco regulatório da comunicação com censura e, por outro lado, liberdade de imprensa com direito de ataque à liberdade religiosa, um outro tipo de extremismo tão perigoso e fatal quanto o que gerou o lamentável e inaceitável atentado terrorista” (BRITO, 2015, online). Na concepção de Gianni Carta, “o ataque contra o semanário Charlie Hebdo foi um ato terrorista, não contra a liberdade de imprensa. Se Le Monde tivesse sido o alvo, teria sido um ataque contra a liberdade de imprensa” (2015, online, grifo do autor). Para o autor a liberdade de imprensa conhece seus limites, principalmente quando o assunto é religião. “o Le Monde não publicaria uma charge de Maomé com uma bomba no turbante, como o fez o semanário Charlie Hebdo” (2015, online, grifo do autor). Charlie ficou conhecido como um semanário satírico famoso pelas polêmicas contra religiões monoteístas. Conforme Carta, é importante frisar: “’Não somos todos Charlie’ porque não se tratou de um ataque contra a ‘imprensa livre’” (CARTA, 2015, online). Seguindo a mesma linha, afirma, “nossa luta, neste caso, é contra o terrorismo”. Para Karam, o direito à informação só terá sentido quando tiver como base as conexões de conceitos e valores, como a liberdade, “Afora nosso umbigo, existe algo mais no mundo, e que seu entendimento não surge da imaginação arbitrária, mas da compreensão pelo acesso ao conhecimento acumulado e produzido, aos fatos gerados pluralmente, às opiniões divergentes” (KARAM, 1997, p.16). Na concepção do autor falar sobre direito à informação, é falar sobre o direito de todos. Atualmente, o direito e a liberdade de expressão ainda enfrentam obstáculos e discussões, como já verificamos nos debates apresentados. Ideologia, política e religião não retribuem concretamente a mediação que o Estado deveria realizar, pois ambos esbarram em interesses majoritários e acabam por não expressar sua representação da universalidade social. Também no Observatório da Imprensa, Daniela Fernandes ressalta a irreverência do Charlie Hebdo e predominância das temáticas, abordadas pelo jornal, relacionadas a críticas à extrema-direita e ao fundamentalismo religioso, seja islâmico, católico ou judeu. Descreve a polêmica que ocorreu em 2006, quando o jornal decidiu lançar um

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“amplo debate sobre a liberdade de expressão”, ao publicar 12 caricaturas do profeta Maomé, as mesmas que haviam circulado meses antes no jornal dinamarquês Jyllands­-Posten e provocado violentos protestos no mundo muçulmano. Na capa dessa edição, um desenho mostrava o profeta chorando e reclamando dos integristas. Nessa época, a tiragem do semanário era de 140 mil exemplares. A edição com as caricaturas de Maomé vendeu 400 mil exemplares. A revista ganhou os processos movidos por organizações muçulmanas, mas se tornou alvo de ameaças recorrentes. Em 2011, o semanário relançou a polêmica ao publicar um número especial batizado Charia Hebdo, no qual o profeta era o “editor chefe convidado” e aparecia em um desenho na capa dizendo que “quem não morresse de rir seria açoitado”. A sede da publicação foi incendiada por coquetéis molotov na véspera da chegada dessa edição às bancas (FERNANDES, 2015, online).

A autora salienta que a tiragem do jornal estava caindo nos últimos anos e seria de cerca de 48 mil exemplares. “Alguns estimam que a morte de membros ilustres e históricos da publicação (oito jornalistas morreram) levará ao fim do Charlie Hebdo”. Como podemos observar o atentado evidenciou diferentes pontos de vista referentes a liberdade de expressão e imprensa. Alguns especialistas afirmam que ambas devem ser gerais e irrestritas, sendo que qualquer limite ou imposição cerceará a liberdade de fato. De outra forma, alguns salientam que existem temas, como os relacionados a religião, que devem ser preservados, pois o direito de se expressar livremente não inclui a possibilidade de ofender. Outra via correlaciona a liberdade com a responsabilidade de se submeter a limites éticos.

LIMITES ÉTICOS Quando tratamos de limites éticos, adentramos um campo extremamente delicado e importante, pois a ética é um dos fundamentos do jornalismo, como ressalta Karam (1997). “Esta ética deve alicerçar-se em uma teoria do jornalismo como forma de reconhecimento das particularidades humanas em processo de universalização do conhecimento” (grifo do autor, p.12.). Essa é a forma mais democrática de possibilitar que a liberdade de escolha seja mais livre e mais imediata. No caso do atentado ao Charlie Hebdo, as questões que envolvem os limites da ética jornalística foram enaltecidas por diversos analistas, pesquisadores e pelo público. O atentado adquiriu repercussão em uma velocidade extraordinária, particularmente na internet por meio das mídias sociais, tornando-se notícia de veículos de comunicação de todo o planeta dando origem ao que poderia se chamar de uma “causa global”. Esse fator demonstrou as transformações do debate público e evidenciou um conjunto de novas preocupações e desafios ligados a ética da comunicação. Acresce que, com os desenvolvimentos tecnológicos da era digital, e em particular com a disseminação da Internet e das múltiplas oportunidades de comunicação on-line, novos problemas e novos desafios éticos têm vindo a colocar-se, seja no contexto profissional de sectores específicos (o jornalismo, a publicidade, as relações públicas, a assessoria, a produção multimédia), seja para o conjunto dos cidadãos que hoje têm (ou podem ter) no espaço público uma voz que não tinham no passado. Cada vez mais, a ética não é um assunto

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que diga apenas respeito aos profissionais ou às instituições tradicionais da comunicação e dos media; ela afecta e implica também os públicos, cada vez mais participantes activos e co-autores dos processos de comunicação no espaço público, e tornou-se um elemento decisivo para distinguir o que é ou não é aceitável, o que é ou não é correcto, o que é ou não é respeitador da dignidade humana (CHRISTOFOLETTI & FIDALGO, 2014, p.7).

De acordo com Dorrit Harazim, após o atentado, as publicações que até então eram taxadas como de mau gosto, impróprias ou obscenas, por alguns grupos, passaram a ser vistas como atos de liberdade. “Com sua forma anárquica de desmoralizar tudo o que se pretende venerável, sagrado ou poderoso, o semanário sobrevivia com uma tiragem que oscilava em torno dos 50 mil exemplares. Mas ocupava lugar nobre na França como instituição incendiária” (HARAZIM, 2015, online). Para Harazim, as publicações tinham o poder de desconcertar por serem indomáveis e incorrigíveis, eram impublicáveis em mídias convencionais. Os debates levantaram outra questão importante, a regulação da mídia. As críticas referentes a linha editorial do semanário e as publicações fez surgir a reflexão sobre o impacto das charges ofensivas, sobre os desenhos direcionados para uma população estigmatizada: os muçulmanos. Pensando de um modo geral, será que vale tudo, quando o assunto é liberdade de expressão. Na própria França, como na maior parte dos países democráticos, há, por exemplo, regras claras contra a veiculação de conteúdo discriminatório na televisão. A diretiva europeia em vigor, válida para todos os países do bloco, proíbe o incitamento ao ódio por razões de sexo, origem racial ou étnica, religião ou convicção, deficiência, idade ou orientação sexual. O Conselho Europeu também emitiu resoluções e recomendações que tratam da representação e de discriminações contra grupos específicos, não apenas na mídia televisiva (BARBOSA e MOURÃO, 2015, online).

Sobre os migrantes e minorias étnicas, as autoras lembram a recomendação 1277: “devem ser representados de forma compreensiva e imparcial na mídia. Esta é uma precondição para que todos os cidadãos desenvolvam uma visão mais racional da imigração e do multiculturalismo e aceitem pessoas de origem imigrante ou membros de minorias étnicas como iguais”. Já a recomendação de 2007 afirma que grupos religiosos, assim como outros, devem aceitar debates e posicionamentos críticos que abordem suas atividades, crenças e ensinamentos “desde que tal crítica não atinja insultos intencionais e gratuitos ou o discurso de ódio, e não configure incitamento à perturbação da paz ou à violência e discriminação contra adeptos de uma determinada religião” (2015, online). Na opinião de Moretzsohn, não é porque podemos fazer certas coisas que devemos fazê-las, sendo que esta é uma questão ética essencial, que diz respeito às nossas escolhas. Para a autora a imprensa mistifica esse tema e tenta imediatamente associar o atentado terrorista na França às iniciativas de regulação da mídia. Ela lembra que não existem direitos absolutos, e que as “liberdades de imprensa e de expressão têm, sim, um limite. Esse limite é dado pela lei. Exclusivamente pela lei, que há de punir os abusos. Jamais pelas armas, sob nenhuma hipótese” (MORETZSOHN, 2015, online). Maretti (2015) enfatiza que logo após o atentado surgiram tolices que se seguem aos acontecimentos desse tipo. Para ele três aspectos foram abordados de maneira

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equivocada. A primeira é que o atentado agredia a “liberdade de expressão” e a “liberdade de imprensa”. A segunda afirma que a “extrema esquerda” tinha sido a verdadeira vítima dos terroristas e a terceira se resume no slogan “Je suis Charlie”. A primeira tolice não é exatamente uma tolice (é tolice apenas quando reproduzida por papagaios que sequer sabem seu sentido), já que, como se sabe, a liberdade de imprensa de que falam é a liberdade das grandes corporações midiáticas ocidentais, cuja cartilha prega a democracia dos patrões, do capitalismo sem freios, da selvageria denuncista praticada, entre nós brasileiros, por exemplo, pela meia dúzia de famílias donas das comunicações, enfim, a liberdade de imprensa da mentira travestida de jornalismo. A segunda tolice nem sequer merece comentários. Dizer que a extrema esquerda foi a vítima do atentado é de tal ordem tolo que vou poupar o leitor mais inteligente de ler algumas linhas inúteis. E a terceira tolice, segundo a qual “Je suis Charlie”, rivaliza com a segunda, mas é mais sofisticada, pois remete a uma solidariedade humanista e de certa maneira incorpora subliminarmente o clamor pela liberdade de expressão, ou de imprensa (ocidental) (MARETTI, 2015, online).

Para Maretti, os indivíduos que reproduzem esses raciocínios não refletem sobre o que estão reproduzindo e aqueles que os criam ou os consensos em torno dos quais esses raciocínios se formam não são desprovidos de intenções. “Quando um monte de amigos verdadeiramente bem intencionados dão pra repetir “Je suis Charlie”, “Je suis Charlie”, “Je suis Charlie”, provavelmente nem estão pensando no significado do que dizem”. Como por exemplo que o jornal pode ter ido longe demais em sua política editorial de desrespeitar as religiões e a fé. Para Singer (2014), os jornalistas e o público a que servem, só têm vantagem em revisitar periodicamente as normas fundadoras da sua ocupação em um sentido crítico, repensando valores e as razões para preserva-los, reavaliando o papel do jornalista na sociedade e a sua relevância. “Períodos de transicção em geral, e as actuais transformações do digital em particular, não tornam a ética menos importante para os jornalistas” (p.62). Para a autora, o compromisso com uma prática eticamente exigente é mais importante do que nunca num tempo em que estamos imersos em informações de todos os tipos e de todos os níveis de qualidade. Por outras palavras: a crise é uma crise económica, não uma crise do jornalismo. As ameaças éticas que os jornalistas receiam – e nem sempre sem razão – decorrem primariamente das pressões que advêm da falta de dinheiro, não do excesso de inovação. As organizações que ainda dão emprego à maioria dos jornalistas reduziram efectivos, cortaram nas despesas, pediram a cada vez menos pessoas que produzam mais com menos recursos. Não surpreende que esta seja uma receita propícia ao surgimento de erros, ao aligeiramento das práticas de verificação e à transferência, para os utilizadores, da produção de notícias que os jornalistas já não têm tempo ou meios para garantir (SINGER 2014, p.62).

As diretrizes éticas perpassam várias etapas e filtros relacionados a convenções estabelecidas pela sociedade. Porém, cabe ressaltar que os parâmetros pessoais de cada indivíduo tem relação direta com a sua postura ética diante da sociedade. Atualmente, percebemos que boa parte das interações entre os indivíduos é permeada pela comunicação, assim como a interação destes com o mundo. As plataformas da internet

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amplificaram as formas de troca de informações e trouxeram à tona novos e velhos dilemas éticos para os jornalistas e para a sociedade de uma forma geral. Este ambiente social está imerso em relações que envolvem conflitos de poder, de disputas por hegemonia, de representações sociais e políticas opostas. Nesse sentido, é importante que os parâmetros éticos do jornalismo sejam regularmente revisados e adaptados as novas situações que se apresentem.

CRISE E TENSÕES POLÍTICAS Por se tratar de um evento político extraordinário, o atentado gerou uma série de interpretações e consequentemente explicações. Relativistas, “lamentam a violência, repudiam o derramamento de sangue, solidarizam-se com as vítimas inocentes, mas... pedem compreensão para os motivos que geraram a barbárie” (DINES, 2015, online). O autor ainda cita a transmissão da rádio CBN, no dia 07 de janeiro de 2015 (dia do atentado), onde uma especialista oriunda de uma das mais importantes universidades brasileiras acusou “a direção da Charlie Hebdo – recém-assassinada, sequer sepultada – de explorar o ressentimento anti-islâmico para escapar da falência” (DINES, 2015, online). O Charlie Hebdo assume abertamente uma postura “irresponsável”, atirando para todos os lados, especialmente no que se reporta a política e a religião. Diante da infinidade de interpretações, de uma forma geral, as suas charges provocavam polêmica e para segmentos específicos indignação conforme afirma Dias (2015, online). Ele cita um episódio da assimetria de tratamento no caso que envolveu um dos mais antigos cartunistas do Charlie Hebdo, demitido por se recusar a pedir desculpas por uma piada antissemita contra o então presidente francês, Sarkozy que se casava com uma judia. “Nada é sagrado, mas algumas coisas são menos não-sagradas do que outras”. Cabe revelar a predominância de um posicionamento etnocêntrico que não leva em conta as perspectivas culturais distintas. Pensando no discurso da extrema direita, o autor aponta que esse procura demonizar o Islã, fazendo uso da generalização barata, argumenta que o fanatismo e seus seguidores são “incivilizados” e outros tantos predicados preconceituosos. “Este argumento tão comum desde o 11 de setembro e tão identificável com os mais radicais entre a extrema direita é tão torpe que se torna praticamente desnecessário aprofundar uma crítica neste sentido que já não tenha sido feita” (DIAS, 2015, online). No entanto, o autor acha estranho, todos se acharem dignos de marchar pela liberdade de expressão e o terrorismo, pois para ele ambos escondem seus próprios problemas em uma nova marcha que só não restaura o fato de 11 setembro porque nenhum país foi invadido. Ele ainda lembra que isso só confunde o caso de que a maioria das vítimas do terrorismo são mulçumanas, e afirma que mais de um bilhão de islâmicos condena esse tipo de ato, e mais, vive com muito mais medo do que qualquer cidadão ocidental, “ora é o medo do terrorismo de seus compatriotas que os ameaça diariamente, ora é de alguma potência ocidental que se autoproclama sua defensora, bombardeando suas cabeças em nome da liberdade” (DIAS, 2015, online). Adghirni (2015, online) lembra que diante do furor dos extremismos, resta a nós, sociedade civil e jornalistas, recusar o jogo dos “loucos”. “Devemos manter a racionalidade a qualquer preço. Assim como escrevemos Je suis Charlie em telas digitais e

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cartazes de papel, devemos formar um escudo de proteção contra as reações insanas de outro tipo de extremismo, desta vez da extrema-direita”. O jogo da democracia que se serve das leis para liberar, reprimir e coibir o que parece ir além dos limites nas sociedades ocidentais funciona nas sociedades onde as instituições democráticas funcionam. Poderíamos discutir isso aqui, sabemos o que se passa e por isso discutimos hoje no Brasil a regulação da mídia que não deixa de ser um jogo de poder. Mas calar a voz da imprensa pelas armas não faz parte da democracia. Dizer que o atentado contra o Charlie Hebdo é um ataque contra a extrema-esquerda é dizer pouco sobre a complexidade do ato de execução covarde de jornalistas que praticam o gênero jornalismo de opinião. Trata-se, sim, da expressão de linguagem de grupos que não se identificam com os valores da democracia que prega a liberdade de expressão. Sem democracia não há comunicação e sem comunicação não há democracia, ensina Dominique Wolton (ADGHIRNI, 2015).

Para Heslop, o atentado atinge a estrutura da democracia e as sociedades que se pretendem democratizar pelo mundo, o ataque pretende ser um ataque aos valores em que as sociedades democráticas se apoiam. O respeito as diferenças é algo essencial para que os direitos democráticos fundamentais sejam exercidos. “Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”, para o autor talvez nunca uma frase tenha tido tamanha intensidade. As vítimas do ato terrorista se tornaram mártires de uma visão deformada do nosso próprio mundo. “Temos um dever para com aqueles que morreram por resistir a essa visão. Eles viveram em nome da liberdade e morreram defendendo-a da maneira mais verdadeira” (HESLOP, 2015). A transformação do jornalismo em uma atividade industrial trouxe implicações políticas relacionadas aos interesses econômicos evidentes, da mesma forma, a relação com seguimentos políticos ocasionaram pressões e descredenciaram o jornalismo no que ele tem de mais importante a credibilidade. As possibilidades da internet contrastam com as velhas práticas realizadas na imprensa e na mídia em geral. Essa mutação na comunicação está atrelada a processos midiáticos que não se enquadram mais na denominação de “mídias de massa”. No entender de Shirky (2011) as novas ferramentas não provocaram novos comportamentos, mas permitiram a possibilidade de mudança. “Uma mídia flexível, barata e inclusiva nos oferece agora oportunidades de fazer todo tipo de coisas que não fazíamos antes” (p. 61). A partir desta perspectiva cabe destacar as afirmações de Jenkins (2014) sobre o contexto atual que propõe mudanças na emissão de informações. Ele sugere que as facilitações da mídia digital funcionam como catalisadoras para conceituação de outros aspectos da cultura, exigindo que sejam repensadas as relações sociais e a participação cultural e política. “A mídia propagável amplia o poder das pessoas de ajudar a formatar seu ambiente de mídia cotidiano, mas não garante nenhum resultado em particular. Entretanto, acreditamos que esses processos possam ter o potencial para mudança cultural e social” (JENKINS, 2014, p. 355).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da história, o ato de informar se consolidou como algo essencial na vida em sociedade, obtendo cada vez mais relevância. A informação sempre será importante para as pessoas e é o que dá sentido à atividade jornalística. Como evidenciou-se ao

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longo das análises relacionados ao caso Charlie Hebdo, mesmo em um novo momento e em meio a crises, o jornalismo continua sendo elemento indispensável para o debate democrático. As discussões que surgiram após o ato terrorista realimentaram reflexões sobre liberdade de imprensa, limites éticos, crise e tensões políticas. Em um momento de profunda consternação, tivemos a oportunidade de perceber o quanto temos a evoluir nessas áreas vitais para o jornalismo e consequentemente para a sociedade. Ao aprofundarmos os debates, percebemos o quanto são limitados e controversos, e a única certeza que fica é que temos um longo caminho a percorrer.

Figura 1. Capa Charlie Hebdo (primeira publicação após o atentado) em 14/01/2015.

O caso Charlie ratificou a importância das mídias sociais e suas características que apresentam novos atores, novas fontes e novos produtores de conteúdo e opinião. Esses aspectos não excluem os métodos “tradicionais” da produção jornalística, e corroborando com Karam e Christofoletti (2011), esses podem até ser ampliados no ciberespaço. Para os autores, esses fatores podem contribuir positivamente para que o jornalismo reafirme ou recupere os compromissos com valores centrais de sua legitimidade social, no que diz respeito à autenticidade e a credibilidade especificas, sobre as quais se tentou afirmar ao longo da sua história. “O Jornalismo transita pelos planos; político, social, tecnológico, econômico e cultural, tentando manter seu curso apesar das zonas de atrito que insistem em descaracteriza-lo, e a desmoraliza-lo” (KARAM e CHRISTOFOLETTI, 2011, p. 87). Em uma rotina onde a quantidade supera a qualidade e a utilidade da informação perde espaço para sua expectativa de venda, configura-se o cenário crítico apresentado por muitos veículos de comunicação, que está sendo chamado de “crise dos jornais”. Meyer (2007) afirma que a decadência dos jornais cria problemas não apenas para o setor, mas também para a sociedade. Segundo ele, para a democracia funcionar, os cidadãos precisam de informação. Mas a visão apresentada restringe o jornalismo aos

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jornais o que é uma análise equivocada de diversos estudiosos e especialista. No nosso entendimento, o jornalismo é maior do que os jornais e a pluralização e a inserção de novos atores no processo de comunicação pode trazer benefícios para todos os envolvidos no processo comunicativo. Apesar do massacre à metade da redação, o Charlie está de volta, e maior7. A pergunta intrigante proposta no título deste estudo - O jornalismo é maior do que os jornais? – e a sua correlação com o episódio Charlie Hebdo nos forneceram alguns argumentos sobre a crise do setor, e foram além demonstrando a emergência de temas como: a regulação da mídia, os usos das mídias sociais, entre outros. Em uma primeira análise, o atentado não trouxe novas respostas, mas fez vir à tona questões que estavam praticamente esquecidas e eram abordadas, de uma forma geral, na academia e em segmentos específicos da sociedade. Assim, ratificamos a afirmação de que o jornalismo é maior do que os jornais, pois o jornal enquanto meio não desparecerá, entretanto a diminuição de sua circulação não implica no fim da prática jornalística. Anderson, Bell e Shirky (2013) seguem a mesma linha de raciocínio “A importância do jornalismo não vai acabar. A importância de profissionais dedicados ao ofício não vai acabar. O que está chegando ao fim é a linearidade do processo e a passividade do público” (2013, p. 72). A realidade atual é enaltecida por Karam e Chirstofoletti (2011), que descrevem o jornalismo como um organizador simbólico da realidade, fiscalizador dos poderes e narrador da atualidade, delineiam um momento de expansão em escala planetária e elevação como um elemento imprescindível para sociedades complexas. Desempenhando um papel de natureza pública e sociais que tornam a atividade útil, relevante e inserida no dia-a-dia das pessoas. À medida que o mundo da política e os assuntos públicos mudaram gradualmente para além do reconhecimento, ao longo das últimas duas décadas, o jornalismo também foi transformado. No entanto, o estudo de notícias e do jornalismo, muitas vezes, parece preso a ideias e debates que perderam muito de sua crítica. O jornalismo está em uma encruzilhada: ele precisa reavaliar valores fundamentais e redescobrir atividades-chave, quase certamente em novas formas, ou correrá o risco de perder o seu caráter distintivo, bem como a sua base de sustentação econômica.

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Geolocalização, dispositivos móveis e novas narrativas jornalísticas

Geo-location, mobile devices, and new journalistic narratives Wa l t e r Te i x e i r a L i m a J u n i o r 1 A l e x a n d r a F a n t e N i s h i ya m a 2

Resumo: Os processos jornalísticos estão sendo impactados, em grande parte, pelas disruptivas tecnologias digitais conectadas móveis. Smartphones, tables, e-readers e objetos, que possuem diversas tecnologias embarcadas, compõem e estruturam novo ecossistema informativo. Com os conceitos de mobilidade física e informacional exponenciados pelas mídias digitais, surgiu o jornalismo móvel, que se diferencia pela forma de consumo e produção da notícia. A tecnologia tem como aliado os modernos e compactos equipamentos tecnológicos, com multifuncionalidades, proporcionando o surgimento da notícia em tempo real ou mesmo do profissional chamado jornalista de bolso. O jornalismo móvel possui características como a memória, a instantaneidade, a interatividade, a customização de conteúdo, o recurso da hipertextualidade, a multimidialidade e a ubiquidade. Essas caracteríticas são atreladas às tecnologias conectadas móveis e estão transformando o padrão do jornalismo tradicional. Com a possibilidade de serviços baseados em localização-ciente e aplicativos de notícias com serviços geolocalizados, a mídia locativa, cujo conteúdo está sempre interligado a uma localidade, permite a construção de novas narrativas jornalísticas. Entre as possibilidades se encontram o Jornalismo Hiperlocal (proximidade), Realidade Aumentada, Jornalismo colaborativo local (crowdsourcing) e produtos jornalísticos baseados em sistemas de alerta.

Palavras-Chave: Narrativas jornalísticas. Jornalismo móvel. Tecnologias conectadas móveis. Geolocalização. Hiperlocal.

Abstract: The journalistic processes have been affected, largely, by the connected mobile digital technology disruptives. Smartphones, tables, e-readers and objects, which has a set of embedded technology, compound and structure a new informative ecosystem. With the physical mobility and informational concepts evidenced by digital media, came to light the mobile journalism, distinguished by the way of consumption and production news. Technology has an ally modern and compact technological equipment, with multi-functionality, providing the emergence of news in real time or even the so-called the professional journalist of pocket. The mobile journalism has as characteristic memory, immediacy, 1.  Docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected]. 2.  Doutoranda em Comunicação Social – Linha de Inovações Tecnológicas na Comunicação Contemporânea pela Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected]

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interactivity, customization of content, the use of hypertextuality, multimediality, and ubiquity. These features has been linked to mobile connected technology and are transforming the pattern of traditional journalism. With the feasibility of services based on client-application and news applications with geolocated services, the locative media, whose content is always connected to one location, has allowed the elaboration of new journalistic narratives. Among the possibilities are Hyperlocal Journalism (proximity), Augmented Reality, Local Collaborative Journalism (crowdsourcing) and journalistic products based on warning systems.

Keywords: Journalistic narratives. Mobile journalism. Connected mobile technologies. Geolocation. Hyperlocal.

A

MOBILIDADE E portabilidade são conceitos que estão presentes nas mídias ditas

tradicionais, como jornal e revista, sendo a primeira mídia considerada de massa. Contudo, a possibilidade de mover-se do jornal estava, diretamente, ligada ao tempo de vida útil do papel. Nas mídias digitais o conceito de mover-se continua o mesmo, contudo, possibilitado agora pelos dispositivos móveis conectados através de redes telemáticas. Com isso, as possibilidades do fazer e consumir jornalismo foram exponenciadas. A partir da mobilidade surge o jornalismo móvel, com a adaptação na linguagem e no conteúdo para telas menores e conectadas, que alterou a forma de consumo da notícia e também a produção dela. Para Schwartz (2009) a mobilidade é um recurso estratégico vital na sociedade da informação. Sobre o jornalismo e a mobilidade, num primeiro momento, surgiu a expressão MOJO (mobile journalist) em 2005, que segundo Silva (2007) refere-se a função emergente de alguns repórteres na Gannett Newspaper, nos EUA, que utilizavam tecnologias como notebook, câmeras, gravadores e conexão banda larga para postar a notícia onde estivessem. O pesquisador complementa que o termo Mobile Journalism foi adotado em 2007, pela agência de notícias Reuters, em parceria com a Nokia, tendo o mesmo princípio de fazer a notícia com a ajuda de equipamentos móveis e compactos. Com o conceito de mobilidade física e informacional exponenciado pelas mídias digitais surgiu o jornalismo móvel (SILVA, 2007; LEMOS, 2009), que se diferencia pela forma de consumo e produção da notícia (SILVA, 2008) e tem como aliado os modernos e compactos equipamentos tecnológicos, com multifuncionalidades, que propiciaram o surgimento da notícia em tempo real ou mesmo do profissional chamado jornalista de bolso (LEMOS, 2009). Neste contexto, os processos jornalísticos estão sendo fortemente impactados, em grande parte, pelas disruptivas tecnologias digitais conectadas móveis. Smartphones, tables, e-readers e objetos com essas tecnologias embarcadas - como Google Glass, compõem e estruturam novo ecossistema informativo, que se amplia com a introdução de outros dispositivos oriundos da Internet das Coisas. Tendo como características a instantaneidade, a ubiquidade, a personalização, a memória, a hipertextualidade, a multimidialidade e a interatividade, o jornalismo

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móvel, atrelado às tecnologias conectadas móveis, está transformando o padrão do jornalismo tradicional (FULLER, 2010; LEMOS, 2009; BARBOSA, 2013), fornecendo novas possibilidades técnicas que permitem a mobilidade, física e informacional (LEMOS, 2009). Com a mobilidade dos modernos e compactos aparatos tecnológicos, garantiu-se também a possibilidade da multifuncionalidade (gravar, editar, fotografar, diagramar), assim o jornalismo ganhou velocidade na produção e veiculação (SILVA, 2008) e também no consumo das notícias. Lemos (2009) comenta que o jornalismo móvel é um exemplo de como a produção de notícia respondeu ao aparecimento dos pequenos equipamentos, dotados de muitas funções e que esse jornalista pode ser chamado “jornalista de bolso”, “jornalista de mochila” ou “backpck”, que possui o celular como produtor, emissor, receptor e até como consumidor de informações. A difusão e produção são para Silva (2008, p.6), duas modalidades complementares “que fazem parte do jornalismo móvel” e descrevem de forma mais próxima “este fenômeno por se constituir em uma prática jornalística que se utiliza da web móvel e de aparelhos como celular em condições de mobilidade”. Entre as características do jornalismo móvel propiciado pelas novas tecnologias digitais portáteis e conectadas, está a memória (PALÁCIOS, 2003, 2014; PAVLIK, 2001) de fatos e dados que estão disponíveis na Web; a instantaneidade (PALÁCIOS, 2003; BRADSHAW, 2014; PAVLIK, 2001) referente ao consumo e também na produção de caráter imediato; a interatividade (BARDOEL E DEUZE, 2001; ROST, 2014; PAVLIK, 2001) disponível em sites, mídias sociais e aplicativos; a customização de conteúdo (BARDOEL E DEUZE, 2001; LORENZ, 2014; PAVLIK, 2001; PALÁCIOS, 2003) que será considerado neste artigo como segmentação ou ainda personalização, possível com a escolha do que é de interesse pelo usuário; o recurso da hipertextualidade (BARDOEL E DEUZE, 2001; CANAVILHAS, 2014) que disponibiliza múltiplos caminhos para saber mais sobre o assunto; a multimidialidade BARDOEL E DEUZE, 2001; PALÁCIOS, 2003; SALAVERRÍA, 2014; PAVLIK, 2001) dos meios de comunicação presente em diversas plataformas; e a ubiquidade (PAVLIK, 2001; 2014) dos meios que estão disponíveis em todo lugar, o tempo todo. Todas essas características para Lemos (2009, p.28) comprovam que a sociedade vive no momento da Cultura da Mobilidade, que tem como características “a mobilidade de pessoas, objetos, tecnologias e informação sem precedente” e para o pesquisador está em dimensões fundamentais: o pensamento, a desterritorialização, a física e a informação. “Não podemos dissociar comunicação, mobilidade, espaço e lugar” (p.29). Nesse ambiente, o jornalismo se tornou uma mídia locativa, definido por Lemos (2007, p.1) como [...] um conjunto de tecnologias e processos info-comunicacionais cujo conteúdo informacional vincula-se a um lugar específico. Locativo é uma categoria gramatical que exprime lugar, como “em, “ao lado de”, indicando a localização final ou o momento de uma ação. As mídias locativas são dispositivos informacionais digitais cujo conteúdo da informação está diretamente ligado a uma localidade. Trata-se de processos de emissão e recepção de informação a partir de um determinado local. Isso implica uma relação entre lugares e dispositivos móveis digitais até então inédita.

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As mídias locativas conferem informações a lugares e criam novas possibilidades de notícias e informações não mais a partir, apenas, de assuntos mas, da localização. Para Lemos as funções das mídias locativas são para “monitoramento, vigilância, mapeamento, geoprocessamento (Geo-information System), localização, anotações ou jogos” (2007, pp.12). O autor também diferencia as mídias locativas digitais e as analógicas, no qual pontua como exemplo uma placa na fachada de um estabelecimento, como a analógica, pois também fornece uma informação a um lugar. Contudo ela é estática, enquanto a digital pode disponibilizar opiniões de clientes, menu ou promoções, que estarão disponíveis na web (pp.2-3). O quadro abaixo diferencia ambas (LEMOS, 2007, p.7). MÍDIA LOCATIVA DIGITAL

MÍDIA LOCATIVA ANALÓGICA

Personalização da informação, identificação do usuário. Mídia “smart”.

Informação massiva genérica sem feedback ou processamento.

Dados digitais e banco de dados com informações de contexto local.

Dados primários estáticos.

Emissão por redes sem fio e captação em dispositivos móveis. Pervasiva e sensitiva.

Estática, “visita ao acaso”.

Processamento e customização da informação (controle, monitoramento, personalização).

Não processa informação.

Dados variáveis e modificáveis em tempo real.

Dados estáveis.

A característica fundamental das mídias locativas é que elas aliam, paradoxamente, localização e mobilidade. Movimentar é sempre “deslocar”, o que poderia levar rapidamente à ideia de um apagamento dos lugares. No entanto, o deslocamento (mobilidade física e informacional) não significa, necessariamente, o desaparecimento da dimensão espacial em sua materialidade e suas dimensões sociais, políticas, econômicas. Antes, as mídias locativas, pelas trocas informacionais no espaço urbano, criam novos sentidos dos lugares (LEMOS, 2009, p.91).

As mídias locativas formaram um novo território informacional disponível no ciberespaço e se dá pelas redes sem fio e pelos suportes móveis (LEMOS, 2007, p.12). Hoje, nas cibercidades contemporâneas, estamos assistindo a expansão de experiências de localização e de tratamento inteligente da informação a partir de dispositivos sem fio que aliam mobilidade, personalização e localização, criando novas práticas do espaço. As mídias locativas, como vimos, permitem a troca de informação em mobilidade fornecendo dados dinâmicos sobre um determinado ambiente, resignificando-o. Cibercidade é a cidade na cibercultura.

O redimensionamento dos lugares é possibilitado e estimulado pela mobilidade, criando um território informacional. Os processos jornalísticos estão sendo fortemente impactados, em grande parte, pelas disruptivas tecnologias digitais conectadas móveis. Para Pavlik e Brigdes (2013), a mídia mobile está dramaticamente mudando as possibilidades de produção e consumo de conteúdos jornalísticos. Com o surgimento da internet, Canavilhas (2006) afirma que os meios de comunicação migraram de forma rápida para esse novo ambiente. Para isso, tiveram que se adaptar.

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Tanto as mídias tradicionais buscam se adaptar ao mundo digital, remodelando seus produtos com base na nova lógica, como os meios emergentes remodelam os antigos. O diferencial desse processo hoje está no fato de a remodelagem operar na lógica dupla da instantaneidade em tempo real e da hipermídia (BIANCO, 2007, p.77).

Para Rocha (2014, p. 7) a internet “se transformou no ambiente mais propício para o encontro das mídias, pois oferece ao usuário a oportunidade de ter acesso a diferentes informações em formatos diversificados [...]”. Antes, um meio era visto de forma individual. Atualmente, a internet é agregadora de todos os formatos (som, imagem e texto). E esse encontro de mídias, chama-se convergência, definido por Jenkins (2009, p.27) como o “fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia [...]”. Para Palácios (2003, p.3), A convergência torna-se possível em função do processo de digitalização da informação e sua posterior circulação e/ou disponibilização em múltiplas plataformas e suportes, numa situação de agregação e complementaridade.

A palavra-chave sobre a convergência é ubiquidade, onde conteúdos e mídias estão em todo lugar, o tempo todo, basta ter acesso às redes sem fio e dispositivos de conexão com multifuncionalidades para que a mobilidade seja possível. No ecossistema informativo mobile, ubiquo, convergente, instantâneo, hipertextual e dotado de memória, há mais uma característica: a personalização.

PERSONALIZAÇÃO As mídias móveis são também propulsoras de um novo ciclo de inovação, no qual surgem os aplicativos jornalísticos para tablets e smartphones. Dentre eles, destacam-se como potencialmente mais inovadores aqueles que denominamos autóctones, ou seja, aplicações criadas de forma nativa com material exclusivo e tratamento diferenciado (BARBOSA, 2013, p.42). Nos deteremos neste artigo apenas a uma das perspectivas possíveis de personalização, os aplicativos de notícias, que podem ser configurados com serviços baseados em localização-ciente ou geolocalizados (WEISS, 2013). As mídias locativas, cujo conteúdo está sempre interligado a uma localidade, permitem a construção de novas narrativas jornalísticas (PAVLIK; BRIGES, 2013). Entre as possibilidades se encontram o Jornalismo Hiperlocal (proximidade), Realidade Aumentada, Jornalismo colaborativo local (crowdsourcing) e produtos jornalísticos baseados em sistema de alerta. Dotado de tecnologia amigável e intuitiva, os smartphones e tablets estimulam o jornalismo móvel devido às características de “imediatividade e a instantaneidade” (LEMOS, 2009, p.29) presente não só no conceito tecnológico e também informacional.

SERVIÇOS GEOLOCALIZADOS Os dispositivos móveis estão forçando a transformação do padrão do jornalismo tradicional (FULLER, 2010) em função da possibilidade da inserção de aplicações tecnológicas, como Sistema de Informação Geográfica (SIG) (HART; DOLBEAR, 2013). As tecnologias baseadas em SIG permitem oferecer serviços geolocalizados no dispositivo

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móveis como localização-ciente (Location-aware), que entregam conteúdo online aos usuários baseada na localização física deles. Várias tecnologias empregam  Global Positioning System (GPS), infraestrutura de telefonia móvel ou acesso sem fio para identificar onde os serviços eletrônicos, como telefones celulares ou laptops estão, e os usuários podem escolher compartilhar aquela informação com a aplicação localizaçãociente (CAROLINA, 2009). Os serviços baseados em localização-ciente, oferecidos de pelos aplicativos de notícias analisados por Weiss (2013), revelam os seguintes tipos de atividades: encontrar uma localização no mapa; verificar informações sobre previsão o tempo local; encontrar restaurantes próximos e outros negócios locais; acessar informações ou notícias sobre a comunidade local; obter informação sobre o tráfego local e transporte público, obter e usar cupons ou desconto de lojas e negócios locais; verificar placares esportivos locais e obter atualizações de esportes locais. Vejamos de forma hipotética. Com celulares, sensores e redes sem fio vinculados a base de dados locais, informações poderiam ser disparadas de forma “inteligente” de acordo com a localização do cidadão. Ao entrar no mercado, uma emissão via bluetooth daria as boas vindas nos celulares dos visitantes, mostrando através de video, textos e fotos, a sua história; um mapa indicaria a posição exata do usuário e suas opções pelos setores e equipamentos: informações cidadãs seriam enviadas sobre encontros, datas importantes, documentos extraviados, via SMS; visitantes encontrariam conhecidos com sistemas de rede social móvel; transeuntes deixariam suas impressões “anotando”eletronicamente determinados pontos do lugar; jogos com celulares, palms e GPS, tipo gincana, criariam uma atmosfera lúdica... o sentido de lugar não se perderia e, mas ainda, poderia ser reforçado. A territorialização informacional abriria possibilidades para intervenções livres e abertas (LEMOS, 2009, p.99).

O professor e diretor do Programa Digital Publishing do Donaldo W. Reynolds Journalism da Universidade do Missouri (EUA) foi quem, segundo BARBOSA E SEIXAS (2013, p.52), idealizou o “tablet newspaper” que tinha características de jornal, dispositivo portátil com tela plana, foi projetado para substituir o jornal tradicional há 18 anos. Entre seus objetivos estavam a atualização constante de conteúdo. Porém o projeto fracassou pois o estudioso teve sua ideia desacreditada. No Brasil, apenas em 2012 aconteceram as primeiras migrações de alguns meios de comunicação impresso para o digital. Entre os grandes jornais e revistas nacionais, além de periódicos regionais, os que saíram na frente foram: Estadão, Folha de S.Paulo, O Globo, Valor Econômico, Correio Braziliense, Zero Hora, Gazeta do Povo/Paraná, Diário de Pernambuco, O Povo/Ceará, Veja, Época, Istoé, Placar, Info, entre outros (BARBOSA E SEIXAS , 2013, p.52).

Em seguida os aplicativos de notícia passaram a transitar e a serem pensados também para as telas dos smartphones, cada vez menores, mais leves, móveis, portáteis, multimídia, com considerável capacidade de armazenamento, conectados, com telas dotadas de boa resolução, além da função do telefone, portanto mobile. Contudo, é necessário pontuar que em um primeiro momento, o conteúdo das mídias tradicionais foi apenas transposto para as plataformas digitais e, alguns meios de comunicação

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ainda produzem conteúdos específicos para os aplicativos de notícias. Há ainda a não apropriação ou a subutilização das plataformas e das ferramentas disponíveis, que favoreçam o diálogo multidirecional, descentralizado e colaborativo, apesar da tecnologia disponível permitir esse diálogo. “Os Apps possuem interfaces desenhadas para cada função e podem acessar funções nativas dos aparelhos como sensores GPS ou sensores de gravidade que indicam a posição que o usuário está segurando o aparelho” (PELLANDRA, 2013, p.130).

BRASIL: APLICATIVOS DE NOTÍCIAS E SISTEMAS DE GEOLOCALIZAÇÃO Para a produção deste artigo, o método de pesquisa para entender o cenário os aplicativos noticiosos no Brasil teve como base informações cedidas pelo site da Associação Latina-Americana de Publicidade – ALAP3, quais os 10 jornais impressos com maior tiragem de impressão no Brasil. O site pontuou como os maiores jornais a Folha de São Paulo (SP) com 332.354 mil exemplares/dia, O Globo (RJ) com 299.821 mil/ dia, Super Notícia (Belo Horizonte – MG) com 292.988 mil/dia, O Estado de São Paulo (SP) com 233.415 mil/dia, Daqui (Goiânia – GO) com 215.671 mil/dia, Extra (RJ) com 203.537 mil/dia, Zero Hora (Porto Alegre – RS) com 181.772 mil/dia, Diário Gaúcho (Porto Alegre – RS) com 150.214 mil/dia, Correio do Povo (Porto Alegre – RS) com 134.998 mil/ dia e o Aqui (Belo Horizonte – MG) com a circulação de 129.674 mil exemplares/dia. Em seguida, a pesquisa se deu no Google Play e na Apple Store com a procura de quais empresas tinham a versão digital do aplicativo de notícias, sendo gratuito ou pago. No Google Play dos 10 pesquisados, os jornais Supernotícia (Belo Horizonte – MG), Daqui (Goiânia – GO), Diário Gaúcho (Porto Alegre – RS) e Aqui (Belo Horizonte – MG) não possuiam aplicativos de notícias pago ou gratuito, o que representa 40% do universo pesquisado. Na Apple Store dos 10 pesquisados, os os jornais Supernotícia (Belo Horizonte – MG), Daqui (Goiânia – GO), Diário Gaúcho (Porto Alegre – RS), Correio do Povo (Porto Alegre – RS) e Aqui (Belo Horizonte – MG) não possuiam aplicativos de notícias pago ou gratuito, o que representa 50% do universo pesquisado. O terceiro passo da pesquisa foi o de verificar de que forma utilizavam o recurso da geolocalização em suas plataformas. Nenhum disponibilizava notícias a partir de um lugar, mas apenas por editorias ou assuntos. Verificou-se a deficiência nas plataformas, em relação às possíveis possibilidades dos aplicativos, disponíveis em especial nos de conteúdo comercial. A interação fica comprometida e restrita a um estágio que permite a resposta do usuário para apenas aquilo que o meio de comunicação acredita ser ideal para os interesses da empresa. “Mas a cultura de participação está longe de implicar uma horizontalidade total, pelo menos no jornalismo, e colide com as rotinas e os interesses que governam nas redações” (ROST, 2014, p.55). Rost (2014) pontua dois tipos de interação: a seletiva e a comunicativa (pp.56-57). A seletiva refere-se ao processo de controle de recepção dos conteúdos pelo meio de comunicação, ao acesso aos hipertextos disponibilizados, as buscas de conteúdo em sites e as funções de touch dos aparelhos. A interatividade comunicativa implica na geração de conteúdo e expressão do usuário, que torna-se público e que tem o objetivo 3.  Informação disponível em http://www.alap.com.br/noticias/os-50-maiores-jornais-do-brasil-jan14.

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de “dialogar, discutir, confrontar, apoiar e, de uma forma ou de outra, entabular uma relação com outros” (p.58). Com a geolocalização poderia haver esse segundo tipo de interação pontuado por Rost (2014), pois os lugares passariam a ser pontos informacionais. Os usuários passariam também a publicar notícias e imagens ao seu redor, criando uma narrativa descentralizada dos meios de comunicação, mas que colaborariam com as notícias. E outros usuários poderiam acessar as notícias a partir do lugar. Geolocalização se refere à habilidade de etiquetar vídeos e outros conteúdos midiáticos com informação sobre a localização, que usualmente é obtida por dados de GPS. Geolocalização é uma característica em crescimento nas notícias e conteúdos midiáticos. Ela é cada vez mais amplamente utilizada em fotografias e redes sociais, incluindo postagens no Twitter (PAVLIK, 2014, p. 173).

O uso do recurso da geolocalização pode permitir que o jornalismo hiperlocal explore notícias locais, valorizando o lugar e não apenas as notícias dos grandes centros. “O hiperlocalismo pode ser entendido como a tendência do jornalismo em explorar temas e discussões de interesse local (região, cidade ou bairro)” (ROCHA, 2014, p.10). Essa é uma das características do jornalismo mobile aliado à geolocalização. Seria um tipo de personalização determinado pelo usuário. Com o jornalismo móvel, geolocalizado e hiperlocal seria possível acrescentar informações a matérias ou até mesmo escrevê-las e produzí-las. A esse formato de jornalismo chamaremos aqui de crowdsourcing, que refere-se a um indivíduo que é parte integrante e colaborativa na produção de informações, não sendo um profissional da área da comunicação, mas componente da sociedade. O cidadão repórter agora capta e publica tudo o que vê. O jornal londrino The Guardian proclamou este acontecimento como “o verdadeiro nascimento do cidadão repórter”. A câmara do celular não é mais simplesmente a possibilidade de tirar fotos, mas sim uma máquina de publicação instantânea [...] e agora com a função de reunir “olhares” captados pelas pessoas que viveram o fato em questão (PELLANDRA, 2013, p.133).

O desafio do jornalismo contemporâneo é permitir que o usuário não seja visto apenas como o receptor, mas como o interlocutor, alterando as narrativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O jornalismo tornou-se mobile e convergente. A multimidialidade dos canais permite acessar o conteúdo de forma ubíqua. Porém, há um requisito para isso, a comunicação em um ambiente always on4. Com conexão e dispositivos móveis o jornalismo mobile é instantâneo, personalizável, hipertextual, de certa forma interativo e dotado de memória. No formato disponibilizado atualmente, nos aplicativos de notícias no Brasil, constata-se que estão em uma primeira fase de implementação, que não fornece condições para que o usuário possa, de fato, interagir. A interação fica restrita a um formato de “ação – reação”, de forma que o indivíduo pode acessar links, buscar conteúdos ou 4.  Remete a conexão ao conteúdo de forma ininterrupta.

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tocar o aparelho em uma maior possibilidade, postar um comentário. O jornalismo no formato crowdsourcing, onde o indivíduo pode produzir uma notícia, pautar um jornalista, fazer uma denúncia ou colaborar de forma relevante não é permitido pelas empresas de comunicação pesquisadas. O recurso da geolocalização não está disponível em nenhum dos aplicativos de notícias pesquisados, que estão entre os 10 jornais com maior número de impressão no Brasil. As informações mais relevantes são aquelas apontadas nas chamadas e escolhidas pelo meio de comunicação. Não há como o usuário buscar notícias a partir de um lugar ou então, produzir notícias a partir de um lugar e fazer o upload para o aplicativo. A geolocalização apesar de disponível nos aplicativos comerciais, não são disponibilizados nos aplicativos de notícias e com tal comportamento dos meios de comunicação conclui-se que os aplicativos funcionam com um caráter não interativo, com a essência da comunicação de massa, onde a informação é produzida de um para muitos. No formato atual, acontece a não apropriação ou a subutilização das plataformas e das ferramentas disponíveis, que favoreçam o diálogo multidirecional, descentralizado e colaborativo. A geolocalização permite que o jornalismo seja hiperlocal. Com o recurso pode-se criar notícias ou mesmo produzi-las no qual a informação do lugar não estará presente apenas no lide, mas detectada pelo GPS já presente nos dispositivos móveis. Desta forma, o indivíduo pode buscar notícias por palavras-chave, mas também a partir do lugar e recebê-las, ao chegar a um ponto, se assim desejar. No contexto do jornalismo hiperlocal, por estar no lugar da notícia, o usuário pode se tornar um interlocutor. Ele deixa de apenas consumir conteúdo e passa a produzi-lo, com seu ponto de vista e in loco. O jornalismo crowdsourcing permite a construção da informação ou da notícia de forma colaborativa, conjunta e com olhares diferentes, formando um fluxo de informações ou ainda uma sociedade em rede, conforme afirma Castells. As inovações tecnológicas reconfiguraram as formas de produção e consumo da notícia. A produção passou a ser de caráter imediato e o jornalista não precisa estar nas redações para produzir e postar as matérias, ele atua a partir da rua, com dispositivos móveis, portáteis e conectados. O texto não tem mais, obrigatoriamente, que se encaixar no lide, com a hipertextualidade, as informações se dão em blocos e é o usuário que escolhe o que e quanto quer saber mais. Com o smartphone no bolso ou na bolsa e conectado a redes sem fios, os usurários estão o tempo todo recebendo notícias. Elas não precisam mais esperar pelos horários dos telejornais ou pelo jornal impresso no outro dia. A personalização dá a ele a oportunidade de receber alertas sobre determinados assuntos. Os aplicativos de notícias são outra forma de personalização. Se aconteceu, já está na web. A revisão bibliográfica e a observação dos aplicativos de notícias acima citados permitiu verificar como os meios de comunicação dispõe das possíveis ferramentas e do recurso da geolocalização em dispositivos móveis para a construção de novas narrativas jornalísticas e partir deste breve estudo, vislumbrar como seria o jornalismo mobile nos aplicativos de notícias, estando à disposição dos usuários a possibilidade de construção e intervenção da notícia e o uso da geolocalização.

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Conteúdos telejornalísticos: uma análise sobre os dispositivos móveis e as diferentes telas Broadcast news content: an analysis about mobile devices and different screens Tá s s i a B e c k e r A l e x a n d r e 1 Cá r lida E merim2 Resumo: Este trabalho busca mostrar algumas produções de conteúdo telejornalístico para plataformas móveis, analisando se há similaridade ou não de estrutura e tratamento entre as notícias ofertadas na televisão em relação as que são postadas em tablets e smartphones. Para tanto, apresenta aspectos sobre um panorama atual e postula considerações sobre a relação entre TV e mobilidade. Na sequência, o artigo aborda as principais características da linguagem jornalística nas diferentes telas, salientando as especificidades de cada suporte. No estudo de caso, parte da análise dos conteúdos divulgados pelo Jornal da Band e Jornal das Dez em suas edições televisivas e nos aplicativos de suas respectivas emissoras, TV Bandeirantes e canal Globo News, da Rede Globo de Televisão. A análise empreendida mostrou que estes noticiários não desenvolvem novos materiais ou formatos específicos para as novas plataformas, exibindo o mesmo produto apresentado via televisão ou em íntegra ou de forma fragmentada.

Palavras-chave: Televisão; Dispositivos móveis; Conteúdo jornalístico; Linguagem jornalística.

Abstract: This paper seeks to show some broadcast news content production for mobile platforms, analyzing whether or not there is similarity of structure and treatment of the news offered on television over those posted on tablets and smartphones. It presents aspects of a current view and postulates considerations on the relationship between TV and mobility. In sequence, the article discusses the main characteristics of journalistic language on the screens, highlighting the specificities of each support. In the case study, part of the analysis of the information contained in Jornal da Band and Jornal das Dez on their television version and applications of their respective stations, TV Bandeirantes and Globo News channel, the Rede Globo de Televisão. The analysis has shown that these news don’t develop new materials or specific formats for the new platforms, showing the same product presented on television or in whole or piecemeal.

Keywords: Television; Mobile devices; Journalistic content; Journalistic language. 1.  Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (POSJOR/UFSC). Integrante do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Telejornalismo (GIPTele). E-mail: [email protected]. 2.  Doutora, Professora e pesquisadora na Graduação e Pós-graduação do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Líder do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Telejornalismo (GIPTele). E-mail: [email protected].

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CONTEÚDO E TECNOLOGIA: UM PANORAMA BREVE DO JORNALISMO JORNALISMO É um campo em constante mudança. A história do jornalismo,

O

observada com mais atenção, mostra, claramente, o impacto nos conteúdos jornalísticos da evolução tecnológica dos equipamentos que eram desenvolvidos e aperfeiçoados. A começar pela prensa móvel desenvolvida por Johannes Guttenberg no século XV que permitiu a produção em série de material impresso3, o telégrafo, o linótipo, a fotografia, o cinema, a transmissão de rádio frequência, a fotocomposição, o videotape, os dados numéricos, os computadores, o satélite de telecomunicação, a internet, enfim. No jornal impresso, mais especificamente, a partir de 1861, as invenções foram permitindo uma maior cobertura dos repórteres e fotojornalistas nos eventos diários, bem como foram sendo aplicados modelos de produção textual que permanecem como conceitos fundamentais até hoje, entre eles a manchete e o lead. No rádio e na televisão, as transmissões de dados a longa distância, permitiram uma proximidade maior com os fatos a serem recobertos e a sua apresentação, desenvolvendo um modelo de notícia “ao vivo” com chamadas ao longo da programação ou com plantões exclusivos. Em termo de televisão, o videoteipe trouxe a possibilidade de edição dos materiais e de gravação de material de arquivo, o que permitia uma contextualização maior nos conteúdos e o planejamento e regularidade numa grade de programação com programas gravados para posterior exibição. Ao longo dos últimos dez anos, principalmente pelo impacto da internet e a facilitação/ acesso aos equipamentos de captação e reprodução de imagens em movimento e som, a partir da evolução e a expansão de dispositivos móveis, as empresas de comunicação têm procurado alterar o modelo de produção e de consumo de produtos jornalísticos de diferentes meios. É importante ressaltar que esta mudança, especificamente na televisão, ocorre por duas razões bem distintas: 1) a hipersegmentação4 do público, que tem mais escolhas e torna-se mais eclético e menos fiel aos produtos ofertados e, consequentemente, 2) as quedas de audiência e lucratividade (EMERIM; BRASIL, 2013). Diante destas novas configurações, jornais, revistas, sites, rádios e TVs estão, cada vez mais, atentos ao potencial destes novos suportes, propondo a utilização de tablets e smartphones para a expansão de seu conteúdo e, pelo menos, tentar consolidar/ fidelizar um público e manter o interesse de anunciantes. Porém, o estabelecimento destas plataformas não pode ser considerado apenas um acessório às tecnologias digitais, pelo contrário, é necessário se integrar à evolução da web e desenvolver novas formas de uso, propondo novos modelos de negócio e, principalmente, de produção de conteúdo, como bem apontam os autores em Aguado et al. (2011). No caso específico da televisão, nota-se o investimento de emissoras em aplicativos móveis, que permitem aos telespectadores acompanhar os noticiários ao vivo, 3.  Não só a imprensa se beneficia com este invento, mas todo o sistema que dependia de impressão. A possibilidade de produção de impressos como livros e revistas em larga escala, foi fundamental para o desenvolvimento de novos modelos de ensino e de aprendizagem. E, por consequência, também propiciou o aparecimento e desenvolvimento de uma economia fundada no conhecimento e na disseminação deste conhecimento, através da ampla divulgação de conteúdos em livros e jornais, contribuindo para uma verdadeira revolução científica, cultural e social (SCHUDSON, 2010; MELO, 2012; ABREU, 2002). 4.  Sobre esta hipersegmentação no telejornalismo, ver Emerim e Brasil (2013).

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em tempo real, acessar aos vídeos dos programas, bem como navegar por conteúdos complementares à TV através do recurso da segunda tela5. Ressalta-se que o termo segunda tela remete, partindo de Miller (2014), ao tipo de produção de conteúdo que é usada em conjunto com a transmissão televisiva para acesso a informações adicionais sobre os programas da TV e/ou para postar comentários e outros materiais sobre o conteúdo televisivo. Com interesse nesta temática, o objetivo do presente trabalho é o de verificar como se dá a produção de conteúdos telejornalísticos para as plataformas móveis, analisando se há similaridade ou não de tratamentos entre a estrutura das notícias ofertadas na televisão com as que são disponibilizadas em tablets e smartphones, na perspectiva de uso em segunda tela. Para compreender este fenômeno, comparou-se o conteúdo exibido por dois telejornais brasileiros – o Jornal da Band, transmitido pela TV Bandeirantes em canal aberto, e o Jornal das Dez, da Globo News (Rede Globo de Televisão), em canal fechado, em suas edições televisivas e no espaço disponível a estes programas nos aplicativos móveis de suas respectivas emissoras. Para dar conta dos objetivos a que este artigo se propõe, inicialmente, aborda-se a relação entre televisão e mobilidade, explorando pesquisas que apontam os usos e o consumo dos dispositivos móveis aliados à TV. Em seguida, se ressaltam as principais características da linguagem jornalística nestes diferentes suportes, evidenciando aspectos e funções disponíveis à produção de conteúdos em jornalismo. Por fim, apresenta-se a análise e o estudo de caso dos dois telejornais e seus respectivos aplicativos.

ASPECTOS SOBRE TV E MOBILIDADE DE CONTEÚDO Presente em 97,2% dos lares brasileiros (IBGE, 2013)6, a televisão se mantém como um dos meios de comunicação mais utilizados pelo público não só pelo seu custo acessível como também pelo estatuto que alcançou de companhia do ser humano contemporâneo. Se nos anos 1950 a tevê era das elites que tinham o poder de pagar por um aparelho, o avanço da tecnologia barateou o custo do aparelho e do acesso à programação de televisão aberta, o que popularizou o meio entre as mais diferentes classes sociais. Na atualidade, é possível, por exemplo, assistir TV em diversos cômodos da casa, enquanto almoça, descansa no quarto ou brinca com os filhos, além do quê, ela também está nas ruas e nos estabelecimentos do comércio, permitindo ser assistida enquanto se pratica exercícios físicos na academia ou em compras numa loja de departamentos. As inovações tecnológicas também permitiram a mobilidade das transmissões televisivas, com imagens disponíveis 24 horas por dia através de outras telas, a exemplo do computador, smartphone e tablet. Essa ampliação nas formas de acesso aos conteúdos audiovisuais tem alterado o modo como a televisão é consumida. A pesquisa “Brasil Conectado: Hábitos de consumo de mídia 2014”, produzida pelo IAB Brasil (IAB BRASIL, 2014) em setembro de 2014, aponta que 76% dos entrevistados navegam em ao menos uma plataforma (computador, smartphone e tablet) enquanto assiste televisão, 3% a mais do que 5.  Quando o dispositivo móvel é usado em conjunto com a transmissão televisiva para acesso a informações adicionais sobre os programas da TV e/ou para postar comentários e outros materiais sobre o conteúdo televisivo (Miller, 2014). 6.  Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2013 (IBGE, 2013).

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em 2013. Na mesma linha, em um levantamento elaborado pela Nielsen e divulgado em fevereiro de 2013 (NIELSEN, 2013), 26% dos brasileiros que participaram das entrevistas afirmaram que o uso dos smartphones os fazia passar mais tempo em contato com a televisão. Sobre este panorama, Barcellos, Gonzatto e Bozza (2014, p. 85) destacam que as plataformas móveis mudam de fato a recepção e o consumo da TV, em que “o público ‘conectado’ assiste televisão, por exemplo, de forma menos passiva”. Analisando como os suportes são explorados pelo público, Aguado (2013) constata que o consumo de diferentes telas pode ser sequencial, quando um conteúdo transmitido na TV desencadeia uma busca no computador e smartphone, ou simultâneo, que pode ser sobreposto ou coordenado e ocorre quando utilizamos as telas ao mesmo tempo. O uso simultâneo sobreposto não envolve ações complementares à televisão, enquanto o coordenado se refere às atividades realizadas nos dispositivos que reforçam a transmissão televisiva. Desta forma, é possível considerar que o uso concomitante das plataformas móveis e TV pode desviar a atenção da audiência, mas, ao mesmo tempo, pode enriquecer a experiência do público com informações adicionais ao conteúdo televisivo e canais de interação com a emissora e outros telespectadores/usuários. Ao mesmo tempo em que precisam lidar com os novos hábitos dos telespectadores, as emissoras de TV necessitam também se adaptar às transformações comunicacionais que alteram a produção e a difusão dos conteúdos audiovisuais. Podemos citar, por exemplo, as tecnologias que garantem diferentes recursos de edição, melhor qualidade de som e imagem e aquelas que permitem ao público interagir com o programa, enviando vídeos e sugestões de pautas. Há, ainda, os novos canais para transmissão de materiais, como os já citados dispositivos móveis e suas aplicações nativas (apps) e a própria web, acessada de diferentes plataformas com conexão à rede. Diante deste cenário, é preciso repensar o modo como os produtos televisivos são gerados e ofertados para o público nas diferentes telas e plataformas, pois a fórmula que por anos garantiu a sobrevivência do meio talvez não seja tão eficaz no cenário atual. Por isso, uma das indicações de estudiosos da área7 é desenvolver uma linguagem apropriada para os conteúdos da TV a cada mídia onde serão ofertados, pois: Ninguém que acessa a rede está disposto a ficar totalmente imerso nas imagens como um telespectador tradicional numa sala de estar. O internauta não está assistindo ao computador. Ele está navegando na Internet e deve estar também fazendo várias coisas ao mesmo tempo (Brasil, 2002, p. 370).

Complementar a isso, Barbosa (2013, p. 42) afirma que “[...] as mídias móveis, especialmente smartphones e tablets, são os novos agentes que reconfiguram a produção, a publicação, a distribuição, a circulação, a recirculação, o consumo e a recepção de conteúdos jornalísticos em multiplataformas”. Assim, antes de se analisar exemplos de como emissoras de TV brasileiras estão utilizando os dispositivos móveis para difundir conteúdos, é importante destacar características e identificar aspectos e semelhanças da linguagem jornalística na televisão e dispositivos.

7.  C.f.: Brasil, 2002; Barcellos; Gonzatto; Bozza, 2014.

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LINGUAGEM JORNALÍSTICA NA TELEVISÃO E DISPOSITIVOS MÓVEIS Cada meio de comunicação adapta o fazer jornalístico às suas especificidades, desenvolvendo uma linguagem própria para comunicar aquilo que é notícia. Enquanto o jornal impresso diferencia-se das outras mídias tradicionais pelo texto e pela foto, e o rádio pelo o áudio, a televisão tem como principal característica a combinação de som e imagem em movimento. Rezende (2000) enfatiza que a mensagem icônica possui tamanha força que para muitos telespectadores o que a TV mostra é o que de fato aconteceu. Ao mesmo tempo, é imprescindível que as imagens estejam alinhadas ao texto narrado pelos repórteres/ apresentadores: “Texto e imagem se unem numa unidade significativa para favorecer a compreensão, mas não basta ver, é preciso que alguém nos diga o que estamos vendo. O texto falado conduz e alinha imagens, sons, ruídos, gráficos e vinhetas” (BECKER, 2005, p. 71). Relacionado à notícia televisiva, Cebrián Herreros (1998) explica que esta apresenta uma estrutura breve e precisa, com informações capazes de responder as perguntas do lead – o quê, quem, quando, onde, como e por quê. O autor acrescenta também que, em geral, as matérias seguem a lógica das imagens em movimento, com narração em off do repórter, intercaladas por declarações das fontes. Com algumas variações de acordo com a emissora, o tipo de noticiário e o perfil de público almejado, este modelo de narrativa telejornalística pode ser facilmente identificado quando se assiste um telejornal. A introdução de novos canais para difusão dos conteúdos, como o YouTube, Vimeo, aplicativos para dispositivos móveis e as páginas das emissoras na web, contudo, traz implicações que devem ser consideradas pelos jornalistas e produtores de TV. Entre elas podemos citar o tamanho das telas, já que detalhes facilmente visíveis nos aparelhos televisores podem não ser notados pelos telespectadores nos ecrãs de seus smartphones. Canavilhas (2013b, p. 3) complementa esta afirmação ao ressaltar que, mesmo sendo o meio que melhor resistiu à chegada da internet, a televisão “[...] foi igualmente obrigada a integrar algumas características que sustentam o sucesso da Web, nomeadamente a interatividade e a possibilidade de efetuar um consumo personalizado”. Segundo Barcellos, Gonzatto e Bozza (2014), os materiais televisivos a serem difundidos nos dispositivos móveis devem priorizar as peculiaridades destes suportes: A difusão de conteúdos nas plataformas digitais deve possibilitar menos esforços de recepção e maior possibilidade de interação. Os dispositivos, por sua vez, devem permitir a tactibilidade, como uma forma de navegabilidade rápida e acesso aos conteúdos num simples toque do aparelho com os dedos. Esse conceito propõe a integração, que é o ato de colocar as coisas juntas e, também, de tocá-las (Barcellos; Gonzatto; Bozza, 2014, p. 87).

Além das características referentes à navegabilidade, os telejornais também devem explorar a mobilidade dos smartphones e tablets. Para Canavilhas (2013a), a informação personalizada é um dos principais diferenciais do jornalismo para dispositivos móveis, já que estas plataformas podem acompanhar os usuários em diferentes ambientes, ao contrário da televisão. O autor destaca, entre outras ferramentas, o GPS, que permite entregar ao público informações georreferenciadas. Especificamente no que tange aos smartphones, Renó e Renó (2013) evidenciam características que os diferenciam dos

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suportes tradicionais: O texto não é como um computador, pois a navegabilidade, por mais simples que seja, é distinta. O som não é como o do rádio, pois a transmissão nem sempre é de boa qualidade, e, além disso, pode ser on demand. O vídeo não é o mesmo que a televisão, pois o dispositivo possui uma micro-tela que limita a visualização do conteúdo e oferece uma interação a partir do sistema touch screen (telas táteis), ou seja, oferece uma interatividade a partir de sua interface. Por esse motivo, é um dispositivo comunicacional diferente dos demais que conhecemos (Renó; Renó, 2013, p. 62-63).

Apesar de possuírem aspectos semelhantes, como a mobilidade e as telas táteis, smartphones e tablets também apresentam diferenças que devem ser pensadas para a produção e difusão de conteúdo jornalístico. Canavilhas e Satuf (2013) avaliam que o consumo midiático nas duas plataformas é similar, mas, em função do tamanho do ecrã, os tablets têm usos semelhantes a meios como o jornal e a TV, “[...] criando-se assim um ambiente híbrido propício para a emergência de modelos informativos de fusão entre estas duas realidades” (CANAVILHAS; SATUF, 2013, p. 40). Estas características das plataformas móveis estão sendo exploradas de diferentes maneiras para a difusão de informações e entretenimento. Feijóo et al. (2009, tradução nossa) sugerem a classificação do uso de tablets e smartphones pelos meios de comunicação em quatro categorias: adaptado (adapted), quando o material disponível em outras mídias é ajustado para visualização e uso no ambiente móvel; reaproveitado (repurposed), para conteúdos criativos que estão sendo reutilizados e adaptados à mobilidade; original ou específico (original, specific), para designar materiais pensados para o ambiente móvel; e aumentado (augmented), para conteúdos que utilizam propriedades dos sistemas móveis, a exemplo da geolocalização, para aumentar seu valor e interesse para os usuários. Se utilizados de maneira adequada, os dispositivos móveis são um acréscimo à televisão e demais mídias. Guerrero (2011) destaca o potencial interativo das plataformas e a capacidade de complementarem as informações divulgadas em outros meios, com a possibilidade de fidelizar da audiência, melhorar a relação do público com o conteúdo, potencializar a criatividade dos formatos, criar marca, incrementar a difusão de materiais audiovisuais e incorporar novas formas de acesso às outras mídias. Este é o caso da segunda tela, termo que se refere ao uso simultâneo dos dispositivos e TV para acesso a conteúdos adicionais à televisão ou para postar comentários sobre os programas no momento em que eles estão sendo exibidos (MILLER, 2014). Abordadas as principais especificidades da linguagem televisiva e dos dispositivos, apresenta-se, na próxima seção, a análise dos aplicativos da Band e Globo News, com o objetivo de identificar quais os usos que as emissoras têm feito dos novos suportes para a difusão de conteúdos telejornalísticos.

CONTEÚDOS DO JORNAL DA BAND E JORNAL DAS DEZ NO AMBIENTE MÓVEL Como abordado anteriormente, uma linguagem que valoriza e explora as características de cada suporte contribui para que o meio e seus conteúdos sejam mais atraentes para o público. Desta forma, diante do cenário de expansão da presença de

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emissoras de televisão nos dispositivos móveis através de aplicativos, busca-se verificar como se dá a produção de conteúdos telejornalísticos para estas plataformas, analisando se há similaridade ou não de tratamentos entre as notícias ofertadas na TV e nos tablets e smartphones. Como já se afirmou, para dar conta desta proposta, selecionou-se dois telejornais exibidos no Brasil e os aplicativos de suas respectivas emissoras, o Jornal da Band8, da emissora de TV aberta Bandeirantes, e o Jornal das Dez9, da emissora de TV paga Globo News. A edição analisada de cada programa é referente ao dia 11 de março de 2015. Em relação ao aplicativo, o estudo verificou a versão disponível para o sistema Android10 em quatro diferentes momentos: minutos antes de cada telejornal entrar no ar; durante a transmissão do noticiário; 12 horas após o início da exibição na TV; e 24 horas após o começo e encerramento da transmissão televisiva do programa.

Jornal da Band A análise dos conteúdos transmitidos pelo Jornal da Band na televisão e nos dispositivos móveis revelou que não há elaboração de materiais novos para as diferentes telas. Das temáticas/matérias identificadas no telejornal na edição televisiva, oito foram fragmentadas da ordem do programa (cerca de 40% do total) e replicadas individualmente no aplicativo, todas sem alterações nos formatos ou inclusão de novas informações. Apenas a linguagem audiovisual é explorada, sem complemento dos vídeos com texto, fotos ou áudio. De acordo com o app, os vídeos referentes ao programa foram adicionados inicialmente às 20h21, logo após ser encerrada a transmissão na TV. Não é possível, contudo, realizar uma busca e/ou acessar conteúdos anteriores e outras edições do telejornal, pois os vídeos antigos são excluídos à medida que os mais recentes são adicionados. Não há, também, nenhuma indicação sobre quando os vídeos foram transmitidos na televisão, apenas a data de sua publicação no aplicativo. Vale destacar, ainda, que constava na aplicação móvel, com data de atualização no dia 11 de março às 20h, uma entrevista com uma cidadã sobre uma tentativa de assalto, informação que não foi ao ar no dia da análise. Contudo, ao contrário dos outros vídeos, este não conta com uma fala introdutória dos apresentadores do programa ou de algum repórter, sendo inviável compreender o contexto em que o material foi exibido e se realmente se tratava de um conteúdo inédito para os dispositivos móveis. Nem mesmo o nome da entrevistada estava visível ao usuário. Um dos diferenciais do aplicativo da TV Bandeirantes é a opção para acompanhar o Jornal da Band ao vivo. Este aspecto, assim como a inserção de conteúdos já exibidos pelo noticiário e atualizados apenas após o término da transmissão, transforma o dispositivo em uma tela dissociada da televisão, em que o usuário não precisa acompanhar simultaneamente a TV para compreender as imagens que visualiza no ecrã do tablet ou smartphone. Considerando a classificação de Feijóo et al. (2009) sobre 8.  O Jornal da Band é exibido de segunda-feira a sábado pela TV Bandeirantes em sinal aberto. 9.  O Jornal das Dez é exibido diariamente, de segunda-feira a domingo, pela emissora Globo News em sinal fechado. 10.  As análises foram realizadas por meio de tablet com tela tamanho 8”. Vale destacar, contudo, que a versão dos aplicativos para sistema Android da Band e Globo News é a mesma tanto para tablets quanto para smartphones.

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o uso das plataformas, é possível afirmar que o espaço no app disponível ao telejornal é “adaptado”, que é quando os conteúdos de outros meios são ajustados para serem visualizados nos dispositivos – mesmo que a mudança real tenha sido apenas a separação das notícias do todo do programa.

Jornal das Dez Assim como o Jornal da Band, o Jornal das Dez não conta com conteúdos exclusivos e inéditos em seu aplicativo. Alguns materiais do telejornal são disponibilizados de forma fragmentada no aplicativo. No dia da análise, foram divulgados 12 vídeos no app referentes à edição do dia 11 de março de 2015, o que corresponde a aproximadamente 60% das temáticas apresentadas na transmissão televisiva. Outros formatos, como texto e áudio, não foram explorados pela emissora para os dispositivos móveis. Há um limite de vídeos publicados no aplicativo da Globo News (conteúdos relacionados a aproximadamente uma edição do telejornal), não sendo possível procurar e/ou acessar materiais antigos através da ferramenta. Não há, também, indicação de quando os materiais foram inseridos no app e em qual data foram transmitidos na TV. Diferentemente da aplicação da TV Bandeirantes, não é possível acompanhar o Jornal das Dez ao vivo, contudo, alguns vídeos referentes à edição do dia são adicionados ao aplicativo enquanto o programa ainda está no ar. Ao avaliar as características do material do telejornal disponível aos dispositivos móveis, é possível considerar que o aplicativo não potencializa ou complementa a informação televisiva, atuando mais como um recurso para acesso das notícias mais recentes. Seguindo a classificação de Feijóo et al. (2009), o conteúdo do Jornal das Dez disponível no app, assim como o Jornal da Band, é “adaptado”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As mudanças no consumo dos conteúdos televisivos em razão do uso concomitante dos dispositivos e da televisão estão fazendo com que as emissoras invistam na elaboração de aplicativos móveis como forma de expandir e fidelizar sua audiência e atrair anunciantes. Neste artigo, expôs-se parte de alguns resultados de mapeamento inicial realizado sobre o tema que é fruto de uma pesquisa maior, em andamento, desenvolvida por uma das autoras sob a orientação da segunda. Tais resultados não tratam o problema do ponto de vista mais conceitual, mas percebem as relações que os conteúdos em jornalismo televisivo têm estabelecido com aqueles que se apresentam na perspectiva da segunda tela. Como se pode verificar, trata-se, neste primeiro momento, apenas de versões pouco modificadas do mesmo material exibido nos programas de origem em rede aberta ou fechada, no formato mais tradicional do telejornal. Os conteúdos disponibilizados comprovam que as emissoras ainda não estão desenvolvendo produtos para este segmento e, quando o fazem, não apresentam formato ou modelo de produção específico para esta mídia. A partir do exposto, foi possível também verificar que os dois telejornais, Jornal da Band e Jornal das Dez e suas emissoras, por consequência, não exploram uma nova linguagem para os dispositivos móveis e, nem mesmo, se utilizam de uso de recursos e características inerentes às plataformas. Esta opção pela reprodução de conteúdo, sem dúvida é mais rápida e de baixo custo às emissoras, porém,

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esta escolha parece desconsiderar aquilo que parece ser o objetivo maior da oferta de diferentes produtos: o público. Para reiterar esta afirmação, veja o caso dos créditos e legendas que, na TV aberta ou fechada, cujas telas variam entre 21, 32 e até 60 polegadas, a distribuição dos elementos nestas telas é maior, pois pode ocupar mais espaço no campo visual. Mas, quando este formato é simplesmente transposto para os tablets, por exemplo, que mantém um tamanho comum de até 13 polegadas, muitas informações visuais se perdem, entre elas, créditos e legendas que, não raramente, são cortados de cena. Ou, ainda, quando exibidos, remetem ao programa original, sem uma adequação ou localização do espectador sobre quando foi que aquele fato relatado aconteceu ou se trata-se de assunto factual. Lembrando que nem sempre o espectador estará acessando o aplicativo em segunda tela e assistindo a televisão ao mesmo tempo. Neste caso, uma simples legenda no app poderia resolver este ponto, indicando que aquele material foi transmitido na edição do dia X do telejornal tal. Em relação ao conteúdo visual, a narrativa televisiva é pautada nas imagens e todos os manuais de redação para a notícia em televisão apontam sobre a necessidade de “casar texto com imagem”. Na segunda tela, os planos devem respeitar o tamanho da tela de exibição, assim como se faz com produções direcionadas para serem exibidas via YouTube ou filmes para serem exibidos na televisão. No sistema de televisão aberta, existe a regra dos planos partindo da premissa da compreensão informativa da notícia: primeiro o Grande Plano (localiza o espectador), depois o Plano Médio (direciona o tema para o espectador) e Close-up (detalha o tema, o diferencial para o espectador). Em telas menores, esta regra se reorganiza. Grandes planos como os Planos Geral e Panorâmico, perdem o foco da atenção do olhar porque parecem vazios naquele pequeno espaço. O Plano Geral destas produções passa a ser o Plano Médio, que consegue exibir o ambiente e localizar o espectador sem muita profundidade de campo ou lateralidade. No sistema de televisão aberta, as mudanças de plano e os cortes de edição em ritmo cadenciado, entre 8 a 10 frames em cada corte, são necessários para dar ritmo à narrativa. Em telas pequenas, às vezes é necessário ter planos mais longos, deixar mais tempo um mesmo plano em tela e evitar muitos ângulos diferenciados ou cortes bruscos e rápidos de edição, em busca de uma compreensão mais efetiva do que se está mostrando e informando. Nas telas pequenas, em relação à informação através da imagem, as pesquisas empreendidas mostram que a compreensão se dá de forma mais lenta, porque focaliza detalhes mais do que o todo. Muitos elementos provocam dispersão e não focalização. Apesar de as emissoras ampliarem as vias de acesso dos telespectadores aos seus noticiários, os conteúdos exibidos em segunda tela, nos objetos analisados, não são atrativos para os espectadores, não criam materiais inéditos relacionados aos telejornais e os temas tratados, nem mesmo formatos característicos para os dispositivos móveis. A criação deste tipo específico de produto poderia contribuir para o aumento da audiência qualificada (fidelizada) dos programas, além de atrair uma parcela que hoje não se interessa pelo acesso a este tipo de tema nas plataformas móveis. Como salientam Feijóo et al. (2009), cada conteúdo móvel merece uma abordagem diferente, tanto aqueles segmentados das mídias clássicas quanto aqueles produzidos especialmente para circular nas plataformas e, (grifo nosso), pensando na hipersegmentação da audiência e em conteúdo com formato específico para este tipo de público.

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Já é consenso no campo da informação e da mídia televisiva que há uma tendência crescente do consumo dos dispositivos móveis concomitante ou sequencialmente a outras mídias e que este consumo será uma demanda desafiadora para os produtores de conteúdo em jornalismo. Diante desta perspectiva, torna-se mais premente buscar o aperfeiçoamento e desenvolver novos modelos de produção que permitam o empenho da criatividade dos profissionais do jornalismo para que possam, de fato, investir e explorar os recursos característicos destas plataformas. Um destes recursos que se acredita ser potencial é a segunda tela, que pode se tornar um formato estratégico para cativar e fidelizar a audiência e buscar novas formas de patrocínio/financiamento para a produção televisual em jornalismo e suas diferentes plataformas.

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Revistas em formato digital e o fator temporal na era da comunicação móvel Magazines in digital format and time factor in the era of mobile communication Ca llenciane Fer r eir a L eão1

Resumo: Este artigo reflete sobre o fator temporal em revistas digitais, à luz da abordagem de Franciscato (2005), que trata de formatos jornalísticos através de cinco categorias de fenômenos temporais que configuram a atualidade jornalística: instantaneidade, simultaneidade, periodicidade, novidade e revelação pública. Para isso, observa-se ainda que inicialmente essas categorias nos produtos jornalísticos em formato digital Época e O Globo A Mais. Ambos são relevantes no cenário nacional, tendo sido a revista Época para tablet lançada em 2010 (Cunha, 2011), considerada uma das pioneiras em formato expandido e de periodicidade semanal, enquanto a O Globo Mais surgiu em 2012 com formato exclusivo para tablet (Dourado, 2013), com periodicidade vespertina diária de segunda a sexta-feira. Considera-se, para tanto, o cenário da comunicação móvel, conforme aponta Lemos (2005), por conta do papel do fluxo de informação nas sociedades contemporâneas e a relevância dos suportes digitais nesse contexto, com especial atenção para o tablet como uma das tecnologias que está influenciando produtos jornalísticos contemporâneos. Assim, percebem-se aproximações e distanciamentos na relação entre temporalidade e comunicação móvel nessas publicações, como questões de aprofundamento de conteúdo.

Palavras-chave: Fator Temporal, Revistas Digitais, Comunicação Móvel. Abstract: This article reflects on the time factor in digital magazines, by the view of Franciscato (2005), which deals with journalistic formats through five categories of temporal phenomena that shape the topicality today: instantaneity, simultaneity, periodicity, novelty and public disclosure. For this, we observe initially these categories in journalistic products in digital format like Época and O Globo A Mais. Both are relevant on the national scene, as Época for tablet was launched in 2010 (Cunha, 2011), considered one of the pioneers in expanded format and weekly, while O Globo A Mais came in 2012 with unique shape based in tablet (Golden, 2013), with daily evening schedule from Monday to Friday. It is considered, therefore, the landscape of mobile communication, as shown by Lemos (2005), due to the role of information flow in contemporary societies and the importance of digital media in this context, with particular attention to the tablet as one of the technologies that is influencing contemporary journalistic products. So are perceived similarities and differences in the relationship 1.  Mestranda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected]

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between temporality and mobile communications in these publications, such as content exploration of issues.

Keywords: Temporal Factor, Digital Magazines, Mobile Communication.

INTRODUÇÃO STE ARTIGO aborda aspectos do fator temporal em revistas jornalísticas em formato

E

digital na era da comunicação móvel. Para isso, utiliza como exemplo publicações que se destacam no cenário nacional como Época e O Globo A Mais, ambas produzidas para tablet, uma vez que os suportes de leitura como os dispositivos móveis estão demandando que se utilizem cada vez mais as potencialidades do meio e se atualizem nessa plataforma diante dos leitores contemporâneos. Portanto, o foco inicial da discussão gira em torno do fator temporal, levando-se em consideração o estudo de Franciscato (2005), que trata de formatos jornalísticos como produtos de modelos históricos de desenvolvimento da cultura, da economia, da política e da tecnologia, e apresenta cinco categorias de fenômenos temporais que configuram a atualidade jornalística: instantaneidade, simultaneidade, periodicidade, novidade e revelação pública. Essas categorias serão trabalhadas mais adiante em relação às revistas em formato digital, com especial atenção aos dois exemplos em destaque: revista Época e o vespertino O Globo A Mais. Leva-se em consideração ao longo dessa reflexão o contexto geral da comunicação móvel, à luz dos estudos de Lemos (2005), um dos principais autores brasileiros nessa temática, e o surgimento das revistas digitais em formato digital, aqui entendidas através desse termo “formato digital”, especialmente nos dispositivos móveis como o tablet, para diferenciar das publicações impressas e por existir vários formatos digitais, conforme apontam Dourado (2013), Canavilhas e Satuf (2013) e Barbosa, Silva, Nogueira e Almeida (2013). Por fim, são observadas algumas relações entre as categorias do fator temporal e as especificidades da comunicação móvel na dinâmica dos produtos jornalísticos escolhidos para esse estudo. Para enriquecer essa reflexão, outros autores são trazidos à tona como Cunha (2012), Igarza (2008; 2009), Natansohn (2013), Cunha (2012), Palácios e Cunha (2012) e Canavilhas (2010), conforme se verificam a seguir.

1. O FATOR TEMPORAL O fator temporal é parte dos estudos de Franciscato (2005) para entender a atualidade jornalística. O autor explica que as categorias que compõe esse fenômeno temporal foram construídas historicamente ao mesmo tempo em que o próprio jornalismo se desenvolvia como instituição social. São elas: instantaneidade, simultaneidade, periodicidade, novidade e revelação pública. Essas categorias estão interligadas e são relevantes para entender os contornos do jornalismo contemporâneo, mas são evidenciadas a seguir separadamente para melhor entendimento dos fenômenos: • Na instantaneidade, compreende-se a busca pela ausência de intervalo de tempo entre o evento ocorrido e o momento de transmissão, aproximando o contato do público com o conteúdo. Historicamente, as ferrovias e o telégrafo foram importantes na absorção dessa noção de velocidade no transporte de informação e da

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associação desse tempo dinâmico ao surgimento de transportes e comunicações mais instantâneas. Velocidade e aceleração eram fascínios entre os séculos XIX e XX, especialmente nas grandes cidades da Europa e dos Estados Unidos. Assim, as empresas jornalísticas absorviam esse ritmo nas rotinas produtivas, com prazos para fechamentos específicos relacionados a periodicidades dos produtos jornalísticos, preocupados em serem mais eficientes no processo de divulgar informação cada vez mais rápidamente, numa lógica que já se identificava com a industrial, e seguia a tendência de tentar aproximar o leitor do ´tempo dos eventos´ ao longo do processo cotidiano de leitura e contato com informações (FRANCISCATO, 2005); • A ideia de simultaneidade produzida pelo jornalismo, por sua vez, tenta superar a atomização social, realizando um esforço para que os tempos dos eventos e do mundo sejam simultâneos, paralelos, ao tempo do leitor e sua experiência de contato com a informação. “O termo simultaneidade teria a função de designar esta relação de sincronismo envolvendo ações ou eventos” (FRANCISCATO, 2005, p.124). Ela é composta tanto pela noção de identidade construída cotidianamente pelo jornalismo, também como parte do próprio jornalismo na construção de sentido sócio-cultural de atualidade, quanto ao papel de dar uniformidade às práticas-sociais que ajuda a construir e que ocorrem simultaneamente em diferentes locais, mas num mesmo espaço territorial. A simultaneidade e a instantaneidade são componentes da atualidade jornalística, trabalhadas num vínculo intermitentemente (FRANCISCATO, 2005); • A periodicidade está relacionada à regularidade de produção e oferta de informação. E ambos, regularidade e novidade, comporiam a ideia inicial de periodicidade, além da ´veracidade´ do relato, todos contribuindo para a formação de hábitos na sociedade que interferiam na rotina dos indivíduos. Aspectos positivos e negativos são inerentes a essa categoria, como a fragmentação dos eventos em unidades cada vez menores e a definição de ritmos, de modos de periodização da vida social associados à atuação do próprio jornalismo como mediador social de padrões de regularidade temporal. (FRANCISCATO, 2005); • A novidade é uma categoria trabalhada pela instituição jornalística onde o ´novo´, algo que é conhecido pela primeira vez ou tem pouco tempo de existência, e a continuidade de sua compreensão enquanto novo estão conectados ao ´agora´, marcador do presente. Esta categoria é mais sutil que as demais, pois depende da atividade jornalística para confirmar a ideia de ´novo´ em relação a algo. Perceber a novidade como parte dessa dimensão temporal requer ver o tempo como construção social, para a qual o jornalismo contribui com ferramentas de prática cotidiana durante as rotinas produtivas (FRANCISCATO, 2005); • A revelação pública ocorre tanto pelo esforço de manter o momento de fala no presente, produzindo o sentido de presente, quanto por tentar levar ao leitor algo novo, sejam os eventos recentes ou mais antigos. Assim, o jornalismo desempenha o papel de revelar fatos para os leitores, colocar em evidência assuntos importantes e mostrar as ações do Estado para o debate público, num processo de “publicização” dos atos estatais, conforme uma perspectiva de Habermas, apontada por Franciscato (2005).

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Assim, buscando lidar com fenômenos como esses, as mudanças que afetaram as organizações midiáticas estiveram cada vez mais ligadas ao uso de tecnologias de transmissão de informação em rede (FRANCISCATO, 2005). O desenvolvimento das cidades, com o uso de redes de transportes e a desmaterialização da comunicação social, contribuiu para intensificar o uso de novas formas e práticas urbanas, configurando o urbanismo das populações em trânsito, ou pós-urbanismo, com comunicações móveis e hiperconectividades, numa possibilidade de conexão constante por meio de dispositivos móveis, sendo diferenciais de sobrevivência nessas cidades (IGARZA, 2009). Diante desse cenário, o jornalismo segue ajudando a estabelecer a definição de contemporâneo (BENETTI, 2012), adaptando-se constantemente a essas novas práticas sociais, aos hábitos que se estabelecem, por exemplo, nos espaços em que o fluxo de informação é essencial para a dinâmica da sociedade (LEMOS, 2005). Nesses locais, cresce a telemediação, forma-se uma estrutura “superurbana”, “superindustrial”, onde urbano e eletrônico são simultâneos, espaço virtual adiciona funcionalidades ao físico, e o desenvolvimento social ocorre pela via telemática (LEMOS, 2005). Desse modo, é bastante provável que o fator temporal e suas categorias possam ser percebidos em publicações jornalísticas digitais como Época e O Globo A Mais. Ambas as publicações são voltadas para o uso de dispositivos móveis, como o tablet, conforme apresentado a seguir.

2. DINÂMICA DE LEITURA NA ERA DA COMUNICAÇÃO MÓVEL Em uma parte considerável dos locais onde as atividades cotidianas são cada vez mais mediadas digitalmente, como a telemediação (LEMOS, 2005) e o uso de dispositivos móveis (IGARZA, 2009) nos centros urbanos, desenvolver competências digitais é indispensável para uma plena integração social e cultural. Assim, as tecnologias de informação e comunicação (TICs) são apropriadas por grandes massas urbanas muitas vezes para aumentar a inserção nas esferas sociais e de trabalho, evitando-se, de certa forma, uma marginalização (IGARZA, 2008). O surgimento do celular e do correio eletrônico ajudou a mudar hábitos nesses centros urbanos, e a Internet contribuiu em larga escala para alterar o ecossistema mediático, inclusive na forma como os indivíduos se relacionam com esses meios, sobretudo por se configurar como uma simbiose dos conteúdos de todos os meios anteriores (CANAVILHAS, 2010). Mas, ainda que já existissem tecnologias anteriores à Internet, como o rádio portátil nos anos 60 e o audiovisual nos anos seguintes, ou o próprio telégrafo, que representou a primeira grande promessa de instantaneidade no jornalismo e a própria noção de velocidade e aceleração na sociedade (FRANCISCATO, 2005), são os celulares, no caso, por serem acessíveis e funcionais tanto para os “imigrantes” digitais, que se adaptavam à chegada dessa tecnologia, quanto os “nativos”, que desde cedo tinham contato com esses recursos (IGARZA, 2009). Mais recentemente, principalmente a partir de 2010, podemos inserir os tablets nesse panorama. A estimativa é de que em 2020, os dispositivos móveis sejam a principal forma de acesso à Internet e que isso configure um “novo ecossistema mediático

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resultante de alterações nos vários factores antes mencionados e que passamos a analisar” (CANAVILHAS, 2010). Assim, a mobilidade é a responsável pela mudança de paradigma tecnológico e de uso desses dispositivos móveis (IGARZA, 2008), e a conectividade torna-se um diferencial competitivo. Tanto que a já considerada hiperconectividade, na qual o indivíduo está conectado a pelo menos um dispositivo ou uma rede diariamente, traz sentimento de segurança numa era de comunicação móvel, especialmente em grandes cidades, e as tecnologias digitais de natureza computacional só perdem para a imprensa, o transporte ferroviário e a eletricidade como encontro de maior significação entre sociedade e tecnologia conforme os indivíduos fazem uso das TICs (IGARZA, 2009). Daí a relevância de se pensar as demandas de acesso a informação diante de tanto fluxo de informação e novas dinâmicas de leitura e escrita em cidades cujas configurações estão em transformação devido às TICs e seus usos (LEMOS, 2005). E um cenário como esse poderia causar as transformações necessárias para o surgimento de formas produtivas de revistas como as observadas no início do século XXI. Isso, sobretudo, ocorrendo especialmente com a popularização dos tipos de dispositivos nos hábitos de consumo de produtos jornalísticos digitais (NATANSOHN, 2013). No caso das revistas digitais, um dos dispositivos móveis mais valorizados como suporte é o tablet/iPad (PAULINO, 2013; GARCÍA, 2012), mas a relação entre leitura e fruição estética (BENETTI, 2012) continuam como característica do estilo de jornalismo pensado para revista. Para Scalzo (2011), ainda que a revista represente um modelo de negócio, um produto com vínculo a uma marca, relacionando em alguma medida jornalismo e entretenimento, tem como uma de suas principais características a intenção de se aproximar do leitor. A revista tem aspectos de produto colecionável, lida com grandes temáticas e vários estilos de texto, com critérios de seleção para definir capa e busca se aproximar do leitor direta e emocionalmente, através de seus recursos discursivos, ao que reforça Benetti (2012). Mas, ainda que de fácil mobilidade, geralmente semanal ou com periodicidade mais espaçada que isso, como mensal, semestral ou anual, para permitir um ciclo de produção mais lento e cuidadoso, precisamos enxergar as revistas para além dessas fronteiras e atentar para o fato da adequação às novas interfaces, conforme aponta Freire (2013). Assim, características como tactilidade (PALACIOS, CUNHA, 2012), uma caraterística relacionada a telas sensíveis ao toque, nas ‘interfaces hápticas’, associadas a outros recursos que exploram as possibilidades do suporte como áudio, vídeo, animações gráficas e galerias de fotos, ajudam a entender o tablet como “ideal” para a leitura das revistas em formato digital, especialmente modalidades como nativas e expandidas. O smartphone, por sua vez, teria mais apelo para consumo rápido e prático de notícias, provavelmente com menor possibilidade para usar esses recursos de forma mais eficiente devido às limitações de tamanho de tela (DOURADO, 2013). Para facilitar a compreensão acerca dos vários formatos de revistas em ambiente digital, destacam-se aqui as tipologias desenvolvidas por Dourado (2013). A pesquisadora apresenta seis modalidades, dentre as quais se sobressaem duas que podem ser relacionadas aos casos observados a seguir neste artigo. As modalidades são: Revistas

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Expandidas, Sites de Revistas, Webzines, Revistas Portáteis, Revistas Nativas Digitais e Revistas Sociais. A Revista Expandida seria o caso da Época, por ser acessada a partir de download por aplicativo, trabalhada para tablet com conteúdo extra, além do que encontra-se disponível na versão impressa da revista. Essa revista também conta com versão para smartphone, mas como o tablet ganha destaque nessa análise, a modalidade expandida é a que se sobressai. Já no caso das Revistas Nativas Digitais, que são acessadas por aplicativo, mas contam com produção para tablet, pode-se pensar na publicação vespertina O Globo A Mais – e de acordo com informações disponíveis no endereço eletrônico da publicação (http://oglobo.globo.com/o-globo-a-mais/), também é acessível via smartphone e website. Essa publicação, no caso, faz parte de um segmento de revistas que surge como um produto paralelo de uma grande corporação midiática que não foca exatamente nesse tipo de produção, por exemplo, quando o principal produto é um jornal, mas também produz revistas e tenta destacá-las no mercado. “Ou seja, são revistas em formatos digitais voltadas exclusivamente para o tablet, porém foram lançadas como acessórios digitais de jornais impressos” (DOURADO, p.95, 2013). Essa mesma publicação também é analisada sob a perspectiva de produto autóctone como aplicativo de natureza nativa em ambiente digital por Barbosa, Silva e Nogueira (2012). A revista Época, semanal e de variedades, surgiu em 1998, mas ganhou versão para iPad através de aplicativo no mesmo ano de lançamento desse dispositivo móvel no Brasil em 2010 (CUNHA, 2011), com custo padrão tem valor de U$3.99 na Apple Store. No caso de O Globo A Mais, surgido em 2012 (BARBOSA et al., 2013), o produto jornalístico encontra-se disponível na plataforma iOS e é publicado de segunda a sexta-feira a partir das 18h, tendo sido lançado como “revista vespertina” (CANAVILHAS; SATUF, 2013), e o custo padrão é de U$0,99. A partir do panorama geral de cada uma das publicações digitais apresentadas em relação ao cenário da comunicação móvel, parte-se para uma observação das categorias do fator temporal nesses casos.

3. A TEMPORALIDADE EM REVISTAS DIGITAIS As revistas analisadas a seguir foram selecionadas no período entre dezembro de 2014 e fevereiro de 2015. Normalmente, há pelo menos 4 edições de Época por mês, caso não haja lançamento de uma edição temática especial, e cerca de 20 de O Globo A Mais. Como esse estudo compõe um olhar inicial sobre a dinâmica temporal de ambas as publicações, levam-se em consideração evidências de capa, como fotografia e chamadas de matérias, que podem ser relacionadas a essa reflexão. Considerando a periodicidade como a regularidade de produção e oferta de informação pela publicação, conforme aponta Franciscato (2005), observa-se que as revistas apresentam-se distintas. A periodicidade de O Globo A Mais é diária, de segunda a sexta-feira no final da tarde, seguindo um ritmo que se assemelha ao dos jornais vespertinos, enquanto a Época para tablet segue um ritmo mais espaçado e próximo ao tradicional das revistas impressas, a exemplo das capas apresentadas nas figuras 1, 2 e 3.

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Figura 1. Edições de O Globo A Mais referentes (da esq. para dir.) aos dias 07/01/15, 31/01/15, 30/12/14. Fonte: Organização da autora.

Figura 2. Edições de O Globo A Mais referentes (da esq. para dir.) aos dias 26/01/15, 23/01/15, 22/01/15. Fonte: Organização da autora.

Figura 3. Edições de O Globo A Mais referentes (da esq. para dir.) aos dias 12/02/15, 11/02/15, 10/02/15. Fonte: Organização da autora.

O tempo mais espaçado de publicação teria relação com o a proposta de dar tempo ao leitor se aprofundar nas grandes temáticas, os vários estilos textuais e a fruição estética desse conteúdo, conforme aponta Benetti (2012). Mas com uma periodicidade

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menos espaçada, pode se configurar o que Franciscato (2005) aponta como pequenas unidades, eventos cada vez mais fragmentados em unidades menores de informação. Em relação à simultaneidade e à instantaneidade, a revista em formato digital O Globo A Mais pode ser percebida com um ritmo mais intenso em decorrência da periodicidade mais frequente que a de Época. Trata-se da experiência de aproximar o leitor do ´tempo dos eventos´ ao mesmo tempo que há sincronismo entre ações e eventos, conforme aponta Franciscato (2005). Quanto à novidade, há diferenças. Por exemplo, observa-se que O Globo A Mais aborda vários conteúdos ao longo dos dias emu ma semana, enquanto a revista Época se concentra no que seria o mais relevante em geral na semana, com possibilidade de um trabalho gráfico mais elaborado, conforme as capas apresentadas na figura 3.

Figura 3. Edições da revista Época referentes (da esq. para dir.) aos dias 16/01/15, 09/01/15, 26/12/14. Fonte: Organização da autora.

As capas são um destaque nesse caso porque enquanto O Globo A Mais apresenta com mais freqüência fotos mais factuais, a revista Época tende a explorar mais composições gráficas e design, conforme outros exemplos mostrados na figura 4, a seguir. Há investimentos em recursos multimídia, ainda que esporadicamente, como a edição de 12 de fevereiro de 2015 de O Globo A Mais, com uma animação na expressão do rosto da personagem de capa. Isso poderia ter relação, em parte, com o que Benetti (2012) se refere sobre o vínculo emocional com o leitor, por explorer diferentes abordagens de capa, e a relação de jornalismo e entretenimento, segundo Scalzo (2011).

Figura 4. Edições da revista Época referentes (da esq. para dir.) aos dias 06/02/15, 30/01/15, 26/01/15. Fonte: Organização da autora.

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As categorias do fator temporal (FRANCISCATO, 2005), portanto, quando observadas a partir das evidências de capa dos exemplos da revistas em formato digital como Época e O Globo A Mais, podem se aproximar ou se afastar em alguns pontos. Em categorias como periodicidade, simultaneidade, instantaneidade e novidade, as revistas se diferenciam. No entanto, se aproximam na categoria revelação pública, conforme destaca a Tabela 1. Tabela 1. As publicações digitais relacionadas pelo viés das categorias do fator temporal. Revista Época

O Globo A Mais

Periodicidade

Semanal

Diária (seg – sex)

Simultaneidade

Tende a ser mais distante

Tende a ser menos distante

Instantaneidade

Tende a ser mais distante

Tende a ser menos distante

Novidade

Tende a ser mais concentrada

Tende a ser mais diversa

Revelação Pública

Ressalta destaques da semana

Ressalta destaques do dia ou reforça alguns temas presentes ao longo da semana

Fonte: Organização da autora.

Ambos os periódicos digitais são publicados para tablet, pensando-se na mobilidade, conforme observado por Lemos (2005), o que também já seria um ponto de aproximação, além da possibilidade de explorar recursos multimedia e de tactilidade, mas percebe-se que isso ainda não é totalmente aplicado, pois são poucas as capas que exploram esse perfil potencial. Quanto à revelação pública, no intuito de revelar fatos para os leitores, sejam fatos novos ou ancorados em leituras atualizadas, conforme explica Franciscato (2005), ambas as publicações caminham nesse sentido. A revista Época tende a explorar mais chamadas de capa por edição que O Globo A Mais, embora haja mais edições de O Globo A Mais por semana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As revistas trabalham em contextos de temporalidade de configurações específicas. Com o uso de dispositivos móveis, o acesso à informação, a fruição estética, o entretenimento e o jornalismo, tendem a estar cada vez mais relacionados com o uso de interfaces interativas. Mas o desafio de manter a qualidade das revistas com diferentes tempos de periodicidade, por exemplo, parece grande. Se antes estavam focadas em intervalos majoritariamente semanais, bimestrais e até anuais, agora são confrontadas com o encurtamento desse tempo de produção para uma rotina diária, como no caso de O Globo A Mais. Sobretudo, em relação à categoria de novidade, pois há urgência em apresentar um conteúdo aprofundado em um espaço de tempo menor junto a um esforço em tornar interessante a apresentação desse conteúdo, tanto de forma gráfica quanto no uso de multimídia e dos recursos de toque em tela. A leitura de um vespertino pode aproximar a experiência do leitor em relação ao tempo dos acontecimentos e intensificar categorias como simultaneidade e instantaneidade, mas talvez não garanta a profundidade necessária, demandando atenção nesse ponto

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de desenvolvimento, especialmente para que a categoria de revelação pública tenha abordagens coerentes e de qualidade. Já um espaçamento semanal parece ainda sustentar condições de uma produção de conteúdo mais apurada. Haveria tempo, dessa forma, não só para aprofundamento de conteúdo mas para produção mais sofisticada de design das páginas. Assim, percebe-se que essas categorias trabalhadas em revistas em formato digital e associadas ao uso de dispositivos móveis como o tablet ajudam a ter uma noção inicial sobre perfis de produtos e conteúdos que surgem para o público na era da comunicação móvel. Nesse cenário a proximidade entre tempo de evento e tempo do leitor tende a demandar publicações que entendam as especificidades de rotinas de leitura dinâmica.

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A multimidialidade nos produtos exclusivos para tablets: uma análise das formas de inserção do audiovisual nos conteúdos jornalísticos Multimedia in tablet-only products: an analysis of the audiovisual insertion forms in journalistic content J u l i a n a Te i x e i r a 1 A i na r a L a r ron d o2 Resumo: A multimidialidade é uma das principais características da linguagem jornalística no ciberespaço. Tanto que o uso de conteúdo multimídia é crescente, sobretudo dos vídeos, que, hoje, são disponibilizados em diferentes plataformas, incluindo os dispositivos móveis. Diante desse panorama, o objetivo do artigo é discutir a multimidialidade nos produtos exclusivos para tablets, a partir da análise das formas de inserção do audiovisual nos conteúdos jornalísticos. Para isso, utilizamos o estudo de caso enquanto estratégia metodológica, sendo a amostragem composta por La Presse +, Mail plus e El Mundo de la Tarde. Constatamos que, embora, em alguns casos, a convergência se configure como uma justaposição de linguagens, já existem experimentações relevantes, indicando que a integração entre as linguagens pode estar em uma trajetória crescente.

Palavras-Chave: Jornalismo On-line. Convergência. Multimidialidade. Audiovisual. Tablets.

Abstract: Multimedia is one of the main characteristics of journalistic language in cyberspace. Insomuch that multimedia content use is growing, especially videos, which nowadays are available on different platforms, including mobile devices. On account of this scenario, the aim of this paper is to discuss the multimedia in tablets-only products, based on the analysis of audiovisual insertion forms in journalistic content. For this, we use the case study as a methodological strategy, with the sample composed by La Presse +, Mail Plus and El Mundo de la Tarde. As results show, although in some cases convergence constitutes a juxtaposition of languages, there are already relevant trials, indicating that the integration between languages may be in a growing trend.

Keywords: Online Journalism. Convergence. Multimedia. Audiovisual. Tablets. 1.  Doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas na Universidade Federal da Bahia. Integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo On-line (GJOL) e do projeto Laboratório de Jornalismo Convergente. Jornalista graduada pela UFRJ (2008) e Mestre em Jornalismo pela UFSC (2011). E-mail: teixeira.juliana. [email protected] 2.  Doctora en Periodismo y profesora de la Facultad de Ciencias Sociales y de la Comunicación de la Universidad del País Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea (UPV/EHU). Investigadora en los proyectos “Estrategia y gestión comunicativa 2.0 de los partidos políticos en el País Vasco. Implicaciones para medios y público” (EHUA13/10, UPV/EHU), “Audiencias activas y periodismo” (CSO2012-39518-C04-03, Ministerio de Economía y Competitividad), UFI 11/21 (UPV/EHU) y Grupo Consolidado GIU13/13 (UPV/EHU). Este texto forma parte de la producción científica de los citados proyectos. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO: UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE A MULTIMIDIALIDADE NDEPENDENTE DAS diferentes mudanças sociais, tecnológicas e de linguagem da con-

I

temporaneidade, com cada vez menos estruturas e características definidas, uma se mantem: a multimidialidade (PORTO; FLORES, 2012, p.39). Segundo Salaverría (2005, p.517) e Noci (2011, p.39), a multimidialidade é considerada, hoje, uma das três principais características da linguagem jornalística no ciberespaço, junto com a hipertextualidade e a interatividade. É, portanto, nas palavras de Canavilhas e Santana (2011, p.55), uma das marcas da convergência, fenômeno que caracteriza os novos meios digitais. É possível apontar algumas definições para a multimidialidade, embora ainda seja um termo vago, talvez em função justamente das múltiplas definições – umas mais técnicas, umas voltadas para o ponto de vista dos usuários, entre outras várias abordagens (NOCI, 2011, p.162). A multimidialidade é mais comumente definida como a combinação, integração e/ou convergência dos três grandes sistemas de signos (sons, imagens e letras) ou códigos (sonoro, icônico e linguístico) em um mesmo discurso informativo, ou seja, na narração do fato jornalístico3. Nesse sentido, é fundamental que a linguagem multimídia seja menos entendida como uma questão tecnológica, pois o que se espera, na verdade, dos jornalistas é que sejam capazes de primeiro pensar cruzando os meios de comunicação e, apenas depois, que dominem o hardware ou software (DEUZE, 2004, p.148). Sodré (2009, p.107-108) sustenta que a grande diferença entre os jornalistas tradicionais e os que trabalham no ciberespaço não se refere ao mero uso das tecnologias digitais, mas ao estabelecimento de outra forma de pensar, a qual decorre do emprego adequado da multimidialidade, da interatividade e da hipertextualidade. Savage e Vogel (2009, p.iii, p.4) endossam esse ponto de vista ao defenderem que o multimídia é, antes de tudo, interdisciplinar. Portanto, o seu uso eficaz exige uma combinação de habilidades práticas no emprego de softwares e hardwares com conhecimentos relativos aos conceitos e contextos, direcionando à compreensão dos usos reais e potenciais de uma ampla gama de meios de comunicação. Precisamos pensar a multimidialidade de uma maneira mais ampla, considerando-a não apenas como uma forma diferenciada de difundir a informação, mas também como uma possibilidade de modificar a linguagem jornalística no ciberespaço (a partir de recursos audiovisuais) e as relações entre meios, indústrias, profissionais e usuários (VIANA; FRANÇA, 2011, p.22). É diante desse panorama que o artigo pretende discutir a multimidialidade nos produtos exclusivos para tablets, a partir de uma análise das formas de inserção do audiovisual nos conteúdos jornalísticos. Ou seja, pretendemos investigar como ocorre a integração do audiovisual às demais linguagens. Nas duas primeiras seções do trabalho, discutimos o papel do audiovisual no atual contexto de multimidialidade e de mobilidade. Em seguida, analisamos os modos através dos quais o audiovisual é inserido nos conteúdos jornalísticos dos produtos exclusivos para tablets. Por fim, buscamos tecer algumas considerações que apontem para as maneiras – inovadoras ou não – com que a multimidialidade vem sendo empregada na contemporaneidade. 3.  Para fundamentar essa afirmação, pode-se mencionar uma série de pesquisadores, entre os quais destacamos: BARDOEL; DEUZE, 2001, p.6; PALACIOS, 2002, p.3; MIELNICZUK, 2003, p.48; LÓPEZ; OTERO, 2006, p.7; ALBORNOZ, 2007, p.26.

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Para empreender essa pesquisa, utilizamos o estudo de caso enquanto principal estratégia metodológica (YIN, 2005). A amostragem é composta por produtos exclusivos para tablets, porque supomos que esses cibermeios, por pretenderem um uso maximizado da plataforma, exploram ao máximo as potencialidades desse suporte, apresentando experimentações no âmbito do audiovisual. Entre os casos estudados para o presente artigo estão: La Presse + (Canadá), Mail plus (Reino Unido) e El Mundo de la Tarde (Espanha), todos lançados já no ano de 2013 (portanto, recentes) e com quantidade significativa de vídeos circulados (La Presse + circulou na semana composta de análise4 128 conteúdos audiovisuais; Mail plus, 100; e El Mundo de la Tarde, 44).

2. O PAPEL DO AUDIOVISUAL NA MULTIMIDIALIDADE Reconhecemos que a multimidialidade não representa efetivamente uma ruptura no Jornalismo. Afinal, já podia ser encontrada na televisão, que conjuga a imagem, o som e o texto escrito no mesmo suporte (PALACIOS, 2002, p.6; MIELNICZUK, 2003, p.200-201). Porém, ainda que tenha implicações para o Jornalismo em geral, está redefinindo-o a partir da perspectiva do ambiente digital, em função da facilidade de conjugação dos diferentes formatos. Em outras palavras: a multimidialidade não é uma característica inédita, mas é potencializada no ciberespaço (BARDOEL; DEUZE, 2001, p.6; PALACIOS, 2002, p.6; VALENTINI, 2012, p.106-107). Tanto que, segundo Noci (2011, p.45-46), desde 2005, o uso de conteúdo multimídia, sobretudo os vídeos, cresce de forma exponencial – ainda que, em alguns casos, não sejam materiais audiovisuais produzidos pelos próprios cibermeios, mas incorporados de terceiros. Os vídeos podem, hoje, ser considerados um dos pilares da multimidialidade na construção do processo noticioso na Internet, pois inserem os usuários no tempo e no espaço, identificando no caso de uma entrevista, por exemplo, quem, de fato, concedeu determinada declaração. Ou seja, diferentemente do que ocorre na televisão (em que a redundância entre som e imagem é mais comum), no ciberespaço, o vídeo assume um papel legitimador da informação (PICADO, 2012, p.17). Viana e França (2011, p.13) sustentam que o emprego de recursos audiovisuais tornase indispensável para chamar a atenção do usuário, um sujeito que tem cada vez mais alterado sua dinâmica de interação com os conteúdos, pois deixa de estar preocupado apenas com a notícia, mas busca informações apresentadas por meio de novos recursos. Nessa conjuntura, o que antes era considerado secundário passa a ser priorizado pelas organizações e profissionais, como é o caso do audiovisual. É preciso considerar também que a crescente potencialização da multimidialidade e da convergência no ciberespaço é, talvez, ainda mais expressiva no âmbito dos dispositivos móveis. Conforme pondera Palacios (2013, p.5), O contexto, que levamos agora na palma da mão, chega até lá justamente porque a produção jornalística tornou-se convergente e multiplataforma. No ecossistema midiático contemporâneo terá tanto mais sucesso na apreensão do contexto aquele que, emulando o que ocorreu nos albores da nossa espécie no ambiente biológico, tornar-se onívoro, passando a virtualmente habitar todas as latitudes com igual poder de adaptação. Onívoros digitais: eis a marca da espécie dominante na atual ecologia dos mídia. 4.  A semana composta de análise incluiu as edições de 6, 14, 22 e 30 de janeiro e 7 de fevereiro de 2014.

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A multimidialidade é apontada como uma das seis principais características5 dos conteúdos jornalísticos produzidos para as plataformas móveis (CANAVILHAS; SANTANA, 2011, p.55). Até porque, os aplicativos autóctones demandam uma diferenciação com relação aos outros dispositivos, o que requer dos jornalistas novas formas de pensar, apurar e elaborar dos conteúdos, de preferência com base em elementos como a multimidialidade e a interatividade (S.BARBOSA et al, 2013, p.11, p.14). Valentini (2012, p.119) destaca que várias das experimentações realizadas, hoje, nos tablets estão associadas com o emprego de recursos multimídia, tanto que vários dos aplicativos disponíveis na App Store são enriquecidos com vídeos. É justamente tal contexto de interseção entre o audiovisual e a mobilidade que buscaremos explorar um pouco mais na seção que se segue.

3. O AUDIOVISUAL NO CONTEXTO DA MOBILIDADE As possibilidades oferecidas pelo ciberespaço têm transformado os conteúdos audiovisuais, que agora chegam a outras telas para além do aparelho de televisão. Esse panorama marcado pela interseção de meios proporcionou um ambiente propício para que os dispositivos móveis desempenhem um papel de liderança e protagonismo (LIUZZI, 2014, p.70-71). Briggs (2013, p.134) destaca que algumas previsões apontam para o fato de que a tecnologia móvel irá transformar o cenário midiático de maneira mais expressiva do que a adoção da web ocorrida na década de 1990. Westlund (2013, p.22-23) endossa essa perspectiva ao afirmar que, assim como as diferentes gerações têm abraçado a web, o acesso à internet móvel está evoluindo velozmente para ser adotado pela grande massa de indivíduos. Os efeitos dos novos dispositivos, em especial os móveis, já começam a refletir em formas diferenciadas de produção, circulação e consumo desses conteúdos. Esse contexto de transição passa a demandar novas maneiras de disponibilizar informação na rede, pois não é o mais adequado que os produtos audiovisuais contemporâneos mantenham a estrutura e/ou a linguagem do sistema analógico (MACHADO FILHO; FERREIRA, 2012, p.136, p.139-140; RENÓ, 2014, p.135; PORTO; FLORES, 2012, p.85). É fundamental, no ponto de vista de Porto e Flores (2012, p.85), compreender e criar linguagens específicas para o meio; afinal, o vídeo nos dispositivos móveis não é igual ao da televisão, na medida em que a visualização ocorre em uma microtela sensível ao toque, a qual, desse modo, induz à interatividade. Isto é: trata-se de um dispositivo comunicacional distinto dos já conhecidos, demandando, portanto, uma linguagem que contemple essas especificidades. A prática de alternar diferentes telas ao longo do dia, tanto para produzir quanto para consumir conteúdos, tem demonstrado, na opinião de Liuzzi (2014, p.70), que é preciso criar espaços de interação e reconhecimento entre os meios, a fim de permitir uma constante evolução. Conforme defendem Silva e Bezerra (2013, p.129), “é prudente entendermos que o uso de novos produtos para a alimentação da grande mídia, gera novos comportamentos e novos desafios”.

5.  As demais características são: acessibilidade, instantaneidade, hipertextualidade, interatividade e globalidade.

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Em acordo com Machado Filho e Ferreira (2012, p.150), é necessário o entendimento da arquitetura da informação, da relação dos indivíduos com os meios emergentes e dos novos modelos de negócio (apenas para citar alguns exemplos), a fim de que os conteúdos audiovisuais gerem estruturas sólidas para a experimentação de gêneros que já levem em conta os dispositivos móveis. Até porque é crescente a onipresença desses dispositivos no cotidiano dos indivíduos. Funcionando inicialmente enquanto aparelhos de comunicação interpessoal (para chamadas de voz e mensagens de texto), sobretudo no caso dos celulares, esses dispositivos encontram-se profundamente enraizados na vida social contemporânea (WESTLUND, 2013, p.6-7). Os aparelhos móveis são cada vez mais usados em função da sua portabilidade, do fácil e simples manuseio, dos baixos custos e da junção das vantagens de diferentes dispositivos (como laptops, câmeras de vídeo ou câmeras fotográficas), podendo receber e exibir todas as formas de mídia (CANAVILHAS; SATUF, 2014, p.35-36; PICADO, 2012, p.24; BRIGGS, 2013, p.119). Drake (2012, p.91) destaca que rapidamente os celulares perderam o efeito pixelizado das imagens e chegam a gravar em fullHD, borrando as fronteiras entre o que é ou não produzido por dispositivos móveis. Além disso, Canavilhas e Satuf (2014, p.35-36) ressaltam a ampla oferta de modelos, atendendo a todos os gostos e permitindo o estabelecimento de uma taxonomia própria: “Small phones – ecrãs até 3.5” (ex: Blackberry); Medium phones – ecrãs entre 3,5” e 4,9” (ex: iPhone); Phablets – ecrãs entre 5,0” e 6,9” (ex: Galaxy Note); Small Tablets – ecrãs entre 7.0” e 8,4” (ex: Kindle Fire); Tablets, ecrãs com 8.5” ou mais (ex: iPad)”. Outro diferencial inerente aos dispositivos móveis é o potencial de modificar o espaço de recepção dos conteúdos audiovisuais, tornando o acesso ubíquo. Ou seja, a TV e a sala de estar deixam de ser o principal ponto de consumo, abrindo novos usos e possibilidades que podem transformar as propriedades desses conteúdos (PELLANDA, 2009, p.4). A Internet, nesse caso, atuaria enquanto uma potencializadora dos recursos da televisão, contribuindo para mudanças no comportamento dos indivíduos, os quais substituem as atividades sequenciais pelas simultâneas; isto é, se antes o ato de assistir TV antecedia a interação, agora as duas ações são desempenhadas ao mesmo tempo (SILVA; BEZERRA, 2013, p.133). Nas palavras de Silva e Bezerra (2013, p.134), “estes tipos de dispositivos móveis não só oferecem uma nova opção para assistir a um programa de TV, como também mudam a forma como a experimentamos”. Isso demonstra que as práticas sociais de produção, circulação e usos do material audiovisual disponibilizado na rede não são determinadas por uma única causa, seja ela tecnológica, política ou empresarial. O que não significa afirmar que tais estruturas não exercem influências sobre os indivíduos, e sim que esses poderes não são completamente determinantes para o comportamento dos usuários (SANTINI; CALVI, 2013, p.164-165). Os aparelhos portáteis contemporâneos adquirem uma nova dinâmica na medida em que já chegam a permitir a reprodução de um expressivo volume de vídeos com qualidade e até em tempo real, bem como possibilitam a interação com o conteúdo (LIUZZI, 2014, p.70; PELLANDA, 2009, p.7). Existe a possibilidade de visualizar apenas os conteúdos de seu interesse, ampliando consideravelmente a importância do utilizador

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no processo de construção de sentido das informações (PICADO, 2012, p.36) e deslocando o consumo do audiovisual para um âmbito cada vez mais individualizado (SANTINI; CALVI, 2013, p.172). Nesse sentido, outra questão importante destacada por Westlund (2013, p.12-13) é que os aplicativos móveis se tornaram ferramentas para oferecer notícias por meio de agregadores de conteúdo, tais como Flipboard e Pulse Reader, os quais são utilizados em maior medida por usuários interessados em individualizar suas experiências noticiosas móveis. Para Liuzzi (2014, p.72-73), esse cenário marcado pelos dispositivos móveis, pelas redes sociais e pelas múltiplas telas configurou audiências caracterizadas por cinco ideias centrais: 1) fragmentação – modos de consumo fragmentados; 2) itinerantes – acessam o conteúdo em qualquer momento e lugar; 3) produção/consumo – o processo inclui o desempenho desses dois papeis alternadamente; 4) participação – o público valoriza o conteúdo projetado para a interação; e 5) replicação vs. expansão – reconhecem rapidamente quando um relato é repetido em várias plataformas, interpretando essa expansão narrativa como algo a ser valorizado. Dados do Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (Obitel) corroboram essa perspectiva. Conforme consta no relatório da instituição, “a característica mais geral identificada em 2013 nos países Obitel foi a fragmentação da audiência, acompanhada pelo crescimento de plataformas de VoD (Video on Demand), TV a cabo e redes sociais, confirmando o cenário de convergência midiática que vem sendo analisado pela rede Obitel desde o Anuário 2010” (LOPES; GÓMEZ, 2014, p.25). Além de alterar os comportamentos dos indivíduos em diferentes níveis e esferas, a utilização dos dispositivos móveis também pode mudar o modo de fazer jornalismo pelos meios de comunicação contemporâneos e, ainda, modificar a maneira como as pessoas vêem o jornalismo (PICADO, 2012, p.24-25; PORTO; FLORES, 2012, p.84). Tanto que são cada vez mais diversas e numerosas as ofertas de conteúdos jornalísticos para dispositivos móveis (WESTLUND, 2013, p.8). Resta saber se essas ofertas mais variadas estão, de fato, inovando nas formas de incorporação dos conteúdos audiovisuais aos produtos jornalísticos. A seguir, observamos justamente se – e de que maneira – os materiais compostos por imagem em movimento e som têm sido inseridos nos produtos autóctones, exclusivos para tablets, explorando ou não a multimidialidade e a convergência nesses dispositivos.

4. UMA ANÁLISE DAS FORMAS DE INSERÇÃO DO AUDIOVISUAL NOS PRODUTOS AUTÓCTONES PARA TABLETS Com base na análise empreendida para a presente pesquisa, observamos que a maioria dos cibermeios estudados busca empregar a convergência nos seus conteúdos. Nenhum dos três casos analisados (Presse +, Mail plus e El Mundo de la Tarde) isola seus materiais audiovisuais em seções específicas. É verdade que em El Mundo de la Tarde existem determinadas editorias em que o audiovisual aparece de maneira fixa e com breves textos explicativos, como no caso da seção El Mundo Exprés (Figura 1). Mas também são oferecidos diversos conteúdos audiovisuais inseridos de maneira convergente nas matérias.

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Figura 1. Seção El Mundo Exprés – El Mundo de la Tarde de 7 de fevereiro de 2014

O problema é que a convergência tem se configurado mais como uma justaposição de linguagens do que como uma efetiva integração entre elas, afastando-se da ideia de multimidialidade em seu real sentido e, por conseguinte, não contribuindo para uma hierarquização capaz de organizar jornalisticamente a produção, que acaba fragmentada (NOCI, 2011, p.102, p.167, p.169; NOGUEIRA, 2009, p.1-2; CARVALHO, 2009, p.32). Canavilhas (2012, p.17) defende que a atual multimidialidade por acumulação não pode ser vista enquanto uma efetiva convergência de conteúdos, a qual está muito atrasada em relação à maturidade que as demais dimensões já alcançaram. Em El Mundo de la Tarde, por exemplo, não há qualquer inserção de material audiovisual de modo integrado com as demais linguagens. De qualquer modo, verificamos, durante a análise, algumas experimentações interessantes com relação à convergência em Mail plus e La Presse +. Em todas as edições de Mails plus observadas, houve a circulação da coluna de Gary Rhodes (Figura 2), produzida exclusivamente para o cibermeio – tanto que recebe o selo “Only in Mail plus” no cabeçalho. Não se trata, porém, de um conteúdo jornalístico e sim de uma coluna que ensina receitas de pratos rápidos e fáceis. A capa da seção indica que basta reunir os ingredientes listados e rodar o vídeo; ou seja, há uma nítida sugestão de integração entre o texto e o audiovisual. La Presse +, por sua vez, já apresenta essa integração na narrativa jornalística. É comum que a seção Le Tour du Globe (Figura 3), a qual sempre oferece um mapa interativo com fotos e notas textuais, também agregue conteúdos audiovisuais jornalísticos (geralmente com edição de imagens, offs e sonoras) em algumas edições. Quando essa inserção ocorre, antes do nome do local, há a inscrição “En vidéo”, ressaltando, para além do ícone de play sobre a foto, a existência de um vídeo integrado à narrativa. Importante, ainda, mencionar que é recorrente a inserção de mais de um vídeo em Le Tour du Globe:

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Figura 2. Mail plus de 22 de janeiro de 2014

no dia 14 de janeiro de 2014, foram apresentados dois conteúdos audiovisuais (referentes a Israel e África Central) e, no dia 30 do mesmo mês, disponibilizou-se quatro diferentes vídeos (remetendo a Estados Unidos, Escócia, África Central e Bélgica). Durante o período de análise para essa pesquisa, o audiovisual apareceu também na referida seção no dia 7 de fevereiro de 2014.

Figura 3. La Presse + de 14 e 30 janeiro e 7 de fevereiro de 2014, respectivamente

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Pode emergir a crítica de que essas experimentações se restringem a seções específicas. Entretanto, é possível destacar, por exemplo, que foi verificado em La Presse + o emprego de um mapa integrado a texto e a material audiovisual em um conteúdo sobre os imigrantes clandestinos. Intitulada “Migrants clandestins: Le rêve européen”, a reportagem foi circulada na editoria Actualités de 7 de fevereiro de 2014 (Figura 4). Tratase de uma nota coberta, que se inicia com a vinheta do cibermeio e da editoria. A jornalista aparece, a princípio, atrás de uma bancada e, atrás dela, existe uma tela com algumas imagens dos imigrantes. Em seguida, as imagens da tela, creditadas à agência de notícias Reuters, passam a sobrepor seu rosto. Ao final, a câmera volta a focar a jornalista, que encerra a nota.

Figura 4. Migrants clandestins: Le rêve européen – La Presse + de 7 de fevereiro de 2014

Frente a essas constatações, é possível afirmar que a convergência convive, no âmbito do audiovisual para dispositivos móveis, com a divergência. Embora os cibermeios, em sua maioria, não concentrem os materiais audiovisuais em seções específicas ou isoladas, permanece a tendência de justaposição entre as linguagens, configurando a lógica da divergência, definida por Noci (2011, p.39) enquanto a estrutura em que são oferecidas ao usuário diferentes formas de acesso à informação. Por outro lado, a presença significativa de experimentações, sobretudo em Mail plus e La Presse +, indicam que a integração entre as linguagens por meio da convergência pode estar em uma trajetória crescente.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base na análise realizada, observamos que os cibermeios estudados buscam elaborar conteúdos multimídia. Embora existam algumas exceções em El Mundo de la Tarde, os materiais audiovisuais costumam aparecer inseridos nas narrativas e não em seções específicas e/ou isoladas. O problema é que, conforme já apontava Nogueira (2009, p.8), “embora o webjornalismo seja por natureza multimidiático, o que se percebe atualmente é que a composição dos relatos ainda explora frequentemente o eixo textual”. Zanotti (2011, p.164) corrobora essa perspectiva ao afirmar que é mais comum a integração entre textos e fotografias (os mais básicos recursos multimidiáticos) do que a inserção de trilhas sonoras ou imagens em movimento. Nesse sentido, os elementos multimídia tornam-se, em acordo com Rusch (2010), meros acessórios, cujo valor informativo é subordinado ao texto escrito e, quando inseridos, muitas vezes não são devidamente coordenados ou relacionados entre si visualmente. Por outro lado, na análise aqui realizada, ainda que, em alguns casos, a convergência se configure mais como uma justaposição de linguagens, já existem experimentações relevantes especialmente em Mail plus e La Presse +, indicando que a integração entre as linguagens pode vir a ocorrer de um modo mais expressivo ou inovador a médio e longo prazos. Até porque é preciso considerar que, em acordo com Mielniczuk et al (2011, p.96), a multimidialidade é uma das características que mais demanda esforços para ser utilizada, pois não implica somente no uso de fotos, vídeos ou arquivos de áudio, mas requer o emprego de ilustrações e infografias, apenas para citar dois exemplos – e tudo de maneira integrada, não como um mero complemento do texto. “A multimédia junta o melhor de vários mundos” (PICADO, 2012, p.16). Talvez justamente por isso seja uma das características menos exploradas, desenvolvidas e, por conseguinte, estudadas do jornalismo on-line (NOCI, 2011, p.45, p.161; MIELNICZUK, 2003, p.49). No contexto evidenciado pelo presente artigo, a multimidialidade, por meio do audiovisual, para dispositivos móveis representa, portanto, a base de um futuro promissor, na medida em que essas plataformas oferecem múltiplas e amplas oportunidades a serem exploradas nas narrativas multimídia.

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Mídia locativa, conteúdo geolocalizado e reconfigurações no jornalismo: três pistas para iniciar o debate Locative media, geolocated content and disruptions in journalism: three traces to start the discussion Marcelo

de

O l i v e i r a V o l pa t o 1

Resumo: Este texto inicia uma discussão sobre possíveis reconfigurações pelas quais o jornalismo tem passado com o avanço das tecnologias móveis e ubíquas e das mídias locativas. Com base em pesquisa biliográfica e observação assistemática de alguns aplicativos, o texto parte de discussões sobre o uso de dispositivos móveis e conceitos de jornalismo locativo e espacial para entender o lugar do conteúdo geolocalizado na comunicação contemporânea. Considera-se que tais tecnologias têm atuado nos modos de produzir e consumir informação e provocado rupturas em aspectos da prática jornalística, como nos critérios de noticiabilidade, na emergência do jornalismo cidadão ou participativo e na ampliação de espaços para o jornalismo de serviço ou utilitário. Ademais, inferese que a exploração da distribuição de conteúdo locativo como nicho de negócio parece ainda ser ignorada pela imprensa. Palavras-Chave: Mídia Locativa. Jornalismo Locativo. Jornalismo Espacial. Conteúdo Geolocalizado. Abstract: This paper begins a discussion of the possible reconfigurations in wich journalism has passed with the advancement of mobile and ubiquitous technologies and locative media. Based on bibliographical research and non-systematic observation of some mobile apps, the text comes from discussions about the usage of mobile devices and locative and spatial journalism concepts to understand the place of the geolocated content in contemporary communication. It is considered that such technologies have acted in ways to produce and consume information and caused disruptions in aspects of journalism practice, the newsworthiness standards, the emergence of citizen or participatory journalism and in the expansion of spaces for service or utility journalism. Moreover, it appears that the locative content distribution as a business niche still seems to be ignored by the news companies. Keywords: Locative Media. Locative Journalism. Spatial Journalism. Geolocated Content.

1. Jornalista, Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Membro do COMUNI - Núcleo de Estudos de Comunicação Comunitária e Local (UMESP/CNPq). E-mail: volpatomarcelo@gmail. com

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INTRODUÇÃO ÃO É novidade que, nos últimos tempos, as tecnologias e a internet têm forçado

N

reconfigurações sociais e agregado novas práticas cotidianas urbanas. Caminha-se para a constituição de uma sociedade baseada em um conjunto de redes no qual mobilidade e ubiquidade adquirem papel central, criando e recriando novas possibilidades de comunicação. Este texto pretende introduzir uma discussão sobre que reconfigurações passa o campo do jornalismo quando tecnologias móveis e ubíquas e, mais especificamente, as mídias locativas e suas funções e serviços geolocalizados, atuam nos modos de se produzir, distribuir e consumir informações. Ancora-se em pesquisa bibliográfica e análise assistemática de alguns aplicativos móveis.

SMARTPHONES, UBIQUIDADE E O ‘ALWAYS ON’ Desde o surgimento dos computadores pessoais, do avanço da internet e, mais recentemente, dos dispositivos móveis e redes sem fio de conexão, as tecnologias passaram a integrar o cotidiano e a vida de grande parte das pessoas, principalmente em grandes centros urbanos e metrópoles. Aponta-se, então, rumo à constituição de “territórios informacionais” (LEMOS, 2007b, p. 128), nos quais internet, redes sem fio e dispositivos móveis adquirem papel essencial. São espaços de fluxo de informação multidirecional construídos a partir da conexão criada entre o ciberespaço e o espaço urbano. Em última análise, trata-se da utopia da ubiquidade e do status “always on”, em alusão à capacidade e possibilidade de uma conexão permanente, o tempo todo. Novas práticas e novas lógicas passam a ser, então, forjadas com apoio das tecnologias digitais, ancoradas em fluxos multidirecionais (muitos-muitos) permitidos graças àquilo que Lemos (2007, p. 125) chamou de “mídias de função pós-massiva”, que funcionam a partir de redes pelas quais todos podem produzir informação, se conectar, interagir e compartilhá-la, independente de onde estiverem, bastando um dispositivo móvel e uma conexão sem fio a um hotspot. Esta conectividade sem fronteiras implica em mobilidade física e dispositivos tecnológicos que também acompanham a movimentação do usuário, compondo um conceito ainda em construção chamado “comunicação ubíqua”. Do ponto de vista da informação, da comunicação, da mídia, ubiquidade implica que qualquer um, em qualquer lugar, tem acesso potencial a uma rede de comunicação interativa em tempo real. Quer dizer que todos podem não apenas acessar notícias e entretenimento, mas participar e fornecer sua própria contribuição com conteúdos para compartilhamento e distribuição global (PAVLIK, 2014, p. 160).

Tais aparatos, portanto, ao oferecerem conexão móvel à internet, forjam novas possibilidades de interação com o outro, com as coisas (LEMOS, 2013), com os espaços e territórios (LEMOS, 2013), formas de habitar (DI FELICE, 2009), no desenvolvimento de habilidades cognitivas (SANTAELLA, 2013, p. 14), mas também no fluxo de informação e nas maneiras de sua apropriação, como veremos a seguir.

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O CENÁRIO DAS MÍDIAS LOCATIVAS Do que se tem registro, a expressão locative media foi cunhada em 2003, por Karlis Kalnins, em um evento realizado na Letônia para discutir a temática (LEMOS, 2007a; SANTAELLA, 2008; SCHMITZ WEISS, 2014). De lá para cá, muito também por conta do avanço das tecnologias, a temática tem se tornado uma importante área de pesquisa para estudiosos de diferentes áreas de conhecimento e países. Na concepção de André Lemos (2013, p. 201), Mídias locativas são tecnologias de comunicação e informação, bem como os serviços correlatos baseados na localização dos dispositivos. O uso de smartphones, GPS, redes sem fio (Wi-Fi, 3G ou Bluetooth), realidade aumentada, etiquetas de radiofrequência (RFID), M2M (machine to machine, ou internet das coisas), entre outros, estão transformando a forma como a sociedade consume, produz e distribui informação no espaço urbano.

Analisando as mídias locativas a partir do arcabouço da Teoria Ator-Rede, Lemos (2013, p. 211-216) indica sua classificação de acordo com seus modos de mediação: escrita, escuta, lúdico, sociabilidade, acesso e visibilidade. Entretanto, as possibilidades de suas funções têm crescido a cada dia, seja para checar o trânsito no Waze, fazer “check in” no Swarm, receber uma notificação do Field Trip sobre o ponto turístico que se visita, checar um “card” do Google Now com uma crítica sobre os filmes que estão em cartaz no cinema mais próximo, receber via Bluetooth uma informação da loja ou do museu que se visita ou mesmo o uso de acessórios de realidade aumentada.

CONTEÚDOS GEOLOCALIZADOS NO JORNALISMO DIGITAL O setor das mídias locativas surge com um sem-fim de aplicativos e serviços que integram e agregam informações e conteúdos a uma determinada localidade. Neste sentido, as tecnologias digitais parecem oferecer novas possibilidades para que organizações de mídia possam trazer a informação para mais próximo do leitor, do consumidor. O fenômeno compõe uma oportuna discussão ao se considerar que estas novas possibilidades comunicacionais emergem de fluxos multidirecionais, mas principalmente das “affordances”2 (HELLES, 2013) dos dispositivos móveis que se refletem e se desdobram em novas possibilidades no cotidiano urbano, nas relações com os espaços e territórios e também nas formas de produção, distribuição e consumo de informações. Neste sentido, seja na comunicação de forma geral ou no jornalismo, reconfigurações, rupturas e mutações têm acontecido. Não faz mais sentido a ideia de um processo noticioso em formato linear e fechado (BERTOCCHI, 2013), assim como não se pode desconsiderar as implicações do uso das tecnologias móveis na prática jornalística (SILVA, 2013), nem tampouco ignorar o advento da web semântica, dos algoritmos (SAAD CORRÊA, BERTOCCHI, 2012) e de novos formatos e textos digitais (RAMOS, 2011), neste cenário. Abrem-se, portanto, novas perspectivas para o jornalismo hiperlocal, o jornalismo digital e o jornalismo de proximidade, na emergência de um campo chamado jornalismo locativo ou espacial, principalmente ao se considerar o crescente uso de smartphones e 2.  Para o autor (HELLES, 2013, p. 13), affordance de um celular refere-se, em certa medida, as diferentes possibilidades de uso que ele abarca, deixando de ser apenas um dispositivo para chamadas telefônicas.

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seus artefatos sensíveis à posição geográfica do usuário. Segundo dados do Pew Research Center (2013, p. 2), 74% dos usuários de smartphones adultos assumem usar seus celulares para acessar informações baseadas em sua localização atual, o que evidencia novas possibilidades e oportunidades midiáticas antes inexploradas. Assim, localização e informação parecem criar um contexto, até então não existente, para proporcionar uma nova experiência de comunicação, unindo a informação que está no dispositivo e o espaço físico em que ele se encontra, e atendendo a demanda apontada pela pesquisa do Pew Research. Nesta mesma direção, outro estudo recente (SCHMITZ WEISS, 2013, p. 445) com usuários de smartphone aponta que 92% deles utilizam apps para encontrar uma localização no mapa, 82% para encontrar restaurantes ou empresas, 66% para buscar informações e notícias locais e 61% para buscar informações sobre o trânsito local ou transporte público. Além dos casos citados, alguns aplicativos já oferecem informações e notícias com base na localização do usuário. É o caso, por exemplo, do app “Street Stories”, do jornal britânico The Guardian, que oferece informações históricas sobre uma determinada rua em Londres, ou do EveryBlock, que atualmente opera em Chicago e na Filadélfia, nos Estados Unidos, e reúne notícias e conteúdo de blogueiros locais e agências de notícias relacionados à vizinhança do usuário ou aos locais que são mais importantes para ele, ou ainda o Breaking News e o NewsBayou. Neste raciocínio, a combinação de smartphones e mídias locativas parece atuar em um processo de remediação (BOLTER & GRUSIN, 1999) da “imprensa tradicional”, na medida em que reproduz e incorpora alguns de seus traços e aspectos, mas, ao mesmo tempo, traz novas configurações, o que abordaremos a seguir. Ao que parece, foi somente no exterior que estudiosos começaram a entender a atuação das mídias locativas no campo do jornalismo digital, como, por exemplo, o projeto “LocaNews”, desenvolvido em 2009, na Noruega, produzindo conteúdo jornalístico e disponibilizando-o em um mapa digital, conforme a localização do usuário. Para Oie (2013, p. 559, 569), o projeto representa um novo panorama no jornalismo e discute novos hábitos de leitura de notícias e como a tecnologia pode remodelar a produção jornalística, principalmente ao romper com as “noções preconcebidas sobre o que o jornalismo deve ser”. Tal perspectiva também é corroborada por Claudia Silva (2014) ao discutir como as mídias locativas permitem que organizações de mídia possam moldar as notícias de uma forma inovadora e mais envolvente. Baseando-se em uma análise de aplicativos como Foursquare e Field Trip, a autora argumenta que redes sociais baseadas em localização ou mecanismos de “location-discovery” como o Fieldtrip podem ser um ponto de partida para que organizações de mídia comecem a experimentar narrativas locativas. Além disso, sugere-se que a indústria do jornalismo possa ter que romper com noções preconcebidas do que as notícias devem ser a fim de explorar tecnologias locativas de ponta e promissoras como o Google Glass.

Mas foi Amy Schmitz Weiss (2013, 2014) que, após extensa pesquisa com uma centena de aplicativos e sobre consumo de conteúdos e notícias por meio de plataformas

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móveis, percebeu que a ideia de localização assume uma conotação diferente na era digital e o quanto tais tecnologias criam novas possibilidades para que instituições de mídia tragam a notícia para mais perto do consumidor. Por isso, a autora propõe uma discussão do cenário que preferiu chamar de “jornalismo espacial”. Para Amy, O jornalismo espacial oferece uma oportunidade para explorar como estes mundos de serviços geolocalizados, tecnologia móvel e informação podem formar uma união poderosa na compreensão do fenômeno da comunicação atualmente. Ele pode ajudar a quebrar os componentes do que representa notícia e informação para os indivíduos, como eles interagem com elas por meio dos serviços geolocalizados que usam, o tipo de localização com que eles se identificam e como o dispositivo móvel traz tudo isso junto (SCHMITZ WEISS, 2014, p. 10).

Deste ponto de partida, a autora propõe pensar o jornalismo espacial não somente sob o ângulo das práticas jornalísticas dentro das redações, mas também incorporando aspectos do próprio jornalismo, desde a produção de conteúdo até o consumo de notícias. O jornalismo espacial, então, poderia ser visto como “os tipos de informação que incorporam um lugar, espaço e/ou localização (física, aumentada e virtual) para o processo e a prática do jornalismo. Localização, neste contexto, pode ser uma localização relativa e/ou absoluta” (SCHMITZ WEISS, 2014, p. 10).

CONSEQUÊNCIAS DA UBIQUIDADE E DO CONTEÚDO GEOLOCALIZADO NO JORNALISMO Ao se considerar o pressuposto de que dispositivos móveis e suas funções locativas se inserem na lógica do processo de remediação da imprensa, assume-se, portanto, sua atuação nas práticas de produção, distribuição, interação e consumo de informações, impondo novas possibilidades e chegando a provocar rupturas inclusive nas práticas jornalísticas. Tais re-elaborações parecem atuar e trazer inovações de diferentes matizes aos diferentes setores da “indústria da informação”, desde os modelos de conteúdos e narrativas, passando pelas habilidades técnico-profissionais, até o modelo de negócios das organizações de mídia. Neste sentido, três aspectos intrínsecos ao jornalismo foram selecionados de forma aleatória para demonstrar, neste texto, a referida tendência, o que pretendemos discutir de forma introdutória e em perspectiva analítico-descritiva: a) as mutações nos critérios de noticiabilidade; b) a emergência do jornalismo cidadão ou participativo; c) a ampliação de espaços para o jornalismo de serviço.

a) mutações nos critérios de noticiabilidade As discussões sobre quais fatos e de que forma acontece a seleção para que alguns deles se tornem alvo do trabalho jornalístico, transformando-se em conteúdo editorial, como a própria notícia, a reportagem ou um post em um blog têm seguido uma oportuna linha de investigação e pesquisa. A busca por pistas que possam lançar luz a estes aspectos da prática jornalística e da produção noticiosa aponta rumo aos critérios de noticiabilidade, situado como um conceito mais amplo que engloba a seleção de notícias e os valores-notícia, e que, por consequência, não devem ser pegos como sinônimos (SILVA, 2005, p. 96).

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Na perspectiva de Gislene Silva (2005, p. 96), noticibiabilidade pode ser compreendida como todo e qualquer fator potencialmente capaz de agir no processo da produção da notícia, desde características do fato, julgamentos pessoais do jornalista, cultura profissional da categoria, condições favorecedoras ou limitantes da empresa de mídia, qualidade do material (imagem e texto), relação com as fontes e com o público, fatores éticos e ainda circunstâncias históricas, políticas, econômicas e sociais.

O tema se apresenta bastante complexo e difícil de ser estudado de modo sucinto. Para a autora (SILVA, 2005, p. 97), o ideal seria compreender a questão a partir dos elementos pelos quais a empresa jornalística controla a quantidade e o tipo de acontecimentos, mas também daqueles relacionados ao potencial do evento em si em se transformar em notícia, o que estaria relacionado aos valores-notícia que, para a autora são “atributos que orientam principalmente a seleção primária dos fatos – e, claro, que também interferem na seleção hierárquica desses fatos na hora do tratamento do material dentro das redações”. Ao longo do tempo, foram vários os pesquisadores que apontaram, cada um a partir de seus critérios, os valores notícia, a exemplo de J. Galtung e M. Ruge, Nelson Traquina, Mauro Wolf, Manuel Chaparro, Mário Erbolato, entre outros. Proximidade geográfica, relevânia, impacto, atualidade, novidade, raridade, interesse econômico, negativismo, famosos e curiosidade são alguns dos atributos apontados pelos autores. Apesar disso e até de uma possível linha de consenso entre eles, a questão que nos interessa levantar, aqui, refere-se as novas tendências e hábitos de consumo de notícias, principalmente por meio de dispositivos móveis e o quanto isso poderia provocar rupturas em aspectos das teorias do jornalismo, como os critérios de noticiabilidade. A partir deste raciocínio, o pressuposto que pretendemos levantar é que valores-notícia que se relacionam à proximidade geográfica e espacial apresentariam - ou apresentarão em breve, conforme crescerem hábitos móveis de leitura - maior relevância do que, por exemplo, aqueles relacionados à proximidade temporal, atualidade e novidade que, principalmente para as chamadas “hard news”, apresentam-se entre os de maior força. Além dos dados acima apresentados que evidenciam o interesse do leitor por informações relacionadas a locais próximos de onde se está e também de algumas pesquisas teórias (OIE, 2013; SCHMITZ WEISS, 2013; 2014), outro exemplo seria o Field Trip, aplicativo que exibe um card com informações sobre o local em que o usuário está, seja com um conteúdo sobre a história local ou mesmo a indicação de um restaurante, bar, parque ou ponto turístico a se visitar ou até mesmo de uma pequena loja em uma rua pouco conhecida. Ao menos aos usuários adeptos a este tipo de aplicativo, interessa muito mais o conteúdo relacionado a acontecimentos próximos de sua localização geográfica - ainda que algo sobre a remota história daquele local - do que informações factuais, como uma festa que possa acontecer exatamente naquele momento, mas do outro lado da cidade. De certa forma, este interesse pode decorrer das novas possibilidades criadas pela tecnologia móvel e ubíqua para melhor se explorar o local onde se está.

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Hipóteses à parte, o que se observa é que mesmo em meio ao grande fluxo de informação global em que estamos imersos, as novas tecnologias parecem contribuir para revigorar o interesse pela informação de proximidade, pelo hiperlocal, pela comunidade. Como bem diz Castells (2008, p. 85), “quando o mundo se torna grande demais para ser controlado, os atores sociais passam a ter como objetivo fazê-lo retornar ao tamanho compatível com o que podem conceber”.

b) emergência do jornalismo cidadão ou participativo As tecnologias ubíquas, a internet, as redes sociais, os dispositivos móveis, como já discutimos, forjaram novos fluxos de comunicação ao criar novas possibilidades de produção, interação, distribuição, circulação e consumo de informações. Partimos de um processo de fluxo linear, massivo e unidirecional para um modelo pós-massivo que traz, em si, a possibilidade de todo cidadão, em tese, também produzir e compartilhar informações. Como explica André Lemos (2007b, p. 125), as mídias de função pós-massiva “não competem entre si por verbas publicitárias [...] e, na maioria das vezes, insiste em fluxos comunicacionais bi-direcionais (todos-todos), diferente do fluxo unidirecional (um-todos) das mídias de função massiva”, o que significa novo alento para a ampliação da cidadania, o direito à comunicação e para o desenvolvimento do jornalismo participativo e cidadão. O aplicativo Foursquare pode ser tomado como exemplo, neste caso. Ele oferece informações rápidas sobre os lugares em que o usuário de um celular com sistema GPS está. Mas este conteúdo, que pode ser um review de um restaurante ou uma dica sobre algo imperdível em um parque, por exemplo, é totalmente colaborativo. Em outras palavras, o usuário terá acesso a uma informação produzida por outro usuário que, também pode ser contestada ou complementada de forma cooperativa. Outro projeto neste sentido parece ser o já citado EveryBlock em que o internauta consegue checar informações compartilhadas por seus vizinhos. Mas até que ponto este conteúdo poderia ser considerado jornalismo de fato, uma vez que o cidadão não possui qualquer treinamento técnico? Além disso, Pavlik (2014) também levanta questões como a falta de apuração, a possibilidade de erros, o risco da disseminação de informações erradas ou mesmo a questão do anonimato, em alguns casos. Uma discussão bastante atual e que caminha para contribuir neste sentido refere-se ao processo de curadoria de informação que, além de um dispositivo automático de algorítimos, assume na figura do comunicador uma peça chave na agregação, apuração e organização de conteúdos para partilha em rede (SAAD CORRÊA; BERTOCCHI, 2012). Como discutem as autoras, no ambiente digital, todo cidadão conectado tem condições de participar deste processo curatorial, mas cabe ao conjunto de profissionais que agrega conhecimentos simultâneos da arte do remediar, do estabelecimento de relações interpessoais proativas, da concepção ou uso de plataformas tecnológicas para tratamento e disponibilização de dados e, principalmente, da capacidade intelectual e informativa para curar de modo único e diferencial (SAAD CORRÊA; BERTOCCHI, 2012, p. 33).

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No campo do jornalismo cidadão ou participativo, o “cidadão jornalista” também adquire papel central na curadoria de informação. Ou seja, neste caso, temos um processo curatorial em dimensão mais ampla que, conforme os casos, pode incluir o cidadão, o jornalista, o designer, o matemático, o desenvolvedor de software, o professor, o monitor etc. Neste processo de “fazer comunicação”, os riscos de erros e falta de apuração podem ser minimizados, assim como a autonomia, a pluralidade e liberdade de ideias, a diversidade de fontes e a multidirecionalidade de fluxos, garantidas. Neste sentido se constitui um outro jornalismo, com a possibilidade de um número ilimitado de “jornalistas”, como defende Cicilia Peruzzo (2006, p. 42): Abrem-se outras possibilidades de produção de conteúdos endógenos e sua transmissão, sem fronteiras e sem gatekeepers, pelos agentes sociais, seja cada pessoa individualmente ou entidades associativas, em torno das quais as pessoas se unem com a finalidade de contribuir para resguardar os interesses coletivos.

A própria “mídia tradicional”, hoje, tem recorrido aos conteúdos produzidos por repórteres-cidadãos, a exemplo do “vc repórter”, do portal Terra, do “vc no G1” ou mesmo a frequente reprodução, pelas emissoras de TV, de trechos de vídeos gravados pelos celulares dos cidadãos. Entretanto, é claro que, nestes casos, não se trata de jornalismo cidadão. Os grandes conglomerados de mídia têm adotado tal prática simplesmente como um recurso para lidar com suas limitações de pessoal e com a impossibilidade de manter uma cobertura jornalística onipresente. Portanto, tomando o conceito de cidadania a partir de sua dimensão centrada no “direito a ter direitos” (LISZT, 2005, p. 22), fica claro que diferentes vertentes de um jornalismo aberto a qualquer tipo ou nível de participação têm sido indiscriminadamente chamadas de “jornalismo cidadão”. Não vamos, neste texto, nos preocupar em aprofundar estes aspectos, mas, fica claro que tende a se aproximar da cidadania os projetos interessados em promover os interesses coletivos do que aqueles apenas abertos a uma mera e controlada participação na produção de conteúdos, que se aproximarão muito mais a um jornalismo participativo do que cidadão em si.

c) novos espaços para o jornalismo de serviço De início cabe dizer que não existe uma só noção sobre o que e quais são os gêneros jornalísticos. Ao longo da história, diferentes pesquisadores se debruçaram sobre o tema, como Tobias Peucer, Jacques Kayser, Luiz Beltrão, Manuel Chaparro, José Marques de Melo e inúmeros outros. O gênero utilitário ou jornalismo de serviço surge com a proposta de oferecer conteúdos úteis que ajudem o leitor em rápidas decisões que ele precise tomar, desde o mundo financeiro, com os indicativos de oscilação de ações em bolsa, até as mais diferentes atividades da vida cotidiana. Na perspectiva de Vaz (2013, p. 59), o jornalismo utilitário é uma atividade que se propõe a elaborar uma informação útil, utilizável e prática. É útil porque tem serventia para o público ou parte dele. É utilizável, pois há chances que indivíduos tomem atitudes após o contato com os conselhos estabelecidos na mensagem. Prática, no sentido de oferecer dados que ajudam a resolver problemas do dia a dia, tomada de decisões e a perda de menos tempo e dinheiro.

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Na mídia impressa ou falada, os gêneros utilitários são bastante recorrentes e podem ir desde resultados de loterias, roteiro e programação cultural, cotação e preços de produtos, meteorologia, até dicas turísticas, orientações e tendências em decoração e saúde. Mas é no ambiente digital e com recursos de geolocalização que o jornalismo de serviço pode adquirir novos potenciais usos. Atualmente, diferentes aplicativos já são utilizados neste sentido, como, por exemplo o Google Now, com seus cards sobre o clima de onde o usuário está, o status do trânsito até seu próximo compromisso, o status de seus voos, da entrega de um produto recém-adquirido, linhas de ônibus que circulam próximas de onde se está, placares de jogos de seu time preferido, review dos filmes em cartaz nos cinemas próximos, orientações e dicas sobre os locais próximos, entre outros. Neste sentido, estes espaços, ainda inexplorados pelas empresas de mídia, parecem bastante oportunos para a distribuição de outros conteúdos jornalísticos de serviço. Falamos aqui, por exemplo, de um aplicativo que possa enviar notificações ao usuário com uma notícia sobre uma obra em uma rua próxima ao usuário e o possível impacto ao trânsito local, o crescimento dos índices de roubos e furtos no bairro onde se está e quais cuidados necessários para evitá-los, a inauguração de um novo restaurante na rua onde se passa e a indicação de ofertas no menu ou até mesmo os novos recursos de conexão wireless que as linhas de ônibus daquele ponto próximo passaram a ter recentemente. Se por um lado tais iniciativas demandariam investimentos e capacitação de uma equipe multidisciplinar, por outro, poderia ser uma oportunidade de negócios ao explorar o interesse e a demanda por conteúdo locativo e por dicas e orientações de como explorar e aprender mais sobre os lugares, seja por conteúdo publicitário, publicidade nativa ou até mesmo publicidade locativa (location-based advertising).

EM CONCLUSÃO Apesar de um recente fenômeno de comunicação em ambiências de redes digitais, as mídias locativas e suas narrativas geolocalizadas parecem trazer novas formas de sociabilidade, atuando também nos modelos de comunicação tecnologicamente mediados e, por consequência, nas práticas do jornalismo. Não é novidade que o setor passa por transformações. Diferentes pesquisas já evidenciaram a grande demanda e interesse dos usuários por informação de proximidade e conteúdo locativo, uma vez que, como mostramos, 74% dos usuários de smartphones já acessam informações baseadas em sua localização. Ainda que as empresas de tecnologia, com seus aplicativos, tenham sido pioneiras neste sentido, a quase totalidade das empresas midiáticas pouco avançaram para além de aplicativos que reproduzem os formatos e narrativas de outras plataformas e que apresentam apenas a previsão do tempo de acordo com a localização do usuário. Neste sentido, os principais concorrentes do conteúdo móvel dos veículos têm sido apps como Google Now, Field Trip e Foursquare e não o aplicativo de outros veículos. Em outras palavras, a exploração da distribuição de conteúdo locativo como nicho de negócio parece ainda ser ignorada pelas organizações de mídia.

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A emergência do jornalismo investigativo no Brasil: por uma nova compreensão Emergence of investigative journalism in Brazil: for a new understanding S e a n e A lv e s M e l o 1

Resumo: O que teria tornado possível a emergência do jornalismo investigativo no Brasil? Neste artigo, procuramos investigar quais as condições de possibilidade desta emergência, isto é, as configurações (contexto político, econômico, tecnológico) que deram lugar ao discurso do jornalismo investigativo. Para tanto, levamos em consideração: o processo histórico de profissionalização do jornalismo brasileiro, a influência do panorama político, as mudanças no processo de produção jornalístico, entre outros fatores. Desta forma, acreditamos ser possível defender que, ao contrário de uma visão que compreende o jornalismo investigativo como um resultado natural da evolução tecnológica e do interesse público, o discurso do jornalismo investigativo também pode ser compreendido como fruto de negociações, articulações e posicionamentos dentro do campo jornalístico brasileiro.

Palavras-Chave: Condições de possibilidade. Jornalismo investigativo. Discurso. Campo jornalístico.

Abstract: What would have made possible the emergence of investigative journalism in Brazil? In this paper, we investigate the conditions of possibility of this emergence, that is, the settings (political, economic, technological) that gave rise to investigative journalism discourse. Therefore, we consider: the historical process of Brazilian journalism professionalization, the political landscape influence, changes in news production process, among other factors. Thus, we believe we can argue that, unlike a view that understand investigative journalism as a natural result of technological change and public interest, the discourse of investigative journalism can also be understood as the result of negotiations, joints and positions within Brazilian journalistic field.

Keywords: Conditions of possibility. Investigative journalism. Discourse. Journalistic field.

INTRODUÇÃO M UMA revisão das principais obras nacionais sobre o jornalismo investigativo, é

E

possível perceber que a maior parte dos teóricos (SEQUEIRA, 2005; NASCIMENTO, 2010; CASTILHO, 2007) situa a origem do jornalismo investigativo brasileiro por volta da década de 1970, a partir do fim da censura prévia em alguns veículos de 1.  Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da ECA – USP. E-mail: [email protected]

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comunicação. Essa origem, no entanto, não raro é feita sem problematizações e sem um questionamento mais aprofundado do que teria tornado possível a emergência desta especialidade no Brasil. Neste artigo, procuramos investigar mais detidamente quais as condições de possibilidade desta emergência, isto é, as configurações (contexto político, econômico, tecnológico) que deram lugar ao discurso do jornalismo investigativo. Como o pesquisador Waisbord (2000) já pontuava, no período citado, nenhum dos fatores que originaram a moderna tradição de jornalismo dos Estados Unidos existia na América do Sul: a economia dos veículos dependia mais do estado que do mercado, não havia ocorrido um movimento político-cultural para tornar o jornalismo menos partidário e as juntas militares impunham violência política e condições que impossibilitavam os principais fundamentos do jornalismo liberal-democrático norte-americano. A despeito dos fatores adversos, os autores brasileiros (SEQUEIRA, 2005; NASCIMENTO, 2010; CASTILHO, 2007) qualificam de jornalismo investigativo reportagens brasileiras publicadas na década de 1970, em grandes veículos nacionais (O Estado de S. Paulo, Veja, etc.), que denunciam a corrupção política e, até mesmo, a tortura praticada pelo governo. Na bibliografia nacional, carecem explicações para essa emergência. Quando não é atribuída ao desejo do leitor de saber mais, implicitamente – a julgar pelo período da publicação das reportagens –, ela parece indicar a insatisfação da imprensa diante do regime ditatorial. Para buscarmos uma nova compreensão, tentaremos delinear o panorama no qual essas reportagens se inserem, tomando como parâmetro os estudos de campo (BOURDIEU, 1996), especialmente as contribuições sobre o campo jornalístico (BENSON, 2005; NEVEU, 2006).

PROFISSIONALIZAÇÃO DO JORNALISMO BRASILEIRO Em um artigo originalmente publicado em 1996, o sociólogo Jean K. Chalaby defende que o jornalismo é uma invenção anglo-americana. O objetivo do autor é não apenas situar o jornalismo como uma invenção do século XIX, mas demonstrar que a emergência do jornalismo é historicamente e culturalmente marcada. Para isso, Chalaby compara o jornalismo praticado nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França, durante o período de 1830 a 1920. Nesse exercício de comparação, o autor consegue demonstrar algumas distinções entre os modelos anglo-americano e o francês. A principal delas, portanto, é o discurso centrado no fato que se desenvolve juntamente com a profissionalização do jornalismo nos Estados Unidos e na Inglaterra. Enquanto nesses dois últimos países, por volta de 1830, a imprensa já conseguia se desvincular da política e da literatura, na França, os primeiros passos seriam dados no fim do século XIX e, com mais força, durante a I Guerra Mundial (CHALABY, 2004). A observação de Chalaby é digna de lembrança, pois em muito remete à formação histórica do jornalismo brasileiro. Na tradição francesa descrita pelo autor, por exemplo, é notado que personalidades da literatura estiveram tradicionalmente envolvidas com o jornalismo. Durante o século XIX, praticamente todos os escritores da época tiveram carreiras jornalísticas. Com a industrialização da imprensa no final do século, os

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escritores abandonaram os cargos de chefia ou propriedade dos jornais, mas até o entre guerras esses intelectuais eram largamente contratados pelos veículos. A presença desses profissionais, no caso francês, foi um grande fator de resistência ao discurso jornalístico americano centrado no fato. O comentário e a crônica ainda eram muito cultivados e serviam como vitrine das qualidades literárias do autor. No âmbito político e econômico, segundo Chalaby, alguns fatores como um bipartidarismo parlamentar, uma disputa política bem codificada e, ainda, um maior desenvolvimento da publicidade, foram fatores primordiais para que o jornalismo desenvolvido nos Estados Unidos e na Inglaterra pudesse ter autonomia em relação à esfera política. Enquanto, na França, leis diversas de controle da imprensa, censura política e o patrocínio de governos e partidos políticos fez com que a imprensa francesa não começasse a se desvincular de um caráter publicista até o final no século XIX. Assim como a França, o Brasil também tem uma formação histórica particular fruto de sua dupla dependência com os campos político e literário. Conforme ilustra Souza (2010, p. 25): O brasileiro leitor de jornais do século XIX lia, sobretudo, comentários políticos sobre os acontecimentos do Império e das nações europeias. O conteúdo das muitas folhas que aqui circularam, com maior ou menor longevidade, desde 1808, era dominado por assuntos políticos e governamentais. A produção literária do romantismo introduziu novas temáticas nas páginas dos jornais, que publicavam em folhetim romances só depois organizados na forma de livro.

Muitos autores, a exemplo de Souza (2010), enfatizam a profunda imbricação entre jornalismo e literatura no Brasil, durante todo o século XIX e primeira metade do século XX. De acordo com Ribeiro (2007), o jornalismo era considerado um subproduto das belas artes e, devido à falta de um mercado editorial bem desenvolvido, consistia na principal forma de acesso dos escritores aos seus leitores. A confluência entre jornalismo e literatura no Brasil poderia ser facilmente observada a partir da Academia Brasileira de Letras, pois “entre os imortais figuravam grandes nomes da imprensa como Elmano Cardim, Múcio Leão, Raimundo Magalhães Júnior e Assis Chateaubriand”, (RIBEIRO, 2007, p. 221). Já no final do século XIX2, a reportagem como a narrativa de uma observação direta do jornalista começava a se constituir como prática e espaço de luta. Segundo Souza (2010), a “definição do espaço profissional do repórter e o aperfeiçoamento da narrativa que caracteriza o seu ponto de vista entre outros tipos de jornalista são eventos centrais da constituição do moderno jornalismo brasileiro”, (SOUZA, 2010, p. 11). Essa definição do espaço profissional, contudo, não se estabeleceria sem um forte embate entre a lógica jornalística e a lógica literária, que também podia ser resumida como o confronto entre o lead e o “nariz de cera”3.

2.  Souza (2010) cita a cobertura da Guerra de Canudos, em 1897, pelos jornais Diário de Notícias (de Salvador), O Estado de S. Paulo, Gazeta do Rio de Janeiro, A Notícia e Jornal do Commercio. 3.  “Nariz de cera” foi o nome pelo qual ficou conhecido o início das reportagens que, antes do lead, se caracterizava por ser empolado e prolixo.

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A emergência do jornalismo investigativo no Brasil: por uma nova compreensão Seane Alves Melo

No estudo sobre a reportagem brasileira, Souza enfatiza com frequência as disputas que diziam respeito à linguagem jornalística, demonstrando como a literatura muitas vezes se impôs e ainda se impõe como “parâmetro de comparação e fonte de hierarquização entre jornalistas e modelos de reportar no jornalismo brasileiro”. Para ilustrar isso, ela recorre ao discurso de vários jornalistas sobre as qualidades do texto jornalístico, em que, por vezes, “o bom texto” e a fidelidade aos fatos entram em conflito. Um exemplo é o jornalista Marcos Faerman que afirmou que os manuais de redação estavam “mais ligados a uma visão castradora da imaginação e do texto jornalístico” (FAERMAN, 1998 apud SOUZA, 2010, p. 76). Mas a análise da influência literária no jornalismo brasileiro, exclusivamente, não dá conta do panorama histórico do desenvolvimento desse campo em nosso país. Como antecipa Chalaby, a história do jornalismo no início do século XIX, seja na França, nos Estados Unidos ou na Inglaterra, está atrelada a um jornalismo partidário. Segundo Schudson (2010), antes de 1830, nos Estados Unidos, jornalistas “eram pouco mais que secretários que dependiam daquela panelinha de políticos, comerciantes, corretores e candidatos a cargos públicos para manter sua posição e emprego”, (PRAY, 1855 apud SCHUDSON, 2010, p. 27). No Brasil, a realidade era praticamente a mesma. Ribeiro (2007) cita dois casos conhecidos de troca de apoio por cargos no serviço público: Prudente de Moraes Neto assumiu a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), em 1955, como recompensa pelo apoio ao político Café Filho; e Danton Jobim foi nomeado presidente do IBGE, em 1956, após ter apoiado o presidente Juscelino Kubitschek. Além desta relação de interesse que se estabelecia entre a imprensa e o poder público, outros fatores também foram responsáveis pela dependência do jornalismo brasileiro em relação ao Estado. Podemos identificar cinco formas “legais”, juridicamente reconhecidas, de dependência dos meios de comunicação em relação ao Estado: 1) sistema de concessões públicas; 2) controle oficial das cotas de papel e outros insumos básicos à comunicação; 3) financiamentos, isenções fiscais e subsídios; 4) fiscalização governamental das atividades de comunicação; e 5) publicidade governamental (RIBEIRO, 2007, p. 170-171).

No entanto, se a partir dos anos 1830, a existência de uma sociedade democrática de mercado (SCHUDSON, 2010) garantiu a desvinculação do jornalismo norte-americano dos partidos políticos e o início de transformações que culminariam no modelo moderno de jornalismo, no Brasil, – devido às inúmeras distinções nos âmbitos político, econômico e social – a imprensa só começa a se modernizar e expandir, de forma orgânica, a partir da década de 1950. Porém, a modernização da imprensa não implicou, necessariamente, em um distanciamento político. Em 1954, por exemplo, ainda era possível identificar as posições político-partidárias dos principais jornais cariocas. Nesta época, os jornais, com exceção do Imprensa Popular que estava ligado ao Partido Comunista, não funcionavam mais como veículos oficiais de partidos políticos. Mas, em alguns casos, estavam associados à figura de políticos. O jornal Tribuna da Imprensa, por exemplo, foi um dos pioneiros na modernização da imprensa carioca e, de 1949 até 1962, era conhecido como “o jornal do Carlos Lacerda”. Este jornal é um bom exemplo para demonstrar como caminhou a modernização da imprensa e a profissionalização do jornalismo em nosso

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país: “Ao mesmo tempo em que servia de instrumento para as realizações políticas de seu dono também comportava em suas redações uma equipe de repórteres de excelente nível técnico-profissional, formados em moldes modernos”, (RIBEIRO, 2007, p. 146). Esta contradição entre a modernização e o velho vínculo político pode ser considerada como resultado de um processo de modernização que não se deu espontaneamente, mas foi fruto da ação de alguns atores. Outra consequência, foi o fraco desenvolvimento empresarial dos veículos de comunicação, que ainda utilizavam técnicas de administração e gestão tradicionais. O volume de capital publicitário começa a influenciar mais significativamente no mercado a partir de 1947. Como resultado, temos o início de um processo de concentração da imprensa em benefício dos veículos de maior circulação. Processo que se agravaria na década de 1960, em virtude da queda do volume de publicidade, do desenvolvimento da televisão e da inflação no preço do papel-jornal. Outro aspecto importante na formação histórica do jornalismo brasileiro é o período da Ditadura Militar (1964 – 1985). Novamente o jornalismo brasileiro sofreu com a censura e com outras formas de intervenção estatal: O regime militar [...] interveio diretamente na atividade jornalística, por meio da censura aos jornais e mediante a regulamentação da atividade jornalística (via leis de imprensa e de profissionalização) e de impostos, subsídios e preços de insumos e matérias-primas. Além disso, o Estado manipulava as verbas publicitárias dos órgãos do governo e pressionava os anunciantes a recusarem determinados veículos, não simpáticos ao regime (RIBEIRO, 2007, p. 208).

O trabalho de Silva (1991), desde inícios da década de 1990, também chamava atenção para a falta de condições na economia brasileira que sustentassem a incorporação dos valores do jornalismo americano tal qual praticado nos EUA. E as diferenças não ficavam restritas apenas aos fatores econômicos, a história política do Brasil, marcada por graves atentados à compreensão liberal de liberdade de imprensa que caracteriza a constituição americana, também foi responsável pelas divergências no modelo de jornalismo aqui praticado. Isto não significa que a influência americana no jornalismo brasileiro seja questionável. O resultado desta influência, no entanto, é um jornalismo que se diferencia do modelo original ao entrar em contato com o contexto político, econômico e cultural brasileiro. O mesmo processo ocorre com o jornalismo investigativo brasileiro.

JORNALISMO INVESTIGATIVO LÁ E AQUI Estudar as condições de emergência do jornalismo investigativo no Brasil, portanto, também exige que se tenha em vista a emergência da reportagem investigativa nos Estados Unidos. Normalmente, o moderno jornalismo investigativo americano, do qual Watergate é o grande representante, é visto como uma espécie de extensão da tradição muckraker, que marcou o jornalismo americano na primeira década do século XX. Mas uma observação mais atenta dos dois períodos demonstra divergências entre os movimentos em decorrência de contextos diferentes. O que atualmente chamamos de jornalismo investigativo é uma construção social iniciada nos Estados Unidos por volta da década de 1960, em decorrência, entre outros fatores: a) da existência de uma imprensa

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bem desenvolvida enquanto empresa, marcada pela existência de diferentes tipos de empreendimentos (jornais, revistas, rádios e TVs) e cujo mercado vinha se centralizando desde o início da Primeira Guerra Mundial; b) dos desdobramentos políticos da época que deram margem para a emergência de uma “cultura de oposição” observada na proliferação de movimentos sociais reivindicatórios; c) de um estremecimento das relações entre o governo e a imprensa, que se sentia cada vez mais manipulada pelas relações públicas oficiais; e d) da existência de um jornalismo profissionalizado e fundamentado pelo ideal de objetividade, que permitia o desenvolvimento de um discurso relacionado à ação do repórter como investigador e, não, como militante/reformador. Ainda que todos os fatores elencados tenham igual importância no caráter que o discurso do jornalismo investigativo assume, gostaríamos de frisar especialmente o último fator. Os muckrakers do início do século já estavam atrelados à lógica da notícia e da fidelidade aos fatos, mas este jornalismo ainda não estava comprometido com o ideal da objetividade, que, mais que uma crença ingênua na realidade, representa uma prática desenvolvida em resposta à constatação de que a realidade é uma construção. Se a partir da década de 1960, as críticas ao jornalismo convencional ganham força e, ao criticar a falta de participação do jornalismo, retomam a tradição dos muckrakers que praticavam um jornalismo engajado e militante, ao mesmo tempo, elas acusam o jornalismo convencional de cumplicidade silenciosa com o poder, demonstrando que, ali, já se tratava de um cenário mais complexo de atuação profissional, onde as assessorias de imprensa assumiam um papel de oposição central. Em um célebre artigo, a autora Gaye Tuchman (1993) analisa a forma como a objetividade é usada como um discurso estratégico que salvaguarda o jornalista de algumas pressões da profissão, através de procedimentos consagrados como: a) apresentar versões diferentes de uma mesma realidade; b) apresentar provas suplementares para fundamentar um fato; c) utilizar aspas para indicar que o repórter não está emitindo uma opinião; d) apresentar os fatos mais importantes primeiro; e e) separar cuidadosamente os fatos das opiniões. Tuchman e Schudson (2005) já apontavam como essas práticas profissionais não apenas não garantem um resultado objetivo, como favorecem que o ponto de vista comum à classe média e o uso de fontes oficiais prevaleçam no noticiário convencional. Essa discussão nos parece fundamental na busca por uma nova compreensão do jornalismo investigativo brasileiro. Como pudemos revisar brevemente no tópico anterior, o jornalismo brasileiro é historicamente atado à política e a modernização da nossa imprensa a partir da década de 50 não esteve necessariamente atrelada a uma maior independência econômica. Apenas esses fatores já seriam suficientes para defendermos que o mesmo tipo de jornalismo investigativo que se desenvolveu nos anos 60 nos Estados Unidos não poderia ter se desenvolvido no Brasil nos mesmos termos. E, se levarmos em conta o período em que os autores brasileiros defendem a prática da reportagem investigativa em nosso país (década de 1970), esta compreensão parece ainda mais problemática. Mesmo com o fim da censura prévia em alguns veículos de comunicação a partir de 1975, a censura e perseguição política do regime ditatorial minavam ainda mais a autonomia da imprensa brasileira e a possibilidade da publicação de denúncias e desvios de conduta. Com isso, não queremos defender que não houve

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jornalismo investigativo no período mencionado, mas apontar que, dado o contexto da prática profissional nacional, o que conhecemos como jornalismo investigativo difere da vertente norte-americana. A reunião de discursos e práticas distintos sob o grande guarda-chuva que parece ser a expressão “jornalismo investigativo” cria grandes dificuldades para a compreensão de sua ocorrência em nosso país. É comum, na escrita da história, que se busquem tradições, isto é, origens longínquas que criam a impressão de continuidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, a identificação da Era Muckraker como era de jornalismo investigativo nos parece uma reinterpretação deste período à luz de um discurso jornalístico que se constrói quase cinquenta anos depois. No Brasil, em algumas obras teóricas (DINES, 1986; FARO, 1999), encontramos o uso da expressão “jornalismo investigativo” em referência a um passado de excelência jornalística. Ao tratar da crise do papel jornal, Dines defende que: Uma análise do desempenho passado também pode perfeitamente fornecer as tônicas que servirão de coordenadas para o futuro. Um jornal que sempre se caracterizou por sua combatividade pode reencontrar agora sua antiga fórmula e, dentro das limitações que o regime impõe, procurar assuntos que permitam o jornalismo investigativo que sempre foi o seu forte (DINES, 1986, p. 87, grifos nossos).

Como podemos perceber, o autor entende o jornalismo investigativo como fórmula antiga ou algo que sempre foi o forte dos jornais combativos. Pela citação, percebemos que o autor não identifica a objetividade – entendida como orientação metodológica que marca a profissionalização jornalística – como condição para o jornalismo investigativo. Pelo contrário, o engajamento parece ser a condição primordial. Tampouco a autonomia é posta em questão. Dines acredita que é possível praticar jornalismo investigativo desde que se procurem os assuntos que passem pelas limitações da censura política do regime ditatorial brasileiro. Faro (1999), em seu estudo sobre os três primeiros anos da revista Realidade, identifica o jornalismo investigativo com a grande reportagem. O autor procura fundamentar as características do jornalismo praticado na revista na própria atividade intelectual do período, que, segundo defende, era inseparável do ativismo político. Na época indicada [1966-1968], a revista Realidade teve condições de ser produzida em toda a sua plenitude, havendo mesmo condições conjunturais, tanto no plano político como no plano cultural, para que se colocasse em prática o estilo de jornalismo investigativo que denunciava as mazelas sociais do país (FARO, 1999, p. 20).

Ao identificar o jornalismo investigativo com a grande reportagem, o autor dá margem para que se interprete a produção de Realidade e da imprensa alternativa como exemplos de jornalismo investigativo. Faro não desconsidera que o jornalismo praticado pela revista e pelos veículos alternativos era marcadamente engajado. Para ele, isso contribuiu para que a reportagem tivesse “uma dimensão reveladora, além dos padrões da objetividade informativa” (FARO, 1999, p. 19). As interpretações dos dois autores brasileiros são interessantes na medida em que indicam a presença do discurso sobre “jornalismo investigativo” já na década de

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1970 (visto que o livro de Dines foi originalmente publicado em 1974) e a fragilidade definicional que marca esta especialidade até os dias de hoje, no Brasil. Também é interessante notar o conteúdo associado às reportagens investigativas. Se na fala dos ambos, o jornalismo investigativo está associado com a reportagem de mazelas sociais (pressupondo que esses sejam os assuntos permitidos pelo regime aos quais se refere Dines), posteriormente, nas obras dedicadas ao assunto, ele aparecerá predominantemente relacionado à corrupção política e infração dos direitos humanos pela polícia. Em sua análise do jornalismo investigativo praticado na América do Sul por volta das décadas de 1980 e 1990 – após o fim dos regimes ditatoriais em vários países – Waisbord (2000) chama atenção para esta tendência de se privilegiar notícias de abuso de poder por políticos e de violações dos direitos humanos pela polícia. Estudando a história do jornalismo na América do Sul e sua profissionalização, o autor argentino encontra uma justificativa para o fato na proximidade entre jornalistas e fontes oficiais. Curiosamente, o jornalismo investigativo na região oscila entre um distanciamento e uma proximidade com a política. Ele só é possível na medida em que pode se distanciar do governo e adquirir certa autonomia para denunciar desvios de conduta, mas também prescinde de proximidade com fontes privilegiadas de informação que, em geral, fazem parte do aparelho político. Para Waisbord (2000), o jornalismo investigativo segue o mesmo padrão de organização e produção do jornalismo convencional, isto é, na sua prática de recorrer frequentemente às fontes oficiais, ele reproduz as visões do grupo político dominante. O autor também atribui a recorrência das histórias de corrupção política à escassez de fontes de informação e à ausência de uma compreensão das informações administrativas como bem comum. No Brasil, por exemplo, a Lei Nº 12.527, que regula o acesso às informações públicas só foi aprovada em 18 de novembro de 2011 e sua efetividade ainda é estudada por pesquisadores, jornalistas e editores. Antes disso, o jornalismo investigativo brasileiro dependia, em grande medida, de informações vazadas por fontes em off. Prática que ficou conhecida sob o nome pejorativo de denuncismo. A análise de Waisbord é valiosa na medida em que já leva em consideração as condições de possibilidade do jornalismo investigativo na América do Sul. O autor é bem sucedido em demonstrar como o jornalismo investigativo latino não é idêntico ao norte-americano e nem sempre pode ser identificado com a missão de vigiar o poder. Aqui, ele é parte de uma relação complexa de proximidade e negociações com o campo político, onde os interesses das elites políticas, dos veículos de comunicação e dos próprios jornalistas podem ter papel decisivo no que é denunciado. Mas, vale lembrar que o autor analisa a prática investigativa a partir da redemocratização dos países da América do Sul. Antes disso, como sabemos, Sequeira (2005), Nascimento (2010), Castilho (2007), entre outros, falam de jornalismo investigativo no Brasil já relacionado com o conteúdo político e policial. Castilho (2007) nos fornece uma explicação para a existência do discurso do “jornalismo investigativo”. Para este autor, com o fim da censura prévia, se evidencia uma lacuna identitária como herança dos anos de repressão à imprensa brasileira.

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A reportagem de polícia ganha um novo impulso, passa a ser mais investigativa e menos submissa às versões oficiais dos militares. O profissional, por sua vez, tenta se desvencilhar da imagem de intimidade e até promiscuidade com o aparelho policial (CASTILHO, 2007, p. 7).

Nesse contexto, o fortalecimento da reportagem investigativa serve para reposicionar o papel social dos jornalistas, a exemplo do que também ocorrera, de certa maneira, com o jornalismo norte-americano nos anos 1960. Em 2005, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), juntamente com a editora Record, lançou o primeiro livro da coleção Jornalismo Investigativo. Fernando Molica foi o responsável por selecionar 10 reportagens significativas para o jornalismo brasileiro durante o período militar. Segundo o organizador, Procurou-se oferecer um painel que permitisse uma visão geral do período que vai de 1964, ano do golpe que destituiu o presidente João Goulart, até 1985, quando o último general deixou o poder. Buscou-se também uma certa variedade temática, reportagens que abordassem diferentes aspectos da vida nacional em um período de exceção (MOLICA, 2005, p. 09-10).

Como podemos observar, os critérios de seleção não incluem nenhum método específico de produção jornalística. E, se procurássemos identificar padrões de conteúdo, correríamos o risco de fazer uma análise equivocada, visto que a seleção de Molica busca a diversidade. De fato, na coletânea, há denúncias de tortura (esse é o assunto que predomina no livro), corrupção, negociatas, sequestro e mazelas sociais. O material selecionado, exceto por uma reportagem, é proveniente de jornais de grande circulação (Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, etc.) e revistas bem estabelecidas no mercado, como Veja, IstoÉ e Realidade. Esse padrão, pelo menos, não é exclusivo da coletânea, mas pode ser observado no jornalismo investigativo brasileiro como um todo (ver WAISBORD, 2000; MELO, 2014). Na obra, há um texto com explicações do processo de produção jornalístico escrito pelos autores das reportagens precedendo cada matéria. Nesses textos, relembram-se as circunstâncias da escrita e da apuração. Por mais que se trate de uma coletânea de jornalismo investigativo, raramente os jornalistas fazem uso do termo ou tentam enfatizar um papel ativo durante a produção das reportagens. Não que esse papel ativo não existisse, afinal, todos falam da procura de fontes e de coleta de informações. Mas eles não tentam apagar ou diminuir o papel que o testemunho de uma fonte possa ter tido, até mesmo no sentido de ter sido a responsável pela pauta. As quatro primeiras reportagens apresentadas – originalmente publicadas em 1964, 1968, 1969 e 1975, respectivamente – não parecem se diferenciar muito do estilo jornalístico de sua época. A matéria de Realidade sobre a fome em Pernambuco em tudo se assemelha às grandes reportagens produzidas pela revista, que se eternizou por seu estilo mais literário. A reportagem “A morte de Vlado”, publicada em um veículo alternativo da época, também não esconde as marcas de um jornalismo engajado e próximo da literatura, em um texto todo marcado pela reprodução de diálogos. A partir da reportagem “Assim vivem os nossos superfuncionários”, – um dos dois trabalhos citados por Sequeira (2005) como exemplo de jornalismo investigativo em 1970 – a consulta a documentos e publicações passa a aparecer no relato dos jornalistas

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da coletânea. No entanto, é apenas no relato de José Carlos de Assis sobre uma matéria publicada em 1982, na Folha de S. Paulo¸ que há uma menção direta ao jornalismo investigativo: A Folha exigia que, em qualquer denúncia a ser publicada pelo jornal, o outro lado teria de ser ouvido. Isso era uma espécie de reminiscência (na época, ainda vívida) do método de jornalismo investigativo adotado pelo Washignton Post no escândalo Watergate, quando toda informação tinha que ser checada por pelo menos três fontes independentes (ASSIS, 2005, p. 304).

Assim como na análise de Waisbord (2000) e na observação do contexto norteamericano, na citação, o discurso do jornalismo investigativo aparece vinculado com uma maior profissionalização do jornalismo, representada pelas técnicas prescritas nos novos manuais de redação dos grandes jornais, dos quais o manual da Folha adotado na década de 1980 é um grande exemplo.

UMA ESPECIALIDADE, APROPRIAÇÕES DIVERSAS Até aqui, é preciso que se note a forma diluída como o discurso do jornalismo investigativo é apropriado no Brasil. Primeiramente, podemos afirmar que ele é apropriado simplesmente como sinônimo de grande reportagem e, dessa forma, acaba por ressignificar produções jornalísticas das décadas de 1960 e 1970 (e os seus autores), como as da revista Realidade e de veículos alternativos, enquanto exemplos de reportagens investigativas (ou de jornalistas investigativos). Também podemos observar outra apropriação no sentido de identificar o jornalismo investigativo com reportagens que privilegiam a denúncia de corrupção política/policial. Esta apropriação, que segundo nossa hipótese aparece no campo jornalístico brasileiro aproximadamente por volta da década de 1980, se insere em um contexto de maior profissionalização do jornalismo no país, representada pela modernização da indústria da comunicação e pelo crescimento das assessorias de imprensa. Ambas as apropriações podem revelar disputas e jogos internos ao campo jornalístico, no sentido de definir as práticas legítimas e consagradas e as posições de maior autonomia profissional. Em ambos os casos, seria necessário um estudo muito aprofundado de acordo com a metodologia proposta por Bourdieu (1996). O que não nos impede de apontar alguns aspectos interessantes e, quando possível, sugerir algumas interpretações. Em relação à primeira apropriação identificada, acreditamos que também é possível analisá-la de forma semelhante a Castilho (2007). Como mencionamos, o autor defende que o jornalismo investigativo funciona como uma estratégia de valorização da representação do jornalista no período de abertura do regime militar. Castilho (2007) defende sua tese a partir da análise de reportagens premiadas no período mencionado. Portanto, o autor não está se referindo à produção de Realidade, Cruzeiro e de veículos alternativos. No entanto, a apropriação do jornalismo investigativo como sinônimo de grande reportagem também nos parece funcionar como uma trincheira de luta pela valorização de um determinado tipo de jornalismo. Neste caso, o que parece estar em jogo é uma louvação dos jornalistas do passado (David Nasser, por exemplo, aparece

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na coletânea da ABRAJI de reportagens policiais) e de uma reportagem que prezava pela qualidade literária. Em relação à segunda apropriação, o pêndulo das disputas internas ao campo parece ter se deslocado e a qualidade literária não é mais o que deve ser valorizado (ou revalorizado) sob a denominação de jornalismo investigativo. A redemocratização do país permite mais autonomia ao trabalho jornalístico, grandes empresas de comunicação se fortalecem e modernizam, e, possivelmente, os ecos de Watergate ainda se fazem ouvir no Brasil. Diante dessas múltiplas condições de possibilidade, como compreender o discurso do jornalismo investigativo no Brasil? Por um lado, a democracia e a disputa eleitoral contribuem, como sugere Waisbord (2000), para a disputa entre as elites, para a inclusão da imprensa como agente na disputa política e para a divulgação de escândalos de corrupção. Por outro, a modernização e fortalecimento da imprensa permitem tanto uma maior autonomia econômica dos veículos em relação ao governo quanto a adoção de princípios básicos do jornalismo norte-americano, como a objetividade enquanto método profissional. A modernização do setor de comunicação e a disputa eleitoral também contribuem para o crescimento de um novo agente dentro do campo jornalístico: as assessorias de imprensa. É em relação à proliferação das assessorias de imprensa que, acreditamos, o jornalismo investigativo passa a ser usado para marcar um papel ativo do repórter no processo de investigação jornalística, a exemplo do que ocorreu no jornalismo norte-americano. A dificuldade de se obter informações em nosso país, as condições de insegurança que os jornalistas brasileiros ainda enfrentam, as condições cada vez mais precárias de trabalho e o histórico de proximidade entre os campos jornalístico e político no Brasil, no entanto, dificultam a definição do jornalismo investigativo com base no papel ativo do jornalista. Mesmo que a influência norte-americana seja hegemônica e que a modernização e profissionalização do jornalismo brasileiro tenha se dado nos moldes americanos, o cenário local nos leva a identificar o que tem sido chamado de jornalismo investigativo mais como a denúncia de desvios, que com a revelação da verdade oculta. A diferença entre as duas definições se dá mais fortemente em relação à participação ou não do jornalista e na revelação de uma informação nova ou não. A existência de várias reportagens feitas a partir de vazamentos de informações, notadamente da polícia e do Ministério Público, bem como a dificuldade de se conseguir informações, por exemplo, são fatores que reforçam o embaraço de tentar definir nosso jornalismo investigativo nos termos americanos. A bibliografia nacional sobre o jornalismo investigativo está muito direcionada para esta definição que enfatiza a iniciativa do jornalista na investigação e o caráter do objeto investigado (deve se tratar de algo que está sendo ocultado). Mas a definição, aparentemente simples e precisa, se mostra vaga e insuficiente quando revisamos o que foi definido pelos autores e pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – instituição criada em 2002, para promover cursos e seminários para estimular a qualificação de jornalistas e estudantes – e não encontramos unidades ou critérios tão claros para aquelas seleções, exceto, o fato de que as reportagens sempre fazem uma denúncia.

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Jornalismo cultural e relações de poder: uma análise sob a ótica de Pierre Bourdieu

Cultural journalism and power relations: an analysis from the perspective of Pierre Bourdieu G e so Bat i sta

de

Souza Júnior1

Resumo: A partir de uma concepção do jornalismo cultural contemporâneo enquanto práxis comunicacional, esta pesquisa investiga a problemática do processo midiático e das práticas socioculturais na cobertura jornalística do suplemento literário Prosa & Verso, do jornal carioca O Globo, no ano de 2008. O presente estudo objetiva debater as tensões existentes entre campo jornalístico e campo literário, focando a influência da lógica mercadológica na produção jornalística, por meio de pesquisa bibliográfica apoiada no instrumental das teorias da notícia e na sociologia do jornalismo e da cultura, especialmente sob a ótica de Pierre Bourdieu. Dessa forma, examinamos o funcionamento das relações constitutivas do campo da difusão, espaço em que agentes de determinados campos – produtores e intermediários – interferem de maneira estratégica na hierarquia da legitimidade cultural, evidenciando assim tais articulações no processo de construção da notícia. Entre os resultados desta análise, são identificadas as relações entre produção da notícia, imposições de mercado e espetacularização na indústria cultural, verificando-se, entre outras constatações, que a notícia não escapa da necessidade de possuir valor de troca, mesmo quando se trata do jornalismo cultural, uma vez que a cultura também tem sua própria economia.

Palavras-Chave: Pierre Bourdieu. Jornalismo Cultural. Sociologia da Cultura. Abstract: From a contemporary concept of cultural journalism as communication practice, this research investigates the problem of media process and sociocultural practices in media coverage of the literary supplement Prosa & Verso, of the newspaper O Globo, in the year 2008. This study aims to discuss the tensions between journalistic field and literary field, focusing on the influence of market logic in the journalistic production, based on methodological support of the theories of news and sociology of journalism and culture, especially from the perspective of Pierre Bourdieu. Thus, we examined the functioning of the constitutive relations of the diffusion field, space in which agents of certain fields - producers and intermediaries - interfere strategically in the cultural legitimacy hierarchy, evidencing such joints in the news construction process and the construction of social reality. Among the results of this analysis, many relations

1.  Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Membro do Grupo de Pesquisa PCLA - Pensamento Comunicacional Latino Americano, do CNPq. E-mail: [email protected]

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are identified between news production, such as the exposure of journalism to market forces, with spectacularization and commodification in the cultural industry, verifying, among other findings, that the news does not escape the need to have exchange value, even when it comes to cultural journalism, since the culture also has its own economy.

Keywords: Pierre Bourdieu. Cultural Journalism. Sociology of Culture.

A TEORIA SOCIAL E O CONCEITO DE CAMPO DE BOURDIEU O REPENSAR em uma perspectiva estruturalista a análise e o método empregados

A

por Max Weber em torno das religiões, aliando a este pensamento a inspiração proveniente da teoria geral da magia de Marcel Mauss, o francês Pierre Bourdieu (1996, 2007, 2008), um dos sociólogos mais representativos do último século, direciona um olhar para a história da vida intelectual e artística das sociedades europeias e a partir daí introduz seus conceitos acerca das transformações da função do sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura destes bens, fatores que remetem à autonomização progressiva do sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos. Inicialmente, faz-se necessário uma elucidação do conceito de campo para depois contextualizar a sua utilização pelo autor. Um campo é um espaço social onde seus participantes - agentes e instituições - se engajam em relações recíprocas no transcorrer de suas atividades. Tais espaços são estruturados por posições cujas propriedades dependem das disposições nestes espaços, que possuem leis de funcionamento discordantes, em contraponto às suas estruturas equivalentes, chamadas de homólogas pelo autor. Historicamente depurados em suas lutas internas e em sua luta pela conquista de autonomia e reconhecimento, os campos de força acabam por realizar um trabalho de construção social. As representações e práticas de um campo dependem do contexto organizacional e do tipo particular de poder que o institui. Para Bourdieu, a análise do campo e a peculiaridade de seu funcionamento permitem entender não somente as limitações e a violência simbólica2 como também os investimentos e a sedução que esses jogos simbólicos produzem. Em sociedades em que a diferenciação social ganha relevo, os campos se apresentam como microcosmos sociais que adquirem uma dinâmica e institucionalizam-se de tal maneira que dão origem a universos relativamente autônomos. Esses campos se organizam e apresentam uma lógica própria de funcionamento - uma lógica de interatividade - que estrutura as relações entre os agentes no interior de cada um deles, independente das homologias que os unem. Por isso, a relativa autonomia é um dos traços inerentes à noção de campo aqui analisada. Conceitua Bourdieu (1997, p. 57): Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. 2.  A violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com a frequência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la (Bourdieu, 1997, p. 22).

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Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em consequência, suas estratégias.

Essencialmente, um traço característico do mercado de bens simbólico diz respeito à recusa do caráter comercial de sua natureza. Trata-se, paradoxalmente, de uma economia sustentada pela denegação da economia, contudo, não se constitui uma recusa completa do interesse econômico nem de uma dissimulação ideológica através de uma postura e convicção desinteressadas. Nesta esfera em que se transforma o comércio dos bens culturais em um comércio semelhante aos outros, vê-se também espaços para a acumulação do capital simbólico, um crédito capaz de proporcionar ganhos “econômicos”, conforme Bourdieu (2008). O autor chama de “banqueiros culturais” os profissionais incumbidos de comercializar os bens culturais neste mercado peculiar. Tais agentes, que podem ser vistos nas figuras dos marchands e dos editores, utilizam os meios para obter os ganhos do desinteresse e parte desse processo decorre da estratégia de converter o capital econômico em capital simbólico. Há uma energia social acumulada no campo, espaço onde as relações e as lutas simbólicas se engendram com o intuito, por exemplo, de instituir o valor das obras e a crença nesse valor. Lutas essas que corroboram em diferentes estágios com o reconhecimento dos valores últimos da denegação da economia. Vale ressaltar que os diferentes agentes não determinam de maneira isolada, através de suas relações objetivas, as questões relativas ao estabelecimento da reputação e da consagração no campo de produção, uma vez que é o próprio campo o detentor do princípio da eficácia de todos os atos de consagração. Sobre a lógica do desenvolvimento das empresas de produção cultural, Bourdieu (1996) efetua uma análise do mercado editorial francês e constata que uma editora que entra na fase de exploração do capital simbólico acumulado faz coexistir duas economias diferentes, uma voltada para a produção e a pesquisa, e a outra orientada para a exploração do acervo e para a difusão dos produtos consagrados. Decorre desta esfera a oposição entre duas formas e visões de “economia” que se afirmam no campo literário e artístico e revelam as diferenças dos dois ciclos de vida do negócio da produção cultural, já mencionados acima. Dessa forma, nota-se de que maneira a oposição que estrutura todo o espaço da produção cultural funciona, isto é, descortinam-se dois modos de envelhecimento dos envolvidos nesse mercado: produtos, empresas e produtores. No mercado editorial, o autor aponta também a oposição visível entre os best-sellers sem futuro e os chamados clássicos. Quando é enfocada a venda dos produtos, em um pólo mais heterônimo do campo analisado, tem-se no sucesso uma garantia de valor, fator que contribui para as altas tiragens de livros, momento em que a avaliação de um crítico é crucialmente relevante, por outro lado, nesse cenário, o fracasso pode ser interpretado como uma condenação e indício de falta de talento tanto do escritor quanto do editor. Sobre essa lógica cultural, Bourdieu (1996, p. 170) diz que: O capital “econômico” só pode assegurar os lucros específicos oferecidos pelo campo – e ao mesmo tempo os lucros “econômicos” que eles trarão muitas vezes a prazo – se se reconverter em capital simbólico. A única acumulação legítima, para o autor como para o crítico, para o comerciante de quadros como para o editor ou o diretor de teatro, consiste em fazer um

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nome, um nome conhecido e reconhecido, capital de consagração que implica um poder de consagrar objetos (é o efeito de griffe ou de assinatura) ou pessoas (pela publicação, a exposição etc.), portanto, de conferir valor, e de tirar os lucros dessa operação.

Dito isso, o sociólogo frisa que o comércio de arte “pura” é um comércio de produtos não comercializáveis, no sentido de que a arte se insere em uma prática comercial cuja lógica remete a economia pré-capitalista, especificamente quando se trata da denegação do empreendimento econômico. Assim, o empreendimento econômico dos bens simbólicos não pode ser bem-sucedido em diferentes esferas “se não for orientado pelo domínio prático das leis de funcionamento e das exigências específicas do campo” (Ibidem, p. 171). Nesse ambiente de lutas simbólicas, outra arma utilizada corresponde ao que o autor chama de marcas distintivas, ou seja, nomes de escolas e grupos, siglas e demais nomes próprios que objetivam diferir para existir, isto é, são produzidos na luta pelo reconhecimento para distinguir, mesmo que seja através de falsos conceitos criados pelos próprios artistas ou por críticos oficiais, e passam a cumprir também a função de sinais de reconhecimento - as designações “pop art” e “novo realismo” são alguns exemplos dessa questão. Acerca da temporalidade do campo de produção artística, Bourdieu (1996) explica que a todo tempo, em qualquer que seja o campo, os agentes e as instituições empenhados na luta simbólica são contemporâneos e temporalmente discordantes, por ser o tempo a melhor exemplificação e comprovação das mudanças e distâncias de estilos no campo artístico, conforme se pode observar com as diferentes vanguardas – atendo-se às gerações artísticas – que têm no cerne de sua atitude a pretensão de avançar sobre seu tempo. A introdução de novos produtores e novos produtos no mercado caracteriza a temporalização do campo de produção, que por sua vez faz surgir também um novo sistema de gostos e, consequentemente, uma temporalização dos gostos, entendidos como as escolhas de consumo. Apreende-se desta lógica da mudança que toda transformação da estrutura do campo acarreta uma translação do sistema das distinções simbólicas entre os grupos. O autor defende que os campos de produção e de difusão dos diferentes bens simbólicos são entre si estrutural e funcionalmente homólogos, o que pode ser observado entre o espaço dos produtores e o espaço dos consumidores quando da composição das diferentes categorias de produtos e as expectativas das categorias diversas de público, ou seja, percebe-se um ajustamento entre oferta e procura. Essa estrutura que se apresenta em todos os gêneros artísticos, e há muito tempo, tende hoje a funcionar como uma estrutura mental, organizando a produção e a percepção dos produtos: a oposição entre a arte e o dinheiro (o “comercial”) é o primeiro gerador de maior parte dos julgamentos que, em matéria de teatro, de cinema, de pintura, de literatura, pretendem estabelecer a fronteira entre o que é arte e o que não é, entre a arte “burguesa” e a arte “intelectual”, entre a arte “tradicional” e a arte de “vanguarda” (Bourdieu, 1996, p. 187).

Bourdieu (Ibidem, p. 190) aponta que “as estruturas do campo de produção estão no princípio das categorias de percepção e de apreciação que estruturam a percepção e a apreciação das diferentes posições oferecidas pelo campo e seus produtos”. Deste

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modo, o que se classifica de arte pura e arte comercial são duas formas de produção cultural opostas, contudo, tal oposição é que as une, por ocuparem posições antagônicas em determinado campo. As lutas provenientes deste campo em que há definições antagonistas da produção artística e da identidade dos próprios artistas passam a contribuir para o que o autor chama de produção e reprodução da crença, Basta levantar a questão proibida para perceber que o artista que faz a obra é ele próprio feito, no seio do campo de produção, por todo o conjunto daqueles que contribuem para o “descobrir” e consagrar enquanto artista “conhecido” reconhecido – críticos, prefaciadores, marchands etc. Assim, por exemplo, o comerciante de arte (negociante de quadros, editor etc.) é inseparavelmente aquele que explora o trabalho do artista ao fazer comércio de seus produtos e aquele que, colocando-o no mercado de bens simbólicos, pela exposição, a publicação ou a encenação, assegura ao produto da fabricação artística uma consagração tanto mais importante quanto é ele próprio mais consagrado. Ele3 contribui pra fazer o valor do autor4 que defende apenas pelo fato de o levar à existência conhecida e reconhecida, de assegurar-lhe a publicação [...], oferecendo-lhe como garantia todo o capital simbólico que acumulou, e de o fazer entrar, assim, no ciclo da consagração que o introduz em companhias cada vez mais escolhidas e em lugares cada vez mais raros e requisitados (Bourdieu, 1996, p. 193). 5

Relacionar a noção do campo de poder nessa análise é reconhecer os efeitos exercidos por forças diferentes no campo específico da produção dos bens simbólicos, que se instituiu após um longo e lento período de autonomização. O campo literário, por sinal, ocupa uma posição dominada no interior do campo do poder, onde se desenrolam as relações de força entre agentes ou instituições - detentores de poderes ou de espécies de capital - que visam o capital que lhes garantirão a oportunidade de ocupar posições dominantes. Ao tratarmos de posicionamentos, há uma hierarquia estabelecida entre as diversas espécies de capital e entre seus detentores, e, por essa razão, de acordo com Bourdieu (1996), os campos de produção cultural ocupam uma posição dominada no centro do campo do poder. O campo literário é composto por agentes cujas posições são definidas com relação ao universo das tomadas de posição, o que reflete um campo de forças a agir, de maneiras diferenciadas, sobre todos os agentes que entram neste campo. As mudanças que ocorrem continuamente no campo são inerentes às posições antagônicas (consagrado/novato, dominado/dominante etc.), ou seja, são oriundas da própria estrutura do campo. Mesmo considerado autônomo, o campo literário é um campo conflituoso em seu interior, haja vista a oposição entre a arte pura e a arte comercial, questão que pode ser ilustrada através das rivalidades sob a forma de conflitos 3.  Se coubessem ao ofício do próprio escritor ou do pintor as tarefas ligadas à promoção de sua própria arte, certamente a representação que se tem dos artistas, que adotam uma postura inspirada e desinteressada economicamente, não seria a mesma. 4.  No contexto da identidade, cabe lembrar que no campo literário, especificamente o caso do escritor, observa-se uma profissão - ou não profissão, como diz Bourdieu (1996) - com rendimentos pífios, muitas vezes incapazes de garantir a sobrevivência do indivíduo, fato que o obriga a manter uma profissão secundária. 5.  Para o autor, questões que remontam à dúvida sobre quem tem o poder de consagrar, assim como a fé e a busca pela origem do criador, diluem-se em vão, uma vez que o princípio da eficácia dos atos de consagração reside no próprio campo.

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de definição em relação à identidade e legitimidade do escritor, isto ocorre quando os defensores de ambos os polos do campo de produção cultural pleiteiam a imposição de limites do campo que lhes favoreçam, tendo por objetivo o monopólio da legitimidade literária. É importante notar que assim como nos demais campos, no campo artístico e literário há a illusio6, uma lógica que determina a condição do funcionamento do jogo no qual ela é também, de forma parcial, o produto, ou seja, na luta para mobilizar e monopolizar a definição do modo de produção cultural legítimo verifica-se a contribuição contínua de tal ação para a reprodução da crença no jogo, assim, instaura-se a participação interessada nesse processo. No livro A Produção da Crença (2008), além da análise crítica dos processos de criação, circulação e consagração dos bens culturais, Bourdieu também discute a força da crença coletiva através dos mecanismos de dominação simbólica da moda7, especificamente no âmbito da alta costura. Os autores mostram como ocorre nesse campo uma violência até então desconhecida e invisível, que é a já citada violência simbólica. “As estratégias de comercialização da grife são a melhor demonstração do quanto é inútil procurar apenas na raridade do objeto simbólico, em sua unicidade, o princípio do valor deste objeto que, fundamentalmente, reside na raridade do produtor” (2008, p. 154). Para os pesquisadores, o poder mágico do criador é o capital de autoridade associado a uma posição que não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, isto é, se não for atrelado a uma pessoa e seu carisma, por meio de sua assinatura. Sobre a imposição da grife, os diferentes agentes desse campo agem para mobilizar a energia de transmutação simbólica, que por sua vez é imanente à totalidade do campo, isto é, “na própria estrutura do campo é que residem as condições de possibilidade da alquimia social e da transubstanciação que ele realiza” (Bourdieu, 2008, p. 162). A imposição da grife representa mais um caso exemplar de alquimia social, operação que sem alterar em nada a natureza do produto, modifica radicalmente sua qualidade social. Dessa maneira, vê-se que a criação se dá com o uso determinado das palavras, fato que ilustra que o aparelho de produção deve produzir não só o produto como a crença no valor do mesmo. Com a imposição de valor que é simbolizada pela grife é deflagrado um caso particular de todas as operações de transferência de capital simbólico, o que representa a forma acabada da violência simbólica. Portanto, no processo de consagração, observa-se que a assinatura de um artista corresponde a um ato mágico tal como é o efeito de grife, de acordo com Bourdieu (2008). O respaldo de tais ações se encontra na tradição e no universo dos celebrantes e crentes que conferem sentido e valor a citada tradição. De maneira geral, porém, os circuitos de produção e circulação material são inseparavelmente ciclos de consagração que, além disso, produzem legitimidade, isto é, objetos sagrados e, ao mesmo tempo, consumidores convertidos, dispostos a abordá-los como tais e pagar o preço, material e simbólico, necessário para deles de apropriarem. Os ciclos de consagração correspondem a lugares de uma circulação de moeda falsa 6.  Pode-se definir esse conceito também como uma crença que garante o interesse e o investimento dos agentes nos jogos sociais e simbólicos que produzem. 7.  “Situado em uma posição intermediária entre o campo artístico e o campo econômico, [...] o campo da moda revela certos mecanismos característicos de uma economia na qual os interesses só podem ser satisfeitos se forem dissimulados nas e pelas próprias estratégias que visam satisfazê-los” (Bourdieu, 2008, p. 159).

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nos quais se engendra a mais-valia simbólica. A dialética da distinção, para o autor, é o motor desta concorrência que não é senão a forma atenuada, contínua e interminável da luta de classes.

O CAMPO JORNALÍSTICO SOB A ÓTICA DE BOURDIEU Observando os modos de produção da televisão para compreender as estruturas do campo jornalístico, Bourdieu (1997) descreve o mundo dos jornalistas como um ambiente competitivo, conflituoso e, às vezes, hostil. Os produtos daí gerados são demasiadamente homogêneos e seu sucesso é atrelado quase que obrigatoriamente à legitimação do mercado, isto é, por meio de índices de audiência e sucesso de vendas, o que denota a imposição da lógica do comercial às produções culturais. Essa lógica pode ser encarada também como uma pressão por parte do campo econômico sobre o campo do jornalismo, entretanto, cabe lembrar que há uma série de forças internas que atuam nesse campo, forças essas que determinam aspectos importantes de seu funcionamento. Por sua vez, o campo do jornalismo exerce, enquanto estrutura, uma pressão sobre todos os outros campos. Em uma busca pelas razões e mecanismos das práticas jornalísticas, o autor interpõe em sua análise a noção de “campo jornalístico”, cujo universo é um “microcosmo que tem leis próprias e que é definido por sua posição no mundo global e pelas atrações e repulsões que sofre da parte dos outros microcosmos” (Bourdieu, 1997, p. 55). Um dos principais fatores que determinam a importância dos jornalistas e seu respectivo campo é o fato de que os mesmos detêm um monopólio real sobre os instrumentos de produção e de difusão em larga escala da informação. Como os outros campos, o campo do jornalismo tem como base um conjunto de pressupostos e crenças partilhadas e se mostra mais dependente das forças externas em comparação com os demais campos, como o da literatura, por depender diretamente de uma demanda. Submetido às imposições mercadológicas, os mecanismos do campo jornalístico exercem influência sobre os jornalistas e sobre os demais campos, influência essa que pode incidir sobre esses últimos através dos próprios jornalistas, ocasionando modificações nas relações de força presentes no interior dos diferentes campos8. Essa influência se estende aos campos de produção cultural essencialmente através da intervenção dos produtores culturais situados em um lugar incerto entre o campo jornalístico e os campos especializados O campo jornalístico impõe sobre os diferentes campos de produção cultural um conjunto de efeitos que estão ligados, em sua forma e sua eficácia, à sua estrutura própria, isto é, à distribuição dos diferentes jornais e jornalistas segundo sua autonomia com relação às forças externas, as do mercado dos leitores e as do mercado dos anunciantes (Bourdieu, 1997, p. 102).

As forças externas acima citadas fazem com que o jornalismo esteja permanentemente sujeito às avaliações diretas e indiretas por parte do mercado, incluindo aí, portanto, clientes, anunciantes e índices de audiência – esse último componente caracteriza um princípio de legitimidade que é a consagração do percentual de visibilidade 8.  Conforme Bourdieu (1997, p. 109), “a influência do campo jornalístico tende a reforçar em qualquer campo os agentes e as instituições situados a proximidade do polo mais sujeito ao efeito do número e do mercado”.

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na mídia9. Tais avaliações são pressões exercidas por intermédio do efeito de campo, o que pode ser visto na busca incessante do jornalista para obter o furo jornalístico, uma preocupação que ocorre basicamente entre os veículos e profissionais do campo jornalístico, sendo assim uma concorrência cujo resultado é indiferente ao público consumidor10. O autor explica que o campo jornalístico contribui para reforçar o “comercial” em detrimento do “puro” no âmago dos demais campos porque se organiza de maneira homóloga em relação aos mesmos, isto é, apresenta uma lógica específica, propriamente cultural. Pode-se afirmar, em princípio, que o jornalismo cultural participa do mecanismo de criação e reprodução de consensos relacionados à cultura e às obras e produtos nela existentes. A utilização intensiva por parte do jornalista cultural de escritores de renome e altas autoridades acadêmicas em entrevistas e debates é um ato de troca simbólica que envolve a notoriedade. Para Bourdieu (2007), esse agente do campo jornalístico pode contribuir para a difusão e até mesmo para a consagração das obras, o que depende da posição que esse profissional ocupa no campo, ou seja, sua legitimidade. É evidente que pesam também no processo de seleção e construção social da notícia os princípios próprios deste campo, observáveis no conjunto de critérios de noticiabilidade. Dessa forma, nas narrativas do jornalismo cultural pode-se verificar investidas da lógica mercadológica, assim como da influência dos agentes e instituições do campo de produção cultural. Por conseguir através da linguagem objetiva se aproximar do grande público, o jornalismo cultural se torna um espaço interessante para produtores e comerciantes de bens simbólicos que almejam a visibilidade proporcionada pela mídia. Sendo um mecanismo de divulgação notório e consideravelmente influente para o sucesso de um bem simbólico, o jornalismo cultural adquire destaque nesta esfera cultural, pois pode operar o fortalecimento de uma tradição ou revelar novos rumos, valendo-se de julgamentos que legitimam ou não determinadas obras e artistas. Tal processo o posiciona como intermediário na consagração de agentes e instituições. Assim como no campo jornalístico, nota-se que é relativa a autonomia que acompanha a própria constituição do campo cultural enquanto tal, pois se constata que a mesma revela-se parcial, já que suas demandas éticas e estéticas passaram a estar vinculadas às leis do mercado. É válido salientar que o jornalismo cultural está situado no interior do campo da difusão e que este, por sua vez, mantém relação direta com as instâncias de reprodução e de consagração. Por isso, salientamos que interessa ao propósito deste artigo refletir sobre o funcionamento das relações constitutivas do campo da difusão, pois é no interior deste que atuam os agentes de difusão, como os jornalistas, os críticos e os editores.

OS SUPLEMENTOS LITERÁRIOS Na recente história da imprensa do Brasil, os suplementos literários apresentam transformações em seu conteúdo e formato. Os primórdios dessa trajetória remontam 9.  No campo literário, esse efeito de índice é constatado na utilização da lista de best-sellers. 10.  Outro efeito de campo concernente à concorrência diz respeito ao ato de vigilância realizado pelos jornalistas em direção aos seus concorrentes com a finalidade de impedir um “furo”, o que ocasiona, na maioria das vezes, a semelhança dos conteúdos veiculados pela imprensa.

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ao ano de 1838, com o suplemento Folhetim, do Jornal do Commercio, cuja linguagem era próxima da literária, tendo capítulos de livros transcritos em suas edições, de acordo com Isabel Travancas (2001). Em sua tese O livro no jornal: os suplementos literários dos jornais franceses e brasileiros nos anos 90, a autora diz que é a partir da década de 1950 que os grandes jornais lançam seus primeiros suplementos literários, que não perduraram muito, por serem considerados caros e desnecessários por essas empresas jornalísticas. Entretanto, os suplementos se mostraram como “uma alternativa importante criada pelos jornais para que o escritor e suas obras não abandonassem definitivamente as páginas da imprensa” (Ibidem, p. 43). Na citada pesquisa, entre outras percepções, está o fato de que os suplementos mantêm uma preocupação com o equilíbrio em relação aos livros e editoras noticiados, não se concentrando apenas em alguns. No caso dos suplementos brasileiros analisados, Mais! e Idéias, a autora afirma que ambos demonstram a intenção de igualar nesse equilíbrio as editoras dos dois maiores centros editoriais do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Situando o lugar do escritor no cenário literário contemporâneo, a autora analisa que “hoje estamos vivendo sob o poder dos meios de comunicação de massa e os escritores, como outras categorias, têm consciência da importância da divulgação de suas obras e se transformaram em exibidores de si e de seus textos” (Travancas, 2001, p. 82). A pesquisadora emenda, citando Debray, que passa a ser visível atualmente a influência e o papel determinante da mídia na produção e seleção das obras literárias. É relevante destacar a análise que a autora faz sobre a problemática dos “cânones”, ressalvando que a classificação em torno da literatura é algo complexo e polêmico. É como se existisse uma grande enciclopédia literária sendo construída pela elite intelectual, que indica o que deve ser selecionado e o que deve ser excluído, apontando o que deve ser lido e permanecer para a posteridade. Muitas vezes os meios de comunicação reforçam estas escolhas, apresentando e reapresentando estas obras para o consumidor, estimulando-o a gostar do já conhecido e do já visto (Travancas, 2001, p. 85).

Assim, pensar a questão dos cânones é refletir sobre a própria criação dos suplementos literários. A autora identifica a lógica do mercado no universo dos suplementos literários através dos prêmios literários e das feiras e bienais. Sobre os prêmios, mais valorizados na França do que no Brasil, a pesquisadora diz haver um processo – um lobby – por parte das editoras para se conquistar um prêmio, algo eticamente discutível. Já os eventos do mercado editorial - feiras e bienais - sempre mereceram capa ou edições especiais por parte dos cadernos literários, que aproveitam a ocasião propícia para criar conteúdos relacionados a este ambiente. Além de prestarem o chamado “serviço” em relação a esses eventos (informações gerais sobre cronogramas, como chegar, etc.), os jornais brasileiros costumam apresentar uma cobertura quantitativa a respeito dos lançamentos, vendas, público, entre outros. Em suas constatações, a pesquisadora salienta que os quatro suplementos – brasileiros e franceses – analisados em sua pesquisa apresentam perspectivas e diretrizes semelhantes. Ressaltando a importância do papel dos suplementos como estimulador da publicação literária no início do século XIX e durante o século seguinte, a autora aponta que ambos os países modificaram profundamente o perfil de seus suplementos, que passaram a ser uma representação do mercado editorial.

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PROSA & VERSO: O MERCADO EDITORIAL E A PRODUÇÃO NOTICIOSA Na pesquisa Jornalismo cultural: os valores-notícia do caderno Prosa & Verso, desenvolvida e apresentada por este autor no Mestrado em Comunicação da UNESP em 2011, verificou-se que o suplemento literário citou diretamente em suas 52 reportagens de capa durante o ano de 2008, aproximadamente: 32 livros de ficção e 18 de não ficção, sendo 30 nacionais e 20 estrangeiros. Destes, 37 eram lançamentos e 13 reedições. Deste total, cerca de 40 títulos eram de editoras consagradas no mercado editorial. Entre as 52 edições do caderno carioca, 15 foram dedicadas a outras questões (mercado editorial, universo literário e entrevistas), ou seja, aproximadamente 30% das capas referentes ao ano de 2008 não estão vinculadas ao lançamento ou reedições de obras. Em uma visão percentual dos dados, pode-se dizer que dos livros citados nas reportagens de capa do suplemento literário: 64% são livros de ficção; 82% dos títulos são de editoras consagradas no mercado editorial; 60% são livros nacionais. O suplemento direciona suas matérias para a classe intelectual e não para a massa, isto é, o grande público, questão compreensível quando se trata de jornalismo especializado. Isso pode ser verificado também pela não contemplação de livros considerados best-sellers em tais edições analisadas. Por um lado, tal indicação permite constatar que se o mercado cumpre seu papel de consagrador, por meio de listas e índices de vendas, em outra via temos a exclusão de grande parte da supracitada literatura para observar o papel “canonizador” do suplemento, que pela cobertura de obras de autores clássicos e pretendentes (obviamente autores com potencial de vanguarda) define o que merece atenção do público quando o assunto é literatura, especialmente os romances, já que a poesia obtém espaço ínfimo na cobertura jornalística deste caderno semanal. Impor ao mercado, em determinado momento, um novo produtor, um novo produto e um novo sistema de preferências, é fazer deslizar para o passado o conjunto dos produtores, dos produtos e dos sistemas de preferências hierarquizados sob a relação do grau de legitimidade adquirida (Bourdieu, 2008, p. 92).

Esta citação nos faz pensar que o suplemento analisado vai à contramão deste pensamento, visto que privilegia a cobertura dos clássicos e consagrados livros e autores, não favorecendo e não fomentando, portanto, o momento atual da ficção brasileira. Talvez pelo ano repleto de efemérides, percebe-se uma cobertura voltada para reedições de obras de grandes autores; a abordagem de determinado assunto (dilemas da China; memórias de 1968, etc.) valendo-se de mais de uma obra para contextualizar a pauta (o que pode ocorrer ao contrário); percebe-se também, atendo-se ao conteúdo das reportagens de capa, que lançamentos de romances brasileiros ganham pouco espaço nesse período. No primeiro semestre, por exemplo, os romances de novos autores tiveram espaço apenas com João Gilberto Noll, na última edição, por outro lado, a não ficção brasileira é recorrente para a contextualização de temas aleatórios, sem contar as dez capas destinadas a cobertura de questões pertinentes ao universo literário e ao mercado editorial. De todo o material analisado, editoras como Bem-te-Vi, Odisséia, Casa da Palavra e LGE são as poucas editoras “pretendentes” que ganharam espaço, fato que certamente ocorre em função dos biografados, ou seja, no caso da LGE vê-se uma biografia de Guimarães Rosa e, do outro lado, a biografia

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de Nelson Rodrigues, duas figuras consagradas. Como bem diz Bourdieu (2008, p. 91), “além de dominarem o campo de produção, os autores consagrados dominam também o mercado”.

CONCLUSÕES Com a análise das capas do caderno Prosa & Verso, um produto de múltiplas negociações, verificou-se que tais reportagens são um aliado das instituições legitimadas e as fontes provêm sobretudo da estrutura do poder estabelecido, o que possibilita afirmar que as notícias tendem a apoiar o status quo. Essas fontes devem possuir recursos e mecanismos para impor seus interesses e assuntos na agenda jornalística, o que representa uma luta simbólica em torno do processo de significação. O agente do campo jornalístico, conforme Bourdieu (2007), pode contribuir para a difusão e até mesmo para a consagração das obras, o que depende da posição que esse profissional ocupa no campo, ou seja, sua legitimidade. Dessa forma, nas narrativas do jornalismo cultural pode-se verificar investidas da lógica mercadológica, assim como a influência dos agentes e instituições do campo de produção cultural, neste caso, as editoras. Por conseguir através da linguagem objetiva se aproximar do grande público, o jornalismo cultural se torna um espaço interessante para produtores e comerciantes de bens simbólicos que almejam a visibilidade proporcionada pela mídia. Sendo um mecanismo de divulgação notório e consideravelmente influente para o sucesso de um bem simbólico, o suplemento literário adquire destaque na esfera cultural, pois pode operar o fortalecimento de uma tradição ou revelar novos rumos, valendo-se de julgamentos que legitimam ou não determinadas obras e artistas, sendo este um processo que o posiciona como intermediário na consagração de agentes e instituições. Vemos que em sua teoria do processo social, Bourdieu esclarece que o poder não resulta somente da apropriação da riqueza material e cultural, mas da conversão do mesmo em capital social e simbólico, o que desvela uma forma oculta de outras formas de poder, responsável pela manutenção da ordem, tal o caso da mídia. Assim, a produção cultural vista no mercado dos bens simbólicos é resultado de um amplo empreendimento de alquimia social, que compreende todos os atos de consagração e legitimação. Como toda mercadoria inserida no sistema capitalista, a notícia não escapa da necessidade de possuir valor de troca. O jornalismo cultural e os suplementos literários seguem essa mesma regra, uma vez que a cultura também tem sua própria economia. Sendo tais reportagens uma representação da realidade social, infere-se aqui que a partir do momento em que tal teoria concebe que o jornalismo e seus profissionais influenciam sobre o que as pessoas pensam e como elas pensam, é possível relacionar tal lógica com o jornalismo cultural praticado pelos suplementos literários, ou seja, tais veículos de comunicação especializados, especificamente o caderno Prosa & Verso, têm o poder de influenciar sobre qual literatura deve ser “consumida” e, também, sobre os eventos do mercado editorial que devem ser prestigiados, uma vez que nesta construção da realidade, conforme Berger e Luckmann (1985), a comunicação social contribui para criar uma espécie de patamar mínimo de entendimento comum, compartilhado, da realidade social. Ou seja, a notícia está permanentemente definindo e redefinindo, constituindo e reconstituindo fenômenos sociais.

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REFERÊNCIAS Berger, P. L., & Luckmann, T. (1985). A construção social da realidade. Petrópolis, RJ: Vozes. Bourdieu, Pierre. (2008). A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre, RS: Zouk. _______. (1996). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, SP: Companhia das Letras. _______. (1997). Sobre a televisão. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.. _______. (2007). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, SP: Perspectiva. Travancas, I. O livro no jornal: os suplementos literários dos jornais franceses e brasileiros nos anos 90. Cotia, RJ: Ateliê Editorial, 2001.

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A diversão pela forma: perspectivas teóricas e práticas sobre o jornalismo diversional The amusement by form: theoretical and practical perspectives about diversional journalism Francisco

de

Assis1

Resumo: Síntese de nossa tese de doutoramento, o trabalho discute a possibilidade de relacionar jornalismo e diversão por meio da forma conferida a uma classe específica de matérias que a imprensa faz circular. Em termos mais precisos, é no formato por nós denominado reportagem de interesse humano, subordinado ao gênero diversional, nos termos originalmente propostos por José Marques de Melo, que se apresenta esse encontro entre duas esferas aparentemente distintas. Embasados em revisão bibliográfica e em pesquisa empírica – que considerou a abordagem junto a nove jornalistas brasileiros, notórios cultivadores dessa prática –, demonstramos que o cruzamento da informação de atualidade com o entretenimento não só é possível como também é confirmado no dizer desses profissionais, quando se põem a refletir sobre seu próprio desempenho.

Palavras-Chave: Teoria do jornalismo. Gêneros jornalísticos. Jornalismo diversional. Prática jornalística. Forma jornalística.

Abstract: Synthesis of our thesis for the post-graduation course, this article discusses the possibility of relating journalism and amusement by means of the form given to a specific class of features that the press puts into circulation. In more precise terms, it is in the format we call human interest report, subordinated to the diversional genre, in the terms originally proposed by José Marques de Melo, that such relation between two spheres apparently different is present. Based on bibliographical review and empirical investigation – that considered the approach from the point of view of nine Brazilian journalists, well-known supporters of that practice – we demonstrate that crossing information on updated facts with entertainment not only it is possible but also it is sustained by the professionals interviewed, when they were asked to think about their own performance.

Keywords: Journalism theory. Journalitic genres. Diversional journalism. Journalistic practice. Journalistic form.

1.  Doutor em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Pesquisador vinculado ao grupo de pesquisa Jornalismo, Mercado de Trabalho e Novas Linguagens, baseado no Centro Universitário Fiam-Faam. e-mail: [email protected]

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EXPLICAÇÕES PRELIMINARES EMA EXPLORADO em nosso doutoramento (Assis, 2014), jornalismo diversional con-

T

siste em nomenclatura que José Marques de Melo (2009a, p. 36) atribui a uma das classes textuais regularmente praticadas por jornalistas brasileiros2. Em termos sucintos, refere-se a matérias agradáveis, redigidas com recursos redacionais típicos da literatura e distanciadas do relato puro e simples que predomina no noticiário informativo3. O termo “diversional” consta, pois, em taxionomia elaborada pelo referido autor a respeito dos gêneros jornalísticos. Trata-se de neologismo, sem palavra correlata em outro idioma, e que, de fato, se remete transversalmente à ideia de diversão. Ideia por vezes incompreendida, a bem da verdade, porque não raramente confunde-se conteúdo com forma, como veremos a seguir. Pautando-nos, então, por um quadro teórico alinhado à proposta classificatória de Marques de Melo, de ordem funcionalista (reconhecendo de que o jornalismo cumpre funções variadas no meio social), buscamos também ouvir, por meio de entrevistas, o que nove renomados jornalistas brasileiros, escolhidos por serem notáveis cultivadores do gênero, percebem a respeito de seu trabalho. A análise, portanto, recai no cruzamento entre a base teórica e o relato sobre a prática do que chamamos de jornalismo diversional.

O JORNALISMO E SUA FORMA: A QUESTÃO DOS GÊNEROS Este tópico versa, em linhas gerais, sobre o horizonte de fundo do qual brotam a questão dos gêneros e, consequentemente, a discussão aqui proposta: a forma do jornalismo. Trata-se de uma particularidade pouco destacada em pesquisas da área, as quais buscam mais evidenciar os assuntos pautados pela mídia e os discursos dela provenientes. No tangente ao caso particular que nos importa, observamos um grande número de estudos que relacionam informação de atualidade e entretenimento pela perspectiva do conteúdo, isto é, o jornalismo que se pauta pelo divertimento ou por possibilidades de diversão. Nós mesmos voltamos nossa pesquisa de mestrado ao “jornalismo de variedades”, especialidade focada “na informação e na orientação a respeito das opções de lazer” (Assis, 2009, p. 233). Ocorre, porém, que conteúdo (o teor) se difere de forma (o exterior), ainda que sejam apresentados sempre juntos – ou seja, não há forma sem conteúdo e tampouco o inverso (Marques de Melo, 2009b, p. 19). Mas ambos nem sempre têm o mesmo atributo. Explicamos melhor: o gênero a que nos dedicamos no doutorado diverte por meio de formatos “que mimetizam os gêneros ficcionais”, embora “permaneçam ancorados na realidade” – para usar a definição de Marques de Melo (2010b, p. 6) –, e que, exatamente por assim ser, se configuram pela soma de dois fatores: 1) a materialidade, isto é, a forma concreta, com certos caracteres essenciais, propiciada por 2) rituais específicos que condicionam os fazeres responsáveis pela constituição das matérias. Ou, se quisermos recorrer a outro referencial teórico, podemos indicar que se tratam dos fatores “estilísticos” e “orgânicos” 2.  Na classificação proposta por Marques de Melo (2009a, p. 36), é reconhecida a vigência de cinco gêneros na imprensa brasileira: informativo, opinativo, interpretativo, diversional e utilitário (ver Quadro 1, adiante). 3.  Corresponde, ao menos em partes, ao que mais comumente chamam de “jornalismo literário”, o que, a nosso ver, consiste em equívoco, uma vez que os conceitos relacionados ao referido termo o posicionam no plano dos recursos narrativos. Por isso mesmo, compreendemos que jornalismo literário consiste no arsenal técnico de que se valem os jornalistas para dar corpo ao gênero diversional (Assis, 2014, p. 149).

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– nessa ordem – apontados por Mikhail Bakhtin (1986, p. 60, tradução nossa). No entanto, seu conteúdo – isto é, os temas destacados, os assuntos focalizados, os casos trazidos à tona, os personagens descritos, dentre outros elementos – nem sempre está ligado ao que podemos entender como divertido. E tampouco tem a pretensão, a obrigação ou a expectativa de sê-lo. Muitas vezes, consiste em dramas humanos, assassinatos, casos de tortura, histórias de pessoas já falecidas, e assim por diante. A finalidade de diversão, por isso mesmo, se cumpre e se estabelece no relato com requintes literários. Quando tratamos do jornalismo diversional, estamos, por essa razão, nos reportando à forma que se mostra capaz de divertir4, e não a conteúdos que versem sobre diversão, entretenimento, lazer ou similares, apesar de eles poderem ser evocados em muitos casos. Na perspectiva funcionalista que assumimos como fundamento e na qual nos apoiamos, são os contornos estabelecidos em consonância com certa função que configuram os gêneros jornalísticos. Marques de Melo (2005, p. 129), inclusive, afirma, categoricamente: “o gênero jornalístico não se define pelo conteúdo, mas pela forma de expressão”. Essas ideias bebem da fonte teórica dos gêneros midiáticos, articulada por Denis McQuail (2003, p. 336), que os considera “um mecanismo prático para ajudar qualquer meio de massas a produzir, de modo consistente e eficiente, e a relacionar a sua produção com as expectativas das suas audiências”. O gênero, de acordo com o autor, deve atender a quatro características: 1) identidade coletiva, capaz de ser reconhecida por produtores e receptores; 2) relação dessa identidade com finalidade (informação, entretenimento ou correlata), formato (aspectos que o configuram, como estrutura, linguagem) e significado (“referência à realidade”); 3) permanência dessa identidade, estabelecida consensualmente através dos tempos; e 4) uma estrutura narrativa e/ou um ordenamento sequencial previsíveis, que se moldem a padrões estabelecidos. Portanto, um gênero que tem a diversão como propriedade se configura pela combinação de uma finalidade específica (divertir) com uma estrutura narrativa (que adota recursos da literatura em sua composição), reconhecida pelos agentes sociais que atuam no processo jornalístico (produtores e receptores) e que se mantém “relativamente estável” (Bakhtin, 1986, p. 60, tradução nossa) ao longo do tempo e nos espaços em que circula. Além disso, devemos levar em conta a “referência à realidade” – que McQuail indica como substância dos gêneros –, a qual liga os anseios da sociedade às funções do jornalismo. Lorenzo Gomis (2008, p. 107-108, tradução nossa) não deixa de notar que os gêneros refletem a evolução do jornalismo e surgem em paralelo à necessidade de a imprensa oferecer conteúdos diversificados, de naturezas variadas e/ou com funções distintas, acompanhando as expectativas sociais. Além disso, devemos atentar ao fato de que, mesmo havendo uma relação direta entre os gêneros e as funções desempenhadas pelo jornalismo – significando que eles vão surgindo conforme o avanço do campo –, sua identificação e/ou categorização esbarra numa série de impasses, “sendo possível adotar diversos critérios” e, inclusive, “reduzir didaticamente essa variedade a alguns poucos, de sentido relevante” (Gomis, 2008, p. 110, tradução nossa). 4.  Esse problema se revela até quando versamos o termo para outras línguas. Em espanhol, como exemplo, a expressão “periodismo diversional”, pela qual optamos (Assis, 2013), pode soar estranha aos hermanos que desconhecem a classificação. Porém, se usássemos a fórmula “periodismo de diversión”, distorceríamos o conceito, uma vez que não estamos discutindo um jornalismo sobre a diversão, mas um jornalismo que diverte.

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Em geral, o que se costuma rotular como gêneros jornalísticos são as composições elaboradas por jornalistas ou por colaboradores (notícia, reportagem, artigo, editorial, etc.), sempre submetidas a finalidades/funções, independentemente do nome que se atribua a esses propósitos. Os próprios manuais de redação revelam a tendência de reduzir o termo aos “textos que mais comumente são publicados em seus respectivos jornais, limitando discussões e/ou possíveis classificações” (Assis, 2011, p. 14). Desse modo, aparece como o que anota Fernando Cascais (2001, p. 98): um “conceito operacional que designa as diferentes formas que o texto jornalístico pode revestir e que correspondem a diferentes rotinas de produção informativa”, sendo “opções de hierarquia de uma redacção”, dependentes de vários fatores (organizacionais, editoriais, de recursos humanos e técnicos, bem como da natureza do acontecimento pautado). Consistem, nessa perspectiva e conforme Juan Gargurevich (2004, p. 9, tradução nossa), em “formas que o jornalista busca para se expressar, devendo fazê-lo de modo diferente, segundo a circunstância da notícia” – aqui, entendida em sentido lato –, “seu interesse e, sobretudo, o objetivo de sua publicação”. Apesar de a ideia de “forma”, mencionada por Gargurevich, nos ser cara – como previamente acenamos –, e de entendermos que as rotinas têm acompanhado o cumprimento das variadas funções do jornalismo5, a concepção de gênero com que trabalhamos é diferente dessas que aqui foram descritas, porque ambiciona não ser reducionista ou excessivamente operacional. Para posicionar melhor nosso marco conceitual, vejamos o que define José Marques de Melo (2009a, p. 35): O campo da comunicação é constituído por conjuntos processuais, entre eles a comunicação massiva, organizada em modalidades significativas, inclusive a comunicação periodística (jornal/revista). Esta é estruturada, por sua vez, em categorias funcionais, como é o caso do jornalismo, cujas unidades de mensagem se agrupam em classes, mais conhecidas como gêneros, extensão que se divide em outras, denominadas formatos, os quais, em relação à primeira, são desdobrados em espécies, chamadas tipos.

Nesse esboço, os gêneros são, primeiramente, tidos como intrínsecos ao universo da comunicação social – assimilando, consequentemente, as suas propriedades – e, depois, como grupos de mensagens jornalísticas diferenciados por seus intentos. Para nós, portanto, os gêneros não são tipos de textos que se determinam pela estrutura composicional das palavras ou pelos traços de estilo; eles consistem, acima de tudo, em agrupamentos que refletem múltiplos desempenhos do campo profissional, atendendo a demandas específicas e se articulando conforme as exigências dos espaços em que são suscitados. Assim sendo, a classificação tomada como parâmetro não considera a existência de, por exemplo, “gêneros informativos”, mas, sim, do “gênero informativo”, que abriga “formatos informativos”. E isso se dá, naturalmente, com todos os outros. O Quadro 1 ilustra melhor: 5.  Uma das críticas de que são alvo as classificações dos gêneros diz respeito justamente à “dificuldade de os delimitar” (Cascais, 2001, p. 98). Ainda que, ao longo do tempo, as discussões tenham enfatizado a relação estreita entre os materiais jornalísticos e as funções que eles desempenham, aceitamos que as linhas divisórias servem apenas como orientação, por nem sempre ser possível separá-las em sentido stricto. Ou seja, em muitos casos, o exercício classificatório aponta a finalidade principal, sem deixar de reconhecer que outras estão imbuídas nas matérias (ou no conjunto delas) que foram observadas.

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Quadro 1. Gêneros e formatos classificados por José Marques de Melo Gênero

Formatos

Informativo

Nota, Notícia, Reportagem, Entrevista

Opinativo

Editorial, Comentário, Artigo, Resenha, Coluna, Crônica, Caricatura, Carta

Interpretativo

Análise, Dossiê, Perfil, Enquete, Cronologia

Diversional

História de interesse humano, História colorida

Utilitário

Indicador, Cotação, Roteiro, Serviço Fonte: Marques de Melo (2009a, p. 36).

Em termos mais específicos, compreendemos gênero jornalístico como “a classe de unidades da comunicação massiva periódica que agrupa diferentes formas e respectivas espécies de transmissão e de recuperação oportuna de informações da atualidade, por meio de suportes mecânicos ou eletrônicos” (Marques de Melo e Assis, 2013, p. 30). Falta, então, esclarecer o que são as “unidades de mensagem” que “se agrupam em classes”, “denominadas formatos”, às quais se refere Marques de Melo (2009a, p. 35). Seu conceito, bem como sua subordinação a um conjunto maior, foi incorporado, pelo autor que nos ampara, em conformidade com a terminologia comum aos estudos midiáticos (McQuail, 2003, p. 339). Contudo, tratando do jornalismo, especificamente, “formato” diz respeito às várias disposições textuais – expressões concretas dessa atividade profissional – que repórteres e cooperadores empreendem. No dicionário da língua portuguesa, a palavra formato é descrita como sinônimo de “feitio, forma” (Ferreira, 1986, p. 800). Corresponde, logo, à “dimensão objetiva” dos gêneros jornalísticos, referida por Josep Maria Casasús e Luis Núñez Ladevéze (1991, p. 87, tradução nossa), a qual nos “nos conduz à apreciação de modelos estruturais e estilísticos cujos conjuntos prototípicos recebem diversas denominações”, como notícia, crônica, artigo, reportagem, etc., como se observa no Quadro 1. Em decorrência, formato jornalístico “é o feitio de construção da informação transmitida pela mídia, por meio do qual a mensagem da atualidade preenche funções sociais legitimadas pela conjuntura histórica em cada sociedade nacional” (Marques de Melo e Assis, 2013, p. 32). Os formatos são definidos, por Denis McQuail (2003, p. 340), como “sub-rotinas para lidar com temas específicos dentro de um gênero”, sendo dependentes das circunstâncias em que há necessidade de se fazer uso deles. Isto é, o formato não tem finalidade própria, isolada, mas, sim, acompanha aquela a que o gênero ao qual está subordinado pressupõe. Um exemplo: o formato “roteiro” é adotado quando se espera o uso do “gênero utilitário”, o qual se presta ao serviço (a ser útil), por meio de pequenas doses de informação, organizadas de modo a auxiliar os cidadãos em tomadas de decisão cotidianas. A lógica parece-nos clara. Os formatos materializam o papel que o gênero deve cumprir, tendo suas características definidas não apenas pela superfície do texto (a materialidade, os elementos linguísticos), como, principalmente, pelas lógicas internas de produção. E embora “formato” seja palavra encontrada mais no vocabulário dos profissionais de TV (Aronchi de Souza, 2004, p. 45) do que no ambiente das redações, esse termo nos ajuda a entender os limites e as possibilidades das composições jornalísticas.

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ESBOÇO TEÓRICO SOBRE O JORNALISMO DIVERSIONAL Retomando colocações precedentes, sublinhamos que o conceito de “gênero diversional” projeta a diversão no campo do jornalismo, reconhecendo-a como função legítima e assumindo que há produção e consumo de material jornalístico que diverte. José Marques de Melo (2006b) apresenta-o como aquele que se robustece como “contingência do jornalismo no sentido de sobreviver num ambiente midiático dominado pelo entretenimento”. Obviamente, o divertimento – ou entretenimento – a que estamos nos referindo não é exatamente o mesmo proporcionado por espaços humorísticos vigentes na imprensa, como seções de piadas, histórias em quadrinhos, entre outras formas que não têm a obrigação de abordar assuntos, quaisquer sejam, de maneira verossímil. Também não é o mesmo entretenimento oferecido por outras produções midiáticas, de natureza ficcional. Desse modo, condescender que o jornalismo proporciona certa dose de diversão a seu público, por meio de conteúdo interessante, agradável de ler – ou de assistir/ouvir, já que essa prática não é restrita aos suportes impressos –, é acatar a vigência de uma classe de mensagens independente e que se diferencia pelas condições que pressupõe e que possibilitam a efetivação desse propósito. Entretanto, nem sempre se pensou assim. Em sua tese de livre-docência, defendida em 1983, na qual propôs sua primeira classificação dos gêneros, Marques de Melo (2003, p. 64) chegou a desconsiderar essa autonomia, alegando que a diversão não passava de “mero recurso narrativo que busca estreitar os laços entre a instituição jornalística e o seu público e não transcende a descrição da realidade, apesar das formas que sugerem sua dimensão imaginária”. A justificativa foi não ter encontrado “ancoragem” dessa tendência “na práxis jornalística observada no país” naquela conjuntura, ainda rescaldo da repressão da ditadura militar (1964-1985), que cerceou a atuação dos jornalistas brasileiros. O que se expôs naquele momento ainda gera dúvidas, especialmente motivadas por leituras desatentas. Embora sem categorizar o jornalismo diversional – por contatar que a imprensa diária brasileira não se dedicava a essa possibilidade –, o autor não deixa de reconhecê-lo no plano conceitual. Aceitando a analogia feita por Mário Erbolato (2006, p. 43) entre essa nomenclatura e o “novo jornalismo” – ou new journalism6 –, ele explicou, na mesma tese, tratar-se “de narrativa jornalística que exige sensibilidade, envolvimento afetivo e profunda observação dos protagonistas das notícias e dos ambientes em que atuam”: A natureza diversional desse novo tipo de jornalismo está justamente no resgate das formas literárias de expressão que, em nome da objetividade, do distanciamento pessoal do jornalista, enfim da padronização da informação de atualidades dentro da indústria cultural, foram relegadas a segundo plano, quando não completamente abandonadas (Marques de Melo, 2003, p. 33-34).

6.  Demarcando uma revolução – ou uma evolução, ao menos – na imprensa dos Estados Unidos, o new journalism teve seu início na década de 1960 (embora haja algumas controvérsias quanto ao seu provável começo). Não chegou a ser um movimento formal, pois os repórteres não o promoveram de maneira organizada; pode-se dizer que agiam mais de maneira intuitiva (Wolfe, 2005, p. 27-28). Distinguiu-se pelo “estilo de reportagem inovador” – conquanto questionável –, “que veio com a intenção declarada de reformar o jornalismo e que, ao se espalhar pelo mundo, conseguiu abalar o cânone das rotinas produtivas e da estilística em muitas redações” (Castro, 2010, p. 47).

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O desacerto entre a explicação teórica e a proposta classificatória deixou, por muito tempo, a legitimidade do gênero em suspenso. Hoje, porém, após reexaminar essa dinâmica, o autor aponta, com precisão, que, na história do jornalismo, o século 20 figura “como um caldeirão de novos gêneros e formatos, reciclando os gêneros informativo e opinativo, e testemunhando o aparecimento de gêneros complementares”; entre eles, “embora denotando intensidade sazonal”, “aparece um segmento de natureza emotiva e hedonística, nutrido pela civilização do ócio, configurando o gênero diversional, cuja identidade vacila entre o mundo real e a narrativa imaginária” (Marques de Melo, 2010b, p. 2-3). É nesse panorama que se situa o gênero “complementar” e de caráter “emocional” aqui estudado. É complementar porque, hegemonicamente, o jornalismo permanece polarizado na informação e na opinião (Marques de Melo, 2010a, p. 92); logo, os demais agrupamentos, que surgiram ao longo do último século, ofereceram novas possibilidades ao que já era – continua sendo – de praxe no jornalismo. E emocional pelo fato de atender aos anseios de uma sociedade hedonista que espera encontrar em várias frentes – até mesmo no jornalismo – algo a lhe dar prazer (incluindo prazer estético) e que, pelo mesmo motivo, valoriza cada vez mais as emoções. De volta à questão privilegiada no tópico anterior, isto é, a da forma, é justo fazer um esclarecimento. Na conclusão alcançada em nossa tese, defendemos que, embora Marques de Melo (2006a; 2009a, p. 36) estabeleça dois formatos distintos para o gênero – história de interesse humano e história colorida, como se viu no Quadro 1 –, os elementos constituintes de ambos7 demonstram se fundir num só fazer, o que nos levou a determinar que o jornalismo diversional se manifesta em um formato básico, podendo ser desdobrado em variados tipos8, a depender das circunstâncias. A esse formato, chamamos reportagem de interesse humano. Por duas razões. Primeiro porque “reportagem” é o que os jornalistas revelam e afirmam, de fato, produzir, quando cultivam o gênero discutido. Depois, porque o “interesse humano” consiste no traço que confere identidade à forma específica dessa classe. Ao afirmar isso, não nos referimos apenas ao fato de as histórias narradas serem interessantes por seu teor (afinal, isso corresponde ao conteúdo); mas, também e principalmente, tratamos desse “interesse” como recurso expressivo capaz de convertê-las em relato apto a divertir, a mexer com as sensações daqueles que se puserem a contemplá-lo. 7.  Nos termos dados pelo autor, história de interesse humano é “narrativa que privilegia facetas particulares dos ‘agentes’ noticiosos. Recorrendo a artifícios literários, emergem dimensões inusitadas de protagonistas anônimos ou traços que humanizam os ‘olimpianos’. Apesar da apropriação de recursos ficcionais, os relatos devem primar pela verossimilhança sob o risco de perder a credibilidade”. Já a história colorida se apresenta em “relatos de natureza pictórica que valorizam tons e matizes na reconstituição dos cenários noticiosos. Trata-se de uma leitura impressionista, que penetra no âmago dos acontecimentos, identificando detalhes enriquecedores, capazes de iluminar a ação de agentes principais e secundários. Não obstante a presença do repórter no cenário noticioso, ele se comporta como um ‘observador distante’, enxergando detalhes não perceptíveis a olho nu” (Marques de Melo, 2006a). 8.  No esquema adotado por José Marques de Melo para situar os gêneros jornalísticos no universo da comunicação social, há, como já dissemos, o desdobramento desses grupos em formatos, os quais, por sua vez, se subdividem em tipos. Em texto que, com ele, produzimos a quatro mãos, assim registramos: “tipo jornalístico é o modelo assumido pela mensagem da atualidade com a finalidade de melhor preencher a função social que lhe corresponde na engrenagem midiática. [...] A espécie – ou seja, o tipo – varia de acordo com a necessidade de trabalhar um acontecimento de determinada maneira, mas também pode implicar numa decisão autoral ou institucional e, mesmo, seguir uma padronização exigida pelo suporte que a veicula” (Marques de Melo e Assis, 2013, p. 30).

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Bem antecedente à nossa defesa, há mais de meio século, Fraser Bond (1959, p. 7) já acenava para a dedicação da imprensa em suprir os leitores com materiais capazes de entretê-los, assegurando que “o jornal e a revista atraem o público que busca distração”, entre outras estratégias, justamente com “histórias de ‘interêsse humano’”. Bond não está sozinho em reconhecer esse mérito. Edwin Emery et al (1974, p. 58, grifo nosso) apontam que, nos Estados Unidos, ainda no término do século 19, os jornais se preocupavam em “entreter o leitor, além de informá-lo e instruí-lo”, com a publicação de “notícias ‘de interesse humano’”, “histórias cujo valor reside mais na habilidade de redação do que no conteúdo” e que “sempre tiveram ampla aceitação”. Protegendo a ideia de que os veículos de comunicação têm de “equilibrar” suas funções de “informar, instruir e divertir”, os autores acreditam que “a preocupação de fornecer entretenimento ao leitor de modo algum diminui o valor social do jornal”. Ao contrário, “não há razão para que notícias de importância econômica e social deixem de ser apresentadas de forma interessante, ao lado de outras matérias menos importantes, que apresentem maior atrativo”. O interesse humano, orienta Luiz Beltrão (1969, p. 72), pode ser despertado a partir de casos identificados em “todos os quadrantes da atividade humana”, em “todos os seres”, em “todos os domínios da inteligência e da sensibilidade”. Para transformá-los no “entretenimento” reclamado pelo “organismo social” – possibilitando a seus leitores “descansar das preocupações” –, o jornalista há de “colhê-los onde quer que se registrem”. Houve um tempo, provavelmente no início do século 20 – embora não seja devidamente sinalizado pelos autores – em que eram postas distinções entre “informação” e “interesse humano” (McQuail, 2003, p. 344), entre “notícia direta” e “destaques” – ou “features”, em inglês –, termo “genérico” que designava, nos EUA, os textos que “podiam ser redigidos quase como ditava a fantasia”. Tratava-se da “era da notícia sentimental e de expressão jornalística quase sem limite” (Hohenberg, 1962, p. 242). Contudo, ainda na primeira metade do mesmo século, esse contraste deixou de ser persistido, uma vez que a própria prática fazia separações. Em 1940, pesquisa realizada por Helen MacGill Hughes, discípula de Robert Park e integrante da Escola de Chigago, “examinou a relação entre as duas formas de conteúdo e concluiu que os jornais norte-americanos se tinham ‘transformado de uma forma mais ou menos sóbria de registro para uma forma de literatura popular’”, como nos conta McQuail (2003, p. 344). A equação, em seu modo de ver, é algo aparentemente simples: se a atividade jornalística deriva, em parte, “de tradições muito antigas de contar histórias”, os leitores do jornalismo “são, certamente, muitas vezes mais atraídos para o ‘interesse humano’ do que para ‘notícias’ sobre política, economia e sociedade”. A curiosidade e o encantamento despertados nos ouvintes dos contadores também mobilizam os receptores da imprensa. No “jornalismo moderno”, finaliza John Hohenberg (1962, p. 243), “o arco-íris do interêsse humano arqueia-se por todo o campo”: tanto nas revistas – ilustradas, semanais, mensais, de circulação geral – quanto nos jornais, que “transformaram o velho destaque jornalístico em trabalho eficaz, colorido e bem documentado, que destronou o seu desleixado e limitado antecessor”. Nessa contextura, o interesse humano se estabiliza como recurso expressivo, técnica adequada para a composição da forma dessa natureza.

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ECOS NA PRÁTICA O aspecto gerador de mais entraves nas discussões sobre o gênero diversional não está relacionado à sua estrutura ou às suas características, mas, sim, ao próprio termo que o nomeia, remetido que é à diversão. E isso se dá por duas divergências aparentes. A primeira, especialmente levantada no âmbito acadêmico, é uma dificuldade em compreender que diversão não necessariamente corresponde a algo engraçado, àquilo que promove o riso, ao jocoso ou ao deboche. O ato de divertir-se pode ou não ser estimulado pelo que é hilário. Além do mais, também nem sempre pressupõe a alienação que os frankfurtianos atribuíram à indústria cultural e aos seus feitos. Também se estabelece por meio de gratificação estética. Uma pessoa pode muito bem ter diversão em contato com histórias dramáticas, de sofrimento ou de superação. O teor não precisa ser espirituoso para tanto. Os filmes (ficcionais ou não) exploram essas particularidades. As telenovelas também. Os livros, igualmente. Sempre com a mesma finalidade, ou seja, a de divertir. Com o jornalismo seria diferente? É certo, em nosso modo de ver, que não. Inserida no ambiente midiático, essa atividade busca, como se observou, encontrar meios para disputar espaço, ainda que indiretamente, com outras ofertas feitas pelos media. A segunda divergência, surgida principalmente no mercado, diz respeito à diversão como caractere do jornalismo. Há um desconforto, entre os profissionais, em associar o que fazem ao entretenimento. Por isso mesmo, como antecipamos no princípio, entrevistamos, durante a elaboração de nossa tese, nove jornalistas tidos como cultivadores do gênero classificado por Marques de Melo, na intenção de compreender como percebem tal questão. Esses sujeitos, nomeadamente Audálio Dantas, Carlos Wagner, Consuelo Dieguez, Daniela Pinheiro, Eliane Brum, João Moreira Salles, José Hamilton Ribeiro, Ricardo Kotscho e Zuenir Ventura, foram escolhidos com base no cruzamento de critérios devidamente estabelecidos e justificados em nosso trabalho (Assis, 2014, p. 171-174). Nossos entrevistados notadamente se preocupam que outros interpretem equivocadamente essa aproximação, seja pensando que a função capital do jornalismo, a de informar, está sendo sufocada por essas práticas afeitas a pormenores, seja taxando suas produções como literatura ou algo nesse sentido. Reforçam, então, cada qual de uma maneira, que a feição por eles dada às matérias – a que denominamos “jornalismo diversional” – não se exime do compromisso com a informação, com a checagem, com a precisão e, principalmente, com a realidade. O que se busca não é ignorar as perguntas do lead, mas, sim, trabalhá-las de maneira mais atraente, adicionando-lhes elementos capazes de respondê-las e, de quebra, transformar o que se está contando em peça jornalística interessante, atraente, com estilo. De seus discursos, extraímos falas que confirmaram um esforço em escrever textos que não sejam “chatos”, uma expectativa em despertar sensações (fazer rir e chorar) com o que produzem, um equiparar de suas matérias a um “microlivro”, a compreensão de que atraem seus leitores justamente pela forma – e não necessariamente (ou nem sempre) pelo conteúdo que abordam – e, principalmente, a manifestação de quererem ser lidos e de fazer algo que agrade aos outros e, antes disso, a eles mesmos.

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Se, por um lado, poucos foram o que verbalizaram haver proximidade entre informação de atualidade e diversão naquilo que fazem, todos eles, por outro, reconheceram que suas matérias intentam, além da essência informativa, oferecer algo agradável aos leitores, para ser lido não na pressa com que se costuma acompanhar o noticiário, mas em momentos à parte da correria diária. Quando questionados sobre suas percepções a respeito do que possivelmente levaria as pessoas a terem apreço por essas matérias, não incomum surgiam respostas que sinalizavam, como motivos, o apreço pela forma, a procura por algo que fuja do padrão-comum – haja vista que os veículos (impressos, eletrônicos ou digitais) estão cada vez mais iguais uns aos outros – e o interesse por conhecer histórias interessantes, contadas de um jeito especial, humanizado. Complementarmente, sobressai-se uma busca do repórter por transformar o jornalismo em um produto com qualidade similar a uma boa obra ficcional. Durante as entrevistas que fizemos para a tese, os jornalistas chegaram a comparar seus trabalhos com elementos da teleficção, do mercado editorial, do cinema. O exercício de lidar com essas particularidades, sem sair do território da imprensa, é desafiador, confirmaram-nos. E essa percepção não é só deles. A constatação é universal, acreditamos. Por isso mesmo, os profissionais que se propõem a tal fazer – e o realizam, com visível talento – acabam se destacando entre os demais. Seu mérito é o de capturar elementos do mundo real capazes de sustentar narrativas que não só informem como também ofereçam uma gratificação a mais: uma estética que, tradicionalmente, é da literatura, mas que o jornalismo toma emprestado. A função de divertir – motivadora da classificação que adotamos – se confirma, então, na voz desses sujeitos, seja na dos que assumem haver uma busca por composições que informem e entretenham, seja na dos que dão indícios a permitir essa dedução. Fique claro, porém: o que eles fazem não é entretenimento. Tampouco é literatura. E muito menos ficção. É jornalismo, acima de tudo. Tem apuração, tem precisão. Mas a isso se somam temperos que possibilitam textos aprazíeis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Devemos enfatizar, por tudo o que se viu, que o cumprimento da função de divertir, subentendida pelo gênero diversional, não consiste apenas em definição acadêmica, sem vínculo com o mundo exterior. Argumentamos, baseados nas evidências, que não se trata somente de um olhar de fora. Os próprios jornalistas reconhecem seus trabalhos como tendo significado superior ao da informação, esbarrando na noção de entreter, mesmo tendo alguns reafirmado a ideia de que jornalismo e entretenimento não podem ser confundidos. Nós também pensamos que não deve haver essa confusão, mas isso não quer dizer que não haja influências, aproximações. Em outras palavras, o trabalho da imprensa incorpora, sem dúvida alguma, aspectos da outra esfera referida, de modo a acompanhar a movimentação cultural do tempo em que vivemos e a encontrar saídas para que os frutos de suas performances não se tornem maçantes. Reforce-se, porém, que, em hipótese alguma, é demérito propiciar diversão por meio da atividade jornalística. É, ao contrário, uma espécie de resistência à simplificação que os formatos informativos tendem a fazer com as questões a que se reportam.

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Resumo: A interiorização da economia brasileira e a política de descentralização das verbas publicitárias oficiais têm despertado maior interesse dos pesquisadores sobre a mídia regional ou local. Estudos acadêmicos costumavam se valer de levantamentos acerca da instância de recepção nos quais a realidade de regiões mais ricas e populosas era projetada como um retrato de toda a imprensa nacional. Com acesso à base de microdados, será apresentada uma leitura sobre os principais resultados da Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM) de 2014, publicada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Inédita por sua representatividade, a PBM revela os hábitos de consumo de mídias de 18.312 brasileiros. Para o presente estudo, optou-se por um recorte restrito de 16 jornais, sendo 3 de circulação nacional (Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo) e 13 de outras localidades. A maior contribuição dessa análise é evidenciar que há distinções significativas na forma como os leitores consomem mídias nos principais centros urbanos e fora deles. É cada vez mais claro que os veículos fora do eixo Rio-São Paulo formam um subsistema próprio dentro do grande sistema midiático do Brasil.

Palavras-Chave: Mídia regional. Jornalismo local. Imprensa nacional. PBM. Abstract: Economic growth in rural Brazil and the decentralization policy of official funds for propaganda have attracted more interest from researchers on regional or local media. Academic studies use surveys about the reception instance to project the reality of the richest and most populous regions as a reflection of the Brazilian press. With access to microdata base, a first reading on the main results of the Brazilian Media Research (PBM, in portuguese) 2014 will be presented. Published by the Department of Social Communication of the Presidency, PBM reveals the media consumption habits of 18,312 Brazilians, a representative sample of the population. For this article, we chose to analyze the response of readers that identify 16 newspapers, 3 national newspaper (Folha de S. Paulo, O Globo and O Estado de S. Paulo) and 13 from other locations, as its main media information. The contribution of this study is to show that there are large differences in the way readers consume media in major urban centers and elsewhere. It is increasingly evident that the vehicles outside Rio-São Paulo form a subsystem itself into the great media system in Brazil.

Keywords: Regional media. Local journalism. National press. PBM. 1.  Doutorando e mestre em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo, professor da Universidade Metodista de São Paulo. Email: [email protected].

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INTRODUÇÃO OS ESTUDOS que tratam das mídias, o público é considerado, na maioria das

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vezes, como constituinte da instância de recepção. Mas o termo “público” guarda em si tantos significados que é difícil caracterizá-lo de uma forma global ou uniforme. Pense no leitor, ouvinte ou telespectador que você é e tenha certeza de que qualquer outra pessoa terá uma percepção e uma reação diferentes do conteúdo noticioso que recebe dos meios de comunicação. Eis o desafio que a instância midiática enfrenta desde sempre. Pesquisas contratadas que tentam definir os perfis de leitores para os jornais impressos em função de classes sociais, renda, faixa etária, locais de residência, entre outras categorias, ajudam os órgãos de comunicação a formularem hipóteses a respeito dessa entidade chamada público. Mas empresas especializadas em estudos desse gênero são voltadas para o mercado, acabando por trabalhar com amostras significativas de cidades mais ricas e populosas e deixando de lado boa parte do resto do país. E esses resultados são publicados como se refletissem a “realidade” do comportamento do brasileiro. Menos de um terço dos brasileiros vivem em cidades cuja população supera os 500 mil habitantes, segundo dados do Censo2 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É algo esperado, uma vez que tais institutos são voltados para atender aos desejos dos clientes. Do ponto de vista acadêmico, as pesquisas científicas acabam seguindo essa tendência, havendo uma grande concentração de trabalhos sobre veículos de comunicação de circulação nacional, notadamente os jornais Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo. Muitas, inclusive, tomam como referência as pesquisas citadas acima. Em um caso e no outro, o risco é projetar cenários, formular teses e criar diagnósticos para todo o sistema midiático do Brasil a partir de perfis de leitores que dizem respeito apenas ao grupo de pessoas que consomem essas “grandes” mídias. Para preencher essa lacuna, a Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República publicou a Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM), cuja principal característica é a representatividade nacional de sua amostra. A primeira edição foi publicada em 2014 e a segunda neste ano. O presente artigo trabalha com a microbase de dados, fornecida para esta pesquisa pela Secom. Por meio dela, foi possível identificar diferenças e semelhanças entre o público de leitores da imprensa regional versus o dos jornais regionais e locais.

Contextualização do tema Charaudeau (2012) afirma que a instância de recepção é constituída de um conjunto impreciso de valores ético-sociais e afetivos-sociais, obrigando a instância midiática a apresentar informações que procure, na medida do possível, corresponder às expectativas de seu público (leitor, ouvinte ou telespectador). No caso dos jornais, as empresas de comunicação oferecem notícias aos seus leitores com a perspectiva de que eles as considerem úteis o suficiente para despertar o interesse e, posteriormente, ser 2.  Estatística da população brasileira, IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/ populacao/censo2010/indicadores_sociais_municipais/tabelas_pdf/tab1.pdf; acesso em: 6/3/2015.

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consumidas. O objetivo, não oculto, é o de rentabilizar seu produto da melhor forma possível. Neste sentido, ela (a instância midiática) precisa conhecer os comportamentos e as opiniões do público e para isso recorre a dois tipos de técnicas: as que permitem medir o sucesso de uma programação por meios eletrônicos, o que, na França, é chamado de ‘audimat’, e as que permitem observar os efeitos produzidos pela maneira de tratar tal ou qual programa, os chamados ‘estudos de impacto’. (CHARAUDEAU, 2012, p. 82)

O autor afirma que estudos baseados nas duas técnicas geram respostas que ainda são tão fragmentárias e pouco verificáveis que se pode dizer que ainda permanecem como “incógnitas”. Por essa razão, sempre que um especialista, consultor da comunicação ou mesmo profissionais das redações jornalísticas proferem o mantra “é preciso escutar seus leitores”, o mínimo que se espera deles é que compreendam o sentido da frase e fundamentem suas estratégias em estudos sérios que atendam a essa premissa. Ao se estudar a instância de recepção, é (ou seria) fundamental diferenciar com maior precisão as mídias (nacional e regional ou local) e seus diferentes públicos. Embora seja maioria e atinja um público superior, a mídia regional ou local é alvo de menor atenção dos estudos. Só a partir da segunda metade dos anos 1990, como demarcou Peruzzo (2005), os pesquisadores demonstraram maior interesse pela temática. E isso não é obra do acaso, mas consequência do desenvolvimento das comunicações no país, que acabou centralizando suas produções nos grandes centros urbanos. Pinto (2013), em revisão da literatura sobre mídias regionais, apontou que este objeto de estudo possui dois tipos de abordagens: a primeira referencia a mídia regional a partir do que se concebe como parâmetro de qualidade o jornalismo praticado pelos grupos midiáticos do Sudeste, sobretudo nas capitais Rio de Janeiro e São Paulo, e a segunda, diametralmente oposta, supervaloriza veículos e/ou grupos em determinadas áreas geográficas do país. “A mídia regional é apontada como elo mais fraco numa comparação com a mídia de refe­rência nacional. Pouco se avança além das cons­tatações da propriedade e dos vínculos políticos”, aponta Pinto (2013, p. 100). Mas como frisa Peruzzo: A mídia local se ancora na informação gerada dentro do território de pertença e de identidade em uma dada localidade ou região. Porém, ela não é monolítica. Não há uniformidade no tipo de vínculo dos meios de comunicação em suas regiões, pois a inserção (mais ou menos) comprometida localmente depende da política editorial de cada veículo. (PERUZZO, 2005, p. 76)

Nos últimos anos, o Brasil vem sofrendo transformações de natureza estrutural em todas as áreas, incluindo no campo das comunicações. A interiorização da economia é um fato, assim como a constituição de um mercado regional robusto. O advento das tecnologias de comunicação possibilitou que antigas assimetrias de produção jornalística fossem reduzidas ou até eliminadas. Praticamente, não há mais obstáculos para que a qualidade de um jornal do interior seja igual ou superior à de um diário do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Até mesmo disparidades nos rateios de verbas publicitárias oficiais, antes inexistentes em praças fora das capitais, têm sido contornadas. Em 2000, 91% dos investimentos estavam nos jornais de capitais e 9% no interior, percentuais que

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passaram para 80% nas capitais e 20% no interior em 2011, apontou Messias (2013). No site da Secom3, é possível ver como se deu a evolução do cadastro de veículos. Em 2003, eram 179 jornais cadastrados, ante os 2.730 de 2013. É diante dessa pluralidade de vozes e da heterogeneidade das regiões que, como destacou Pinto (2013), se torna questionável generalizações antes de uma análi­se mais aprofundada. “Entendemos os sistemas regionais como subsis­temas autônomos integrantes do sistema midiáti­co brasileiro, que uma vez agrupados expliquem sua dinâmica”, pontua Pinto (2013, p. 104). E esta dinâmica envolve as inúmeras e distintas variáveis que permeiam as instâncias midiáticas e de recepção. Compreender esse processo é mandatório. A mídia continua se envolvendo ativamente na construção do mundo social, como sublinha Thompson (2014, p. 156), porque “modela e influencia o curso dos acontecimentos, cria acontecimentos que poderiam não ter existido em sua ausência”.

O QUE É A PESQUISA BRASILEIRA DE MÍDIA? Em fevereiro de 2014, a Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República publicou, pela primeira vez, a Pesquisa Brasileira (PBM) de Mídia 2014/ Hábitos de Consumo de Mídia pela População Brasileira. O estudo foi realizado a partir de amostras dos 26 Estados e o Distrito Federal com 18.312 brasileiros, e conduzido por 200 pesquisadores em 848 municípios. Em janeiro de 2015, o governo divulgou a segunda edição, abrindo a possibilidade de avaliar mudanças no comportamento de consumo de mídia pela população, se ela for realizada pelos próximos anos. A PBM, no que tange à sua abrangência, garante “a representatividade do universo da população brasileira de 16 anos ou mais de idade” (Brasil, 2014, p. 14). Os bancos de dados das pesquisas de 2014 e 2015 possuem cerca de 2 milhões de células, cada um. Ela permite traçar um diagnóstico de como as mudanças tecnológicas e comportamentais afetam a utilização dos meios de comunicação no país. Pode-se, por exemplo, descobrir as formas como os brasileiros vêm se informando e o grau de confiança deles em relação às diversas fontes de notícias. Os dois relatórios já publicados, de 2014 e 2015, possuem cada qual 151 e 153 páginas, e tiveram como inspiração estudos como os conduzidos pelo European Social Survey (ESS) e o Latin American Public Opinion Project (Lapop). Para este artigo, o corpus de pesquisa analisa os microdados da PBM 2014, solicitados diretamente à Secom – o governo ainda não liberou, para pesquisadores, os microdados da segunda edição do estudo. Isso significa que os resultados aqui apresentados não só vão além do que já foi tornado público na divulgação dos relatórios – e noticiados pelos principais veículos de comunicação – como tratam de focar sua atenção a recortes específicos que dizem respeito a uma pesquisa acadêmica em curso. A partir dos microdados da PBM, será feita uma comparação entre dois tipos distintos de veículos de comunicação: a imprensa de circulação nacional (Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo) e os jornais regionais ou locais Correio Popular (SP), Estado de Minas e O Tempo (MG), Correio do Povo, NH e Diário Gaúcho (RS), Correio e A Tarde (BA), A Tribuna (ES), Diário do Nordeste (CE) e Gazeta do Povo (PR). A seleção foi feita 3.  Resultados da Comunicação Regionalizada, Secom. Disponível em http://www.secom.gov.br/atuacao/ midia/resultados-da-comunicacao-regionalizada-2013-2012; acesso em 21 de março de 2015.

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em função da lista Os Maiores Jornais do Brasil de Circulação Paga4, publicada pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), excluindo-se os denominados “jornais populares”. Foram incluídos ainda os títulos O Imparcial (de Presidente Prudente) e Comércio de Jahu (Jaú), participantes do projeto Grande Pequena Imprensa. Esses dois grupos somam, cada um, cerca de 800 mil leitores. O presente estudo voltará sua atenção para as informações de 583 leitores que citaram as 16 publicações selecionadas como sendo o jornal impresso que eles mais têm o hábito de ler. Importante frisar que este artigo foi elaborado tendo ciência da ressalva que o próprio relatório da PBM faz em relação a uma possível subdimensão do uso dos dados de jornais impressos e rádios. Isso porque, de forma ideal, o levantamento deveria ter trabalhar com amostras maiores e mais representativas de cada microrregião, em vez de um número limitado de entrevistados em algumas localidades. Jornais impressos e rádios costumam ter alcance sobre um número pequeno de municípios e em poucos casos todo o Estado. Já as mídias TV, internet e, um pouco menos, revista, possuem alcance mais amplo e global. A manipulação da base de dados da PBM foi realizada com o software PASW Statistics 17 (antes conhecido como SPSS Statistics), da empresa IBM.

UM OLHAR FOCADO SOBRE OS DADOS O leitor dos jornais de circulação nacional difere-se daquele que tem o hábito de ler veículos regionais ou locais? Sim. Os leitores de Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo dedicam mais tempo para a leitura dos diários, têm preferências por assuntos mais gerais ou de alcance nacional e internacional, confiam menos naquilo que está impresso ao mesmo tempo em que possuem uma visão mais otimista do governo federal, é predominantemente mais velho e com maiores renda e nível de escolaridade. Brasileiros que moram nas periferias ou no interior do país são mais propensos a confiar no noticiário dos jornais, que eles usam para obter informações, preferencialmente, de esportes, cidades ou notas policiais. A grande maioria dos leitores confia muitas vezes ou sempre nos veículos regionais ou locais e avalia que o desempenho do governo federal é péssimo ou ruim. Essas publicações possuem um elevado público-jovem (até 34 anos). Nessa pequena introdução sobre um recorte de dados da PBM 2014, que faz parte do corpus deste estudo, percebe-se de partida que há grandes distinções e divergências desses dois grupamentos de leitores – ao longo desta seção, serão apresentados em maiores detalhes, assim como também serão apontadas relevantes congruências. Assim, de partida, fica evidente que é temerário extrapolar os resultados de pesquisas realizadas sobre os jornais de circulação nacional como sendo um retrato de toda a imprensa brasileira. Os tipos de leitores, os impactos que seu noticiário produz, a percepção deles em relação a questões locais ou nacionais, as formas de consumo de mídia, todas essas questões revelam o quão arriscado é deixar de lado ou menosprezar o universo dos jornais fora do eixo Rio-São Paulo nos estudos de comunicação no Brasil. 4.  Maiores jornais do Brasil, ANJ. Disponível em: http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil; Acesso em 6/3/2015.

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Na amostra deste corpus de pesquisa, das 583 pessoas que citaram o jornal impresso como o meio de comunicação preferido para se informar, 161 (27,6% do total) citaram Folha de S.Paulo, O Globo ou O Estado de S. Paulo (doravante denominados de “imprensa nacional”) em primeiro lugar e 422 (72,4%) os demais veículos analisados (“imprensa regional ou local”). Os dois subgrupos se assemelham no uso dos veículos de comunicação que mais lhe informam sobre o que acontece no Brasil. Se já era esperada a supremacia da televisão sobre as demais mídias, a aparição da internet na segunda posição e com o dobro de citações que das publicações impressas diárias reforça a necessidade de os jornais repensarem seus produtos.

Gráfico 1. Mesmo para leitores de jornais, a TV é campeã na agilidade informativa

Mais da metade (53,4%) dos leitores da imprensa nacional costuma dedicar de 1 a 2 horas por dia para ler os jornais. Já metade (50,5%) dos que preferem a imprensa regional ou local lê menos de uma hora por dia. Esses dados devem refletir outra questão da PBM. Mais da metade dos brasileiros (52,2%) que lêem um dos três jornais de circulação nacional dedica de 3 a 7 dias da semana para esse hábito, enquanto 54,5% dos leitores da mídia regional ou local lê de 1 a 3 dias por semana. Há uma tendência de os leitores da imprensa nacional terem menos confiança nos seus veículos do que os dos jornais regionais ou locais. O gráfico abaixo mostra que a discrepância entre esses dois públicos se dá de forma significativa nas três categorias (confia muitas vezes, confia sempre e confia poucas vezes). O público dos interiores e periferias expressa maior confiança e menor desconfiança nas notícias que lê em proporções inversas ao que se dá com o leitorado dos diários nacionais.

Gráfico 3. Os dados revelam um elevado grau de desconfiança dos leitores dos principais jornais brasileiros

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O leitor dos veículos de circulação nacional tem praticamente a mesma referência de confiança em relação ao meio TV, um pouco menor ao rádio e uma nítida desconfiança em relação às notícias publicadas em blogs. Já o leitor de jornais regionais ou locais, que tendem a depositar maior confiança nos seus veículos preferidos, tem uma crença maior no noticiário televisivo e menor no rádio. Mas não podemos deixar de destacar que ele se revela menos desconfiado das notícias de blogs do que o leitor dos jornais nacionais.

Gráfico 4. O grau de desconfiança nas notícias de blogs e das emissoras de TV são bastante elevados

A PBM 2014 permite realizar recortes por categorias específicas, como os de porte ou condição do município. O que se nota é que há uma tendência de os leitores de cidades abaixo de 20 mil habitantes e de médio porte (de 100 mil a 500 mil) terem maior confiança nos jornais, enquanto a descrença seja mais pulverizada entre os quatro grupamentos populacionais. Há uma aparente discrepância entre o fato de que os leitores de jornais regionais ou locais se mostrarem mais confiantes com o noticiário e isso não ser totalmente corroborado quando se analisam o público por recorte de tamanho dos municípios. Seria necessário testar correlações entre quais veículos específicos esses 583 leitores estariam se referindo, porque não se pode descartar, entre outros fatores, que mesmo em cidades fora das capitais Rio e São Paulo é possível encontrar pessoas que consomem os grandes jornais. No entanto, essa análise sobre os dados fugiria do propósito deste artigo.

Gráfico 5. Há um equilíbrio entre aqueles que confiam muitas e poucas vezes no que é publicado pela iimprensa

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A maioria dos leitores de Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo prefere as notícias de esportes, economia, nacionais e de suas respectivas cidades. Essas quatro divisões somam mais de 50% dos assuntos mais lidos e pertencem às chamadas editorias que as redações costumam adotar, assim como os cadernos nos quais separam os textos jornalísticos. Já mais da metade dos leitores dos 16 jornais que pertencem a este corpus tem preferência pelo noticiário de esportes, cidades e policiais. Nos dois grupamentos, o noticiário de política (considerada de grande importância pelos veículos de comunicação) aparece em destaque menor. No caso dos jornais nacionais, abaixo das notícias de celebridades e fofocas; e no de regionais ou locais, a política atrai menos que as seções de classificados e de automóveis. Essa distinção entre o que cada um dos grupamentos prefere ler deveria pautar as estratégias e planejamento de negócios dos veículos de comunicação fora do eixo Rio-São Paulo. Jornais regionais ou locais recorrem ao conteúdo das Agências Folha, Estado e O Globo para preencher suas páginas, sobretudo as de política, reproduzindo o discurso midiático dos três principais veículos de comunicação. Pesquisadores já alertavam a tendência de a mídia local reproduzir a grande imprensa, dedicando amplos espaços para notícias nacionais e internacionais. “Muitos jornais locais tendem a se ocupar mais de assuntos comumente tratados pelos jornais de circulação nacional do que com assuntos específicos locais que demandariam apuração jornalística”, identifica Peruzzo (2005, p. 81-82). O que se vê, pela PBM, é que esse conteúdo nacional tem menor importância para o leitor de outras praças. Questionados sobre os principais problemas do Brasil, nos meses de outubro e novembro de 2013, os leitores dos jornais nacionais indicavam, nesta ordem, saúde, educação, corrupção e calçamentos de ruas (56,2% dos apontamentos). Os três itens representam mais da metade dos apontamentos dos leitores, seguidos por drogas, administração pública e segurança pública/violência. Já os leitores da imprensa regional ou local enxergavam na saúde, corrupção e drogas os maiores problemas do país (56,4%), seguidos de educação, segurança pública/violência e administração pública. Educação, salários, saúde, corrupção, inflação/custo de vida e impostos (55,3%) são os principais problemas que afetam diretamente a vida dos leitores dos jornais nacionais, enquanto para os de títulos regionais ou locais essa ordem se altera um pouco: saúde, segurança pública/violência, corrupção, educação e drogas (57,3%). As duas questões e as respectivas respostas indicam ligeiras diferenciações dos públicos, assim como sinalizam que eles podem estar sendo impactados de forma distinta em relação ao noticiário que recebem. Também que a imprensa, de maneira geral, vem oferecendo em suas páginas os principais assuntos que interessam ao leitor. Parte das explicações entre as distinções de preferências de assuntos, editorias mais lidas, confiabilidade no noticiário e nas mídias pode ser compreendida ao se analisar os recortes de renda e idade. Antes de apresentar esses resultados, devemos informar que a mostra de 583 entrevistados se distribui da seguinte forma em termos de idade:

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Gráfico 6. O público-leitor dos jornais regionais ou locais é mais jovem que os de circulação nacional

O que se vê é que a proporção de leitores da imprensa regional ou local abaixo dos 40 anos é superior aos dos veículos de circulação nacional, indicando um público mais jovem. O oposto também se verifica: 51% dos leitores dos três principais jornais na PBM possuem mais de 41 anos, ante os 42% dos jornais menores. E como essa distribuição etária impacta na percepção dos leitores de cada grupamento sobre os problemas que mais afetam sua vida? É o que podemos ver nas tabelas a seguir: Jornais nacionais 16 a 24 anos

25 a 40 anos

41 a 55 anos

56 anos +

Educação

Educação

Educação

Salários

Saúde

Corrupção

Saúde

Impostos e taxas

Assistência social

Salários

Segurança pública/ Violência Custo de vida/ Preços/inflação

Desenvolvimento

Geração de empregos

Corrupção

Estradas/rodovias

Custo de vida/ Preços/inflação Geração de empregos

Geração de empregos Saúde

Administração pública

Educação Segurança pública/ Violência Saúde

Tabela 1. Educação é uma preocupação mais evidente entre os leitores de jornais de circulação nacional Jornais regionais ou locais 16 a 24 anos

25 a 40 anos

41 a 55 anos

56 anos +

Saúde

Saúde

Saúde

Educação

Segurança pública/ Violência

Segurança pública/ Violência Corrupção

Segurança pública/ Violência

Custo de vida/ Preços/inflação Geração de empregos

Saúde

Transporte coletivo

Drogas

Corrupção

Impostos e taxas

Custo de vida/ Preços/ Corrupção inflação

Drogas

Educação

Drogas

Educação

Drogas

Educação

Segurança pública/ Violência

Tabela 2. Já os assuntos ligados à saúde são as maiores preocupações do leitor das mídias regionais ou locais

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Alguns temas são recorrentes e já detalhados acima. Vale destacar, portanto, algumas diferenças. Jovens de 16 a 24 anos que lêem os três maiores jornais nacionais revelam uma preocupação com empregos, enquanto os de mesma faixa etária das publicações regionais ou locais preocupam-se com transporte, inflação e drogas. A inflação e o custo de vida surgem como questões que preocupam os brasileiros de 25 a 40 anos, compreensível quando muitas pessoas nesta época de suas vidas estão constituindo famílias. Novamente, as drogas surgem como um dos problemas principais que aflige apenas os leitores das mídias regionais ou locais, inclusive de todas as faixas etárias. No público acima de 56 anos, o tema impostos é comum aos leitores em todo o país. O último recorte que nos interessa apresentar é o de renda familiar. No gráfico acima, observa-se que na amostra deste corpus, há uma distribuição semelhante entre os grupamentos de mídia nacional e regional ou local. O perfil do leitorado prevalecente pode ser considerado de classe média, com renda variando entre R$ 1.356,01 a R$ 6.780,00. Os leitores de renda superior a R$ 6.780,01 também são expressivos, enquanto nota-se que para famílias com renda baixa (menos de R$ 1.356) o índice de leitura de jornais é bem menos significativo.

Gráfico 7. O público-leitor dos jornais tem renda superior ao da média brasileira

Para esse conjunto de dados, interessou-nos verificar como os leitores avaliam o governo federal, segundo as categorias agrupadas de ótimo/bom, regular e ruim/péssimo.

Gráficos 8 e 9. Leitor dos jornais nacionais avalia bem o governo

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O leitor dos três principais jornais brasileiros, no período de coleta da PBM 2014, avaliava positivamente o governo de Dilma Rousseff e isso era realidade nos extratos mais ricos e pobres, enquanto que na faixa da classe média predominava a imagem de um mandato regular da presidente. Quando os dados da segunda edição da PBM forem liberados, que conterão informações mais recentes, será possível confrontá-las com pesquisas de valências, como as apresentadas pelo Manchetômetro, website construído pelo Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública, ligado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O projeto, que vem analisando a cobertura midiática desde as eleições de 2014, indica uma predominância de notícias negativas marcante nas capas de Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo. Aqui, interessa-nos apontar que também há diferenças na percepção do leitor dos jornais regionais ou locais nessa questão da PBM 2014. Esse público tem uma visão menos positiva do governo Dilma, prevalecendo a avaliação regular nas famílias que ganham mais de R$ 1.356,01. Mas cabe destacar ainda que os brasileiros de renda inferior que lêem os jornais fora do eixo Rio-São Paulo é maior a insatisfação com o governo. Para finalizar, apresentamos abaixo o gráfico que mostra a distribuição dos 583 brasileiros deste corpus da pesquisa segundo a escolaridade de cada grupamento. Nota-se, como principal destaque, que os leitores dos jornais de circulação nacional possuem mais anos de estudo do que os de publicações regionais ou locais.

Gráfico 10. Público-leitor é mais instruído do que a média dos brasileiros, sobretudo dos veículos de circulação nacional

CONCLUSÃO Há diferenças significativas entre os leitores de jornais de circulação nacional e da mídia regional ou local. Embora pareça óbvia tal constatação, é preciso dizer que ela não era expressa dessa forma em inúmeras análises até hoje realizadas. A inexistência de pesquisas representativas do conjunto da população brasileira fazia com que estudos acadêmicos e mesmo privados projetassem para o sistema midiático do Brasil uma realidade que deveria ser restringida ao público da imprensa nacional. Os hábitos de

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consumo apresentados pela Pesquisa Brasileira de Mídia apontam a necessidade de se observar com outros olhares os subsistemas midiáticos presentes fora dos grandes centros urbanos. Essas distinções são expressivas porque dizem respeito a categorias como idade, faixa de renda, nível de escolaridade, índice de confiança, mídias consideradas mais relevantes e/ou informativas, assuntos preferidos. Isso não significa, contudo, que não haja intercâmbios de conteúdo entre esses diferentes discursos midiáticos. A imprensa nacional continua a ter grande influência sobre a população brasileira, de forma direta (por meio de seus leitores) ou indireta (pelos veículos regionais ou locais que reproduzem o seu discurso ou a forma como a notícia é produzida). O que a PBM indica é que a instância de recepção deve ser tratada segundo suas especificidades. Um leitor de um jornal do interior quando decide consumir o conteúdo produzido por sua mídia preferida não se pauta pelo que a imprensa nacional diz.

REFERÊNCIAS BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira de mídia 2014 : hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. – Brasília : Secom, 2014. 151 p. : il., 2014. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Trad. Angela S.M. Corrêa, 2. ed, 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2012. FADUL, Anamaria. Mídia Regional no Brasil: elementos para uma análise. In: FADUL, Anamaria; GOBBI, Maria Cristina (Org.). Mídia e Região na era digital: diversidade cultural, convergência midiática. São Paulo: Arte & Ciência. p. 23 – 40. 2006. MESSIAS, Bocorny Roberto. Transparência e a desconcentração na publicidade do governo federal. Observatório da Imprensa, São Paulo, ano 13, ed. 742, abril. 2013. Disponível em: . Acesso: 20 de março de 2015. PERUZZO, Cicilia M. Krohling. Mídia regional e local: aspectos conceituais e tendências. Comunicação & Sociedade. São Bernardo do Campo: Póscom-Umesp, a. 26, n. 43, p. 67-84, 2005. PINTO, Pâmela Araújo. Mídia regional: nem menor, nem maior, um elemento integrante do sistema midiático do Brasil. Ciberlegenda. Rio de Janeiro: UFF, n. 29, p. 95-107, 2013. THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão; revisão da trad. Leonardo Avritzer. 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

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A cobertura da crise econômica de 2008 pela Folha de S. Paulo: resiliência das concepções neoliberais The coverage of the economic crisis of 2008 by Folha de S. Paulo: resilience of neoliberal conceptions C h a r l e s F. A l m e i d a 1 Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a cobertura da Folha de S. Paulo sobre a crise econômica de 2008, especialmente no que se refere à definição de crise adotada pelo jornal e às medidas que defende para superação da crise. A cobertura dos jornais brasileiros sobre economia tem se organizado a partir de pressupostos neoliberais, expressando como deve funcionar o Estado e o mercado. O modelo neoliberal, contudo, foi posto em xeque em setembro de 2008, quando aconteceram os principais eventos da crise econômica global, que atingiu os fundamentos dessa ordem social. No Brasil, os efeitos mais significativos dessa crise ocorreram nos dois trimestres que se seguiram a setembro de 2008 (de outubro de 2008 a março de 2009). Com base em análise dos editoriais e de textos intitulados “Entenda a crise”, observou-se que o jornal definiu a crise como sendo motivada pelos excessos especulativos, incentivados pela desregulamentação financeira, realizando, portanto, uma leitura não doutrinária da crise. Ao mesmo tempo, reforça um ideário neoliberal, ao apregoar, sistematicamente, a ideia de ajuste fiscal e corte de despesas sociais pelo Estado, e a defesa da flexibilização das leis do trabalho, como saída para a crise, demonstrando a resiliência dessas concepções no jornal.

Palavras-Chave: Jornalismo. Jornalismo de Economia. Crise Econômica de 2008. Neoliberalismo.

Abstract: The objective of this study is to analyze the coverage of Folha de S. Paulo on the 2008 economic crisis, especially with regard to the definition of crisis adopted by the newspaper and the measures that advocates for overcoming the crisis. The coverage of Brazilian newspapers on economy has been constituted from neoliberal assumptions, expressing how the state and the market should work. The neoliberal model, however, was called into question in September 2008, when the main events of the global economic crisis occurred, which hit the foundations of this social order. In Brazil, the most significant effects of this crisis occurred in the two quarters following September 2008 (October 2008 to March 2009). Based on analysis of the editorials and texts entitled “Understanding the crisis,” it was observed that the newspaper defined the crisis as driven by speculative excesses, encouraged by financial deregulation, performing therefore a nondoctrinal reading of the crisis. At the same time, reinforces a neoliberal ideology 1.  Mestre em Ciências da Comunicação pela Unisinos, graduado em Jornalismo pela UFSM. É técnicoadministrativo na Secretaria de Comunicação da UFRGS, onde desempenha as funções de jornalista na Assessoria de Imprensa. E-mail: [email protected].

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by proclaiming systematically the idea of fiscal adjustment and cutting of social spending by the state and the defense of flexibility of labor laws as a solution to the crisis, demonstrating the resilience of these conceptions in the newspaper.

Keywords: Journalism. Economic Journalism. Economic Crisis of 2008. Neoliberalism.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS STE TRABALHO tem como objetivo analisar a cobertura da crise econômica de 20082

E

pelo jornal diário Folha de S. Paulo, enfocando as posições adotadas pelo jornal em seus editoriais e as matrizes de explicações sobre a crise em elementos gráficos que apresentaram o fenômeno aos leitores. A apropriação jornalística das manifestações da economia está inserida em um contexto de disputa pelo que a crise representa e o que fazer para superá-la. O período considerado, de setembro de 2008 a março de 2009, é parte da crise estrutural do neoliberalismo de hegemonia dos EUA, sendo os meses que se seguem a setembro de 2008 o período de maiores efeitos, com quebras, absorções e estatizações de grandes bancos norte-americanos e europeus, símbolos do capitalismo financeiro. Um dos pontos marcantes da crise foi a aprovação pelo Congresso dos EUA de um plano de resgate dos títulos de dívida privada avaliado em US$ 700 bilhões, algo como metade de tudo que o Brasil produziu em 2007, e exemplificador da transformação dos problemas privados em dívida pública e pressão para cortes nos gastos governamentais. A crise objeto dessa reflexão tem seus primeiros efeitos nos anos de 2005/2006, restrita ao setor imobiliário dos EUA, com o aumento da inadimplência dos tomadores de empréstimos de risco, chamados de subprime. De acordo com Duménil e Levy (2014), após esse momento inicial, a crise passa a afetar o sistema financeiro, especialmente no país norte-americano, com queda nos preços das ações, a partir de agosto de 2007. Em setembro de 2008, a quebra de um dos maiores e mais tradicionais bancos de investimentos dos EUA, o Lehman Brothers, definida como a maior concordata da histórica, dá celeridade e gravidade à crise, gerando acentuadas oscilações nos índices das bolsas de valores, estatizações de várias instituições financeiras por parte do governo daquele país, e quase paralisia no sistema de crédito bancário. Os efeitos são espalhados e maximizados em outros países, especialmente os desenvolvidos, gerando ondas de demissões, e cortes na produção. Dados da OIT3 ilustram o processo de arrocho sobre os trabalhadores. O desemprego no mundo passou de 5,5% em 2007 para 5,7% em 2008 e 6,2% em 2009, ou seja, o número de pessoas sem colocação no planeta chegou a 200 milhões e esse contingente é crescente. Além disso, o número de pessoas vivendo com menos de um dólar por dia cresceu em 40 milhões, e com menos de dois dólares cresceu mais 100 milhões (LYRA, 2010). 2.  Este trabalho compreende uma parte de estudo realizado para a dissertação de mestrado do autor, junto ao PPGCC da Unisinos, intitulada “A crise econômica de 2008 pelas páginas da Folha de S. Paulo: o conhecimento do jornalismo na era neoliberal”. 3.  Dados disponíveis na base do Banco Mundial. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2014.

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O Brasil não tarda a sentir os reflexos da crise, sendo atingido na produção da indústria, e no emprego, com aumento do desemprego, da precarização do trabalho e da rotatividade dos trabalhadores. A economia, que vinha em crescimento jamais visto desde o início da década de 1970, com taxas superiores a 5% em 2007 e 2008, tem drástica queda no último trimestre de 2008 e primeiro de 2009 (de outubro de 2008 a março de 2009). A contaminação da economia brasileira com a crise fez com que o produto interno bruto do país acumulasse uma queda de 4% entre o último trimestre de 2008 e o primeiro de 2009, tendo configurado uma recessão técnica. “O setor industrial, com redução de 11,6% nesse mesmo período de tempo, foi o principal responsável pela inflexão na evolução do PIB, uma vez que o setor agropecuário registrou leve expansão de 0,6% e o setor terciário cresceu 4,2%” (POCHMANN, 2009, p. 42). Dada a importância da crise econômica e seus efeitos sociais e tendo em vista a perspectiva de que a crise em questão tem caráter estrutural, cujas origens são as dinâmicas neoliberais, busca-se contribuir para o entendimento sobre a participação dos jornais na apreensão da crise. Toma-se o jornal de circulação nacional de maior tiragem do país, a Folha de S. Paulo, como objeto para se observar a permanência de concepções neoliberais na formulação de uma explicação sobre a crise.

O NEOLIBERALISMO E SUA CRISE: UM MODELO INSUSTENTÁVEL O termo neoliberalismo ganhou força na década de 1980 para explicar as transformações por que o mundo capitalista passava à época, ao mesmo tempo em que denunciava seus defensores. Tem sido utilizado, embora de diferentes maneiras, para “descrever um conjunto de teorias e práticas que tem na limitação da atuação econômica do Estado e na valorização do livre-mercado os instrumentos mais adequados para maximizar o bem-estar social” (PALLUDETO, 2012, p. 19). Em relação ao liberalismo clássico, enquanto matriz ideológica, uma síntese das diferenças é que o novo liberalismo restringe-se sobremaneira ao aspecto econômico da vida em sociedade, sendo menos iluminista, mais ligado a uma crença no funcionamento do mercado do que ao uso da razão (PAULANI, 2008). Somando teorias e práticas, o neoliberalismo designa as modificações estruturais ocorridas nas últimas décadas, no processo de superação do modelo econômico vigente no pós-guerra, conhecido como “consenso keynesiano” (DUMÉNIL; LEVY, 2014), modelo baseado nas ideias do economista John Maynard Keynes. O projeto keynesiano tinha no Estado o principal indutor da economia, equilibrando a balança entre produção e consumo, em uma espécie de pacto que levou a melhoria de salários e condições de trabalho. No campo político, buscava o apoio da classe trabalhadora ao governo pela via dos sindicatos. Sobre esse cenário é que o neoliberalismo vai ser construído, fazendo o que parecia até então impossível, ao destruir os fundamentos políticos dessa época: em pouco tempo, o Estado, que era o grande responsável por promover o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda como forma de justiça, passa a ser o vilão que entravava o desenvolvimento das forças produtivas do livre-comércio. De acordo com Harvey (2011), o projeto neoliberal foi construído apoiado por uma retórica individual, de autonomia e responsabilidade pessoal, pregando o livre-mercado e o livre-comércio, privatizações; e estava destinado a recolocar o interesse capitalista como o interesse político da vida social. Um projeto de poder voltado à concentração da riqueza. Mais

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difundido dos líderes, Friedrich Hayek entendia o mundo como um grande leilão de ofertas e demandas, em que o mercado é o coordenador das ações dos indivíduos, dirigidas por suas preferências. Na visão desse teórico do laissez-faire, o livre-mercado é o único instrumento de coordenação das ações dos indivíduos que não fere a liberdade de decisão desses, pois é dirigido por seus juízos de valores, suas preferências. Os grandes ajustes do neoliberalismo vão dominar a agenda política econômica a partir da virada dos anos 1970 para os 1980, após uma série de crises econômicas, por que passaram os centros capitalistas europeu e norte-americano. As medidas adotadas foram feitas com o aporte de teorias econômicas e agendas políticas que dessem organicidade às práticas neoliberais. Juntamente com a desregulamentação financeira, o ataque aos sindicatos esteve entre as primeiras medidas da política neoliberal dos governos conservadores de Margareth Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos EUA, os introdutores da agenda acima nos países centrais, como observado por Fiori (1997, p. 116-117): Nos Estados Unidos como na Inglaterra a sucessão de decisões que inaugurou a era conservadora foi paradigmática: primeiro iniciou-se o processo de desregulação financeira, mas quase ao mesmo tempo Margareth Thatcher usou mão de ferro para acabar com a greve dos mineiros do carvão, enquanto Ronald Reagan utilizava a lei Taft-Harley para intervir e derrotar, de forma exemplar, a greve dos controladores de vôo. Logo em seguida reformaram-se as legislações trabalhistas reduzindo os direitos dos sindicatos e a possibilidade de greves. Sendo interessante sublinhar que só bem mais tarde foi enfrentada a agenda fiscal e as privatizações só começaram, na Inglaterra, na segunda metade dos anos oitenta.

No Brasil, o receituário político-econômico desse modelo foram as medidas definidas no chamado “Consenso de Washington”, em torno das quais se deram muitas das disputas internas nos anos 1990. O receituário, elaborado pelo economista britânico John Williamson, em acordo de 1989, com coordenação dos EUA e que teve o FMI como propagador, continha em suas bases: “disciplina fiscal; priorização e rigidez desonerante da produção; liberalização financeira; liberdade cambial; liberalização comercial; ênfase no investimento do capital estrangeiro; privatização; desregulação; aprovação/ reconhecimento da lei das patentes (propriedade intelectual)” (FONSECA, 2005, p. 79). Tratou-se de um programa de políticas fiscais e monetárias que exigia reformas institucionais “destinadas a desregular e abrir as velhas economias desenvolvimentistas, privatizando seus setores públicos e enganchando seus programas de estatização na oferta abundante de capitais despolitizados pela globalização financeira” (FIORI, 1997, p. 121). Uma política macroeconômica econômica implantada no decorrer dos governos de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, mas que tem continuidade no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2002, pelo menos até a crise econômica tema deste trabalho: [...] o Governo Lula deu prosseguimento (radicalizando) à política econômica implementada pelo segundo Governo FHC, a partir da crise cambial de janeiro de 1999: metas de inflação reduzidas, perseguidas por meio da fixação de taxas de juros elevadíssimas; regime de câmbio flutuante e superávits fiscais acima de 4,25% do PIB nacional. (FILGUEIRAS, 2006, p. 186).

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No somatório de políticas contraditórias do neoliberalismo, criou-se, mesmo que em oposição direta aos dogmas do livre-mercado, um princípio pragmático de que havia bancos “muito grandes para quebrar”, e que, portanto, o Estado deveria protegê-los. Houve a institucionalização da privatização dos lucros com socialização dos prejuízos. Essa postura surgiu na crise fiscal da cidade de Nova York, ainda em meados da década de 1970, e foi também estendida internacionalmente, como na crise da dívida do México, em 1982. O período neoliberal, pontuamos, não é marcado pelo apagamento do Estado. Ao contrário do que é difundido, um Estado forte continuou existindo, especialmente para impor derrotas aos sindicatos, e direcionar recursos para a estabilidade monetária, que passou a ser a meta suprema dos governos, em detrimento de gastos sociais. “Para isso seria [foi] necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa ‘natural’ de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos” (ANDERSON, 1995, p. 11). Embora sustentado por um discurso antiestatista, “menos Estado, mais mercado” (FIORI, 1997), na prática, as relações neoliberais se concentram na alteração do papel do Estado, que não dá nenhuma evidência de ficar menor. O que acontece é que ele passa a ser direcionado mais intensamente ao cumprimento de tarefas de classe.

O NEOLIBERALISMO COMO EXPLICAÇÃO PARA A CRISE CAPITALISTA DE 2008 A crise tema deste artigo foi alvo de várias interpretações, de acordo com a corrente econômica desde a qual se olha o fenômeno. Crises são constantes no sistema produtivo capitalista, compreendendo desde oscilações parciais, que correspondem aos ciclos de negócios, a crises estruturais que configuram a necessidade de transformações significativas nas formas específicas que o capitalismo se desenvolve em cada período (BOTTOMORE, 2001). Após as manifestações da crise atual, várias foram as abordagens interpretativas propostas, muitas identificando e apontando aspectos diferentes como as causas últimas do desastre. A macroeconomia vigente, com caráter neoclássico, fundamentada nas teorias do espectro neoliberal, caracterizam as crises, e esta não é diferente, basicamente, como patologias de um sistema sadio. “As teorias das ‘bolhas’ dão corpo a essa ideia, subtendendo que poderiam ser evitadas com bons remédios, quando, na verdade, afirmar que as bolhas são as causas das crises seria o mesmo que dizer que a febre é a doença” (SAWAYA, 2009, p. 56). Os keynesianos, por sua vez, apontam a falta de regulação por parte dos Estados e o excesso de especulação como os culpados, além da falta de demanda pela deterioração dos salários (KOTZ, 2009). Mesmo no espectro marxista há mais de uma explicação possível para a crise4, ainda que concordem com o caráter profundo desta. Ao configurar-se como estrutural, a crise estaria relacionada à existência de uma superprodução capitalista, ou seja, uma crise explicada pela lei da taxa de lucro decrescente. Essa hipótese, contudo, é descartada na análise de Duménil e Lévy (2014), que, ao acompanharem a evolução 4.  Palludeto (2012) organiza os dois grandes ramos de interpretações marxistas sobre a crise, mostrando as diferenças entre o grupo não homogêneo de autores que colocam a crise como sendo do período neoliberal e o grupo que a trata como uma crise capitalista genérica.

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histórica da taxa de lucro da economia dos EUA, percebem a elevação da mesma a partir dos anos 1970, embora em patamar rebaixado. Adotamos, assim, a perspectiva desses autores, em diálogo com outros (HARVEY, 2011; KOTZ, 2009), para apontar a atual crise como uma crise de hegemonia. Em um período específico, as relações capitalistas desenvolvem certos arranjos institucionais e políticos a fim de garantir o contínuo processo de busca pelo lucro. Essa maneira particular de organização no período neoliberal entrou em crise. Para essa interpretação, a causa da crise é a dinâmica da fase neoliberal do capitalismo, ou seja, uma dinâmica particular erigida nas décadas de 1970 e 1980. A crise do neoliberalismo exigirá uma nova estruturação do sistema, acarretando transformações importantes, cujos embates sociais acentuam-se, muitos ligados a explicações sobre as causas do evento e apontando soluções. As medidas tomadas pelos distintos governos, especialmente os dos países centrais (EUA e europeus), não foram no sentido de superação do modelo em voga, notadamente resultando num superendividamento dos Estados, cuja continuidade não está garantida, e numa nova ofensiva contra os direitos dos trabalhadores (especialmente salários e previdência). A luta política pode dar a direção diferente à inercial, que significaria aprofundamento do neoliberalismo. “Não foi o New Deal inevitável, como não era a política neoliberal de Reagan e Thatcher” (HARVEY, 2011, p. 64-65). Dessa forma, a disputa sobre a interpretação da crise está relacionada com a forma como a crise será enfrentada de maneira mais profunda. As políticas tomadas nos primeiros momentos da crise indicavam o aprofundamento do modelo neoliberal. Pensamos o jornalismo nesse contexto, em que os acontecimentos singulares revelam as entranhas dos mecanismos que garantem a contínua geração de excluídos e a acentuação da desigualdade. A prática jornalística debruça-se sobre as manifestações e tem potencialidade de levar a significações dos fatos de modo transformador.

A CRISE DE 2008 NA PERSPECTIVA DA FOLHA A crise econômica, em seus vários aspectos, foi o principal tema diário da Folha de S. Paulo no período analisado por este trabalho, sendo tema de 157 editoriais, nos sete meses. Para este artigo, nos debruçamos sobre a definição utilizada pelo jornal para a crise que abalava a atividade econômica, expressa em seus editoriais e nos conteúdos com a cartola “entenda a crise”, com o objetivo de apontar qual o sentido dado à crise pelo jornal e, daí decorrente, qual a saída apontada para sua superação, sendo essas questões abertas, e alvo de diferentes interpretações em disputa.

E crise pelos editoriais No início do período, ainda em setembro de 2008, o livre-mercadismo é criticado, especialmente relacionado aos feitos da administração George W. Bush nos EUA. O jornal associa o político a um ideologismo conservador, colocando a discussão sobre as responsabilidades da crise, associadas a suas causas, no binômio “política da não regulação” e “ganância especulativa”. Trata-se, pela perspectiva do jornal, de uma crise de confiança, o que explica o “efeito de manada”, em que os agentes econômicos tomam medidas preventivas com base na expectativa de que outros tomarão determinadas medidas, ideia que os editoriais trazem para explicar o travamento do sistema financeiro,

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pois as instituições temiam emprestar para as congêneres com medo de não receber. Logo, assim definida, a resposta para superar a crise, tanto de um ponto de vista imediato como estrutural, é esperada e cobrada dos governos e não parte da própria iniciativa privada. O trecho de editorial relacionado abaixo mostra essa matriz de explicação, que dá ao mercado certo caráter de irracionalidade, ao mesmo tempo que vai colocando nos governos a responsabilidade pela superação da crise: Os agentes se sentem mais ricos, e os bancos reduzem suas margens de segurança. Essa espiral eufórica acaba por ampliar o endividamento de toda a sociedade, com risco crescente. (21/9 – “Euforia e pessimismo”).

À medida que os eventos da crise não são restritos ao mercado financeiro e crescem as possibilidades de a economia brasileira, gestada em âmbito nacional, ser atingida pela crise, o jornal trata de expor o que deve ser feito para “evitar o pior”. Em 12/10, publica o editorial “Resposta imediata”, no qual, baseado no diagnóstico de uma rápida deterioração de expectativas no Brasil, exige adaptação “ampla nas políticas fiscal, monetária e regulatória”, norteadas pelos seguintes tópicos: O contexto justifica ajustes jurídicos emergenciais e transitórios, a fim de acelerar as licitações de obras e desvincular despesas do Orçamento, para que o Executivo amplie sua margem de manobra em tempos adversos. (12/10 – “Resposta imediata”).

Nota-se que não há, no início do período, crítica à retenção dos recursos pelos bancos privados, que levou à escassez, tratada, em certa medida, como uma atitude natural, uma vez que buscam se proteger da instabilidade da economia, restando ao governo prover medidas para restaurar a credibilidade do sistema, fazer com que ele volte a funcionar. O orçamento do governo, segundo o que defende o jornal, deve ser realinhado para fazer frente à crise: Nesse contexto de crise, cabe ao governo brasileiro conter seus gastos correntes, inclusive para preservar os investimentos. Cabe ao Executivo, ainda, garantir que o sistema financeiro cumpra adequadamente suas funções de ofertante de crédito. (28/11 – “Já apertou”). Mas o comportamento das autoridades no que diz respeito ao crédito, em geral, deve ser de incentivo. Trata-se de tentar mitigar o impacto, para o emprego e a renda, da atitude extremada dos bancos, que diminuíram abruptamente os empréstimos. (06/01 – “O dilema do crédito”).

A ênfase principal dos editoriais da Folha sobre a crise, recai sobre a maneira como o governo utiliza seus recursos, ou seja, é uma disputa pelo orçamento governamental. Os “gastos do governo” são um ponto em que se vê com clareza a postura ideológico-doutrinária do jornal, ora se dirigindo ao governo (como deve agir em determinada circunstância), ora fazendo uma espécie de didatismo em que expõe o que está acontecendo e como deve ser interpretado. O governo é, assim, tomado como o ator principal a quem devem recorrer todos os demais agentes. Quando a crise atinge a produção industrial, a recuperação da economia passava, na visão do jornal, por cortes nos gastos públicos, pois os recursos da União deveriam ser destinados a políticas de investimento. Os investimentos em infraestrutura são colocados em oposição aos

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gastos com a máquina pública, devendo o governo fazer economia fiscal e manter os investimentos. As empresas, que demitiram em massa para se proteger e forçaram a economia a uma queda impressionante, tomaram as medidas seguindo as regras básicas do mercado, as quais o jornal defende, e, portanto, são inimputáveis sobre os estragos na economia do país e no emprego em particular. Dessa forma, o jornal é crítico aos destinos correntes dos gastos públicos, os quais caracteriza como gastanças, e chega ao ponto de atacar o que seriam as fanfarronices financeiras da União, como se pode verificar nos editoriais abaixo: Infelizmente, essa linha de prudência não abrangeu os gastos de custeio dos governos federal, estaduais e municipais -, que dispararam no período. Se o poder público tivesse controlado seu pendor natural à gastança, teria agora um arsenal menos limitado para combater os efeitos deletérios da derrocada global. (11/3 - Queda Vertiginosa) No embalo de recordes sucessivos de arrecadação, os governos em geral - em particular o federal - têm sido pródigos no aumento de despesas de custeio, em especial na concessão de aumentos salariais. […] Se tamanha lassidão fiscal já era condenável quando a economia do país atravessava um momento excepcionalmente favorável, mantê-la a partir de agora será um ato de irresponsabilidade atroz. [...] Está esgotada a margem para fanfarronices fiscais. O cenário mudou - e exige realismo. (3/10 - “Cautelas Fiscais”).

Do ponto de vista trabalhista, quando passam a ocorrer as demissões, o jornal defende em seus editoriais: a) a desoneração da folha de pagamento para as empresas; b) a valorização dos acordos patrão/ empregados, sem ingerência do governo; c) estímulos do Estado à economia para evitar o desemprego; d) o governo pode ampliar as parcelas do auxílio desemprego. As demissões são um processo natural da relação empregatícia e a queda na demanda exige essas medidas das empresas. Não pode o governo interferir quanto a demissões, vinculando políticas de auxílio à economia (leia-se, aos empresários) à manutenção dos empregos. Nessa via vai a defesa da flexibilização das leis trabalhistas. Embora não apontada com esse termo, nos editoriais, apresenta a ideia de que as soluções devem estar reguladas tão somente pelas negociações coletivas e que deveria haver mudanças para formalizar os empregos, no sentido de reduzir as exigências sobre o empregador. Em rara ocasião de que trata de problema estrutural do país com enfoque específico na questão do trabalho, em “Subemprego em alta”, dia 10/3, o jornal aponta o problema indicando que 50% dos trabalhadores atuam na informalidade. Convém apontar que a formalização é mais um elemento, contudo, para defender a desoneração fiscal das empresas: “Um caminho certo para aumentar o índice de regularização dos trabalhadores é desonerar as folhas de pagamento, que impõem custos excessivos a empregadores [...]”. Defende ainda a redução do valor das aposentadorias, desvinculando-as do salário mínimo. Este último é também objeto de crítica com relação à política de aumento real, que deveria ser abolida. Dessa forma, o jornal prega um rebaixamento geral das condições de trabalho, supostamente em prol da maior abrangência da assistência social. Nos exemplos de editoriais a seguir, vemos essas posturas de desobrigação das empresas quanto à crise e a flexibilização das leis trabalhistas como medida para enfrentar a crise:

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[...] Efetivar a promessa, sempre adiada, de aliviar a tributação sobre a folha de pagamentos de todas as empresas. (20/12 - “Desemprego”) Cautelosas, as empresas primeiro deram férias coletivas a seus funcionários, mas agora algumas já começam a demitir. [...] A desoneração tributária sobre a folha de pagamentos também estimularia a manutenção de postos de trabalho neste ambiente. (14/1 - “Abalos no emprego”). [...] ninguém haverá de ignorar o irrealismo de qualquer proposta de estabilidade no emprego numa situação econômica tão incerta como a atual. (16/1 - “Agitações de oratória”).

Tendo em vista esses vários aspectos apontados – explicação para a crise e como enfrentá-la, pressão sobre o governo brasileiro, maneira de encarar o Estado, relações capital/trabalho –, podemos avaliar, primeiramente, que a perspectiva ideológica ampla tomada pelo jornal tem fortes relações como o que discutimos sobre o neoliberalismo. Há alguns elementos estranhos, porém, a essa definição, se ela for tomada do ponto de vista mais dogmático, a partir das teses dos precursores do neoliberalismo (Hayek, especialmente). A interpretação às causas da crise e seu funcionamento é keynesiana, sobre as crises cíclicas do capitalismo, na medida que aponta que um período de crescimento e estabilidade, levou à complacência pelos governos e à disposição para assumir riscos maiores pelos investidores (WOLF, 2008). Não se trata, pois, de uma defesa do laissezfaire, e sim da defesa da economia de mercado, com problemas intrínsecos, mas que são superados ao largo por suas características positivas. Nada, contudo, que se possa comparar com o período de consenso keynesiano que marcou o pós-guerra, pois não são absorvidas as características voltadas à justiça social. Na verdade, o que se observa nas medidas que recomenda aos governos é o neoliberalismo aplicado à política econômica, pois restringe-se à abordagem de participação do Estado como estimulador da atividade econômica, especialmente pelo lado da oferta, aspecto de orientação ortodoxa, pois seu papel é prover um ambiente adequado aos negócios das empresas, focado em “competitividade”, por isso, aliviar a folha de pagamento e prover crédito. No que tange ao ponto de regulador que deveria exercer o Estado sobre os mercados vai, reconheçase, noutro sentido.

“Entende a crise”: a explicação sobre a crise adotada no conteúdo jornalístico Ao longo do período escolhido para este artigo, em dois momentos foram publicados infográficos com uma explicação sobre a crise. Em setembro (17/09), “Entenda a crise” explicava o funcionamento dos empréstimos a clientes de alto risco no mercado imobiliário dos EUA, abordando preferencialmente a relação entre os clientes, as financeiras e os bancos, e, assim, colocando a causa da crise no não pagamento das hipotecas por esses tomadores de empréstimo e a abordando de modo restrito aos negócios imobiliários. A explicação se complexifica no infográfico do dia 18/10, em caderno especial que coloca 10 questões para entender a crise (Dinheiro 2). Nesse segundo infográfico, o objetivo é entender a formação de uma bolha no mercado imobiliário, que, espalhada para o mercado financeiro em geral, era a responsável pela crise. Nesse caso, o não pagamento das hipotecas também é o estertor da crise, porém há uma razão para a inadimplência: a elevação dos juros para conter a inflação. Os bancos afetados pela inadimplência e

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pela desvalorização dos títulos lastreados em hipotecas tiveram sérias perdas e isso contaminou as bolsas. A sequência da ilustração mostra os efeitos na “economia real”, em que o imbróglio é responsável pela falta de crédito. A razão para a crise adotada pelo jornal e expressa a partir desses infográficos, portanto, é a especulação desenfreada dos investidores, mas com participação do governo, ao não regular corretamente a economia e impedir a formação do inchaço, e por decisão equivocada que levou à inflação, conforme a resposta à questão “Se as autoridades culpam os especuladores, por que a especulação não é coibida?”: “Os especuladores, tratados no coletivo e no anonimato, são bodes expiatórios convenientes quando as crises explodem. Evoca-se a antipatia dedicada aos gananciosos que desejam enriquecer sem produzir, deixando em segundo plano os questionamentos à política econômica ou à atuação dos órgãos regulatórios”. Ou seja, a força da crise como manifestação capaz de revelar mecanismos intrínsecos à dinâmica capitalista das últimas três décadas, as raízes da valorização financeira, dos dividendos a acionistas como meta das gestões das empresas, do projeto político-econômico de liberalização financeira internacional, encapado por governos de países como o Brasil, do esmagamento do movimento sindical, entre outros tantos fatores, são colocados pela crise e não são abordados pelo jornal no momento em que se propõe a explicar a crise. A narrativa explicativa acaba por eleger uma explicação como a correta para a crise, sem ao menos conceber que há outras. Com objetivo didático desses materiais, reproduz uma visão mais ortodoxa do que a do próprio jornal nos editoriais, uma vez que o que faltaria em ocasiões de crise são questionamentos sobre as políticas econômicas (que levam à inflação) e regulatórias (que levam à especulação). Trata-se, a nosso ver, de uma escolha, da posição que o jornal tem no seu conteúdo jornalístico para entender a crise.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da análise dos elementos arrolados acima, podemos afirmar que durante a crise econômica mundial que atingiu o Brasil entre setembro de 2008 e março de 2009, a Folha de S. Paulo, em suas posições sobre a crise e nos materiais gráficos que buscavam explicar o fenômeno aos leitores, conservou uma visão de mundo neoliberal, ainda que este modelo estivesse em crise e sangrando a olhos vistos. Deu-se a defesa de políticas que colocavam o Estado a prover as condições para que a economia de mercado retomasse o seu protagonismo, e, mesmo estando claro o vínculo entre a livre iniciativa dos agentes financeiros e os aspectos manifestos da crise, optou por ter nos distintos governos, especialmente o brasileiro e o norte-americano, os elementos que deveriam agir para a retomada do mercado. Para um ambiente dominado pela defesa da economia de mercado, bandeira pela qual se manifesta a hegemonia da concepção de estado mínimo conquistada no país durante a década de 1990, ações do governo foram as mais tematizadas, o que não representa contradição, se observamos atentamente o que o neoliberalismo representou enquanto projeto de classe. A ênfase nas políticas econômicas dos governos, especialmente no que se refere ao brasileiro, expressa-se não em função da defesa do Estado construtor de políticas sociais de pleno emprego, de rendimentos elevados aos trabalhadores, educação e saúde públicas, e sim a um Estado direcionado a atender

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as necessidades da economia privada. Um caso de Estado com racionalização neoliberal, embora mais pragmático do que dogmático (o que representaria a ausência). Ocorreu, assim, a promoção de explicações que enfatizam a responsabilidade do Estado e dos excessos especulativos, acentuando o processo neoliberal, no lugar de evidenciar suas dinâmicas que levaram à crise. A interpretação às causas da crise e seu funcionamento é de inspiração keynesiana, no que se refere às crises cíclicas do capitalismo. A síntese do quadro que gerou a crise reconhece nos agentes econômicos individuais, quando coletivos, corpos irracionais que, motivados pela desregulação do mercado, aumentam o risco de suas operações a ponto de formar bolhas, como a que estourou no mercado imobiliário dos EUA. No conteúdo informativo, a explicação sobre a crise é reiterada, com certa nuance importante, pois fala da formação de uma bolha de crédito e da baixa regulação que força ao movimento especulativo, mas reforça o papel de decisões equivocadas do governo, não apenas na regulação, como responsáveis pela crise. Ressalta-se ainda que há pouca margem para explicações alternativas nesses espaços. A posição adotada com relação ao enfrentamento da crise é que o governo deve ter recursos nas mãos para mitigar imediatamente os efeitos da crise custe o que custar. Um estado de emergência que poderia justificar a suspensão de medidas já tomadas, todas na direção de fazer aperto fiscal de modo a garantir a atratividade a investidores. O Governo Federal foi transformado no personagem central da crise, para o bem e para o mal. Por um lado, é o ator que pode resolver a situação, por outro, é o responsável por ela. Na verdade, restringe-se à abordagem de participação do Estado como estimulador da atividade econômica especialmente pelo lado da oferta, aspecto de orientação ortodoxa, e regulador dos mercados, ponto mais heterodoxo. O dogmatismo vai ser a base para a abordagem do problema do mercado de trabalho em que defende reiteradamente a redução da tributação das empresas para que estas possam, seguindo o protagonismo creditado aos entes privados, retomar suas atividades e voltar a gerar empregos e desenvolvimento. São claramente políticas que cobrem o lado da oferta e não o da demanda, pregando que o caminho para o emprego é melhorar as condições de competitividade das empresas.

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Offshore Leaks: exemplo de reportagem transnacional Offshore Leaks: An Example of Cross-Border Reporting B e n -H u r D e m e n e c k 1

Resumo: O Offshore Leaks foi um trabalho jornalístico que expôs mundialmente o universo dos “paraísos fiscais” após consumir 15 meses de trabalho de um consórcio de jornalistas sediado em Washington. O ICIJ, sigla de International Consortium of Investigative Journalists, organizou a colaboração de aproximadamente 86 jornalistas de 46 países. O artigo ilustra como uma “reportagem transnacional” forma uma rede de trabalho colaborativo entre jornalistas profissionais de diferentes países para investigarem um problema de relevância mundial, adaptando a publicação das histórias conforme os seus públicos. No percurso teórico do artigo, procura-se pensar como a reportagem transnacional indica redefinições no profissionalismo do jornalismo e como ela se adapta ou rompe com o jornalismo internacional e o jornalismo nacional/ local diante de uma sociedade civil global em busca de informações associadas a valores cosmopolitas.

Palavras-Chave: Reportagem transnacional, Jornalismo pós-industrial, Offshore Leaks, ICIJ, Globalização.

Abstract: The Offshore Leaks was a journalistic work that exposed the worldwide universe of “tax havens” after consuming 15 months of work by a consortium based in Washington (ICIJ - International Consortium of Investigative Journalists) supported by 86 journalists network from 46 countries. The article illustrates how a “cross-border reporting” forms a collaborative network between professional journalists from different countries to investigate a world relevance issue, adapting the publication of the stories for their public. Theoretically, the article indicates how cross-border reporting resets the journalistic professionalism and how it fits or breaks with the “international journalism” and the national and local journalism borders before the advent of a global civil society that looks for information associated with cosmopolitan values.

Keywords: Cross-border reporting, Post-Industrial Journalism, Globalization, Offshore Leaks, ICIJ.

1.  Ben-Hur Demeneck é doutorando do Programa em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (PPGCOM da ECA-USP), vinculado à área de concentração Estudos dos Meios e da Produção Midiática e à linha de pesquisa Informação e Mediações nas Práticas Sociais. É mestre em Jornalismo pela UFSC e sua tese recebe a orientação do Prof. Dr. Eugênio Bucci e o financiamento da CAPES. Contato: [email protected].

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Offshore Leaks: exemplo de reportagem transnacional Ben-Hur Demeneck

1. INTRODUÇÃO OFFSHORE LEAKS é uma série jornalística que ganhou visibilidade mundial em

O

2013 ao expor o universo dos “paraísos fiscais” e que ilustra o que vem sido chamado por repórteres investigativos de “reportagem transnacional”. O processo de apuração das informações do Offshore Leaks consumiu 15 meses de trabalho de um consórcio de jornalistas sediado em Washington (o ICIJ – International Consortium of Investigative Journalists) cuja rede de colaboração envolveu cerca de 86 jornalistas de 46 países debruçados num volume de dados financeiros de aproximadamente 260 gigabytes, equivalente a uns 2,5 milhões de arquivos – algo 160 vezes maior que a quantidade de informação vazada pelo WikiLeaks. O Offshore Leaks consegue expressar uma das faces do “jornalismo pós-industrial”, que será comentado a seguir, seja por sua capacidade em extrair informações de grandes volumes de dados, seja por aproveitar o caráter colaborativo de redes de trabalho. Embora processos de globalização e de transnacionalização não sejam novidade em se tratando de jornalismo, uma análise dos anos 2010 indica haver o desenvolvimento de um fenômeno diferenciado na cultura do jornalismo internacional que não se explica apenas dentro dos padrões corporativos nem de hábitos competitivos, que são tão caros ao perfil do profissional de imprensa. Qualquer reportagem de profundidade que reúna jornalistas de pelo menos dois países numa investigação comum de um tema de relevância mundial – ou pelo menos continental – pode ser adjetivada genericamente como “transnacional”. No entanto, em termos específicos, a reportagem transnacional se refere a um padrão de trabalho que atualmente é praticado dentro do chamado “jornalismo investigativo” e que procura dar conta de fenômenos complexos, como “cadeias produtivas” do crime organizado. Também realizada por redações tradicionais, a reportagem transnacional cresceu em importância nos anos 2000 e 2010 pela ação de organizações sem fins lucrativos e de centros de investigação jornalística autônomos. É conhecida por “cross-border reporting”, em inglês, e “periodismo transfronteirizo”, em espanhol. Segundo Steven Vertovec, o uso do termo transnacionalismo passou de um conjunto difuso de artigos publicados na área de Ciências Sociais durante a década de 1980 para cerca de 1.300 artigos que o traziam como palavra-chave. Sendo que cerca de 2/3 foram publicados entre 1998-2003 (VERTOVEC, 2009). O debate das fronteiras em jornalismo passa pela maior ou menor permeabilidade de algumas em relação a outras. Há situações como em regiões entre França, Bélgica, Luxemburgo e Alemanha, na qual houve mudanças de fronteiras sem a perda de características culturais. Nos países bálticos da Estônia, Lituânia e Letônia, por exemplo, há proximidades de interesse. Em contrapartida, há a tensão na fronteira entre Estados Unidos e México e, ainda, áreas mais tensas como entre Paquistão e Índia, conforme destaca Kevin Grieves (2012). O debate da reportagem transnacional, que aqui passa a ser considerado pela série Offshore Leaks, surge como uma demanda comunicacional na medida em que a globalização se consolida pela crescente conectividade das tecnologias, pela mobilidade pelo mundo e pelo apagamento de fronteiras. Essa é uma descrição de cenário feita por Berglez para justificar uma ética voltada para um jornalismo global em detrimento dos, digamos, “jornalismos nacionais”. Ainda que a tecnologia conduza a comunicação

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a uma abrangência intercontinental, uma perspectiva global depende, sobretudo, de fundamentos epistemológicos para ser promovida (BERGLEZ, tradução livre, 2013, p.855). Não bastam haver forças econômicas, políticas e ecológicas transnacionais se não houver uma perspectiva de conhecimento que extrapole limites “paroquiais”. Se o cosmopolitismo está presente em diversos setores sociais e prenuncia uma “sociedade civil global” e trabalhos em Comunicação procuram revelar esse fenômeno mundial, convém questionar em que medida o jornalismo consegue institucionalizar processos e funções voltados a valores mais globais que nacionais.

2. O JORNALISMO PÓS-INDUSTRIAL O termo jornalismo pós-industrial surgiu em 2001, cunhado pelo jornalista Doc Serls, associando as redações jornalísticas ao maquinário de produção da notícia. Até os anos 1990, esses espaços ficam próximos. No entanto, nos anos 2010 já não há essa dependência, pois um smartphone é capaz dar suporte à transmissão ao vivo de uma sonora para a BBC, para CNN ou uma rádio comunitária. O conceito de jornalismo pós-industrial foi tema de dossiê de Anderson, Bell & Shirky, divulgado no Brasil pela Revista de Jornalismo ESPM (Abr/Mai/Jun 2013), em que se destacou um cenário em que sobra interesse “tanto na institucionalização de novas organizações de notícias quanto na adaptação de velhas instituições à nova realidade” (p. 40). Esse estudo foi lançado em 2012, a partir de atividades da Escola de Jornalismo de Columbia e seu Tow Center for Digital Journalism, conteúdo depois publicado na Columbia Journalism Review (CJR), e se assentou em cinco convicções (2013, p. 33): a) o jornalismo é essencial; b) o bom jornalismo sempre foi subsidiado; c) a internet acaba com o subsídio da publicidade; d) a reestruturação se faz obrigatória; e e) há muitas oportunidades de fazer um bom trabalho de novas maneiras.

O jornalismo pós-industrial deve ser considerado dentro do contexto de sociedade em que a produção e a distribuição de informação tomaram o lugar antes ocupado pelo trabalho manual na indústria. Ou seja, uma sociedade da informação (information society). Em 1973, o sociólogo Daniel Bell publicou “O advento da sociedade pós-industrial” (1973), obra em que interpretava que o poder da indústria passava a depender de um capital humano, baseado na tecnologia e no conhecimento científico. Havia um domínio crescente da racionalidade científica frente às esferas políticas, econômicas e sociais e que passava a reestruturar a hierarquia social. O dossiê de Anderson, Shirky & Bell permite pensar nos modelos de organização do jornalismo e reavaliar procedimentos de produção das notícias, considerando a redução dos custos e a incorporação de métodos digitais de trabalho. Segundo o dossiê, a reestruturação vista na indústria do jornalismo não encontra par. Mesmo companhias automobilísticas, que foram das que mais sofreram processos de mudança nas últimas décadas, elas não tiveram alterações tão profundas quanto as passadas pelos meios de comunicação. Para o jornalista, apenas há algumas pistas de como irá se localizar no tempo e no espaço, entre elas:

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• Prazos e formatos de produção de conteúdo já não são delimitados; • Localização no mapa perde relevância na coleta de informações e na criação e consumo do conteúdo jornalístico; • Transmissão de dados em tempo real e atividade em redes sociais produzem informações em estado bruto; • Feedback em tempo real influencia matérias; e • Indivíduos ganham mais importância do que a marca (2013, p. 51).

O jornalismo pós-industrial, nessa linha de pensamento, usufrui de novidades tecnológicas e culturais próprias dos tempos de convergência – desde fazer uso de mais máquinas para produzir parte das notícias, até mesmo obter dados via indivíduos, multidões e máquinas. O jornalista sequer pode dispensar parcerias nem dados de caráter público (p. 38). Ou seja, o trabalho em rede se mostra uma resposta ao jornalismo mainstream, principalmente aquele de caráter investigativo, ao que voltamos ao exemplo do ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos) e de outras organizações jornalísticas sem fins lucrativos voltadas à investigação noticiosa. Em “The Growing Importance of Nonprofit Journalism”, Charles Lewis indica a diversidade geográfica e a importância de redes ao redor do mundo, entre elas o Centro de Reportagem Investigativa (Center for Investigative Reporting), sediado em Berkeley, na Califórnia; o Centro Filipino de Jornalismo Investigativo (Philippine Center for Investigative Journalism), localizado em Manila, capital daquele país; e muito mais novo e menor em relação aos outros, o Centro de Jornalismo Investigativo romeno (Romanian Center for Investigative Journalism), instalado em Bucareste (LEWIS, 2007). Os centros de investigação jornalística sem fins lucrativos, segundo David Kaplan, são importantes por sua capacidade de fornecer treinamento exclusivo a repórteres e para dar suporte à produção de conteúdos. Esses centros conseguem estabelecer padrões de excelência, fundamentais para a profissionalização das comunidades de jornalistas locais (KAPLAN, 2007). Aliás, centros jornalísticos independentes não precisam ser generalistas. Eles podem ser especializados, caso do Inside Climate News, que ganhou o Prêmio Pulitzer 2013. Mesmo com uma equipe de sete funcionários e sem escritório algum promoveu a cobertura do vazamento de um oleoduto enquanto a imprensa tradicional ignorava a ocorrência. O editor e fundador do grupo David Sassoon afirma que a iniciativa do canal informativo ocorreu após a percepção de que os meios de comunicação não conseguiam explicar adequamente a questão das mudanças climáticas (FROOMKIN, 2013). Como contexto do fenômeno das organizações sem fins lucrativos, Charles Lewis apresenta tanto um cenário de devastação dos espaços das redações na primeira década do século XX quanto a alternativa encontrada pelo jornalismo investigativo “de não apenas sobreviver, mas a de prosperar numa nova idade de ouro altamente inovadora” (LEWIS, tradução livre, 2009). A crise da imprensa pôde ser vista em 2008, quando o grupo Gannett & McClatchy cortou sozinho mais de 5.500 postos de trabalho de jornal. Ainda, em análise da Advertising Age, entre 2000 e 2008, as indústrias de mídia teriam perdido mais de 200.000 empregos (LEWIS, 2009). Editores da Columbia Journalism Review escreveram especificamente sobre o fenômeno da colaboração entre jornalistas ocorrer após a grande onda de demissões nos EUA, em

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2009: “durante o ano passado, uma série de agências de notícias têm feito o que tem sido

tradicionalmente anátema para os jornalistas: colaborar com a concorrência”2. Segundo os editorialistas, a “colaboração precisa tornar-se central para se manter a missão do jornalismo”, e nisso incluem a imprensa mainstream. A opinião editorial afirma o modelo colaborativo como oportunidade de reconstruir a confiança do público e de desenvolver novos empreendimentos em jornalismo. A perda de credibilidade do “jornalismo tradicional” também serviu para motivar os jornalistas a procurarem alternativas. Confiança que começou a se perder com a preparação para a guerra no Iraque e com a crise imobiliária de 2007 (FROOMKIN, 2013). Para Stefan Candea, diretor do Centro Romeno de Jornalismo Investigativo, o décifit investigativo motivou a formação de grupos de jornalismo investigativo independentes em organizações transnacionais, principalmente na condição de organizações sem fins lucrativos. Os pontos falhos das redações tradicionais, e que favoreceram a ascenção de outros sistemas organizacionais, foram a falta de visão colaborativa, a falta de recursos para o trabalho em profundidade e, em alguns casos, até corrupção (CANDEA, 2013a).

3. ICIJ E O OFFSHORE LEAKS Ligado ao Center for Public Integrity, o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ; na tradução livre, Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos) foi fundado em 1997. O ICIJ pode ser considerado a instituição promotora de reportagens transnacionais com maior projeção no mundo, fato reafirmado no início de 2015 com o Swiss Leaks. Segundo informações institucionais divulgadas desde fevereiro de 20123, o consórcio conta com uma rede global com mais de 175 repórteres distribuídos em mais de 50 países, os quais não se detêm nas fronteiras nacionais para apurar informações envolvendo manifestações globais da criminalidade, da corrupção e de poderes instituídos. O ICIJ contatou para o Offshore Leaks uma rede composta por 86 jornalistas espalhados em 46 países. Segundo as palavras do jornalista britânico Duncan Campbell, o trabalho “representa uma das maiores parcerias investigativas cross-border na história do jornalismo”4. Diferentemente do caso WikiLeaks, o “whistleblower” do Offshore Leaks não foi descoberto5 e ele contatou o australiano Gerard Ryle. O jornalista passou a se familiarizar com o mundo dos paraísos fiscais enquanto investigava fraude de uma empresa australiana do setor energético e teve de fazer escala pelas Ilhas Virgens Britânicas. Quanto aos “paraísos fiscais”, um livro que indica a influência desses locais junto à economia e à política mundiais é Treasure Islands, que foi publicado em 2011 por Nicholas Shaxson. Além do jogo de palavras com o clássico de Robert Louis Stevenson 2.  Columbia Journalism Review, 05/2009. 3.  As informações institucionais do ICIJ estão disponíveis no hiperlink http://www.icij.org/about 4.  Artigo “How ICIJ’s Project Team Analyzed the Offshore Files”. Trecho, no original: “ICIJ’s team of 86 investigative journalists from 46 countries represents one of the biggest cross-border investigative partnerships in journalism history”. Texto divulgado em http://www.icij.org/offshore/how-icijs-projectteam-analyzed-offshore-files (3/04/2013, 7:00 pm). 5.  O WikiLeaks envolveu a publicação de “diários do Iraque”, “diários do Afeganistão” e o “Cablegate” (telegramas diplomáticos norte-americanos). O conteúdo foi vazado pelo jovem militar Bradley Manning, que cumpria expediente no Iraque e acabou tendo seu nome revelado pelo hacker Lamo à revista Wired.

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(1850-1894), o jornalista do Financial Times Shaxson explica como é que um terço da riqueza global passa por localidades como as Ilhas Cayman e conseguem encobrir crimes como evasão fiscal, sonegação de impostos e lavagem de dinheiro. Mais que cenários do capitalismo mundial, as transações offshore são um de seus meios de sustentação. O jornal The Sidney Morning Herald, na edição de 5 de abril de 20136, destaca a corrida global iniciada pelo jornalista Gerard Ryle (“Mysterious mail to Australian journalist triggers global tax haven expose”) até que assumisse o cargo de coordenador do ICIJ. Os intertítulos indicam efeitos na política, na economia e mesmo no mundo comunicacional do que se transformaria no Offshore Leaks em vez de mais uma matéria de interesse nacional – “Embarrassing the powerful”, “Millions in secret accounts”, “Larger than WikiLeaks”. Na entrevista que concedeu ao periódico, Ryle lembra do valor da colaboração no trabalho investigativo, malgrado a resistência de muitos de seus colegas –“‘I wanted to encourage collaboration among journalists, something that we, investigative journalists, normally don’t like to do. We like to work on our own and keep our secrets’, Ryle said”. Voltando às questões do dossiê de jornalismo pós-industrial, o jornalista dessa nova era deve saber programar algoritmos e, além de obter dados, deve saber quais manter, para quem os distribuir e como delegar funções para seu tratamento. Como também, o jornalismo deve incorporar em sua rotina – e até mesmo de modo público – a análise de objetivos e de resultados para poder combinar qualidade, relevância e impacto. Em paralelo, Bill Kovach e Tom Rosenstiel também destacam o desafio de os jornalistas em engajar o público nesses anos 2010: Journalism can be more accurate, more informative, more engaging, by being produced in collaboration with the intelligence of the community once imagined to be merely an audience and by employing the machinery of the network to also make it more empirical. The openness of the network also represents similar pulls in opposing directions when it comes to freedom (KOVACH & ROSENSTIEL, 2014, pos. 96 a 99).

O comitê consultivo do ICIJ, aliás, é integrado por Bill Kovach como também por especialistas como Rosental Calmon Alves e Brant Houston. O ICIJ procura reunir jornalistas, editores, advogados e especialistas em RAC (Reportagem Assistida por Computador) e em registros públicos e eles compartilham uma constatação de que o “interesse público” tem sido prejudicado nos processos de globalização, já que o trabalho das redações tradicionais estariam sendo constrangidos por deadlines cada vez menores e por falta de recursos. Em países pouco desenvolvidos, acreditam, as ameaças chegam a se concretizar em agressões e assassinatos contra jornalistas. As equipes do ICIJ investigaram temas e agentes como o contrabando de tabaco multinacional, grupos de crime organizado, cartéis militares privados, empresas de amianto, lobistas em questões climáticas, contratos de guerra do Iraque e do Afeganistão. Reportagens da ICIJ já foram premiadas com o George Polk Award, o John Oakes Award, o Editor and Publisher Award, o Investigative Reporters and Editors Award e o Overseas Press Club Award. 6.  http://www.smh.com.au/business/world-business/mysterious-mail-to-australian-journalist-triggersglobal-tax-haven-expose-20130405-2hak3.html

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Igualmente interessada em promover valores cosmopolitas, só que a partir da Europa, a especialista dinamarquesa Brigite Alfter escreve em seu artigo “The Challenge of CrossBorder Reporting in Europe” (2011) que o papel fiscalizador do jornalista passa, hoje, por sua capacidade de estabelecer uma rede de contatos (networking) e essa necessidade se reforça quando a cobertura exige um maior número de viagens, de domínio de outros idiomas e de contatar diversas instâncias administrativas. Para Alfter, a reportagem transnacional, em seu empenho coordenado de equipes, tem a grande qualidade de reduzir custos e até mesmo riscos. No entanto, tal levantamento de informações jamais deve ignorar as tradições locais de mídia, pois as histórias precisam ser moldadas conforme o padrão cultural local ou elas perdem seu impacto. Corroborando o argumento da dinamarquesa, a diretora do Centro de Jornalismo Investigativo Toni Stabile da Escola de Graduação da Universidade de Columbia, Sheila S. Coronel, que é de origem filipina, enfatiza que o jornalista pode dividir ou diminuir os custos e os riscos ao desenvolver reportagens transnacionais (FROOMKIN, 2012). Apesar das especificidades do novo modelo, há uma tônica que se mantém do “velho” trabalho investigativo e todos os repórteres o repetem: o de seguir o dinheiro, só que agora em caráter global.

4. CONCLUSÃO A questão das fronteiras é constante quando o assunto é globalização já que seus processos de desterritorialização têm “afetado as lealdades de grupos envolvidos em diásporas complexas, suas manipulações monetárias e outras formas de riqueza e investimento, bem como as estratégias de Estado” (IANNI, 1996, p. 64). Octavio Ianni recorda aos seus leitores que, muito mais que um fenômeno econômico, a formação de uma sociedade global deve ser pensada em sua complexidade, como um “horizonte no qual se revela a multiplicidade das formas de ser, viver, sentir, agir, pensar, sonhar, imaginar” (IANNI, 1996, p. 77). Para o jornalista norte-americano, David Kaplan, que é um veterano em trabalhos transnacionais, além da globalização, os esforços de ajuda internacional e os centros independentes de jornalismo também foram como favoráveis para dar vigor ao modelo transfronteiriço de reportagem (2007). Kaplan acredita que um fator histórico que inaugurou uma era de crescimento mundial da reportagem investigativa foi o fim do comunismo (pós1989). Outro elemento que muda a esfera pública mundial e a natureza do jornalismo são as novas mídias. Conforme Chouliaraki (The London School of Economics) e Blaagaard (Aalborg Universitet, Dinamarca), episódios bastante simbólicos dessa realidade foram a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, em 2011, o terremoto no Haiti, em 2010, e as Eleições no Irã, em 2009. Para Mary Kaldor, “o papel da sociedade civil global em um sistema de governança global não é um substituto para a democracia a nível nacional, mas sim deve ser visto como um suplemento em uma época em que a democracia clássica é enfraquecida no contexto da globalização” (2003, Pos. 310 a 312). Afinal de contas, para complementar as políticas nacionais, hoje é preciso que as reportagens façam uso de processos de apuração para além das fronteiras tradicionais devido à geografia complexa dos problemas jornalísticios, como é o narcotráfico, o contrabando, o tráfico de pessoas, as máfias, os

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cartéis militares privados, as empresas de mineração, os lobistas de questões climáticas, os contratos de guerra etc. Ou seja, problemas que são causados por redes de agentes globalizados. Historicamente, o jornalismo foi uma atividade atrelada ao Estado-nação – assunto que renderia vários artigos em Comunicação – no entanto, nos anos 2000/2010, as reportagens atravessam fronteiras para abordar problemas do jornalismo contemporâneo e favorecem a consolidação de uma opinião pública globalizada. Por outro lado, o desafio continua sendo fazer com que os jornalistas exerçam uma ética profissional cosmopolita. O pesquisador canadense Stephen Ward estabelece uma definição para essa ética menos presa a valores “paroquiais” – como ele mesmo gosta de escrever: Cosmopolitan ethics asserts the equal value and dignity of all people, as members of a common humanity. Cosmopolitanism emphasizes universal principles of human rights, freedom, and justice (…) The nationality, ethnicity, religion, class, race, or gender of a person (or group) is morally irrelevant to whether an individual is a member of humanity and comes under the protection of cosmopolitan principles (…) Cosmopolitans regard themselves as defined primarily by the common needs and aspirations that they share with other humans (WARD, 2010a, p. 154).

Uma vez que uma das palavras-chave do jornalismo pós-industrial é “colaboração”, os profissionais da informação precisam desenvolver além de que técnicas novas sociabilidades e uma capacidade narrativa que os permita se relacionar com tecnologias, multidões e parceiros de trabalho. Trabalhar com redes demanda saber demarcar responsabilidades e quando é hora de se aproximar ou se distanciar desses parceiros – habilidades que os jornalistas devem desenvolver para enfrentarem os novos desafios da profissão em tempos pós-industriais, como orienta o dossiê de Columbia. Este artigo não é exaustivo sobre o fenômeno dos centros independentes de jornalismo, das organizações investigativas sem fins lucrativos, tampouco sobre o advento das chamadas reportagens transnacionais. O objetivo é chamar a atenção para instituições como o ICIJ e trabalhos como o Offshore Leaks, que acabam por diversificar o campo do jornalismo internacional à medida que expandem as fronteiras da cultura jornalística. Amplia-as para além das barreiras corporativas e dos interesses nacionais.

5. REFERÊNCIAS Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – http://abraji.org.br/ Anderson, C. W.; Bell, E. & Shirky, C. (2013). Jornalismo pós-industrial: adaptação aos novos tempos. In: Revista de Jornalismo ESPM. Abr/Mai/Jun. Nº 5, ano 2. P. 30-89. Relatório da Columbia University. Alfter, B. (2011). The Challenge of Cross-Border Reporting in Europe. Nieman Reports. Nieman Foundation for Journalism at Harvard. Online exclusives. Disponível em http:// www.nieman.harvard.edu/reports/article/102600/The-Challenge-of-Cross-Border-Reporting-in-Europe.aspx Appadurai, A. (2009). O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural. 128 p. Barbosa, A. (2014). O mundo globalizado: política, sociedade e economia. 5ª ed., 2ª reimp. São Paulo: Contexto.

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O Jornalismo Sensacionalista como Estratégia Discursiva nas Manifestações de Junho de 2013 The Sensational Journalism and Discursive Strategy in Events of June 2013 F ab r i s e

de

Oliveira Müller1

Resumo: As características melodramáticas vem sendo refuncionalizadas no jornal impresso como um dos critérios de noticiabilidade e de atração do público leitor. Com o objetivo de analisar o enfoque sensacionalista como estratégia discursiva do jornal, este artigo apresenta a análise de 30 edições do jornal Folha de São Paulo. O veículo que não é reconhecido pela produção do sensacional e direcionado aos públicos classes A e B, vale-se dos recursos sensacionalistas para atrair a atenção do público leitor. Tal constatação percebe-se no estudo, através da análise das chamadas e manchetes e de capa.

Palavras-Chave: Sensacionalismo. Jornal impresso. Estratégias discursivas. manifestações sociais. Abstract: The melodramatic characteristics comes being change in printed newspapers as one of the newsworthiness criteria and attraction of readers. With the objective of analyzing the focus sensationalist as discursive strategy, this paper analysis of 30 editions of the Folha de São Paulo. The vehicle that is not recognized by production sensacional and directed to public class A and B, but used sensational resources to attract the attention of readers.

Keywords: Sensationalism. Printed journal. discursive strategies. Social events.

INTRODUÇÃO SÉCULO XX testemunhou as transformações na imprensa brasileira, que envolveu

O

a introdução de novas técnicas e outro pensar sobre a estrutura das organizações (ABREU, 2002). Tendo um cenário mutante, o público leitor transformou-se em proporções equivalentes as próprias mudanças da imprensa. E “embora não deva ser considerada o único agente de transformação da imprensa, a tecnologia foi seguramente um de seus principais instrumentos” (ABREU, 2002, p. 28). Esse contexto, sinalizado especificamente a partir da década de 80, mudou tanto a coleta de informações, como a produção da noticia e a sua distribuição. Neste estudo, as organizações de mídia, em específico o Jornal Folha de São Paulo, é tomado como uma organização que utiliza práticas linguageiras para se comunicar, via 1.  Doutoranda pelo Programa da Pós-Graduação da UFSM, Membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação Institucional e Organizacional UFSM/CNPq. E-mail: [email protected]

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O Jornalismo Sensacionalista como Estratégia Discursiva nas Manifestações de Junho de 2013 Fabrise de Oliveira Müller

contratos de leitura, com o seu público leitor na busca por fidelização. As organizações de mídia são corporações que trabalham com o potencial de lucro, que se posicionam politicamente e que atuam em um cenário onde o leitor participa, ajuda a construir o jornal, opina, critica. O discurso se transforma em função das tecnologias, o leitor passa a ser o centro dos processos discursivos, os modos de consumo da informação necessitam cada vez mais de pactos de fidelização entre a produção e a recepção (FAUSTO NETO, 2008). Em outras palavras, os contratos de leitura somam interesses comerciais, além de estratégias discursivas, transformando o discurso jornalístico. Os contratos, aqui referidos, compreende o conjunto de regras e de instruções constituídas pelo campo da emissão para serem seguidas pelo campo da recepção, que tem o objetivo de persuadir e capturar o receptor (CORREIA, 2008). Seja por meio de fotos, títulos, chamadas, textos, o contrato de leitura é composto por inúmeras estratégias textuais que objetivam o reconhecimento, a audiência, a “parceria discursiva”. E não há ato de comunicação que não estabeleça um contrato de leitura, um acordo onde as partes se reconhecem. Em meio ao gerenciamento da empresa jornalística, a questão econômica é enfatizada e a rentabilidade do veículo passa a ser repensada em função dos investimentos nas novas tecnologias de informação e em equipamentos. Quanto mais público, mais os resultados financeiros estariam adequados ao ponto de equilíbrio da organização e mais as estratégias de marketing passam a compor os processos da empresa.Logo, fatores que envolvem o marketing e o jornal se não encerram na publicidade e na apresentação, a produção textual também se vê condicionada a outros parâmetros, com a necessidade de um discurso mais sucinto, com um texto impessoal, seco, descritivo. Evita-se o juízo de valor, o título ganha relevância, mas também deve ser sintético, o uso da imagem se altera, tendo os profissionais mais zelo quanto pela imagem e quem, ou o que é registrado. A “nova imprensa” considera que não há como manter um jornal, diário, com os custos totais, sem que se tenha os pressupostos do marketing atuando. A experiência, a vivência de redatores, editores já não basta para que se sustente uma organização. Ainda que, também, somente atender as demandas de um público específico, como em qualquer negócio, pode ser perigoso e tornar a qualidade do produto questionável. O jornal, enfim, tem que ser vendável, e em isso não acontecendo, a relação estabelecida com o público não está correta, ou por que os gestores não conhecem o público ou por que não sabem administrar a máquina jornalística. Nessa lógica, iniciada no século XVIII, infere-se que a produção sensacionalista assinala as produções discursivas atuais, ainda que o veículo, não se reconheça como tal, e pensar sobre esta questão é o objetivo deste artigo.

POR QUE GOSTAMOS DE LER NOTÍCIAS SENSACIONALISTAS? Parte do século XVIII características culturais que assinalam até hoje a produção do jornalismo sensacionalista. Marcondes Filho (1989) remete esta modalidade, especificamente, ao século XIX quando o então pensador, político e historiador francês, Alexis de Tocqueville, considerava que a imprensa era uma arma importante dos quais todas as pessoas poderiam usufruir, causadora de mudanças, ajudava ao cidadão exercer o poder político. Contudo, essa perspectiva não se concretizou, pois na realidade, a imprensa

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não estava “aberta” a voz dos mais fracos, aos que não possuíam capital ou conviviam no meio político (MARCONDES FILHO, 1989). A necessidade do sensacional estaria vinculada a uma espécie de compensação pelo desgaste no trabalho, esforço, necessidade de bom desempenho, exigência física e emocional. Desse modo, os fatos sensacionais propiciariam o equilíbrio emocional em contraposição à exaltação profissional (MARCONDES FILHO, 2009). Ele é o outro lado da opressão social do trabalho e das exigências absurdas impostas ao trabalhador pelo processo de produção. De um lado, a sociedade cobra, impõe um ritmo e suas leis férreas de desempenho. Quem não se submete a elas, cai fora. A luta pela sobrevivência no capitalismo é a mais violenta de todas (....). Esse desgaste, esse esforço supremo exige uma tranqülização, uma pausa para recuperação. Ai entra a função do jornal como lazer. Ao trabalhador interessa muito mais o jornal que o descanse, que o entretenha, do que o jornal que o jogue de novo contra o mundo do trabalho, da produção, da política (MARCONDES FILHO, 1989, p. 89)

Afora a necessidade de uma leitura que extirpasse a carga imposta ao trabalhador, os primórdios do sensacionalismo partiram da literatura que envolvia assuntos não menos atrativos aos indivíduos, como a pornografia, o melodrama, o folhetim, a literatura fantástica, de horror e o romance policial (ENNES, 2007). A pornografia, escreve a autora, bem como as demais literaturas, surgiram em contexto de critica à ordem política vigente, no caso do pornô, a crítica era aos monarcas, e por isso, tal literatura era marcada por ideais republicanos somados aos interesses de comercialização. O melodrama, também no século XIX, surge com o teatro e era identificado pelo excesso, o maniqueísmo (o que é certo ou errado; quem é o bem? Quem é o mal? Pobre? Rico?). O uso de situações ou elementos cômicos, que provocassem risadas, deboches (o bobo da corte) serviam para criticar a burguesia através do drama e do exagero. (AMARAL, 2007). Nos jornais, os leitores não mais se deparam com os folhetins, mas o conhecimento das características desta literatura permite que se perceba a herança através do estilo, forma, valores, o encontro com o gosto popular, o acolhimento das classes. Sobre isso, referencia Marcondes Filho (1989, p. 89) A grande massa não lê os grandes jornais (liberais) os meios que a atingem são de outra natureza, são os que se prestam a dar pinceladas de informação devidamente temperadas com elementos atrativos e sensacionais. É uma imprensa que não se presta a informar, muito menos a formar. Presta-se básica e fundamentalmente a satisfazer as necessidades instintivas do público, por meio de formas sádicas, caluniadoras, ridicularizadoras, das pessoas.

A forma sensacionalista de produzir jornal escreve Marcondes Filho (1989), é ligada a exacerbação das neuroses coletivas e aos desvios dos culpados pelas situações do povo, ou seja, a angústia, os ódios raciais, etc. Logo, esta imprensa trabalha com as emoções, reforçando os preconceitos raciais, as campanhas contra pessoas, instituições, grupos sociais, as minorias sexuais, opositores políticos. As pessoas vivenciam realidade de pressão, seja social ou profissional, a realidade ameaça com assaltos, abusos, diversas formas de exploração, medos, e tem-se a impressão

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que os culpados, sendo eles ricos e poderosos, são inatingíveis, não sofrem punições, não são presos. Por outro lado, o roubo, a prostituição vem do desemprego e isso não é considerado, pois o que a sociedade precisa é realmente de culpados para quem possamos transferir o ódio, a raiva, os preconceitos. Eis o grande filão da imprensa sensacionalista, a exposição da violência, do sexo, escândalos, assuntos que possam preencher o lazer dos indivíduos com uma neurose que se equivalha a neurose do trabalho.

O conceito de sensacionalismo Amaral (2005) ao discutir o conceito do termo sensacionalismo diz que há uma caracterização do popular na imprensa, resultando em produtos de mídia populares. Sobre o conceito, confirma a pesquisadora: “suspeitamos do poder explicativo do conceito de sensacionalismo na atualidade. De tão utilizado, tornou-se uma categoria flácida, sem fronteiras e sem vigor” (AMARAL, 2005, p. 02). Contudo, de modo geral, o sensacionalismo remete a divulgação ampla da violência, fotos chocantes, mentiras, distorções, e uma linguagem coloquial marcada por gírias, a ênfase é na relação estabelecida com o leitor, onde as sensações são estimuladas. Pedroso (2001) afirma que o jornalismo sensacionalista é um modo de produção discursivo da informação de atualidade, onde estão presentes critérios de exagero gráfico, temático, linguístico e semântico. Para a autora, a imprensa é regida por interesses comercias que fazem com que a mesma dirija-se a um público estimado. Assim, há jornais que produzem para o nível cultural das classes média e alta, classes A e B, com caraterísticas de sobriedade, credibilidade, conteúdo politico e, outro, com mensagens adequadas às classes baixas, ou que objetivam atender a todas as classes sociais, especialmente, as pessoas de baixa renda (PEDROSO, 2001, p. 46). Neste caso, há um interesse de grande vendagem das edições, um desprezo da linha editorial, da sobriedade e da seriedade. A impressão e a produção do jornal sensacionalista seguem características comuns e conhecidas, com o predomínio do interesse econômico. Entretanto, com a ampliação do grau de informação dos leitores, muito em função do desenvolvimento das tecnologias de informação, assuntos das editorias de economia e política foram agregados à mídia popular. O que permanece inalterado é o exagero gráfico e visual, característica marcante desta produção. É a manchete que “chama” o leitor, a redação é apelativa, primária, superficial, volátil, perdendo o interesse do leitor, assim que o mesmo a lê (sem durabilidade). Existe uma relação do jornal com o leitor marcada pelo espetacular e pelo descartável. A emoção é evocada para que o leitor compre o jornal com base no que o fato pode provocar.

As características da produção sensacionalista Ennes (2007) em suas pesquisas sintetiza as características dos jornais sensacionalistas, tanto no que tange à construção narrativa, ao universo temático, quanto às estratégias de diagramação. Apresenta de forma geral aspectos que são comuns na pesquisa da abordagem do sensacional: a) a ênfase em temas criminais ou extraordinários, enfocando preferencialmente o corpo em suas dimensões escatológica e sexual; b) a presença de marcas da oralidade na construção do texto, implicando em uma relação de cotidianidade com o leitor; c) a percepção de uma série de marcas sensoriais espalhadas

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pelo texto, como a utilização de verbos e expressões corporais (arma “fumegante”, voz “gélida”, “tremer” de terror etc.), bem como a utilização da prosopopeia como figura de linguagem fundamental para dar vida aos objetos em cena; d) a utilização de estratégias editoriais para evidenciar o apelo sensacional: manchetes “garrafais”, muitas vezes seguidas por subtítulos jocosos ou impactantes; presença constante de ilustrações, como fotos com detalhes do crime ou tragédia, imagens lacrimosas, histórias em quadrinhos reconstruindo a história do acontecimento etc. Amaral (2007, p. 115) salienta que normalmente, no jornalismo, o melodrama se revela quando as notícias restringem-se a apresentar a singularidade dos fatos ao seu máximo. Num fato relatado por intermédio do habitus jornalístico, a singularidade presente nas manchetes e no lide está atada ao que há de singular no fato, mas trata-se de uma singularidade que guarda relação com o interesse público. Em muitas notícias que se pretendem “populares”, o singular normalmente se apresenta como uma redução do fato a um indivíduo ou sentimento (AMARAL, 2007, p. 115).

É comum no discurso, a recorrência de uma estrutura simplificadora e maniqueísta, a relação entre o jornal sensacionalista e seu consumo por camadas de menor poder aquisitivo, que, por diversas razões, seriam manipuladas e acreditariam estar consumindo uma imprensa “popular” quando, no fundo, estariam consumindo um jornalismo comercial feito para vender e alienar. A partir disso, para que se possa observar a utilização das características da narrativa sensacionalista em um jornal impresso, o artigo traz a temática das manifestações de junho de 2013, quando o país esteve imerso em inúmeros protestos. A escolha deste assunto deve-se justamente pela identificação dos leitores com os personagens das manifestações e com a importância que a temática recebeu ao longo do mês, não só pelos indivíduos, mas também, pela imprensa.

AS MANIFESTAÇÕES SOCIAIS DE JUNHO DE 2013 E O ENFOQUE SENSACIONALISTA DO JORNAL IMPRESSO No mês de junho de 2013, a partir de uma organização denominada Movimento Passe Livre2, identificado como social autônomo e apartidário, iniciaram-se um processo de manifestações no Brasil. O Movimento Passe Livre reivindicava transporte público de qualidade e os protestos ganharam adesão e visibilidade em várias capitais e cidades do Brasil, suscitando outras demandas da população (ALZAMORA, RODRIGUÉS, 2014, p. 02). Dados indicam que tais manifestações ocorreram ao mesmo tempo em mais de 100 cidades do país, envolvendo números superiores a um milhão de participantes. Com objetivo de analisar o enfoque sensacionalista do jornal impresso na divulgação e destas manifestações, segue a análise da Folha de São Paulo3, a partir das capas do primeiro caderno. A proposta é identificar os aspectos gerais da produção do sensacional, conforme sugere Ennes (2007). A escolha do objeto deve-se ao fato de que foi na capital São Paulo, onde aconteceram as manifestações com maior número de pessoas, com repressões e críticas a reação governamental e policial. Por isso, optou-se 2.  Informações obtidas no site http://tarifazero.org/mpl/, acesso em 20 de junho de 2014. 3.  Acesso ao site pelo endereço http://www.folha.uol.com.br/.

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por um veículo paulista, a Folha de São Paulo, um dos jornais com maior circulação e vendagem e com atuação desde a década de 20. De acordo com o Instituto Verificador de Circulação (IVC)4, o jornal tem a maior audiência e circulação entre jornais brasileiros e, ainda, o maior volume de edições pagas. O público alvo da Folha é apresentado com a seguinte distribuição social na cidade de São Paulo5: 20% classe A; 54% classe B; 24% classe C e 2% classe D e E. Ao se considerar as classes A e B, a Folha soma um consumo 74% e as classes C. D e E, totalizam somente 26%. Ainda, 79% tem acesso à internet, mais de 70% tem casa própria e fazem compras em shopping. Dados que reforçam a classe social que mais consome o jornal. Contudo, Amaral (2007) pondera: Atualmente, podemos afirmar que a herança do melodrama está disseminada na imprensa, especialmente nos veículos que se propõem a atingir um público das classes C, D e E (...) especificamente no jornalismo, encontramos essa matriz melodramática tanto nos critérios de noticiabilidade, como na estrutura da notícia de vários veículos.

Para o artigo foram analisadas as capas do primeiro caderno do jornal durante o mês de junho de 2013, totalizando 30 edições, de segunda a domingo, onde as chamadas de capa com a temática apareceram em manchetes entre os dias 07 de junho a 23 de junho. Após a data, o assunto foi referenciado no jornal, contudo, não recebeu destaque nas manchetes. A tabela 1 apresenta um panorama do destaque dado à temática de manifestações em junho de 2013. Tabela 1. Manchetes do mês de junho do jornal Folha de São Paulo Data

Foto que gerou a manchete

01/06/13

Manchete: 10 das 12 novas prisões paulistas já estão superlotadas Foto: Centro de detenção em Pinheiros (....)

02/02/13

Manchete: Idoso vive mais em SP, mas com menos saúde Foto: “Olha aqui, não tem nada, qualquer um pode passar’(sobre a falta de fiscalização na fronteira Brasil e Bolívia)

03/06/13

Manchete: Com aval da União, dívida externa de Estados aumenta Foto: Festa Frustrada (sobre o empate da seleção brasileira na reinauguração do Maracanã)

04/06/13

Manchete: Índios fecham 4 rodovias e invadem sede do PT no sul Foto: Funcionário é assassinado em frente a escola de Higienópolis

05/06/13

Manchete: Valério rejeita acordo e esvazia ação contra Lula (sem foto principal) Foto: O ministro Guilherme Carvalho em reunião (...)

06/06/13

Manchete: Não aceito pressão no mensalão, diz ministro do STF (sem foto principal) Foto: ATO DE FÉ: O pastor Silas Malafaia discursa em manifestações em Brasília contra o aborto e o casamento gay (....)

07/06/13

Manchete: EUA monitoram ligações de milhões de americanos Foto: Manifestantes liderados pelo movimento passe livre, ligado a estudantes, ao PSOL e ao PSTU, queimam catracas de papelão na avenida 23 de maio

08/06/13

Manchete: Obama defende vigiar usuários de internet e ligações Foto: Manifestantes em protesto contra aumento das tarifas de transporte ocupam pistas da marginal Pinheiros (...)

09/06/13

Manchete: Aprovação de Dilma tem a 1 queda, de 8 pontos, e vai 57% Foto: O escultor Ique trabalha na estátua de Pelé (....)

4.  Informações disponíveis em http://www.ivcbrasil.org.br/, acesso de 17 de junho de 2014. 5.  Informação disponível em http://www.publicidade.folha.com.br/folha/perfil_do_leitor.shtml, acesso em 02 de julho de 2014.

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10/06/13

Manchete: Alckmim venceria até Lula, na corrida ao governo de SP Foto: Oscar comemora com Neymar o primeiro gol no amistoso contra França, em Porto Alegre

11/06/13

Manchete: Análise do mensalão vai durar até 2 anos, diz Ministro do STF Foto: TRISTE ROTINA: policial em confronto, no centro do Rio, durante protesto contra a alta da tarifa de ônibus (...)

12/06/13

Manchete: Contra Tarifa, manifestantes vandalizam centro e Paulista Foto: Militantes interditam a avenida Paulista (....)

13/06/13

Manchete: Governo de SP diz que será mais duro contra vandalismo Foto: ENCURRALADO: ferido, policial militar, Wanderlei Vignoli agarra militante e aponta arma a manifestantes para evitar que fosse linchado (...)

14/06/13

Manchete: Polícia reage com violência a protesto e SP vive noite de caos Foto: Policial agride casal que tomava cerveja em bar na avenida Paulista, próximo ao MASP, ontem à noite, e recebeu ordem para que deixasse o local.

15/06/13

Manchete: Alckmin defende MP e diz que protesto tem viés político Foto: Preso durante os protestos, Bruno Lourenço, 19, comemora ao deixar a delegacia em SP

16/06/13

Manchete: Estreia do Brasil tem vaia a Dilma, feridos e presos Foto: A semana em que SP ardeu. Em protesto manifestante usa máscara do filme ‘V de Vingança’

17/06/13

Manchete: Governo de SP pede e terá reunião com manifestantes hoje Foto: Campo de batalha: Manifestantes e Tropa da Choque voltaram a entrar em confronto ontem, desta vez em frente ao Maracanã, antes da partida entre Itália e México.

18/06/13

Manchete: Milhares vão às ruas ‘contra tudo’; grupo atingem palácios Foto: Em Brasília, aos gritos de “o Congresso é nosso”, manifestantes quebram cordão de isolamento da PM e invadem a laje da sede do legislativo (...)

19/06/13

Manchete: Ato em SP tem ataque à Prefeitura, saque e vandalismo; PM tarda a agir Foto: Manifestantes entram em confronto com guardas municipais durante tentativa de invasão à Prefeitura de São Paulo

20/06/13

Manchete: PROTESTOS DE RUA DERRUBAM TARIFAS Foto: À noite, cerca de 500 manifestantes, segunda estimativa da Policia Militar, para comemorar a revogação (...)

21/06/13

Manchete: Dilma promete ouvir ‘ a voz’ das ruas e ‘coibir’ arruaça’ Foto: Passageiros vão a pé ao aeroporto Cumbica, após protestos fecharem rodovias de acesso

22/06/13

Manchete: MANCHETE: Dilma promete ouvir ‘vos das ruas’ e coibir arruaça FOTO: Passageiros vão a pé ao aeroporto de Cumbica, após protestos fecharem rodovias de acesso

23/06/13

Manchete: Maioria dos paulistanos defende mais atos nas ruas Foto: A SEMANA em que o Brasil ARDEU

24/06/13

Manchete: Dilma inicia pela saúde plano para estancar atos Foto: Brasil e Espanha são favoritos, mas o Uruguai sabe jogar contra a seleção

25/06/13

Manchete: Dilma sugere plebiscito para reformar a política Foto: A VOZ DAS RUAS (...)

26/06/13

Manchete: Câmara derruba PEC 37 e destina royalties para educação e saúde Foto: Deputados mostram cartazes contrários ao projeto que reduzia poderes do Ministério Público (...)

27/06/13

Manchete: STF manda prender deputado e, Senado endurece pena de corrupto Foto: Paulinho cabeceia e faz o segundo gol da seleção contra o Uruguai(...)

28/06/13

Manchete: Planalto defende plebiscito conciso sobre reforma Foto: Sob calor de 30 graus Espanha vence Itália (...)

29/06/13

Manchete: Aprovação a Dilma despenca de 57% a 30% em 3 semanas Foto: Bolivianos fazem vigília em delegacia de SP (....)

30/06/13

Manchete: Dilma não venceria no primeiro turno: Marina e Babosa sobem Foto: BRASIL X ESPANHA

Fonte: autoria própria.

O que se pode observar a partir da tabela 1 é que as manchetes sobre as manifestações começam a ganhar destaque de capa a partir de 07 de junho, mas sem o acompanhamento

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de imagens. O mesmo acontece nos dias 08, 09, 10 e 11 de junho, ou seja, a manchete ou a imagem se referem às manifestações, mas não ambas, como se pode observar na figura 3, onde a manchete trata de ligações monitoradas nos Estados Unidos e a imagem principal mostra as manifestações. O jornal segue o contrato estabelecido com os leitores, que indicaram, em uma pesquisa no ano de 2012, a preferência por leituras da política nacional (70%) e de atualidade (94%) e já na capa remetem a temática das manifestações sociais em função dos valores das passagens de ônibus e da qualidade do transporte público.

Figura 1. Jornal Folha de SP de sexta feira, 07 de junho de 2013, disponível em http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/07/2/.

A partir do dia 12 de junho até a data de 24 de junho, o jornal trabalha com ênfase na capa, ou seja, tanto a manchete como a fotografia, remetem as manifestações ocorridas em São Paulo e no país. O período coincide com o auge dos protestos no mês analisado. Após a data, o destaque foi para os amistosos entre as seleções participantes da Copa do Mundo em 2014. E nos dias 26 a 30 de junho, a temática não é mais tratada na capa do jornal. A figura 4 ilustra a capa de 20 de junho, onde se observa as manifestações como pauta destaque do jornal.

Figura 2. A imagem de capa do jornal Folha de SP exemplifica a visibilidade dada ao tema entre 12 e 24 de junho. A capa é de 20 de junho de 2013, quinta-feira.

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Para Amaral (2007, p. 115) um acontecimento terá mais chance de ser notícia “se os indivíduos envolvidos forem importantes, se tiver impacto sobre a nação, se envolver muitas pessoas, se gerar importantes desdobramentos, se for relacionado a políticas públicas e se puder ser divulgado com exclusividade”. E de acordo com as indicações do jornalismo classificado como sensacionalista, Ennes (2007) sugere características que estão presentes nas capas da Folha, ainda que o jornal não tenha como público alvo as classes populares. A começar pelas ilustrações, fotos com detalhes de crimes ou tragédias, imagens lacrimosas (figuras 3, 4 e 5).

Figuras 3, 4 e 5. Na sequencia as capas de 13, 14 e 19 de junho de 2013 do jornal Folha de SP.

Conforme Amaral (2007), o melodrama no veículo se revela quando as notícias tratam a singularidade dos fatos ao seu máximo. Nos exemplos acima, a singularidade pode ser observada nas manchetes “Governo de SP diz que será mais duro contra o vandalismo”, ou “Polícia reage com violência a protesto e SP vive noite de caos”. A singularidade está relacionada também com o interesse público, e existe uma redução do fato a emoção ou sentimento. As imagens são violentas, denotam momentos de agressão a civis ou militares, cenas chocantes e que remetem a tragédia. Esses recursos são utilizados para atingir o maior número de pessoas leitoras do jornal. As capas também trazem a utilização de estratégias editoriais para evidenciar o apelo sensacional, como as manchetes “garrafais”, muitas vezes seguidas por subtítulos jocosos ou impactantes. Por exemplo, na figura 8, do jornal de 14 de junho, onde tanto a manchete utiliza-se de fonte em destaque, em negrito, e abaixo em letras maiúsculas a frase que se refere ao uso de balas pelos manifestantes, pessoas feridas e detidas, com a sinalização em azul de ícones em formato de estrelas para separar o texto e despertar a atenção do leitor. A mesma capa mostra também a foto de uma jornalista da folha de SP, ferida com uma bala disparada pela polícia.

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Figuras 6 e 7. Capa do Jornal Folha de SP de sexta-feira e domingo, 14 e 16 de junho.

“A Semana em que São Paulo ardeu”, indica a presença do que Ennes (2007) classifica como a utilização das marcas sensoriais (figura 7), a utilização de verbos e expressões corporais e o uso da prosopopeia como figura de linguagem fundamental para dar vida aos objetos em cena. A relação entre o jornal sensacionalista e seu consumo por camadas de menor poder aquisitivo pode ser questionada a partir do momento em que as marcas do sensacionalismo são utilizadas por jornais das classes A e B. O que se pode inferir é que muito mais do que atrair os leitores para um jornal, os textos, a imagem, a diagramação, enfim, o contrato de leitura, pode estar direcionando os leitores para uma relação comercial, com o objetivo de venda e de alienação (ENNES, 2007).

CONSIDERAÇÕES PONTUAIS Os recursos melodramáticos podem estar associados a contratos de leitura entre a classe popular e o jornal impresso, mas também, tais recursos podem estar sendo utilizados pela imprensa de um modo geral, para atingir o maior número de pessoas, para que o veículo tenha a comercialização esperada. A mídia acredita que os leitores se interessem por questões dramáticas de um fato ou acontecimento, e por isso, as chamadas de capa privilegiam o singular, o fato inédito, a foto exclusiva, o violento, a tragédia. O leitor tem então a compreensão do fato em si, e não do entorno do acontecimento, da informação e do interesse público. Os contratos de leitura somam os interesses comerciais e fazem isso via estratégias discursivas e comunicativas, transformando o discurso jornalístico em práticas linguageiras que faz a ponte entre o mundo das representações do real e o mundo interiorizado pelos leitores. Através da linguagem, a organização midiática ordena e dá sentido às experiências que o homem compartilha com seus semelhantes e, em nome

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da concorrência pela audiência/leitores justifica a seleção de temas e a angulação da abordagem dos fatos de forma espetacular ou dramática. Se as fotos, os títulos, as chamadas, os textos, são imbricados por estratégias de construção da realidade e o objetivo é a audiência, também não podemos esquecer que a ordenação dos fatos pelo jornal não é resultante de uma posição passiva do sujeito que percebe os fatos como uma verdade em si mesma, pelo aquilo que lê, muito pelo contrário, a realidade dos fatos mediatizados são apreendidos e ressignificados, seja através de nossa percepção, experiência ou entendimento dos fatos. Por isso, a estrutura simplificadora, onde o jornal aponta (ao menos nesse estudo) quem está certo, ou quem está errado, quem agride quem é vítima, denotando uma tendência à espetacularização dos fatos, à criação de pseudo-eventos e a transformação da realidade em simulacro, conduz a um dos problemas centrais epistemológicos, que diz respeito ao modo pelo qual a mente é capaz não apenas de conhecer o mundo exterior, mas também de experimentar sua própria subjetividade. E, na busca por querer ser lido, constar nas estatísticas como sendo o maior jornal de circulação e vendagem, os contratos de leitura constituídos pelo Jornal Folha de São Paulo na intenção de persuadir e capturar o leitor, são modificados ao experienciar novas estratégicas, seja estas no campo discursivo ou comunicativo. Uma destas estratégias no campo discursivo é o uso da linguagem sensacionalista aqui referenciada e constatada ao tomarmos as manifestações de junho de 2013, como objeto de análise.

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Os sentidos do cotidiano político nas imagens da jornada de junho de 2013: Análise do discurso do sistema imagético enunciado pelos jornais paraibanos sobre as manifestações N aya n n e N ó b r e ga 1

Resumo: Este ensaio propõe-se a analisar de que forma a mídia impressa paraibana construiu midiaticamente a jornada de junho de 2013, em que, centenas de pessoas foram às ruas protestar. Essas manifestações foram consideradas pela imprensa nacional e local um dos maiores acontecimentos políticos dos últimos anos. O movimento conseguiu juntar milhões de pessoas nas vias públicas das principais cidades do país, e em algumas vezes aconteceu de forma simultânea. Tais manifestações como as ocorridas em 2013, só tinham sido vistas no Brasil nas décadas de 1980 e início dos anos 1990, com o impeachment do presidente Collor de Melo. Portanto, busca-se entender os sentidos do cotidiano político nas imagens do manifesto. O objetivo é ajudar os “consumidores de imagens” que somos a compreender melhor a maneira como a imagem comunica e transmite mensagens. O método utilizado foi a análise do discurso e semiótica, avaliando as imagens dessas manifestações enunciadas pelos jornais paraibanos, o Jornal Correio da Paraíba e o Jornal da Paraíba.

Palavras-chave: Manifestação, Fotojornalismo, Imagem, Semiótica, Análise do Discurso.

Abstract: This paper proposes to analyse how the press in Paraíba built mediatically the journey of June 2013, in which thousands of people took to streets to protest. These events were considered by the national and local press one of the biggest political events over last years. Millions of people joined protests on public roads of the main cities, and sometimes happened simultaneously. Manifestations like those had only been seen in Brazil in the 1980s and early 1990s, with impeachment of President Collor de Melo. Therefore, the purpose is to understand the daily political meanings in images of the protests and help “consumers of images” to better understand the way that image communicates and transmits messages. The method used in the present study was discourse analysis and semiotics, assessing images of these manifestations shown by newspapers in Paraíba: Correio da Paraíba and Jornal da Paraíba.

Keywords: Manifestation, Photojournalism, Image, Semiotics, Discourse analysis.

1.  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected]

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Os sentidos do cotidiano político nas imagens da jornada de junho de 2013: Análise do discurso do sistema imagético enunciado pelos jornais NAYANNE NÓBREGA

INTRODUÇÃO STE ENSAIO parte da curiosidade sobre o que diz a imagem e como ela diz, a partir

E

da análise do fotojornalismo nos jornais paraibano, no qual o objeto de estudo é a manifestação de junho de 2013 que marcou todo o país. O movimento conhecido como Jornadas de Junho levou milhões de pessoas às ruas reivindicando por melhorias no país. Sem lideranças definidas, os manifestantes lutaram por melhorias na saúde, educação, cidadania, segurança e o ponto principal contra a corrupção política no Brasil. Diante do exposto, serão analisados tanto os aspectos textuais e linguísticos – através das manchetes e legendas –, quanto os imagéticos – seja através das fotografias, das cores ou da diagramação. Como corpus do estudo pretendido foram analisadas algumas imagens da edição de 21 de junho nos jornais Correio da Paraíba e Jornal da Paraíba. Esse recorte se justifica pelo fato de que está edição trouxe os acontecimentos ocorridos após a primeira manifestação no Estado, justificando sua temporalidade e poder histórico. Busca-se identificar quais são as estratégias utilizadas pelos veículos na abordagem do tema e se o texto verbal dialoga com o sentido das imagens. A motivação para a pesquisa partiu da observação que o desejo de mudança, protestar e opinar são características próprias dos seres humanos. Não é de hoje que as pessoas saem às ruas para reivindicar por mudanças e melhorias sociais. Os sindicalistas e os movimentos estudantis dão vozes a esses protestos cotidianamente, mas ao longo da história algumas manifestações tiveram maior adesão da população e provocaram importantes mudanças no rumo do país. As manifestações de ruas sempre demarcaram os espaços sociais na sociedade democrática. No caso das manifestações de junho de 2013, além de serem um tema atual, foi um ato de grande repercussão midiática, tanto local quanto nacional. Sendo assim, torna-se relevante a pesquisa sobre o movimento numa perspectiva paraibana através de uma análise de discurso do cotidiano. Portanto, qual o sentido dado pelos jornais na cobertura das manifestações de junho de 2013 através do sistema imagético enunciado pelos jornais paraibanos?

1. JORNADA DE JUNHO: MOVIMENTO DEU VOZ AO POVO As manifestações ocorridas em junho de 2013 foram consideradas pela imprensa nacional e local um dos maiores acontecimentos políticos dos últimos anos. O movimento conseguiu juntar milhões de pessoas nas vias públicas das principais cidades do país, e em algumas vezes aconteceu de forma simultânea. Tais manifestações como à ocorrida no ano passado só tinham sido vistas no Brasil nas décadas de 1980, movimento das Diretas Já, e início dos anos 1990, com o impeachment do presidente Collor de Melo. No início, a própria imprensa nacional não havia percebido a dimensão do movimento. Na Paraíba, as maiores concentrações de participantes ocorreram em João Pessoa, capital do estado e em Campina Grande, a segunda maior cidade do Estado. Em outras cidades do interior paraibano a população também foi às ruas. O primeiro e maior protesto paraibano ocorreu no dia 20 de junho de 2013, reunindo, apenas na capital, João Pessoa, cerca de 20 mil pessoas. Nesse cenário, as redes sociais se consolidaram como uma importante ferramenta de mobilização. Este manifesto ficou conhecido como “Vem pra Rua”, usando a hashtag, #vemprarua.

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Porém, uma das dificuldades na interpretação das manifestações de rua de junho de 2013 é verificar como a linguagem jornalística constrói o cotidiano político a ser enunciado através das narrativas jornalísticas. Desse modo, do ponto de vista teórico-metodológico, o problema a ser demonstrado neste ensaio decorre da dificuldade que se tem em estabelecer o diacronismo entre o discurso verbal e o discurso imagético quando os jornais tratam dos conflitos entre o campo político e a vida cotidiana. Portanto, esta proposta visa tratar dos conflitos “linguageiros” entre o Visto, aquilo que se absorve do discurso jornalístico através da imagem, e o Dito, aquilo que se apresenta como discurso verbal narrativo conceituando ou nomeando as imagens das manifestações. Essa abordagem faz-se necessária para o campo da comunicação, porque será analisado como se constrói o cotidiano no jornalismo e como acontece essa interpretação dos acontecimentos sociais a partir do discurso jornalístico. De acordo com a pesquisadora Mércia Vasconcellos (2004), essa interpretação: Depende do receptor. Do interpretante. E de como ele vai fazer a recriação do universo discursivo que está em jogo no processo comunicativo. Afinal, a imagem está ali e é altamente informativa. E o jornalismo é uma atividade eminentemente política, que através da mídia edita democrática e ideologicamente os acontecimentos, os fatos, as propostas de todas as esferas políticas, e também as imagens. (Vasconcellos, 2004, p. 15).

2. “IMAGENS”: ELAS FALAM COM AS PALAVRAS Todos os dias nos deparamos com diversos tipos de imagens e acabamos sendo levados a utilizá-las, decifrá-las, interpretá-las. De acordo com Martine Joly (1996, p. 13), em “Introdução à analise da imagem”, “o termo imagem é tão utilizado, com tantos tipos de significação sem vínculo aparente, que parece bem difícil dar uma definição simples dele, que recubra todos os seus empregos”. Ela completa ainda falando que: Existe necessariamente um núcleo comum a todas essas significações, que evite a confusão mental. Para compreender melhor as imagens, tanto a sua especificidade, quanto as mensagens que veiculam, é necessário um esforço mínimo de analise. Porém, não é possível analisar essas imagens se não se souber do que se está falando nem porque se quer fazê-lo (Joly,1996, p.28).

Porém, vivemos um paradoxo: por um lado, lemos as imagens de uma maneira que nos parece totalmente “natural”, que, aparentemente, não exige qualquer aprendizado e, por outro, temos a impressão de estar sofrendo de maneira mais inconsciente uma “manipulação”. Esse é um dos motivos pelos quais elas podem parecer ameaçadoras. A imagem invasora, a imagem onipresente, aquela que se critica e que, ao mesmo tempo, faz parte da vida cotidiana de todos é a imagem da mídia. De fato, a abordagem analítica aqui proposta depende de escolhas: a primeira é abordar a imagem sob o ângulo da significação e não, por exemplo, da emoção ou do prazer estético. Por esse motivo, estudar as implicações da análise da imagem, o que ela pode significar, os cuidados preliminares que ela exige, as expectativas que suscita e o contexto de seu surgimento é tão importante quanto estudar o discurso verbal.

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Há uma complementaridade entre a imagem e a linguagem verbal no jornalismo impresso, uma vez que as linguagens não apenas participam da construção da mensagem visual, como a completa em uma circularidade ao mesmo tempo reflexiva e criadora. Se a imagem é percebida como representação, isso quer dizer que a imagem é percebida como signo. Portanto, para semiótica é possível considerar seu modo de produção de sentido. De fato, um signo só é “signo” se “exprimir idéias” e se provocar na mente daquele ou daqueles que o percebem uma atitude interpretativa. Ou seja, buscamos entender o que diz uma imagem, como diz. Vê-se, portanto, que a teoria semiótica, que propõe considerar a imagem como ícone, isto é, como signo analógico, está em harmonia perfeita com seu emprego e pode nos permitir compreende-lo melhor. Se essas representações são compreendidas por outras pessoas além das que as fabricam, é porque existe entre elas um mínimo de convenção sociocultural, em outras palavras, elas devem boa parcela de sua significação a seu aspecto de símbolo, segundo a definição de Pierce. A teoria semiótica permite-nos captar não apenas a complexidade, mas também a força da comunicação pela imagem, apontando-nos essa circulação da imagem entre semelhança, traço e convenção, isto é, entre ícone, índice e símbolo. (Joly, 1996, 40).

Desde pequenos, aprendemos a ler imagens ao mesmo tempo em que aprendemos a falar. Muitas vezes, as próprias imagens servem de suporte para o aprendizado da linguagem. Sendo assim, o trabalho do analista é precisamente decifrar as significações que a “naturalidade” aparente das mensagens visuais implica. Interpretar uma mensagem e analisá-la não consiste certamente em tentar encontrar ao máximo uma mensagem preexistente, mas em compreender o que essa mensagem, nessas circunstâncias, provoca de significações aqui e agora. Martine Joly (1996) diz que uma das funções primordiais da análise é sua função pedagógica. Ou seja: demonstrar que a imagem é de fato uma linguagem, uma linguagem específica e heterogênea, que, nessa qualidade, distingue-se do mundo real e que, por meio de signos particulares propõe uma representação escolhida e necessariamente orientada. Assim, não se pode relativizar sua própria interpretação, pois as imagens possuem garantias de liberdade intelectual que a análise pedagógica da imagem pode proporcionar. Considerar a imagem como uma mensagem visual composta de diversos tipos de signos equivale a considerá-la como uma linguagem e, portanto, como uma ferramenta de expressão e de comunicação. Seja ela é expressiva ou comunicativa, é possível admitir que uma imagem sempre constitui uma mensagem para o outro, mesmo quando esse outro somos nós mesmos. Por isso, uma das precauções necessárias para compreender da melhor forma possível uma mensagem visual é buscar para quem ela foi produzida (Joly, 1996, pag.55).

As fotografias de imprensa supostamente deveriam ter uma função referencial, cognitiva, mas, na realidade, situam-se entre a função referencial e a função expressiva ou emotiva. Uma foto de reportagem testemunha bem uma realidade, mas também revela a personalidade, as escolhas, a sensibilidade do fotógrafo que a assina. Mesmo acompanhadas de legendas verbais essas tentativas não conseguem domar a interpretação nem a imaginação do leitor.

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A significação global de uma mensagem visual é construída pela interação de diferentes ferramentas, de tipos de signos diferentes: plásticos, icônicos, lingüísticos. E que a interpretação desses diferentes tipos de signos joga com o saber cultural e sociocultural do leitor, de cuja mente é solicitado um trabalho de associações (Joly, 1996, pag. 113).

Conforme definida por Barthes, a ancoragem descreve uma forma de interação imagem/texto na qual o último vem indicar o “nível correto da leitura” da imagem. Esse tipo de interação pode, de fato, assumir formas muito variadas que exigem uma análise caso a caso. A análise das palavras inspiradas pelas fotografias vai nos mostrar como a teoria nos permite compreender porque a fotografia, mais do que qualquer outra narrativa, pode gerar contextos polissêmicos como o sonho e a ficção. Por isso, as imagens podem, portanto, evocar uma complementaridade verbal “aleatória” que nem por isso as impede de viver. O fotógrafo está diante do acontecimento e a imagem está automaticamente capturada no próprio momento do disparo, esse “momento decisivo”, como Cartier-Bresson o chama, mas essa imagem única, ao contrário da pintura ou do desenho, é reproduzível mecanicamente e indefinidamente multiplicável. Portanto, o enquadramento, a iluminação, o ângulo, todas essas escolhas, todas essas manipulações são prova de que se constrói uma fotografia e, portanto, sua significação. Assim, quer queiramos, que não, as palavras e as imagem revezam-se, interagem, completam-se e esclarecem-se como uma energia revitalizante. Longe de se excluir, as palavras e as imagens nutrem-se e exaltam-se uma às outras. Correndo o risco de um paradoxo, podemos dizer que quanto mais se trabalha sobre as imagens mais se gosta das palavras (Joly, 1996, pag. 133).

Inserido nos jornais estão os textos imagéticos, ou seja, as fotografias, mais que uma ilustração, elas no jornalismo compõem um discurso, tão eloquente quanto um texto escrito. Segundo Isaac Antônio Camargo (2000, p.5), “[a fotografia] é parte integrante do texto jornalístico, faz parte do todo e é exatamente assim que devemos analisá-la (...), e não como imagem isolada e acoplada a uma notícia, tampouco como sua ilustração”. No caso da imagem midiatizada, Íria Baptista e Karen Abreu (2010) apontam que, além da polissemia inerente, existem particularidades que influenciam diretamente na construção de sentido: a posição política do veículo, a linha editorial e o público ao qual se destina. Por esse motivo, o repórter fotográfico, ao mesmo tempo em que pode valorizar ou ajudar a construção de uma notícia, pode também reforçar preconceitos e estigmas. Sendo assim, se faz necessário interpretar tais imagens através da Análise do Discurso e da Semiótica. Visto que, é na superfície dos textos que podem ser encontradas as pistas ou marcas deixadas pelos processos sociais de produção de sentidos que o analista vai interpretar. Assim, o analista de discursos é uma espécie de detetive sociocultural. Interpretando o cenário político e social das manifestações, observamos que a Análise do Discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade, trabalhando a relação

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língua-discurso-ideologia, com diz M. Pêcheux (1975, apud ORLANDI, 2010, p.17): “Não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido.” As palavras, assim como as imagens, carregam valores experienciais, relacionais e expressivos que podem ser significativos para identificar a ideologia presente no texto. Diante do exposto, a Análise do Discurso busca problematizar as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questões sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem. Essa teoria nos coloca em estado de reflexão ao afirmar que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. Assim sendo, o analista tem que estar atento a três pontos centrais: os determinantes sociais, a ideologia e os efeitos. Por este motivo, neste ensaio as imagens são compreendidas como textos imagéticos, uma vez que, elas também “falam”, assim como os textos verbais. Portanto, cabe ao narrador – o jornal como sujeito semiótico – saber interpretá-las “corretamente”.

3. ANÁLISES: O QUE E COMO DIZEM AS IMAGENS 3.1. Capa do Jornal da Paraíba da edição do dia 21 de junho de 2013

Figura 1. Capa do Jornal da Paraíba da edição do dia 21 de junho de 2013.

A capa do Jornal da Paraíba da edição do dia 21 de junho de 2013 veiculada em João Pessoa traz uma foto grande, na parte superior da página, em que mostra a extensão da manifestação e a aglomeração dos manifestantes no primeiro protesto registrado na Paraíba. Esta imagem principal é marcada por uma manchete acima em que fala “Paz e humor marcam os protestos nas ruas da PB”, abaixo segue o subtítulo “Sete cidades paraibanas deram seu recado para o País. Em João Pessoa, 25 mil protestaram e pediram o fim da corrupção”.

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Já a legenda desta imagem é “CONCENTRAÇÃO. Milhares de pessoas se concentram em frente ao Lyceu Paraibano e seguiram em direção ao Palácio do Governo. Depois rumaram em direção à Avenida Epitácio Pessoa, onde receberam novas adesões”. No entanto, a imagem, registrada do alto, marca apenas o momento em que os manifestante estavam se concentrando na frente do colégio Lyceu Paraibano. A presença de cartazes e representantes de movimentos sociais, como os “Sem Terras” e o LGBT, assim como, barreiras policiais marcam a imagem. Abaixo desta imagem, no canto esquerdo da página, encontram-se duas imagens, uma em plano fechado, mas que mostra o aglomerado de manifestantes e cartazes com pedidos diversos, de educação a igualdade racial. Nesta imagem, se observa com mais nitidez a presença de Bandeira do Brasil. Ao lado, uma menina, aparentando ter três anos, segura um cartaz em que o discurso verbal marca a imagem e diz “Obrigada por lutarem pelo meu futuro”. Este discurso verbal diminui a polissemia da imagem, uma vez que induz o leitor a uma interpretação fechada. No entanto, neste caso, esse foi o sentimento transmitido pela imagem. A legenda abaixo dessas imagens segue com o texto “CONTRA TUDO. Protesto não foi só pela redução de tarifa. Pessoenses pediram mais transparência e ganharam adesão de crianças”. Do lado direito, há o registro de três imagens pequenas mostrando os protestos, que aconteceram de forma simultânea, em outras cidades do País. Como intertítulo foi usado pelo editor “Povo dá o seu recado”. Nesse caso, foi selecionada uma imagem da cidade de Campina Grande, Brasília e outra que deixa o leitor em dúvida, sem entender de onde foi registrada, já que a legenda ao lado cita duas cidades Recife e São Paulo. Totalizando todas as imagens, apenas na capa foram selecionadas seis imagens sobre o primeiro dia de protesto na Paraíba. Barthes (1980) vai dizer que uma característica essencial das fotos é o fato delas serem uma “perfeita analogia” da realidade, assim sendo, para ele, a fotografia é “uma mensagem sem código”. No entanto, este ensaio defende que o signo fotográfico é o resultado da iconização da realidade, ou seja, a realidade visível dos objetos ou do cotidiano expressa em imagem fotográfica. Os pesquisadores Lucia Santaella e Winfried Nöth (2001, p.13), em “Imagem – Cognição, semiótica, mídia”, diz que “uma ciência da imagem, uma imagologia ou icnologia ainda está por existir”. Portanto, justifica-se o desejo do estudo de sua aplicabilidade no jornalismo impresso. De acordo com Patrick Charaudeau (2006), em Discurso das Mídias: “Comunicar, informar, tudo é escolha. Não somente escolha de conteúdos a transmitir, não somente escolha das formas adequadas para estar de acordo com as normas do bem falar e ter clareza, mas escolha de efeitos de sentido para influenciar o outro, isso é, no fim das contas, escolha de estratégias discursivas” (Charaudeau, 2006, p.39).

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3.2. Capa do Jornal da Paraíba veiculada em Campina Grande da edição do dia 21 de junho de 2013

Figura 2. Capa do Jornal da Paraíba veiculada em Campina Grande, edição de 21 de junho de 2013.

Nesta edição, de 21 de junho de 2013, o Jornal da Paraíba saiu com uma capa diferente para segunda cidade mais rica do Estado, Campina Grande. Nela é possível analisar que foi usada a mesma diagramação veiculada na Capital, com uma foto grande na parte superior da página em que mostra a aglomeração dos manifestantes, no entanto a foto não retrata bem a dimensão do ato. As pessoas estão mais em primeiro plano e o fotógrafo não fez a foto do alto, embora a imagem ainda possa ser vista de cima. Não se observa muitos cartazes e as pessoas são facilmente identificadas. Essa imagem principal é explicada por uma manchete acima que diz “Romero baixa tarifa, mas não evita protesto em CG”, no subtítulo encontra-se a informação que o “Prefeito anunciou que valor da passagem será de R$ 2,10 a partir do mês de julho. Deficientes auditivos terão passe livre”. Neste enredo, observa-se que o ato foi subordinado e limitado a questão do preço das passagens, embora as reinvindicações fossem diversas. Como legenda da imagem o editor de capa optou por um discurso verbal amplo e que retratasse este momento vivido em Campina Grande, “PACÍFICO. Mais de seis mil pessoas foram às ruas ontem reivindicar mudanças no sistema de transporte, na educação e contra a privatização dos serviços públicos. Cidade do Brejo e Sertão do Estado realizaram manifestações”. Abaixo desta imagem, no canto esquerdo, da página encontra-se uma imagem em plano fechado que revela um flagrante em que um adolescente foi detido por policiais durante as manifestações. Como forma de assegurar o direito do adolescente. o fotógrafo não revelou a identidade do mesmo, e o fotografou de costas mantendo apenas os policiais de frente para câmera. Com o objetivo de destacar a segurança no ato, a imagem mostra quatro policiais fazendo a apreensão deste adolescente. A legenda justifica a imagem com “CONTROLE. Um adolescente chegou a ser apreendido pela Polícia Militar durante a marcha nas proximidades do Terminal de Integração”.

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Ossentidosdocotidianopolíticonasimagensdajornadadejunhode2013:Análisedodiscursodosistemaimagéticoenunciadopelosjornaisparaibanossobreasmanifestações Nayanne Nóbrega

Assim, como foi na edição veiculada na Capital, no lado direito há o registro de três imagens pequenas mostrando os protestos, que aconteceram de forma simultânea, em outras cidades do País. Com o mesmo intertítulo, o editor usou “Povo dá o seu recado”. Nesse caso, foi selecionada uma imagem da cidade de João Pessoa, Brasília e outra que deixa o leitor em dúvida, sem entender de onde foi registrada, já que a legenda ao lado cita duas cidades Recife e São Paulo. Nessas duas últimas se repetem as mesmas imagens usadas na outra edição. Totalizando todas as imagens, apenas na capa foram selecionadas cinco imagens sobre o primeiro dia de protesto na Paraíba. De acordo com Patrick Charaudeau (2006, p.99), em Discurso das Mídias, “o acontecimento nasce, vive e morre em uma dialética permanente da ordem e da desordem, dialética que pode estar na natureza, mas cuja percepção e significância dependem de um sujeito que interprete o mundo”. Assim sendo, é preciso ter um reconhecimento do sistema e a percepção de um elemento, ou seja, o leitor interpreta o acontecimento e faz sua leitura. Charaudeau (2006, p.101) completa dizendo que “Sendo a finalidade da informação midiática a de relatar o que ocorre no espaço público, o acontecimento será selecionado e construído em função de seu potencial de “atualidade”, de “socialidade” e de “imprevisibilidade””.

3.3. Caderno de Últimas do Jornal da Paraíba da edição do dia 21 de junho de 2013

Figura 3. Caderno de Últimas do Jornal da Paraíba, edição de 21 de junho de 2013.

Diferente do Jornal Correio, o Jornal da Paraíba não optou por um caderno especial na edição do dia 21 de junho de 2013. Neste veículo, as manifestações foram abordadas nos cadernos de Cidades, Geral e Últimas. Como critério de seleção irei analisar as imagens do caderno de últimas, em que oito imagens ilustraram a página, sendo uma principal, três secundárias e mais quatro, em forma de “fala povo”.

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Em últimas, o editor optou por uma foto grande centralizada no meio da página em que mostra a extensão dos manifestantes e a aglomeração deles no protesto. A imagem principal é marcada por uma manchete acima em que fala “Protesto leva 25 mil pessoas às ruas de JP”, ainda acima da imagem inicia-se o texto da reportagem, relatando como foi este dia de manifestação na Capital. Abaixo segue o subtítulo “Ativistas com cartazes e faixas percorreram quase 9 km em 4 horas de manifestação”. Abaixo da imagem principal, segue a diagramação com mais duas imagens, sendo uma focada no sujeito e a outra na amplitude e temporalidade da manifestação que durou até o período da noite. Já a imagem focada no sujeito traz a imagem de um homem com traços de etnia indígena, segurando uma criança – vestida de índio – nos ombros. Em segundo plano, nesta mesma imagem, observamos duas bandeiras do Brasil, e mais ao fundo cartazes, pessoas, mais crianças e manifestantes com máscaras. Como legenda das imagens o editou optou por definir a trajetória seguida pelos manifestantes e usou “MOBILIZAÇÃO. Manifestação pacífica se estendeu por ruas do Centro de João Pessoa, passando em frente ao Palácio da Redenção e seguindo pela Epitácio Pessoa em direção a Tambaú”. Logo depois segue mais dois textos, um dando voz a polícia, como fonte oficial, avaliando o ato e o considerando pacífico, em que, o editor intitulou como “Polícia elogia tranquilidade”. Ao lado, o texto seguinte aborda a pauta da manifestação e a define como “Movimento congrega luta por vários ideais”. No canto inferior esquerdo, o discurso imagético fica por conta de uma imagem em primeiro plano focada em dois jovens de rostos pintados de palhaço. Tal imagem os apresentam como personagens e sujeitos crítico do sistema, mostrando que as manifestações transmitem o sentimento de indignação da sociedade com o atual cenário do país. Como legenda o editor resumiu o ato como “SEM CONFUSÃO. Manifestantes percorrem ruas em clima de paz”. No canto direito da página foi usada uma sequência de quatro imagens ilustrando um “Fala Povo”, recurso usado no jornalismo impresso como forma de legitimar um discurso verbal e opinativo da fonte, que nesse caso, a fala foi das próprias pessoas que participaram do movimento. De acordo com Patrick Charaudeau (2006, p.131), “O espaço social é uma realidade empírica compósita, não homogênea, que depende, para sua significação, do olhar lançado sobre ele pelos diferentes atores sociais, através dos discursos que produzem para tentar torná-lo inteligível”. Ou seja, para que ele existe é necessário nomeá-lo. Sendo assim, o papel do editor é transformar o acontecimento em algo capaz de significação, e, portanto, significado. Tudo isso nasce de um processo evenemencial, e daí surge o que se convencionou chamar de “notícias”.

3.4. Capa do Jornal Correio da Paraíba da edição do dia 21 de junho de 2013 Com apenas uma capa, o Jornal Correio da edição de 21 de junho de 2013 circulou em todo o estado. Com menos texto, ou seja, discurso verbal, a primeira página foi diagramada com predominância do discurso imagético. Uma imagem grande tomou conta de quase toda a capa, em que nela é retratada a amplitude, o quantitativo de pessoas e a temporalidade. A fotografia, tirada do alto, mostra o aglomerado de pessoas nas ruas, mais precisamente na Avenida Epitácio Pessoa, uma das principais da Capital paraibana no período noturno. Cartazes e faixas marcam toda extensão e alcance da imagem.

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Figura 4. Capa do Jornal Correio da Paraíba, edição de 21 de junho de 2013.

Com letras grandes e com uma fonte em caixa alta o editor optou por um discurso verbal no interior da imagem – “UM DIA PARA NÃO ESQUECER” – tal frase se apresenta como um discurso marcante e que conduz o leitor a uma interpretação limitada e um envolvimento ideológico com a edição em estudo. Assim sendo, observa-se que a polissemia da imagem é subordinada ao discurso verbal e interpretativo. Além disso, a imagem segue acompanhada de uma legenda “Em ato pacífico, com incidentes isolados, população cobra direitos e condena corrupção. CORREIO traz EDIÇÃO ESPECIAL”. Consta-se na legenda um discurso empresarial que tenta ressaltar a importância da data como um fato social marcante e histórico, a ponto de “merecer” uma edição especial, que no jornalismo impresso, permite atemporalidade do acontecimento. A parte inferior da página é diagramada com três imagens de mobilizações em lugares diferentes, e que nesse caso, foi selecionado Campina Grande, Recife e Rio de Janeiro. Todas tem em comum o retrato da imensidão de pessoas e fotografadas do alto. Apenas na imagem de Recife o foco é centrado nos cartazes, sendo mais fechado e especificado em um que diz “Brasil mostra a tua cara” e em segundo plano, mas não menos importante, um segundo cartaz diz “Você tem fome”. Em uma coluna pequena à direita e na vertical o jornal abordou temas diversos e considerados importantes para edição daquele dia, variando de cultura a copa do mundo. O autor José Rebelo (2009, p.17), em O discurso do Jornal, diz que “os media, se não nos dizem como é que devemos pensar, indicam-nos, pelo menos, sobre o que devemos pensar”. Ou seja, nenhum discurso é neutro e no caso desta edição o editor orienta o leitor para uma interpretação por meio de efeitos e textos utilizados na diagramação da página. Na verdade, esse profissional vai apelar para as funções da própria linguística (referencial, denotativa ou cognitiva, expressiva ou emotiva, apelativa, poética, fática e metalinguística), isso porque, o editor antecipa as sensibilidades estéticas do leitor fiel.

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3.5. Capa da Edição Especial do Jornal Correio da Paraíba da edição do dia 21 de junho de 2013

Figura 5. Capa do Caderno Especial do Jornal Correio da Paraíba, edição de 21 de junho de 2013.

Assim como na primeira capa do jornal, a abertura do Caderno Especial trouxe uma imagem que predomina em quase toda página, deixando a reportagem como um complemento da imagem. Portanto, observa-se a valorização do discurso imagético, no entanto, a imagem escolhida limita a interpretação, é registrada do alto e apenas transmite ao leitor a amplitude do manifesto. Constata-se a presença de muitos cartazes, carros de som, bandeiras do Brasil e copas de árvores. O editor novamente optou por inserir o discurso verbal no interior da imagem, marcando a fotografia com as palavras “CIDADANIA” e “PAZ”, ambas em caixa alta e imperando a voz interpretativa do acontecimento. Observa-se ainda a ausência de legenda. Portanto, é preciso entendermos que o fazer jornalístico desenvolve duas funções, a informativa e a discursiva, por isso é preciso ficar atento sobre o que se fala e porque se fala, pois às vezes, em termo de significado o “não dito” é, por vezes, mais importante que o “dito”. O jornal reafirma-se como um sujeito semiótico. De acordo com Rebelo (2009, p.109) “o poder do discurso do jornal está, pois, na sua capacidade em construir essa ilusão da realidade”. Sendo assim, o discurso do jornal manifesta seu poder em construir a ilusão da realidade, materializando-a em forma de reportagens. Portanto, o ensaio aqui proposto procurou levantar o debate sobre o uso dos discursos e seu poder interpretativo, uma vez que, entendemos a mídia como interlocutora do cotidiano e o fazer jornalístico como formador de opiniões.

REFERÊNCIAS Camargo, I. A. (2000). A construção do objeto noticioso na edição da mídia impressa: fotografia, legenda e texto. Porto Alegre: PUCRS. Disponível em: Acesso em 03 jan 2015. Charaudeau, P. (2006). Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto. Joly, M. (1996). Introdução à analise da imagem. Campinas: Papirus.

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Santaella,

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Iluminuras. Orlandi, E. (1999). Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes. Rebelo, J. (2000). O discurso do jornal – o como e o porquê. Lisboa: Editorial Notícias. Vasconcellos, M. (2004). Política e mídia: as fotografias dizem tudo! Marília, SP: Universidade de Marília. Disponível em: Acesso em 24 fev de 2015

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Diálogo social solidário: uma síntese conceitual da dialogia jornalística e da solidariedade orgânica Solidary social dialogue: a conceptual synthesis of journalistic ‘dialogia’ and organic solidarity M a r a Fer r eir a Rovida1

Resumo: Os espaços de diálogo amistoso entre indivíduos marcados pela diversidade social não são corriqueiros, mas acontecem. Investir nesses pontos de contato possíveis e pensar o jornalismo como um espaço potencialmente propenso ao desenvolvimento desse tipo de situação é meta expressa na perspectiva da dialogia jornalística. Ao observar a rede acionada pelo jornalista, mediador dialógico, no seu fazer cotidiano, percebe-se a ocorrência da solidariedade orgânica, fenômeno social estudado por Émile Durkheim. Esse fenômeno acaba ampliado pela narrativa jornalística dialógica e, além de ser observado entre as fontes de informação e personagens acionados pelo mediador, passa a ser compartilhado pelo público, fruidor da informação. Tal ampliação desse processo social, fomentada pelo jornalista, é no presente artigo denominada de diálogo social solidário.

Palavras-Chave: Dialogia jornalística. Solidariedade orgânica. Divisão do trabalho. Mediação social. Radiojornalismo.

Abstract: The dialogue – in a deeply sense – among individuals remarked by social diversity is not a currently occurrence but it emerges sometimes. To invest in those possible situations and to consider journalism as a social space favorable for the development of those occurrences is the main characteristic of journalistic ‘dialogia’ approach. Observing the social chain used by journalists as social mediators during theirs labor activities we realize the occurrence of social solidarity studied by Émile Durkheim. This social phenomenon is amplified for the dialogical journalistic narrative in such a way that it can be observed in the relations between the journalistic sources and the characters of the stories but also in the reactions and participation of audience. The moment when the audience is reached in this social process mediated by journalists is called in this paper solidary social dialogue.

Keywords: Journalistic ‘dialogia’. Organic solidarity. Division of labor. Social mediation. Journalism of radio.

1.  Doutora em Ciências da Comunicação pela USP, professora de jornalismo das Faculdades Integradas Rio Branco, [email protected].

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APRESENTAÇÃO SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA é marcadamente conflituosa, dada sua diversida-

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de, por um lado, e o adensamento geográfico em níveis acentuados nos espaços urbanos, por outro. Trata-se, portanto, de uma dinâmica em que identidades diferentes, às vezes divergentes, convivem em espaços diminutos. Disso decorre a propensão ao conflito verificada com certa regularidade em estudos que privilegiam as interações sociais ou as situações em que estas se fazem presentes. No que tange à pesquisa comunicacional, essa realidade não teria como ser ignorada. Ao discutir o fazer jornalístico contemporâneo, seja da perspectiva que for, é imprescindível atentar para o contexto social em que estes processos se inserem. Essa necessidade de contextualização é uma das justificativas para o exercício teórico (e epistemológico) aqui apresentado. Ao aproximar uma perspectiva teórica comunicacional de uma vertente sociológica, tem-se no horizonte a proposta de observar a participação/ interferência do jornalismo em dinâmicas sociais além do âmbito da comunicação. O resultado parcial desse movimento teórico é um conceito-síntese que pode ser usado como diretriz para compreender situações urbanas observadas na contemporaneidade. Tanto esta síntese conceitual quanto sua utilização para compreender certas interações observadas no espaço urbano foram exercícios desenvolvidos em pesquisa doutoral realizada na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo2. Neste artigo, apresenta-se, portanto, de forma resumida a articulação possível entre a dialogia jornalística (Medina) e a ocorrência de solidariedade orgânica (Durkheim) nos espaços urbanos brasileiros na contemporaneidade. O palco de observação empírica da pesquisa mencionada – o trânsito da Região Metropolitana de São Paulo – parece bastante interessante pelo imediatismo da repercussão desses processos e sua tangibilidade. Apesar disso, no texto que segue, apenas os conceitos trabalhados serão discutidos.

1. CONFLITOS E DIÁLOGOS NA URBES A natureza relacional da sociedade brasileira apontada por estudiosos como Roberto DaMatta não indica apenas a possibilidade de aproximações, num sentido amistoso e positivo, entre representantes da diversidade social, mas também implica em desavenças geradas por essa mesma dinâmica. Algumas vezes, tais aproximações são forçadas e as disputas, tipicamente encontradas nos espaços urbanos adensados, podem se intensificar. Assim, esse cenário se mostra bastante inclinado ao desenvolvimento de relações conflituosas e violentas. Para entender esse contexto social e, sobretudo, urbano, é necessário pensar o conflito, os mecanismos de violência existentes e suas interferências nas relações sociais. Muniz Sodré distingue dois tipos diferentes de violência. O primeiro deles é, segundo o autor, institucionalizado e invisível, porque praticado pelo Estado, e se concretiza como estado de violência por sua constância. A segunda forma é visível, anômica, desenvolvida por indivíduos marginalizados e excluídos e se concretiza em atos de ruptura (Sodré, 1992:11). Esse segundo tipo estaria, em grande medida, ligado ao processo de adensamento dos 2.  ROVIDA, Mara Ferreira. Jornalismo em trânsito – o diálogo social solidário no espaço urbano. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da ECA-USP. São Paulo: 2014.

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espaços urbanos. O sociólogo francês Émile Durkheim já observava esse fenômeno na Europa, nos anos finais do século XIX. Para o autor, as cidades passaram, com o desenvolvimento do capitalismo, a exercer um poder de atração sobre os indivíduos, isso porque há nesses espaços uma concentração, não apenas da efervescência da vida social, mas também da oferta de trabalho. Esse processo corresponderia, na opinião de Durkheim, à fonte do acirramento dos conflitos e das disputas porque há um número cada vez maior de pessoas vivendo em espaços geográficos cada vez menores. A luta pela vida, nas palavras de Durkheim, se torna “mais ardente” (Durkheim, 2004a:263), o que possibilita a disseminação de ações de violência praticadas pelos indivíduos em disputa. No que tange à violência invisível exercida pelo Estado, Sodré retoma as características do patrimonialismo ibérico para entender como o poder instituído exerce sua força de maneira violenta. Mesmo num momento anterior à chegada da Internet no Brasil – o texto de Sodré é de 1992 –, o autor já observava esta sociedade numa perspectiva tele-relacional em que a violência praticada pelo Estado se impõe por uma aproximação entre força militar e poder econômico. A exclusão se torna cada vez mais profunda e as relações com o outro se tornam mais e mais distanciadas (Sodré, 1992:33). Essa situação, segundo o autor, resulta das raízes patrimonialistas que respaldam o modelo de administração pública brasileiro e asseguram a lógica dos privilégios e exclusões (Sodré, 1992:41). Essa dinâmica cria situações em que as diversidades são colocadas em contato de forma negativa e o distanciamento passa a ser almejado. Como a própria configuração física desse modelo de organização social, conforme nota Durkheim, impõe a proximidade aos indivíduos, o conflito se torna inevitável. Por outro lado, esses movimentos da sociedade não podem ser apresentados como a única forma de interação social existente. Mesmo que em número menor de ocorrências ou restritos a certas situações, às vezes excepcionais, outros formatos de relação social podem ser apreendidos e devem ser levados em consideração. Cremilda Medina (1988:16-17), por sua vez, observa com ressalvas essa posição teórica, conforme apontado por Sodré, principalmente no que diz respeito à participação da comunicação de massa nesses processos. A autora insiste na ideia de comunicação como interação social e, retomando o desenvolvimento do pensamento comunicacional das últimas décadas, entende a perspectiva de massa como parte de um processo mais amplo de afetações múltiplas3. Parece um tanto contraditório, mas parte dos mecanismos responsáveis pelo desenvolvimento do conflito também contribui para a ocorrência de aproximações amistosas e dialógicas. Assim, na configuração da organização social brasileira, que apresenta uma relativa disposição para a interação, os encontros entre representantes da diversidade social não estão pautados necessariamente por um aspecto negativo. Roberto DaMatta apresenta essa contradição da realidade social brasileira a partir de festas, cerimônias e personagens folclóricos. No livro “Carnavais, malandros e heróis” (1997), DaMatta analisa três rituais e três personagens heroicos presentes nessas cenas ritualísticas. São eles o carnaval, a parada militar e a procissão e seus personagens, respectivamente, o malandro, o caxias e o renunciador. A ênfase da análise está no carnaval e no malandro que são observados 3.  Mais detalhes desse debate podem ser observados no livro “Notícia, um produto à venda – Jornalismo na Sociedade Urbana e Industrial”, Summus Editorial, São Paulo: 1988.

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como situação e personagem que fogem à regra, que se opõem à configuração social estabelecida. O carnaval é apresentado como a festa onde a ausência de regras se coloca como regra; momento em que tudo pode e nada é negado e, principalmente, se apresenta como a oportunidade de inverter a lógica da rua e da casa. A inversão de que trata DaMatta diz respeito a ideia de que a vida social estaria baseada numa divisão entre a rua – espaço público, e impessoal, onde as regras imperam – e a casa – local da intimidade, onde o sujeito social exerce papéis definidos no âmbito familiar e possui uma identidade consolidada. No carnaval, a rua passa a ser palco de cenas que normalmente seriam restritas ao ambiente da casa, isto é, cenas da vida privada. DaMatta observa essa faceta do carnaval ao analisar a sexualidade presente na festa, a exposição de fantasias e situações privadas e a inversão de papéis como as representações de blocos de homens vestidos de mulheres. A lógica se inverte e aquilo que antes se restringia a intimidade da casa passa a ser encenado na rua, no espaço público transformado em espaço sem regra, sem limites. Outra implicação da análise a partir dessa lógica que divide a vida social entre a rua e a casa é o papel e os comportamentos que esses dois ‘espaços’ impõem ao sujeito social. O autor faz uma diferenciação entre pessoa e indivíduo para entender como esse sujeito se coloca em cada um desses espaços. Com base nessa ideia, o sujeito como indivíduo ocupa uma posição de igualdade e é indiferenciado (do ponto de vista das hierarquias) em relação aos demais, perante as regras – esse seria o padrão comportamental adotado no espaço da rua. O indivíduo é particularizado, é livre e pode fazer escolhas o que seria um direito fundamental. Já como pessoa, o sujeito social é totalmente integrado à sociedade; ele faz parte dela e desempenha papéis específicos. Dessa forma, como pessoa, ele se encontra vinculado à totalidade social por ser parte integrante dela o que limita sua capacidade de decisão e suas escolhas – esta seria a situação mais comumente encontrada no espaço da casa. DaMatta demonstra que a vida em sociedade compreende ambas formas de convívio (como indivíduo e como pessoa), mas existiria no Brasil uma predominância da perspectiva do sujeito social como pessoa, dada a configuração segmentaria da sociedade brasileira. O autor faz uma diferença entre sociedades hierarquizadas e outras igualitárias e, segundo essa concepção, o Brasil seria caracterizado pelo primeiro tipo e traria em sua formação noções de crescente interdependência. Ele cita Durkheim para retomar a ideia de segmentação social e das relações de dependência dos segmentos entre si. Além desse fator, nesse tipo de sociedade, que está entre aquelas denominadas por Durkheim como complexas, há uma profusão de pontos de vista distintos do todo social, sendo que cada um deles corresponderia ao de um segmento (DaMatta, 1997:75). Mesmo sendo marcada pelas singularidades de participação social de cada grupo, essa sociedade segmentaria, segundo DaMatta, não restringe as pessoas às interações sociais de um único coletivo. Encontram-se nessa sociedade espaços e situações de mediação entre os segmentos sociais. Mais uma vez a análise do carnaval ajuda a compreender essa dinâmica, pois é esse ritual, ao lado de outros, que colocará em foco a existência desses espaços de encontro entre os sujeitos, independentemente das hierarquias e diferenças sociais que, em geral, os separam. DaMatta enfatiza que a segmentação não dilui os pontos de contato; mesmo divididos em coletivos, os sujeitos

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sociais e seus respectivos grupos permanecem fazendo parte da totalidade da sociedade e isso fica evidenciado no papel exercido pela escola de samba, por exemplo, durante o carnaval. A conciliação se torna o ponto central da dinâmica social desses grupos e da sociedade inclusiva. Por causa disso a escola de samba (e tantas outras instituições populares) serve de mediação entre segmentos sociais (grifo nosso) com interesse social e politicamente contrários (DaMatta, 1997:135).

Mas, essa conciliação observada a partir da análise do carnaval não deve ser entendida como a situação que predomina, embora seja, como pontua DaMatta, parte essencial que caracteriza a vida em sociedade no Brasil. Mais um vez, o conflito irá aparecer como uma situação muito mais recorrente do que esses momentos de conciliação. Tem-se, assim, a ideia de que a sociedade brasileira é bastante conflituosa, apresenta uma propensão às disputas de forma violenta e as diferenças são, em várias situações, mediadas por uma hierarquização dos grupos e coletivos. Em contrapartida, não se deve perder de vista o fato de que essa mesma sociedade dispõe de mecanismos de interação social que podem produzir espaços de diálogo. São esses momentos e essas situações que interessam neste trabalho, principalmente no que tange ao diálogo social promovido pela mediação jornalística, conforme propõe Cremilda Medina.

2. A DIALOGIA JORNALÍSTICA A perspectiva teórica do jornalismo como um espaço de mediação dialógica é apresentada e defendida por Cremilda Medina ao longo de sua trajetória acadêmica. A dialogia praticada pelo jornalista, abordado como um mediador das diversidades em disputa, é tema central de parte considerável de sua obra. A autora não se concentra apenas no debate teórico e epistemológico sobre o fazer comunicacional, como também investe em laboratórios empíricos que demonstram a viabilidade dessa perspectiva. Assim, neste artigo, a noção de dialogia está alicerçada por esse trabalho de Medina4. O diálogo social promovido pelo jornalista se estabelece numa relação triádica – protagonistas, mediador e público – em que os atores, agentes ou personagens sociais se encontram. Para colocar em movimento esse processo, o mediador dialógico irá atuar com o mundo das ideias, o imaginário coletivo e com os comportamentos culturais. Isso tudo permite, segundo Medina, lidar com a complexidade das situações sociais apresentadas, ultrapassando os reducionismos e colocando em diálogo os protagonistas das narrativas e aqueles que fazem parte do público (Medina, 1996:13). Antes de pensar a narrativa produzida pelo jornalista, é preciso observar de que maneira esse mediador entra em contato com os protagonistas das situações ou cenas observadas. Esse primeiro momento do processo de produção da comunicação que pode, por vezes, resultar em diálogo social é crucial e marca sobremaneira a própria narrativa. Estar aberto ao desconhecido, permitir ser afetado pelo outro são posturas que se encontram na linha de frente dessa proposta. Em “A arte de tecer o presente” (2003), 4.  Embora a nomenclatura (dialogia) possa ser encontrada em outros autores como Mikhail Bakhtin, aqui o termo é usado estritamente na perspectiva de Cremilda Medina.

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Medina apresenta com Paulo Roberto Leandro as bases do que foi, na época da primeira edição da obra (1972), chamado de Jornalismo Interpretativo. Nesse texto, retomado em “Atravessagem” (2014), a autora expõe a proposta de um fazer jornalístico pautado pela decifração do mundo e não mais pela explicação dos fatos. Quando se constrói um personagem ou uma história de vida, as fronteiras do real e do imaginário se borram. O método do questionário em uma entrevista, com a pré-pauta estabelecida e os resultados previsíveis, cai por terra na interpretação humana criadora de um encontro sem cartas marcadas. Também a crença de um rigor profissional que chegue à fidelidade objetivista, em última instância a uma única verdade, só persiste em atitudes arrogantes. A humanização pretendida em Arte de tecer (grifo da autora) mexia com a esfera não controlável da decifração (grifo da autora) (Medina, 2014:43).

Estar aberto ao outro no encontro cotidiano da reportagem jornalística é o primeiro passo para o desenvolvimento do diálogo social que pode, por vezes, culminar numa interação social criadora (Medina, 2014:76). De acordo com essa perspectiva, o jornalista, em seu papel de mediador social, ao se mostrar afeto aos protagonistas dos fatos, especialistas e demais fontes de informação não se limita ao cumprimento burocrático de uma pauta prévia. Ele age como um verdadeiro pesquisador que imerge e se deixa afetar pelas situações experimentadas. Com as sensibilidades aguçadas, ele sai de suas imersões transformado. Essa interação criadora (e transformadora) é inspiração para a elaboração de narrativas que, a posteriori, colocarão mais um ator social nessa dinâmica, o público fruidor da informação. O signo da relação, ou linguagem dialógica, acontece pela narrativa autoral e é mais do que um ideal do fazer jornalístico, é uma possibilidade testada e apresentada em inúmeros trabalhos desenvolvidos em laboratórios de prática jornalística, bem como na experiência profissional da própria autora (Medina, 2014:45). O contato com os protagonistas é, certamente, essencial. A narrativa dialógica vem na sequência como aspecto culminante desse processo. Mas para que haja realmente diálogo com o público é imprescindível que a experiência específica, seja da história contada ou dos personagens apresentados, esteja contextualizada e articulada com o momento contemporâneo, com a sociedade, com o ambiente em que a situação foi desenvolvida. A articulação dos nexos sociais, culturais, políticos, enfim deve estar presente na narrativa para que a dialogia se estabeleça (Medina, 2014:115). Na tessitura do presente pelo mediador social, as relações entre observador e observado, entre quem pergunta e quem responde, entre quem narra e quem é parte da narrativa não mais serão pensadas pela lógica sujeito-objeto. Além de costurar nexos com a realidade ampliada, o jornalista precisa se apresentar diante de suas fontes de uma outra maneira, mais complexa, mais humana e, portanto, mais afeta. Uma das rupturas paradigmáticas essenciais na comunicação social é justamente a relação sujeito-sujeito, no lugar da relação sujeito-objeto. Mas se o contato vivo Eu-Tu, Tu-Eu (Buber, 1982) se faz necessário na dialogia do jornalismo, não é de forma diferente da relação médico-paciente (paciente?) na medicina ou do sujeito-pesquisador e os protagonistas do campo de pesquisa, segundo o paradigma cientificista tradicional, nomeado de objeto de pesquisa (Medina, 2014:128).

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A partir desse encontro, pautado pela relação sujeito-sujeito, e da leitura ampliada, o jornalista sai preparado para a segunda etapa, por assim dizer, desse processo comunicacional. A elaboração da narrativa, movimento fortemente influenciado por essa experiência primeira – o contato com a realidade sobre a qual falará –, terá marcas autorais indiscutíveis. O jornalista não pode ser, nessa perspectiva, comparado a um técnico que apenas elabora objetivamente um relato sobre situações e histórias alvo de pauta em um determinado veículo de comunicação. A narrativa resultante de sua prática comunicacional é fortemente marcada ou influenciada por três distintos feixes de forças, dentre os quais encontra-se a autoria do mediador. O primeiro feixe de forças observado por Medina é formado pelos grupos de poder “que vão da própria empresa emissora aos grupos externos organizados econômica, política, social e culturalmente” (Medina, 1996:19). O segundo feixe é formado por forças culturais e o terceiro é originado pelo próprio produtor da informação (Medina, 1996:1920). Um comunicador realmente maduro terá habilidade para evidenciar em sua narrativa não apenas as forças de poder que incidem sobre o fato, como também mostrará as forças culturais presentes e, claro, sua própria interferência como agente de mediação social. Para contemplar em sua narrativa todas essas forças que interferem no processo comunicacional e que, ao mesmo tempo, se fazem presentes nas situações observadas, o mediador certamente terá de acionar suas potencialidades intuitivo-sintéticas, lógico-analíticas e motor operacionais (Medina, 1996:25-26). Em outras palavras, o mediador precisará colocar a prova sua habilidade em congregar a polifonia e a polissemia de suas fontes de informação, de seu público e dele mesmo (Medina, 1996:27); isso implica em desenvolver uma leitura cultural. O jornalista, entre outros profissionais, é um leitor cultural. A leitura que se transforma na narrativa jornalística poderá ou não conter as digitais de uma sociedade, se captar o mundo à volta pelo radar de fina sintonia da sensibilidade solidária (grifo nosso). Será uma obra de autoria, se criar nexos dos sentidos da realidade pela razão complexa. E estará apto a produzir uma narrativa original, reconhecida pelas formas inovadoras de arte, em oposição às fórmulas burocráticas da inércia do poder. Sensibilidade solidária ao presente, inteligência sutil na decifração do acontecimento e criatividade literária (lato senso) resultam numa ação renovadora no domínio das mentalidades. Afinal todo agente cultural, o jornalista, por exemplo, ambiciona intervir na realidade. Em outras palavras, contribuir para o aperfeiçoamento das instituições e da cidadania (Medina, 2008:10).

A mediação social, exercida pelo jornalista, parece se tornar visível e tangível nas narrativas. Por meio desses textos, percebe-se o desenvolvimento de um processo amplo de relações costuradas. Assim, a eficiência da mediação dialógica requer uma capacidade narrativa pautada pelos “códigos de relação humana” (Medina, 1996:214) e, segundo Medina, isso vai além do domínio da gramática. Essa forma de atuação jornalística será observada em sua singularidade nas marcas de autoria presentes nessas narrativas. Mesmo que esses mediadores utilizem como matéria-prima a informação, seu texto, seja um peça curta ou um livro, estará sempre carregado de marcas individualizadas (Medina, 1996:217). Como a produção, nessa perspectiva, leva em consideração a interferência dos feixes de forças, dentre eles o do próprio mediador, tais marcas fazem parte da dinâmica dessa mediação.

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Para Medina, as artes ajudam a desenvolver a capacidade cognoscitiva do mediador, bem como a pesquisa de campo e a observação participante da etnografia ajudam na ampliação e no aprofundamento dos nexos culturais. O texto só terá vivacidade na medida em que a observação feita anteriormente for inspiradora. Aliás, Medina defende que a própria observação e o diálogo com os protagonistas apontam a melhor forma de narrativa; “é na realidade narrável que se encontra o mote de estrutura narrativa” (Medina, 1996:228). Em tal narrativa, a vivacidade do acontecimento se preserva e a ‘palavra-revelação’ ganha espaço. Segundo a autora, nesse tipo de narrativa, a situação ou cena contada ganha vida e o texto permite ao público interagir com a história que se desenrola. Perspectiva bem diferente daquela presente na noção de palavra burocrático-descritiva da tradição jornalística em que a cena é morta, acontecida, o famoso “realizou-se ontem” (Medina, 1996:227).

3. A SOLIDARIEDADE ORGÂNICA A dialogia jornalística, promovida pela mediação do jornalista, acaba por tocar em certas dinâmicas sociais características da sociedade capitalista contemporânea. Em seus fazeres cotidianos, o mediador aciona uma rede de relações que, numa observação mais minuciosa, se mostra alinhada à solidariedade típica das sociedades capitalistas. Em outras palavras, é possível perceber a ocorrência de solidariedade orgânica, originada pelo processo de divisão do trabalho, na produção da comunicação dialógica. Na pesquisa, mencionada anteriormente, uma etnografia do trabalho dos repórteres da Rádio SulAmérica Trânsito (FM 92.1 SP) – emissora especializada na cobertura do trânsito de São Paulo – foi realizada. Os jornalistas acompanhados nessa pesquisa de campo atuam diretamente no espaço de ruas e avenidas da cidade; estão imersos, portanto, no cenário de suas narrativas. Baseando-se nesse levantamento, é possível perceber como a solidariedade social se revela pela comunicação jornalística tanto na etapa de apuração (quando o mediador se aproxima dos protagonistas e personagens de suas narrativas), como na interação com o público propiciada pelo produto de seu trabalho (as narrativas). Antes de investir na observação dessa relação entre dialogia jornalística e solidariedade social, se faz necessário revisar, mesmo que rapidamente, o conceito de solidariedade orgânica apresentado pelo sociólogo francês Émile Durkheim. As sociedades capitalistas apresentam uma propensão à concentração demográfica, conforme já mencionado, e sua organização se pauta pelo amplo aprofundamento das especialidades de trabalho (Durkheim, 2004a:258). Em outros termos, no capitalismo a divisão do trabalho se expande na mesma medida em que a sociedade se desenvolve. Segundo Durkheim, esse fator não terá impactos apenas no que diz respeito às questões econômicas, mas surtirá efeitos em toda a dinâmica social. Mas, a divisão do trabalho não é específica do mundo econômico: podemos observar sua influência crescente nas regiões mais diferentes da sociedade. As funções políticas, administrativas, jurídicas especializam-se cada vez mais. O mesmo ocorre com as funções artísticas e científicas. (...) De Candolle prevê que, num dia próximo, a profissão de cientista e a de professor, ainda hoje tão intimamente ligadas, se dissociarão definitivamente (Durkheim, 2004a: 2-3).

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Essa divisão de especialidades profissionais terá tamanha repercussão para a organização da vida em sociedade que o sujeito social terá sua identidade fortemente marcada por suas relações de trabalho. Os vínculos com o ambiente de trabalho e com os demais profissionais de um determinado setor, além do tempo dedicado a uma atividade específica, acabam por interferir na visão de mundo, nos comportamentos e interesses do indivíduo. Desse processo resulta o fortalecimento do aspecto profissional da identidade social que passa, nas sociedades capitalistas, a ser tão ou mais relevante do que as facetas religiosas, étnicas e de origem geográfica. Por isso, a divisão do trabalho será considerada uma fonte de diferenciação social ou de ampliação da diversidade social. Além dessa interferência clara na formação das identidades, a divisão do trabalho também causará impactos na forma como os vínculos se orientam e, portanto, interferem nas relações sociais. O convívio no grupo profissional fará com que as pessoas se identifiquem com seus pares, ao mesmo tempo que se diferenciem dos demais coletivos observados nessa sociedade. (...) e é essa partilha de funções, ou, para empregarmos a expressão consagrada, essa divisão do trabalho que determina essas relações de amizade. Somos levados, assim, a considerar a divisão do trabalho sob um novo aspecto. Nesse caso, de fato, os serviços econômicos que ela pode prestar são pouca coisa em comparação com o efeito moral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas um sentimento de solidariedade (Durkheim, 2004a:21).

O sentimento de solidariedade originado pela divisão do trabalho deve ser compreendido a partir de duas esferas. A primeira se restringe ao processo acima descrito em que os vínculos com o grupo se tornam um diferencial identitário, por um lado, e um fator comum a ser compartilhado por quem participa de um mesmo coletivo profissional. A segunda esfera diz respeito a instância macrossocial, isto é, a dinâmica social mais ampliada em que as diferenças são superadas pela lógica da interdependência – que se desenvolve na mesma proporção (e como contrapartida) da intensificação da divisão do trabalho. Quanto maior o grau de especialização e de partição do processo produtivo capitalista (entendido em sentido amplo), maior será a dependência mútua entre os grupos que fazem parte dessa dinâmica. A interdependência é, dessa forma, percebida como um processo que coloca em evidência, em certos momentos, o ponto de contato entre os representantes da diversidade social: a sociedade da qual todos fazem parte. É a divisão do trabalho que, cada vez mais, cumpre um papel exercido outrora pela consciência comum; é principalmente ela que mantém juntos os agregados sociais dos tipos superiores. Eis uma função da divisão do trabalho muito mais importante do que a que lhe é de ordinário reconhecida pelos economistas (Durkheim, 2004a:156).

Embora esse sentimento de solidariedade originada pela divisão do trabalho – na perspectiva do grupo, mas principalmente na esfera macrossocial – faça parte da dinâmica capitalista, as interações pautadas pelo conflito e pelas disputas fomentadas pelas diferenças são mais corriqueiras e comuns. Por isso, Durkheim deseja que os “sentimentos de solidariedade que são ainda quase desconhecidos” (Durkheim, 2004b:498) se tornem mais presentes nas interações sociais.

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Reconhecer que o aspecto conflituoso é mais corriqueiro não impede a observação de que existem momentos de diálogo, espaços propícios e propensos às interações amistosas. A solidariedade orgânica pauta em alguns momentos o encontro das diversidades sociais. Isso se faz presente no trabalho dos jornalistas e pode ser expandido por meio das narrativas elaboradas e divulgadas por esses mediadores.

4. O DIÁLOGO SOCIAL SOLIDÁRIO É pertinente frisar, nesse momento do debate, que tanto Medina quanto Durkheim estão tratando de processos sociais muito mais potenciais do que recorrentes. Isso não significa que sejam situações ideais ou idealizadas. Num primeiro momento, Durkheim apresenta a solidariedade orgânica como a chave para compreender de que maneira uma sociedade tão diversa e, portanto, conflituosa mantém algum grau de coesão social. Além das questões de regras morais, leis e autoridades reconhecidas nesta sociedade, existe um sentimento de pertencimento que abarca os grupos e indivíduos; esse sentimento ainda pouco conhecido e pouco explorado é a solidariedade orgânica (Durkheim, 2004b:498). Por sua vez, Medina apresenta a narrativa transformadora, criada com base na dialogia, como aquela que tem reverberações na realidade. Na melhor das possibilidades, quando a interação entre mediador e fontes (ou personagens) é plena e o diálogo se estabelece, pode ocorrer o que autora denomina de interação social criadora (Medina, 2008:31); esse processo irá impregnar o texto jornalístico e poderá ser percebido pelo público. Mas não há garantias incontestáveis de que uma narrativa, elaborada com base numa prática dialógica, possa fazer com que os indivíduos envolvidos no processo comunicacional (fontes, mediador e público) interajam respeitosamente ou solidariamente. O resultado desse processo é um tanto incontrolável, mas é aceitável colocá-lo como objetivo que orienta o trabalho do mediador; finalidade esta que extrapola o domínio da comunicação e estabelece vínculos entre o jornalismo e esse sentimento perseguido e estudado por Durkheim. Mesmo que essa interação transformadora não esteja presente nos processos comunicacionais como um modelo majoritariamente recorrente, os estudos a respeito dessa interferência da narrativa jornalística nas relações sociais demonstram empiricamente ser este um resultado bastante possível. Mais do que uma perspectiva idealizada, esta é sem dúvida uma noção testada em laboratórios de prática e de observação jornalísticas ao longo das últimas décadas pelo grupo de alunos e pesquisadores orientados pela professora Cremilda Medina, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo5. Assim, encontra-se nessa aproximação de conceitos uma chance de observar empiricamente ocorrências de solidariedade orgânica a partir da interação social transformadora decorrente da mediação jornalística. Essa possibilidade de a narrativa jornalística dialógica repercutir de forma a criar um espaço propenso à interação solidária é aqui denominada de diálogo social solidário. Assim, nos momentos em que a mediação jornalística, dialogicamente orientada, propulsiona e dá visibilidade para a ocorrência da solidariedade que coloca os indivíduos, 5.  Mais detalhes sobre esses laboratórios podem ser consultados na série São Paulo de Perfil, materializada em 27 livros, e no Projeto Plural cujos resultados dos encontros interdisciplinares promovidos por Medina deram origem a 15 livros.

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Diálogo social solidário: uma síntese conceitual da dialogia jornalística e da solidariedade orgânica Mara Ferreira Rovida

marcados pela diversidade social típica do capitalismo, em sintonia pelo sentimento de pertencimento a algo que supera suas diferenças, o diálogo social solidário acontece. Na pesquisa desenvolvida (e citada anteriormente), percebeu-se que a rede social acionada pelo repórter que cobre o trânsito in loco se mostra diversa justamente pelo aspecto profissional de cada indivíduo contatado pelo jornalista. Além disso, boa parte dessas pessoas trabalha nesse mesmo espaço urbano e, portanto, todos têm um interesse comum: as (boas) condições de tráfego de ruas e avenidas da cidade. Assim, a colaboração com o trabalho do repórter de trânsito se alinha a um objetivo maior que supera as singularidades de cada grupo. O próprio jornalista, vez ou outra, colabora diretamente com suas fontes – passando informações de antemão para as autoridades, por exemplo, para agilizar um socorro ou uma interdição de via. As relações estabelecidas nesse processo são pautadas por um sentimento de ajuda mútua e a convivência se apazigua não apenas entre aqueles que são imediatamente alcançados pelo mediador no processo de produção da comunicação, como também por aqueles que são “tocados” pelas narrativas. Isso se dá pelo fato de que o ouvinte (público fruidor da informação) dessa emissora, em geral, também se encontra nesse mesmo espaço urbano e compartilha do interesse pelas condições de trânsito. Assim, nessa análise os três atores presentes no processo comunicacional (fontes, mediador e público) estão imersos num mesmo espaço urbano e possuem interesses comuns – o que representa pontos de contato e de superação das diferenças. Dessa forma, quando o jornalista é capaz de apresentar em sua fala os feixes de forças presentes no seu próprio fazer comunicacional, o mediador dá visibilidade e amplia a esfera de abrangência de um fenômeno social ainda pouco observado, a solidariedade orgânica.

REFERÊNCIAS DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis – para uma sociologia do dilema brasileiro. Rocco, Rio de Janeiro: 1997. ______ . A casa & a rua. Rio de Janeiro: Guanabara koogan, 1991. DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. Martins Fontes, São Paulo: 2004a. ______ . O suicídio. Martins Fontes, São Paulo: 2004b. MEDINA, Cremilda (org.). Povo e personagem. Ulbra, Canoas: 1996. ______ . A arte de tecer o presente – narrativa e cotidiano. Summus, São Paulo: 2003. ______. Atravessagem – reflexos e reflexões na memória de repórter. Summus, São Paulo: 2014. ______ . Notícia, um produto à venda – Jornalismo na Sociedade Urbana e Industrial. Summus Editorial, São Paulo: 1988. ______ . Povo & Personagem – sociedade, cultura e mito no romance latino-americano. Fundação Memorial da América Latina, São Paulo: 2008. SODRÉ, Muniz. O social irradiado – violência urbana, neogrotesco e mídia. Cortez, São Paulo: 1992.

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Jornalismo cultural: perspectivas sobre mediação e ethos profissional a partir de entrevistas com jornalistas Cultural journalism: perspectives on mediation and professional ethos based on interviews with journalists Luciano Alfonso1 Cida Golin 2

Resumo: A proposta traz um recorte inicial de tese em andamento que visa problematizar a percepção de jornalistas de veículos e assessores de imprensa atuantes no campo das artes visuais sobre processos de mediação e ethos profissional na contemporaneidade. Acreditamos que os dois subgrupos evidenciados vivem transformações nas práticas relacionais e nas rotinas de trabalho, acarretando consequências pouco estudadas, principalmente no jornalismo cultural. Empreendemos uma entrevista-piloto, exploratória, para dimensionar o funcionamento do trabalho mais amplo da tese com a jornalista, crítica de artes visuais e curadora independente Angélica de Moraes. Mudanças estruturais no campo do jornalismo; busca de visibilidade midiática; disputas e alianças entre jornalistas especializados e assessores de imprensa; e flexibilização da postura profissional diante do contexto contemporâneo são algumas questões evidenciadas.

Palavras-chave: jornalismo, jornalismo cultural, mediação, ethos, entrevista. Abstract: The article brings initial clipping of a thesis in progress, which aims to discuss the perception of journalists and press officers working in the field of visual arts on mediation and professional ethos nowadays. We believe that two evidenced subgroups have been through transformations in relational practices and working routines, resulting in consequences little studied, especially in cultural journalism. We undertook a pilot interview, exploratory, to scale the operation of the broader work of the thesis with Angélica de Moraes, journalist, visual arts critic and independent curator. Structural changes in the field of journalism; search of media visibility; disputes and alliances between journalists and press officers; and flexibility of professional attitude towards the contemporary context are some highlighted issues.

Keywords: journalism, cultural journalism, mediation, ethos, interview.

1.  Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM-UFRGS). É jornalista na Fundação Piratini - Rádio e Televisão. 2.  Doutora e professora associada no curso de Jornalismo e no curso de Museologia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação (PPGCOM-FABICO-UFRGS). Bolsista CNPq.

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INTRODUÇÃO ONHECIMENTO MEDIADO da realidade, o jornalismo cultural é uma instância

C

capaz de reprocessar o discurso formal das ciências e os códigos artísticos. Ao converter os saberes herméticos e esotéricos em linguagem mais próxima do público, a prática jornalística se propõe a tornar acessível, supostamente para um público amplo, um repertório especializado, negociando valores caros à construção do prestígio: a visibilidade. No campo artístico, o processo de divulgação de uma obra de arte é mecanismo obrigatório para sua própria existência, a ponto de o processo de criação e produção prever estratégias de condução do pensamento do artista até o público, momento em que o produto cultural se transfere de mãos. Várias instituições (escolas, universidades, museus, galerias) asseguram a legitimidade do gesto artístico; nesse processo, a mediação jornalística constitui uma das mais cobiçadas instâncias para garantir a visibilidade das ofertas, criar a necessidade desses objetos e sustentar a palavra dos jornalistas especializados e críticos – agentes que afiançam a consagração ou a descoberta dos novos. Considerando as alterações estruturais sofridas nos últimos anos no campo jornalístico e o imperativo da visibilidade em uma sociedade cada vez mais midiatizada, buscamos, no âmbito de um projeto de tese em construção, problematizar testemunhos de dez jornalistas especializados e de assessores de imprensa que atuam no segmento das artes visuais no Brasil, refletindo sobre suas percepções das rotinas produtivas e de mediação jornalística com o leitor, a construção da notícia e a existência de valores hegemônicos ou não, que conformam o ethos profissional destes mediadores. Neste artigo, ensaiamos a reflexão sobre uma entrevista-piloto com uma das jornalistas elencadas na tese, sondando, de forma exploratória, a construção do papel de mediador e de intermediário a partir de aspectos gerais como a formação profissional (formação de competência, repertório e gosto), rede de sociabilidades, relações com fontes e leitores, além das disputas entre os segmentos específicos (jornalistas de veículos e assessores) em um contexto marcado pela concorrência econômica, por novos modelos de negócios e pela flexibilização de posturas profissionais. É importante situar que essa pesquisa se desenvolve dentro das atividades do Núcleo de Estudos em Jornalismo e Publicações Culturais do Laboratório de Edição, Cultura e Design (LEAD)3, que desde 2007 realiza projetos sistemáticos com o intuito de compreender a lógica do jornalismo em relação dinâmica com o sistema cultural, especialmente em estudos de viés histórico, por meio da análise de publicações e da ação de agentes como jornalistas, editores e críticos.

EIXOS TEÓRICOS Em linhas gerais, nosso posicionamento teórico vincula-se à perspectiva construcionista, que classifica o jornalismo como construção social, pleno de índices de 3.  Grupo registrado no CNPq, o LEAD integra a Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FABICO) e insere-se na linha de Jornalismo e Processos Editoriais do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação (PPGCOM|UFRGS).

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procedimentos complexos que envolvem ação pessoal, constrangimentos organizacionais, valores sociais estabelecidos no bojo de uma cultura profissional e que implicam em determinados enquadramentos narrativos dos acontecimentos. Desde que o jornalismo, a partir do século XIX, consolidou-se como instituição informativa e foro de opinião, seu discurso ganhou um lugar privilegiado como forma de conhecimento (Meditsch, 2004). Amparado em um contrato comunicativo (Charaudeau, 2006, p. 87-90), o jornalismo detém um capital simbólico que lhe é bastante caro: a credibilidade. Na medida em que é da natureza do jornalismo fazer crer (Berger, 2003), seu capital simbólico assenta-se tanto na busca e manutenção da credibilidade como na produção de efeitos de verdade por meio de argumentos de autoridade, testemunhas e provas. Quando dedicado aos temas culturais, o jornalismo coloca-se como uma autoridade intermediária de divulgação e orientação. Leenhardt (2000, p. 22), ao evocar o texto crítico, lembra que este nunca deixou “de se colocar na posição de mediação, tornada necessária em razão de uma arte cujos códigos estão constantemente em ruptura com relação ao estado atual do gosto, isto é, às capacidades espontâneas de compreensão existentes normalmente nos públicos”. Geralmente assentada em valores intrínsecos ao sistema cultural, tais como o cânone, a tradição e o mercado, a cobertura jornalística determina, no ato de selecionar e excluir, parâmetros para a compreensão e a aferição dos produtos circunstanciais em oferta, seja por meio da crítica especializada, pela seleção das pautas ou pela hierarquização dos assuntos no jornal (Golin; Cardoso, 2010, p. 184-203). Sua perspectiva reduzida, na tensão permanente entre a velocidade da produção jornalística e o movimento da realidade a que se refere (Gomis, 1991, p. 27-40; Franciscato, 2005, p. 134), oferece instantâneos concentrados sobre o sistema de cultura, propondo uma totalidade até então dispersa: congrega os diversos segmentos e seus agentes em disputa, estabelece padrões de entendimento e valoração estética. Funciona como sistema perito (Hall, 1999, p. 226; Miguel, 1999, p. 199), promovendo consensos e valores sobre uma realidade construída a partir do estabelecimento daquilo que há de “mais importante” para se saber no mundo. Em busca dos eixos teóricos para iluminar e construir nosso objeto empírico, retomamos também alguns elementos da análise do processo de criação, circulação e consagração dos bens simbólicos, desenvolvida por Pierre Bourdieu (2004; 2007). Ao abrir uma perspectiva crítica sobre os campos de produção artística, entendidos como universos de crença – campos que funcionam à medida que conseguem também criar produtos e a necessidade desses produtos –, o autor apresenta a produção cultural como o resultado de um amplo jogo e empreendimento social. Esse processo implica uma lógica de luta, de disputa pela hegemonia da consagração. No caso da cultura, tal estratégia favorece a distinção, funcionando como instrumento de clivagem entre sujeitos ou grupos. Consideramos o jornalismo um agente significativo nesta disputa. Citamos aqui, como perspectiva importante para essa discussão, a leitura de Neveu (2006, p. 63) – que pensa o jornalismo a partir do conceito bourdieusiano de campo –, articulada aos conceitos relacionais de habitus, capital e crença, como “um universo estruturado por oposições ao mesmo tempo objetivas e subjetivas, a perceber cada publicação e cada jornalista dentro da rede de estratégias, de solidariedades e de lutas que o ligam a outros membros do campo”.

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MEDIAÇÃO E ETHOS PROFISSIONAL NO CAMPO JORNALÍSTICO Diante da polissemia conceitual da mediação, A mediação compreende uma vasta gama de intersecções entre cultura, política e comunicação e equaciona as diferentes apropriações. Recodificações e ressignificações que ocorrem na produção e recepção dos produtos comunicacionais (BASTOS, 2012, p. 64).

situamos a mediação jornalística como a circulação, trânsito e negociação entre campos distintos a partir de diferentes tipos de intermediação e agenciamentos. No caso do jornalismo, há valores caros que legitimam o processo: o reconhecimento pelos pares e o reconhecimento pela maioria. Com a credibilidade como seu mais importante capital, o jornalismo detém privilegiadamente o capital simbólico, constituindo-se em prática autorizada a narrar a realidade. Para além do jornalismo, os processos de mediação contemporâneos são marcados pelas implicações da midiatização, e esta repercute na própria lógica midiática, assim correspondendo a amplos processos de negociação de sentidos culturais, políticos, econômicos e sociais, levados adiante não somente por atores sociais diversos nas negociações entre si e entre aqueles sistemas, mas também marcados fortemente pela presença de dispositivos midiáticos, também eles negociadores de sentido (CARVALHO e LAGE, 2012, p. 247).

Nas práticas jornalísticas atuais, os autores ressaltam que há um “certo embaralhamento de papéis no que diz respeito aos atores envolvidos no processo de produção noticiosa”, o que modifica a própria prática jornalística enquanto mediação social e a articulação neste ambiente. Ou seja, as mediações em ambientes de midiatização acolhem novos agentes envolvidos na produção jornalística que acaba por instaurar novas formas de interação entre produção e recepção. Assim, Se antes dessas modificações poderia parecer que as mediações entre o jornalismo e os demais atores sociais indicavam a prevalência do primeiro, a midiatização em condições de reflexividade aponta para rearranjos em que as mediações não somente tendem a correr em ritmo mais acelerado, como, sobretudo, envolvem maior número de atores sociais e de dispositivos midiáticos, com consequente ampliação das temáticas que são objeto das negociações de sentido (CARVALHO e LAGE, 2012, p. 259).

Ao tratarmos aqui tanto de profissionais de veículos tradicionais como assessores de imprensa, temos a compreensão de que ambos são jornalistas e executam trabalho jornalístico4. Embora, quase sempre, em mundos institucionais distintos, são colegas de profissão e na formação acadêmica passam pelo mesmo entendimento da ideologia profissional. O que entra em evidência na atuação destes dois subgrupos são interesses da mídia e organizacionais, numa disputa de visibilidade e de uma boa notícia, onde se estabelece uma relação envolvendo negociações e conveniências. Nesta dinâmica de 4.  Trabalho de Mick e Lima (2013, p. 64) revela que “no segmento fora da mídia, 68,3% dos jornalistas são contratados como assessores de imprensa ou comunicação”.

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jornalistas de redação e assessores de imprensa são determinantes hoje o pensamento e a postura das organizações das empresas de mídia. Necessário também se faz enfatizar como tais formas de atuação têm se mostrado refletidas diretamente nas rotinas produtivas da notícia. No caso do jornalismo cultural e das artes visuais, este exercício torna-se complexo ao compreendermos a própria dinâmica temporal desta especialização e as características reflexiva e formadora do leitor nela embutidas. Quando jornalistas de veículos e assessores de imprensa são o foco da atenção é porque queremos entender, também, a construção de uma imagem de si, já que como diz Amossy (2005, p. 9) “todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si” ou, ainda, que “seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma representação da sua pessoa”. Seguindo a perspectiva de que “a eficácia da palavra não é nem puramente exterior (institucional) nem puramente interna (linguageira)” (AMOSSY, 2005, p. 136), podemos concordar com Pompeo Grando (2012, p.55) ao destacar que o jornalismo é detentor de um ethos sociológico relacionado tanto à identidade do jornalista como à condição de uma identidade coletiva; e um ethos discursivo – a imagem de si que o orador constrói discursivamente através da utilização de recursos linguísticos, discursivos e retóricos –, ambos articulados para a construção de uma imagem institucional. Estes dois eixos nos interessam na busca de percepções sobre uma imagem de si, ou uma autoimagem, entre estes dois subgrupos em estudo e outras correlações possíveis. Trata-se de uma discussão pertinente porque, entre outros aspectos, internamente há no campo jornalístico posicionamentos muito distintos que enfatizam discussões de pertencimento, postura e atuação de jornalistas de veículos e assessores. Podemos também captar olhares e discussões em torno da coleta e apresentação da informação jornalística envolvendo estes subgrupos, assim como a autoria; processos de seleção e eliminação; e questões ideológicas, inseparáveis em processo de mediação.

ENTREVISTAS COMO EPICENTRO DA PESQUISA Cientes, então, de que um dos agentes sociais do construto social é o jornalista, teoricamente, acreditamos que o interacionismo simbólico nos oferece uma abordagem sociológica útil, pois as interações do indivíduo são vistas de maneira mediada, através do uso de símbolos e significados construídos socialmente. Esta aproximação auxilia na elaboração de um quadro representativo de possíveis mudanças que atingem o processo de mediação e os aspectos identitários envolvendo os subgrupos de profissionais em estudo. A partir do interacionismo simbólico o jornalismo é visto como produtor de um conhecimento particular sobre os fatos do mundo, mas também como lugar de reprodução dos conhecimentos gerados por outras instituições sociais, conectando uma multiplicidade de vozes, sentidos e códigos diferenciados. Metodologicamente, identificamos a história oral temática como um tratamento adequado, pois tem como ponto de partida central a utilização da entrevista, recurso fundamental também para o jornalismo, tanto prática como conceitualmente. Assim, enfatizamos a entrevista na história oral não apenas como uma coleção de frases reunidas em uma sessão dialógica que se esgota em si, mas como destaca Meihy (2007), trata-se de centralizar os testemunhos como ponto fundamental, privilegiado, básico

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das análises; formular as entrevistas como epicentro da pesquisa. Os depoimentos orais, em formato de entrevista, exigem “uma ‘escuta’ aprimorada, tempo, dedicação e o preparo para lidar com a dúvida e a incerteza, mas, certamente, depoimentos orais são holísticos, no sentido de respeitarem a fonte na sua humanidade e suas contradições” (MUSSE, 2013, p. 108). No campo do jornalismo especializado em cultura no Brasil são raros os diagnósticos que buscam compreender o perfil profissional e as rotinas produtivas. As abordagens recentes, quando existentes, estão correlacionadas ao jornalismo amplo. No entanto, é certo que o uso de entrevistas com grupo profissionais, como metodologia de pesquisa, está em expansão tanto no Exterior como no Brasil. Em nível nacional, temos destacados trabalhos acadêmicos que buscam estabelecer um mapeamento profissional; a compreensão de sua importância como método; ou ainda quais as perspectivas da entrevista no jornalismo impresso. São pesquisadores que produziram teses, dissertações ou artigos a partir dos depoimentos de jornalistas como objeto para seus estudos. Nossa proposta dialoga com trabalhos acadêmicos que fizeram uso da entrevista como procedimento metodológico, entre os quais citamos, no caso brasileiro, Travancas (1993, 2001), Abreu (2003), Mühlhaus (2007), Pereira (2011), Adghirni (2013), e no exterior Harries e Wahl-Jorgensen (2007), Hellman e Jaakkola (2011) e ainda Spano (2004, 2006). No entanto, a maioria deles foi trabalhada a partir de enquadramentos profissionais ou olhares genéricos sobre jornalistas, ou específicos como editores, intelectuais e escritores. Em nível internacional, temos trabalhos desenvolvidos, no âmbito do jornalismo cultural, como o de Harries e Wahl-Jorgensen (2007), da Universidade de Cardiff. Eles examinam a autoimagem que jornalistas especializados em arte, crítica de teatro, música clássica, ópera e dança têm de si mesmos em relação aos outros jornalistas por meio de entrevistas com vinte destes profissionais no Reino Unido. Já Hellman e Jaakkola (2011) analisam três décadas das páginas de artes do maior jornal finlandês, Helsingin Sanomat, trabalham com documentos de planejamento estratégico da administração do jornal e utilizam entrevistas temáticas e observação de quinze jornalistas culturais. Spano (2004, 2006) pesquisou, a partir da Universidade de Lyon, práticas da comunicação e o jornalismo cultural. Um dos trabalhos tem foco nas denominadas revistas de marca de grandes empresas, onde questões de identidade, reputação e imagem de uma marca são estudadas, além dos aspectos pertinentes ao conteúdo editorial destas publicações.

PERCEPÇÕES A PARTIR DA ENTREVISTA-PILOTO O uso da entrevista em profundidade nos possibilita uma análise das falas de maneira interpretativa. Ao trabalhar com as respostas dos entrevistados, iremos agrupar os testemunhos em núcleos temáticos de sentido, buscando perceber, nas trajetórias individuais, indícios de processos de formação (formação familiar, ensino formal e informal, formação de competência), questões profissionais (maneiras pelas quais aderem à ideologia profissional, valores do campo jornalístico, disputas de segmentos específicos) além de posturas diante de novas rotinas de trabalho e das relações com fontes e leitores. Assim, buscamos encontrar pistas que possam abrir múltiplas janelas sobre a construção do papel de mediador jornalístico no âmbito da arte e da cultura e, talvez, de uma nova formatação relacionada ao ethos profissional. No conjunto, poderemos

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traçar paralelos entre as respostas, perceber simetrias e discordâncias em torno das discussões propostas. No entanto, trata-se de um processo em construção que é feito a cada análise do material coletado. Como um ensaio-piloto das entrevistas que serão realizadas com dez profissionais de veículos e assessores de imprensa do campo das artes visuais empreendemos uma entrevista-piloto, exploratória, para dimensionar o funcionamento do trabalho mais amplo. A jornalista, crítica de artes visuais e curadora independente Angélica de Moraes foi a convidada e integra o corpus amplo da tese. Gaúcha, radicada em São Paulo desde 1986, trabalha atualmente como free lancer e tem longa trajetória por veículos como as revistas Afinal, Veja, Bravo; o caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo e o Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo. Começamos por apresentar indícios sobre a formação profissional para exercício da competência da especialização que, no caso de Moraes, também tem como característica o acúmulo das funções de crítica e curadora nas artes visuais. Seu depoimento revela uma formação sólida no campo jornalístico, construída por especificidades da história pessoal, seja pelo contato com leituras clássicas e fundadoras no âmbito da família, seja pela ação do ensino formal. Em contraponto, percebe-se uma ênfase discursiva no autodidatismo conferido pela experiência prática, obtida na passagem por diversas editorias antes do reconhecimento público por meio do jornalismo cultural. O lugar crítico da mediação é definido pela práxis, pelo esforço pessoal, pela rotina de construção de uma reputação: “graças a isso, eu acho que deu para encarar essa questão da crítica de arte de uma maneira autodidata, porque quando comecei a fazer crítica de arte é que me inventei crítica de arte” (MORAES, 2014). O reconhecimento obtido na área fez a jornalista transitar em diferentes posições – reportagem, crítica e curadoria –, experimentando diferentes perspectivas de julgamento e de seleção na projeção pública de discursos sobre artes visuais: acho que o curador tem que entender a sua função. E o jornalista, que também é curador, no meu caso, tem que ficar muito mais atento a isso, porque ele sabe os dois lados da coisa [...]. No momento de escrever uma crítica a respeito de uma curadoria, eu tenho que me colocar do lado do leitor, não tem nada que ver se eu conheço ou deixo de conhecer o curador ou se poderá ser rentável para mim elogiar, porque aí ganha convite para XYZ. Não dá. Não há condição. Há quem diga ‘é muito difícil’ (MORAES, 2014). O crítico tem que criticar a curadoria, o crítico tem que analisar se o curador conseguiu atingir os objetivos que ele pretendia com o discurso dele ou não. E também tem que se entender se esse discurso foi postiço e se ele está adequado ou não ao universo dos artistas que ele escolheu (MORAES, 2014). O jornalista cultural tem que pensar em conteúdo, tem que pensar o que aquele fato cultural está propondo. No caso de uma exposição de arte, afinal, qual é a ideia?; ou de uma obra de arte, o que o cara está querendo propor, quais são os conteúdos filosóficos, existencialistas que estão envolvidos nisso? [...] O que interessa ao jornalista que lida com artes visuais, com cinema? Interessa a poética da obra (MORAES, 2014).

Pelo mesmo percurso de construção de si e de uma autoimagem, a jornalista reproduz um discurso muito próximo daquele que o mundo social elabora como imagem

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identitária do jornalismo e do jornalista enquanto uma entidade abstrata. Sua fala está marcada pelo ethos ou uma ideologia profissional, ou seja, uma série de valores ideais decorrentes de cenários culturais e históricos específicos. Comprometida com princípios como a credibilidade e a confiabilidade depositadas pelo leitor no profissional jornalista, ela revela ceticismo em relação às novas práticas e rotinas introduzidas no jornalismo pelas empresas nas últimas décadas. Questões que podem ser traduzidas a partir de fragmentos como “fui formada em jornalismo de repórter...”; “nunca assumi autocensura”; “essa nova geração flexibiliza muito mais a coisa. Parece que tem um jogo de cintura mais maleável. Eu não sei se isso é uma qualidade ou um problema”. Há uma polaridade entre as ideias da construção temporal e sólida da reputação e o ato cotidiano e circunstancial de “negociar”, “flexibilizar”: Pra mim, a flexibilização é quase nula, eu diria. Agora, eu entendo que exista uma negociação mais viva hoje, no sentido de que todo dia tem que negociar de novo, porque as coisas são muito dinâmicas e as forças de mercado estão cada vez mais invasivas do conteúdo editorial (MORAES, 2014). o meu patrimônio e o patrimônio de qualquer jornalista é a sua reputação [...]. Talvez, isso seja geracional, não sei, mas eu prezo muito o fato de não ter rabo preso (MORAES). o veículo quer se beneficiar de uma determinada reputação de independência que você tem [...]. Eu pago um preço altíssimo, porque, evidentemente o jornalismo é uma cachaça e a gente gosta de fazer (MORAES, 2014).

As disputas no campo comunicacional estão sempre presentes no depoimento de maneira contundente e enfatizando possíveis inter-relações. É o caso do tratamento que a jornalista dá a publicidade, aos anunciantes e a tudo aquilo que diz respeito aos negócios da empresa jornalística: “a publicidade e o jornalismo são como água e óleo: não dá para misturar. Misturou, dá bobagem”; “sou da época em que existia o Muro de Berlim entre redação e comercial”; “o jornalismo cultural é o espaço onde a promiscuidade é imensa. É uma das áreas mais promíscuas” (MORAES, 2014). Sobre contradições e disputas dos segmentos específicos de jornalistas de veículo e assessores na construção do acontecimento cultural percebemos ambiguidades em relação à atuação da assessoria e às consequências deste trabalho: não tenho nada contra os profissionais que agem com o maior, digamos assim, zelo. Eu fico pensando o efeito disso no jornalismo. Criou, na minha opinião, dois efeitos muito perversos: primeiro, o jornalista ficou preguiçoso. Recebe tudo em release. Copia o release. Normalmente, quando não é um profissional sério. Dois, o dono do jornal tem no assessor de imprensa um outro funcionário, gratuito. Então, ele começa a sobrecarregar o profissional contratado dentro da redação a fazer trocentas coisas, porque ele conta com o release como a muleta, não é? Então isso trouxe um empobrecimento muito grande ao conteúdo das matérias de cultura no Brasil (MORAES, 2014). A assessoria de imprensa que nós temos no Brasil é propositiva, ela não assessora, ela impinge, ela quer te vender aquela coisa de qualquer maneira, então ela pauta o jornalista. Eu acho que assessoria de imprensa é interessante quando ela se coloca como assessora mesmo. Eu recebo um release – release, claro, entendido como pauta, não como texto final

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– e, se tenho alguma dúvida, ligo (MORAES, 2014). A regra do jogo quem faz é o jornalista. O ‘cliente’, entre aspas, para usarmos uma linguagem da assessoria, que se dane. O que me interessa é o leitor, me interessa trazer a informação mais objetiva possível para o leitor. (MORAES, 2014).

Os processos envolvendo os modelos de negócios e as alterações significativas das rotinas de trabalho implementadas no jornalismo brasileiro, seguidas em alguma medida pelas assessorias de imprensa, são vistas como dinâmicas comprometedoras das relações com fontes e com o leitor. Consequentemente, desestabilizam o processo de mediação promovido pelo jornalismo cultural, “muito banalizado”, segundo o depoimento de Moraes, que propõe uma revisão e adequação deste percurso de mediação cultural em trechos como: O pessoal precisa se dar conta que, para reverter, tem que qualificar o conteúdo. Sem qualificar o conteúdo, não adianta estratégia de marketing, não adianta brinde, não adianta assinatura especial com mil penduricalhos. Não adianta. O leitor não quer o brinde, o leitor que um jornal adequado, seja em papel, seja na internet. Ele quer um texto bom de ler, quer conteúdo. Essa mesma coisa se projeta na área de jornalismo cultural (MORAES, 2014). [...] não subestime a inteligência do leitor. Dê a ele o máximo de qualidade que você conseguir, o máximo de informação e o máximo de conclusões que você pode deixar em aberto para ele decidir. Não faça um texto editorializado, em que todas as conclusões já estão dadas. Tenha respeito pela inteligência do leitor (MORAES, 2014). [...] a minha interlocução ideal é sempre com o artista. Não é com instituição, não é com a galeria. É com o artista, porque sem o artista nada se faz, não é? Então vamos dar o devido mérito ao ator. Quem é o ator desse circo todo? É o artista, não é? Então não vamos falsear o seu discurso, não vamos falar em nome dele, vamos dar a palavra a ele. Isso eu acho importante (MORAES, 2014).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Entendemos que a mediação cultural promovida pelo jornalismo é fundamental, mesmo quando em disputa com outras tantas formas de mediação. Legitimado socialmente, o jornalismo é essencial como promotor da intercessão discursiva entre realidade e o público, o fato cultural e a sociedade. De acordo com a entrevista-piloto, exploratória, o discurso de Angélica de Moraes é significativo na tradução do pensamento de um agente envolvido no processo de mediação no jornalismo cultural brasileiro há pelo menos quatro décadas. Um depoimento revestido de marcas de uma ideologia profissional sob o prisma do jornalismo romântico, quixotesco, ao mesmo tempo em que se mostra atento aos processos constantes de mudanças, advindos das disputas profissionais dos diversos agentes envolvidos no processo, das novas lógicas de negócio, dos valores e princípios sedimentados historicamente no campo jornalístico. Apresentamos neste momento apenas uma entrevista, o que se traduz em tímida investida sobre o tema. Os próximos passos, no entanto, apontam para uma diversidade de opiniões sobre os temas propostos, outras vivências e outras gerações de profissionais

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com novas perspectivas, formatando uma deontologia profissional contemporânea brasileira a ser investigada. Evidenciamos, no entanto, que a imposição de critérios e rotinas põe em xeque a compreensão do jornalismo como um sistema perito. O discurso de Moraes aponta para a existência de uma ingerência condescendente dos assessores de imprensa sobre os jornalistas de veículo, incidindo nos critérios de escolha das pautas, fontes e processos de midiatização de um fato. Transparece e se caracteriza um universo de disputas e alianças e uma flexibilização tanto da postura profissional como dos discursos sobre o ato jornalístico de mediar a arte.

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A atuação das assessorias de imprensa de entidades de defesa dos direitos humanos: entre disputas no campo midiático The performance of advisors defence organisation press of human rights: between disputes in the media field C l é b e r M o l e t ta 1 Marcelo Engel Bronosky2 Resumo: O objetivo deste artigo é discutir como as assessorias de imprensa de entidades de defesa dos direitos humanos atuam, em contexto de midiatização. Esta reflexão leva em conta as possibilidades de mediações técnicas e a abertura de espaços próprios de circulação de notícias. Apresentaremos o conceito de midiatização de Muniz Sodré (2006) e o conceito de poder simbólico de Pierre Bourdieu (1989;2004). Por fim, faremos uma análise conjuntural da atuação simbólica destas entidades no contexto midiático atual e como este cenário pode participar da formação da opinião pública, considerando o objeto de estudo – assessoria de imprensa – e os conceitos apresentados no texto – midiatização e poder simbólico.

Palavras-Chave: Assessoria de imprensa. Direitos humanos. Midiatização. Jornalismo.

Abstract: The purpose of this article is to discuss how the press offices of human rights organizations operating in the context of media coverage. This reflection takes into account the possibilities of technical mediations and the opening of own spaces of news circulation. We will present the concept of media coverage of Muniz Sodré (2006) and the concept of symbolic power Pierre Bourdieu (1989; 2004). Finally, we will make a situational analysis of the symbolic presence of these entities in the current media context and how this scenario can participate in the formation of public opinion, considering the object of study - press office - and the concepts presented in the text - media coverage and symbolic power.

Keywords: Press office. Human rights. Mediatization. Journalism.

INTRODUÇÃO OM A tecnologia determinando um novo modo de mediação – o bios midiático

C

(SODRÉ, 2006, p.22) - surgem novas possibilidades de circulação de notícias no meio social. São novas possibilidades de comunicar para públicos por meio destas tecnologias, sem dispor – necessariamente – de grandes estruturas físicas para produzir 1.  Mestrando no Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail: [email protected]. 2.  Prof. Doutor no Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail: [email protected].

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e circular, por exemplo, conteúdo jornalístico. Esta mudança em princípio estrutural aponta para uma reflexão teórica sobre como se produz jornalismo neste contexto cada vez mais midiatizado e quais são os impactos no campo jornalístico. Refletiremos sobre o caso das assessorias de imprensa de entidades ligadas a defesa dos direitos humanos e sua atuação midiatizada, tendo como perspectiva a participação destas estruturas na formação dos discursos no espaço público. Um dos objetivos é pensar como as instituições atuam simbolicamente, não somente do ponto de vista estruturado – se valendo de novas práticas e técnicas disponíveis com a tecnologia-, mas, usando os termos de Bourdieu (1989), estruturante, usando a notícia como um elemento simbólico capaz de se converter em força política para determinada causa ou entidade. Esta atuação mediada pela tecnologia, cada vez mais presente, passa a determinar a ação do assessor de imprensa em sua atividade prática e tencionar o campo jornalístico, conjuntura que forja um prática específica dentro de entidades como as de defesa dos direitos humanos, que necessitam da visibilidade de suas ações e temas para participarem de debates públicos. Este artigo pretende debater como as possibilidades técnicas de mediação – como sites e redes sociais, por exemplo – contribuem para atuação das assessorias de imprensa, como estas ferramentas são utilizadas para ‘vender’ o produto das instituições, levando em conta as tensões do campo de disputa no qual se encontram. Ainda na perspectiva de Pierre Bourdieu, refletiremos sobre como as assessorias atuam e ‘fazem coisas com palavras’ (Bourdieu, 2004, p.166-167), como participam da disputa que constrói determinado discurso público, oferecendo uma argumentação que representa parte da sociedade, considerando este processo fundamental para a formação da opinião pública, ou como potencialmente podem atuar.

MIDIATIZAÇÃO E BIOS MIDIÁTICO A circulação de informações atualmente passa a ser realizada, também, por diferentes tecnologias. Assim, se constitui uma nova cena informativa mundial, na qual as interações acontecem cada vez mais através de meios técnicos. Este cenário é conceituado por Muniz Sodré (2006) como o modo de mediação realizado por uma tecnologia, feita através de uma prótese tecnológica, um medium. São tecnologias que surgem em um novo contexto econômico e político, no qual se exige mais velocidade e agilidade na comunicação, sobretudo como mecanismo de mercado. Trata-se de um dispositivo cultural historicamente emergente no momento em que o processo de comunicação é técnica e mercadologicamente redefinido pela informação, isto é, por um produto e serviço da lei estrutural do valor, também conhecida como capital (SODRÉ, 2006, p. 20-21)

Midiatização, portanto, se caracteriza como um tipo específico de interação que se realiza por meios tecnológicos. Diferente de mediação, que se trata de um código, um símbolo pelo qual ocorre a comunicação oral ou escrita, por exemplo, não um meio físico, mas simbólico de troca de informações. Interação, por sua vez, é o modo operativo da mediação (SODRÉ, 2006, p. 20).

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Dentro desta oferta maior de modos de se comunicar via meios tecnológicos – interagir usando um meio tecnológico -, o autor aponta que cada vez as pessoas valorizam as relações por meio das mídias, criam um modo de existência humana de acordo com estas tecnologias. Como uma consequência desta valorização, ele descreve um novo modo de vida, um bios midiático. Ele parte dos três bios conceituados por Aristóteles como existentes na Pólis – o bios theoretikos (vida contemplativa), bios politikos (vida política) e bios apolaustikos (vida prazerosa) – para sugerir, com o advento da midiatização, a vida em uma nova bios, a midiática (SODRÉ, 2006, p.22). O autor sugere, então, uma mudança acentuada nas relações humanas, que agregam cada vez mais meios tecnológicos e passam a realizar diferentes tarefas através deles, estabelecendo uma comunicação constante. Nesta conjuntura, na qual as tecnologias têm papel preponderante na vida cotidiana das pessoas, podemos considerar diferentes aspectos de como esta nova bios ocorre e determina a sociedade, uma entrada pode ser a produção e circulação de notícias, que passa a ser realizada livremente e sem limites no ambiente midiatizado. Uma das questões apontadas por Sodré (2006) é justamente acerca da democratização da mídia, no sentido de desmonopolizar o controle de informação com a existência de meios técnicos acessíveis, que para ele não ocorrem somente pela criação de novas ferramentas de circulação de informação e de interação, nas quais aparentemente os ‘pequenos’ se assemelham aos ‘grandes’. Isso porque a tecnocultura está baseada em um modelo de mercado e meios de comunicação (SODRÉ, 2006, p.23). A percepção de que uma sociedade midiatizada representa uma ‘democratização’ da circulação de ideias e de livre exercício da cidadania, pode ser pensada como potencial, mas não ultrapassa uma mera especulação quando se reflete a realidade, como alerta Sodré (2006, p.23-24), se referindo a existência de uma comunidade do gosto, que é estatisticamente determinada. Mesmo com as possibilidades técnicas que mudam de fato o modo de vida social, o modo como esta vida se organiza, são mantidas as desigualdades sociais, com a prevalência de um discurso hegemônico (SODRÉ, 2003, p.32-37). O processo de midiatização ocorre por e em função de um liberalismo que se vale de outras práticas de operação, mas mantém um cenário de desigualdades, um contexto econômico e político que determina o modo como ocorrem as relações neste espaço midiatizado, aparentemente sem controle. Este cenário contextual de midiatização nos ajudará a pensar como emergem, na cena informativa, novas possibilidades de interação e exposição pública, o que ocorre aparentemente em ambiência horizontalizada e de livre acesso. Assim como Sodré (2006), reflete sobre o avanço do aparato técnico e a permanência de uma lógica política e econômica de maneira ampla, é possível pensar modos de produção e circulação de notícias neste ambiente midiatizado.

ATUAÇÃO SIMBÓLICA DAS ASSESSORIAS DE IMPRENSA Neste contexto midiatizado de interações, ou seja, mediação realizada por dispositivos tecnológicos, se mantém um serviço que surge com a expansão dos meios de comunicações de massa: a assessoria de imprensa. O serviço nasce nos Estados Unidos no início do século XX como uma estrutura que presta serviços para jornalistas e

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empresas jornalísticas (WEY, 1985, p.31), atendendo aos interesses do assessorado na produção da notícia, com objetivo de controlar a informação que chega ao público por meio da imprensa de massa. No mosaico de possibilidades informativas que se forma no ambiente midiatizado, ou seja, de se comunicar com sujeitos por meios tecnológicos, a assessoria de imprensa ocupa também outros espaços de atuação, não somente o de assessorar a mídia. As possibilidades de realizar interações por dispositivos tecnológicos garantem às assessorias uma entrada neste novo ambiente de circulação de notícias. Com esta nova possibilidade técnica, de interagir por dispositivos tecnológicos, as assessorias de imprensa/organizações passam a integrar uma rede de produção e circulação de informação, caracterizada pelo modo como as notícias circulam na internet, possibilitando diferentes fluxos informativos (BRUNS, 2011). Esta expansão na circulação das notícias de determinada instituição é um fator que também determina a relação com os meios de comunicação tradicionais – uma das ‘principais’ atribuições da assessoria. Este ambiente aparentemente ilimitado em potencial de público e espaço (volume e quantidade) de interações é determinado por algo que vai além da estrutura de circulação da notícia, como no caso de sites institucionais nos quais se veiculam notícias sem o filtro de meios de comunicação e jornalistas externos a organização. As mudanças tecnológicas representam novos espaços de circulação de notícias, como apontamos no tópico acima, mas não determinam a participação simbólica dos discursos que estão disponíveis em diferentes espaços. A reflexão de Pierre Bourdieu (2006;1987) sobre o poder simbólico e sua abordagem metodológica permite uma compreensão das complexas relações sociais pode contribuir para entender a relação de como as instituições aparecem nesta cena informativa. Como uma prática metodológica, Bourdieu propõem admitir a existência de uma estrutura objetiva que de fato determina o modo como o mundo se organiza. Junto a ela, existem elementos simbólicos não materiais, aqueles que não se pode ver, mas que determinam o modo como a sociedade se organiza. Bourdieu, apesar desta posição, claramente rompe com o estruturalismo, e oferece então estas duas maneiras de agir metodologicamente3, se coloca como um estruturalista construtivista, ou construtivista estruturalista. As duas fazem uma relação dialética que deve ser considerada no momento de se explicar as “lutas cotidianas, individuais ou coletivas, que visam transformar ou conservar estas estruturas” (BOURDIEU, 1989, p.152). Como uma abordagem mais estruturalista, se apresentam os sistemas simbólicos estruturados. A estrutura estruturada reflete algo como ‘o produto pronto’, são “as estruturas objetivas que o sociólogo constrói no momento objetivista”, e continua, dizendo que estas “são o fundamento das representações subjetivas e constituem as coações estruturais que pesam nas interações”, (BOURDIEU, 2004, p.152). Bourdieu recorre ao termo opus operatum (referência a algo já feito, pronto, concluído), para demonstrar sua oposição ao simbolismo estruturante, que não pode ser definido como objeto real e palpável, o processo de se fazer algo (classificado como modus operandi). 3. Fernández (2013) escreve sobre as raízes da sociologia proposta por Bourdieu e como um de seus objetivos romper com a interpretação dualista da realidade social.

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Se atendo ao primeiro aspecto – estruturas estruturadas -, as assessorias de imprensa em contexto de midiatização, operam com estruturas diferentes daquela anterior. Pode-se dizer, utilizando uma metáfora, que as assessorias de imprensa antes atuavam nos bastidores da produção da notícia, com estas novas estruturas, atuam no mesmo palco que a imprensa tradicional. O potencial de alcance destas assessorias será determinado pela capacidade simbólica de atuar. Num processo de expansão e sucesso na tentativa de agendar os meios, os sites institucionais e redes sociais representam – na perspectiva estruturante, a ultrapassagem de um limite que sem as mídias digitais era mais dificilmente superada. No cenário atual de midiatização, a emissão e produção de notícias está despolarizada e os meios não tem mais o monopólio da produção informativa. Se do ponto de vista estruturado ocorre um avanço (a participação na produção e circulação de informações em ambiente midiatizado), as formas simbólicas estruturantes permanecem sendo algo mais sensível de ser alcançado, elas são o ‘processo’ de construção de uma realidade social, determinada por diferentes forças que atuam simbolicamente, sem serem notadas visível ou fisicamente. Bourdieu toma como partida, para falar em sistemas simbólicos estruturantes, a tradição neo-kantiana que trata as formas simbólicas como sendo “instrumentos de conhecimentos e construção do mundo dos objetos” e de Durkhein, que considera as formas simbólicas particulares, que representam um grupo específico e socialmente definido, não as formas universais e transcendentais. Com estas referências, Bourdieu se apropria de ambos e avança dizendo que “a objetividade do sentido do mundo define-se pela concordância das subjetividades estruturantes” (BOURDIEU, 1989, p.8). Nesta perspectiva, dividindo a análise em duas, Bourdieu vai apontar que os agentes estão dispostos no espaço social global em duas dimensões: primeiro em relação aos capitais que eles possuem em diferentes espécies e, segundo: “de acordo com a estrutura de seu capital, isto é, de acordo com o peso relativo das diferentes espécies de capital, econômico e cultural, no volume total de seu capital”, (BOURDIEU, 2004, p.154). Presente no real, na dimensão existencial e fenomenológica do mundo, os capitais vão se convertendo em capital simbólico de acordo com o modo como vão se internalizando na cultura de determinado grupo. Cualquier especie de capital puede convertirse en capital simbólico cuando es percibida según unas categorías de percepción que son, al menos en parte, fruto de la incorporación de las estructuras de un universo social o de un campo específico dentro de él (Fernández Fernández , 2013, p.36)

Em determinado campo de atuação, estes capitais interferem no modo como age e se organiza os agentes e como se dão as relações de disputa. Determinam, então, o habitus de um grupo, entendido “ao mesmo tempo [como] um sistema de esquemas de produção de práticas e um sistema de esquemas de percepção e apreciação de práticas” (BOURDIEU, 2004, p.158). Por isso, expõem a posição social em que foi construído. Em consequência, produz práticas e representações que podem ser classificadas, que são diferentes. Mas só serão percebidas se o agente tiver o código para compreendêlos, quer dizer, serem entendido por alguém que dispõem ou adquire a capacidade

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de compreender tal grupo. Assim, o habitus oferece uma percepção do senso comum evidente (BOURDIEU, 2004, p.159). Interpretando Bourdieu, a leitura do atual cenário de assessorias de imprensa que atuam em espaços próprios e buscam consolidar uma participação na cena informativa independente dos meios, depende necessariamente de condições adquiridas por quem esta ‘falando’, ou, mais diretamente, da instituição e tema em questão. Mas não se discute a possibilidade técnica que supera o estágio anterior de meios de massa. Este ambiente aparentemente não controlado no qual circulam as informações depende de diversas variáveis, sem que alguém a controle completamente. Isso porque a legitimação da ordem social não é produto, como alguns acreditam, de uma ação deliberadamente orientada de propaganda ou de imposição simbólica; ela resulta do fato de que os agentes aplicam às estruturas objetivas do mundo social estruturas de percepção e apreciação do que são provenientes dessas estruturas objetivas e tendem por isso a perceber o mundo como evidente (BOURDIEU, 2004, p.163)

Quem fala, não apenas o que e como fala, determinam o modo como esta mensagem será aceita, utilizada, interpretada no espaço público. E a definição do capital adquirido por determinado agente, que distintivos ele possui, ocorre em um processo anterior a ação propriamente dita. O que Bourdieu classifica como distintivos são como elementos que compõem o poder simbólico de determinado ator social, capitais que diferenciam determinado cidadão (ou, para aproximar de nosso objeto, instituições) de outros. Se dividem em objetivo, como um título acadêmico ou uma determinação jurídica, e subjetivo, algo que se conseguiu ‘provando’, por mérito, por exemplo (BOURDIEU, 2004, p.161-164). Mais que estruturas que tecnicamente fazem a notícia circular, o que determina a ‘eficácia’ da absorção daquilo que é dito não são simplesmente as palavras. “O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU, 1989, p.15). Todas as relações de comunicação são relações de poder que dependem da forma e do conteúdo, são estruturas estruturantes e estruturadas, dependem do poder acumulado de quem fala (BOURDIEU, 1989, p.11) em um campo de disputa, estes poderes travam uma luta simbólica de dominação sobre o dominado (BOURDIEU, 1989, p.12). O poder simbólico é uma força “irreconhecível, transfigurada e transformada” que transforma outros poderes em poder simbólico, quer dizer, em poder que faz coisas objetivamente sem gastar energia (BOURDIEU, 1989, p.15). Ainda recorrendo a Bourdieu, é possível questionar, o que as assessorias de imprensa pretendem “fazer com as palavras” (BOURDIEU, 2004, p.166-167) em seus sites e redes sociais? Mais do que dispor do espaço de circulação de informação, como agem simbolicamente para estruturar determinado discurso ou modo de vida.

JORNALISMO COMO ESTRATÉGIA Dentro do conceito de habitus, que torna práticas de determinada sociedade naturalizadas, existem estratégias que o agente realiza para que de fato se construa determinada realidade. A estratégia reproduz as condições do habitus e o ‘realimenta’, por vezes de

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forma contraditória (TRIGO, 1998, p.52-53), pois como aponta Bourdieu, a sociedade é dinâmica e diferentes situações se apresentam e exigem uma adaptação do agir. Não existe uma regra que determine como uma função será realizada pelo agente, o habitus é fundamental para este agir, mas, como dissemos anteriormente, a realidade é dinâmica. O esforço de Bourdieu, com a noção de estratégia, é para contrapor outra noção, a de regra, vinda do estruturalismo. Ele reforça a estratégia como um instrumento que dá autonomia ao sujeito em um campo de disputa. Isto elimina o preestabelecido, de se prever e determinar exatamente o que vai acontecer com base na estrutura social. A noção de estratégia é o instrumento de uma ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente que o estruturalismo supõe (recorrendo, por exemplo, à noção de inconsciente). Mas pode-se recusar a ver a estratégia como o produto de um programa inconsciente, sem fazer dela o produto de um cálculo consciente e racional. Ela é produto do senso prático como sentido do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido, que se adquire desde a infância (BOURDIEU, 2004, p.81)

Para ilustrar esta noção de estratégia, operada em um senso prático, Bourdieu (2004) utiliza a metáfora do jogo. Esta noção não se trata de uma ação planejada e totalmente controlada, imposta ou determinada por uma regra preestabelecida, é a capacidade do jogador, de realizar, de acordo com as possibilidades do jogo, ações que ele seja capaz de perceber e realizar, e estas ações que por vezes não estão inscritas, mas estabelecidas pelo habitus. O habitus como sentido do jogo é jogo social incorporado, transformado em natureza. Nada é simultaneamente mais livre e mais coagido do que a ação do bom jogador. Ele fica naturalmente no lugar em que a bola vai cair, como se a bola o comandasse, mas, desse modo, ele comanda a bola. O habitus como social inscrito no corpo, no indivíduo biológico, permite produzir a infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estado de possibilidades e de exigências objetivas; as coações e as exigências do jogo, ainda que não estejam reunidas num código de regras, impõem-se àqueles e somente àqueles que, por terem o sentido do jogo, isto é, o senso da necessidade imanente do jogo, estão preparados para percebê-las e realizá-las (BOURDIEU, 2004, p.82).

Esta noção de estratégias obedece a uma certa regularidade, repetição, mas não no sentido de regras, que sempre determinaram o modo como ocorreram as ações dos sujeitos em determinada sociedade. A noção de estratégia de Bourdieu, no contexto de midiatização, permite uma reflexão da ação de estruturas de assessoria de imprensa. A midiatização proporciona ao assessor mais possibilidades de emissão de mensagens (ainda com a metáfora do jogo, mais possibilidades de jogar), com ampliação de público e direcionamento das mensagens a públicos específicos. Não está determinado em regras como os espaços tecnológicos devem ser usados para circulação das notícias – no caso do jornalismo institucional -, estes fluxos e apropriações dependerão de como as assessorias realizarão, dentro dos capitais que dispõem, usos estratégicos dos meios disponíveis – como sites e redes sociais.

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Não está determinado, portanto, como estas estruturas de produção de conteúdo podem agir, mas existe uma lógica de circulação de informações e funcionamento dentro deste campo que orienta as estratégias das assessorias de imprensa, seja legitimando-as, seja as refutando e refazendo-as. O grande diferencial desta possibilidade, pode-se dizer, está em poder realizar a mediação em estruturas que antes não eram acessíveis. A formação de um discurso se apresenta como uma disputa permanente. Com isso claro, os conceitos de Bourdieu apresentados até aqui contribuem para uma reflexão sobre a ação das assessorias de imprensa em mídias institucionais, espaço que possibilita a mediação por meio técnico, e na qual o discurso jornalístico se apresenta como linguagem possível de ser usada como estratégia, no sentido de disputar a formação de um discurso público. Tentaremos esta reflexão no tópico a seguir.

O ESPAÇO MIDIATIZADO COMO CAMPO DE DISPUTA Oferecer notícias produzidas pelas assessorias de imprensa em sites e redes sociais na Internet é uma prática realizada em diferentes instituições do terceiro setor que atuam na área de Direitos Humanos4. Estes espaços de circulação das notícias se realizam por meios técnicos que caracterizam a midiatização, ou, mediações realizadas por dispositivos técnicos. Caracteriza, ainda, conforme Sodré (2006), a circulação em uma nova esfera de existência humana, classificada como bios midiático. Estes espaços permitem que as notícias produzidas por entidades sejam veiculadas nestes espaços e controladas – no sentido de que conteúdo publicar, que formato utilizar, que critérios de noticiabilidade e que fontes utilizar – pela própria instituição. Considerando este dispositivo tecnicamente acessível em relação a outras formas de circulação de notícia – rádio, televisão, jornais impressos, que exigem uma concessão pública, ou aquisição de espaço, no caso de rádio e televisão, ou de dispor de suporte logístico para circulação de um produto impresso -, os sites institucionais e as redes sociais na Internet se apresentam como estruturas viáveis para setores que não dispõem de outros espaços ou de grandes quantidade de recursos financeiros. Aproximando-se com o que diz Bourdieu (1989;2004), estas mídias são como estruturas estruturadas, como uma primeira referência de leitura da organização social. Estas mídias, ou o espaço midiatizado, está disponível para diferentes sujeitos sem necessariamente depender de grande capital econômico. Traçando um paralelo a partir do que diz Sodré (2006, p.23), se apresentam, aparentemente, como uma possibilidade que torna grande e pequenos do mesmo tamanho, no sentido de garantir uma estrutura de veiculação de informação não garantida por outros meios. Uma leitura do ponto de vista estruturante, ou seja, aquela que determina o processo de construção das realidades sociais (BOURDIEU, 1989, p.9), os espaços ocupados em sites e redes sociais por estas instituições é determinado por seu poder simbólico – ou seja, capital econômico, social e cultural adquiridos capazes de se converter em poder simbólico. Por esta perspectiva, estas ferramentas se colocam em um campo de disputa 4. A pesquisa desenvolvida no âmbito do mestrado selecionou e acompanha quatro entidades ligadas ao tema – Terra de Direitos, Conectas Direitos Humanos, Inesc e Justiça Global – que oferecem o conteúdo produzido por suas assessorias de imprensa em sites institucionais e conteúdo específico para redes sociais na Internet, conforme levantamentos já realizados pelo autor, mas ainda não publicados.

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no qual estas instituições, em razão daquilo que realizam, se encontra. A notícia, que passa a circular por dispositivos técnicos, se converte em operação possível de ser realizada pela instituição, que dentro de um habitus – do campo jornalístico – buscando participar da formação de um discurso público, por suas próprias ferramentas – site e redes sociais – ou pressionando a mídia. Dizer coisa é fazer coisas, na perspectiva de Bourdieu (2004), o que coloca as notícias como um reflexo do posicionamento das lutas das entidades que as produzem. Dispor desta possibilidade pode se reverter em cobertura dos meios de comunicação, desde que o conteúdo vá ao encontro do que é estabelecido como notícia por determinado veículo. A visibilidade no espaço midiático pode fazer com que a instituição seja convocada como fonte ou que seu conteúdo seja utilizado – na íntegra ou em partes – por um jornal, ou ainda garantir um enquadramento favorável. Especificamente sobre o tema Direitos Humanos, parte da cobertura midiática se restringe a superficialidade no uso dos conceitos e a reduzida utilização de entidades do terceiro setor ligadas ao tema. Um levantamento realizado pela Andi (Agência de Notícias dos Direitos das Crianças), SEDH (Secretaria Especial de Direitos Humanos) e Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciências e a Cultura), mapeia como o tema foi tratado por 57 jornais brasileiros no ano de 20045. O diagnóstico aponta que 50,8% dos textos analisados mencionam a expressão Direitos Humanos e 80% citam a palavras direitos. Entretanto, somente 0,5% do total traz um conceito explícito de Direitos Humanos, além do que nada menos de 62% das matérias que usam a expressão discorrem sobre Direitos Humanos em geral. Ou seja, de maneira geral, a cobertura não aborda direitos específicos contidos na Declaração e/ou em outros instrumentos legais (ANDI, 2005, p.302).

Nos 1315 textos analisados 36,5% apresentam falas de fontes oficiais, referentes aos poderes constituídos, 9,2% são de organizações da sociedade civil representam, 1,9% Conselhos e 3% as populações. Os textos não trazem fontes claramente identificadas, em 28,5% (ANDI, 2005, p.305). Das matérias analisadas no levantamento, 11% são as que apresentam opiniões divergentes, mesmo que 36,7% dos textos tenha mais que uma fonte consultada (ANDI, 2005, p.305). Neste contexto, os sites também se apresentam como alternativa a cobertura midiática, conquistando públicos interna e externamente. Dados obtidos via questionário fechado preenchidos por assessores de imprensa6 de três entidades que atuam no setor de Direitos Humanos, mostram que 100% das entidades pretende com o site informar o público interno da entidade, Informar o público externo e contribuir em discussões 5.  Trata-se de um levantamento realizado pela ANDI, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) e a Unesco, sobre a cobertura da mídia impressa brasileira na área dos Direitos Humanos. A pesquisa analisou 1.315 textos, (matérias, artigos, editoriais, colunas e entrevistas) veiculados por 57 diários de todas as unidades da federação ao longo de 2004. Para obter os textos que integraram a investigação, usou-se a metodologia do mês composto. Conforme esse método de seleção amostral, sorteiam-se 31 dias entre os 365 do ano, de forma a que todos os meses e dias da semana estejam representados de modo proporcional. 6.  Dado obtido em levantamento realizado pelo autor em sua pesquisa de mestrado. Os assessores entrevistados são da Conectas Direitos Humanos, Terra de Direitos e Justiça Global. Trata-se de um resultado parcial de material ainda não publicado.

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políticas. A pesquisa não mede o alcance das publicações, trata-se da expectativa do assessor de imprensa. Este resultado, no entanto, demonstra que o espaço também é utilizado pelas entidades para circular notícias sem ter como objetivo principal atender a demanda das mídias tradicionais. A previsão de alcance de públicos externos e internos e a contribuição em discussões políticas é realizada no espaço midiatizado, sem a participação da imprensa tradicional, se constituindo como uma ferramenta que possibilita a participação das entidades na divulgação de notícias. O sucesso na expectativa de informar os públicos internos, externos e de formação da opinião pública, depende dos capitais – social, econômico e cultural- que garantem poder simbólico de “fazer coisas com palavras” (BOURDIEU, 2004).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando a sociedade midiatizada e a permanente luta simbólica que ocorre em diferentes campos sociais, como os que envolvem os direitos humanos, os sites e redes sociais na Internet se apresentam como uma possibilidade de atuação de entidades do terceiro setor. Esta atuação, porém, dependerá do capital simbólico já adquirido pela instituição e de como ocorrem as disputas, que outras forças compõem o campo. Se por um lado a ferramenta por si não basta, dependendo de outras possibilidades simbólicas para sua atuação eficaz, não se pode desconsiderar a potencialidade das mediações técnicas que determinam, cada vez mais, o modo como se organizam as sociedades. Ao analisar o modo como se constitui midiaticamente a sociedade atual e como as assessorias de imprensa atuam nela, podemos apontar para um novo cenário de luta simbólica no campo jornalístico, na busca pela visibilidade no espaço público mas também na busca de melhor espaço na mídia e espaços jornalísticos hegemônicos, através de tecnologias que compõem a sociedade midiatizada. Estes espaços tecnicamente mediados, permitem as entidades uma possibilidade de apresentar seus discursos por meios das assessorias de imprensa, com linguagem jornalística. Ocorre, com este movimento, uma tensão no campo jornalístico e na uma ferramenta de disputa da opinião pública por parte das entidades que não tem cobertura sistemática da imprensa.

REFERÊNCIAS ANDI; Secretaria Especial dos Direitos Humanos; UNESCO. Mídia & Direitos Humanos. Coordenado por Veet Vivarta. Pesquisa Guilherme Canela. --- Brasília, 2006. BRUNS, Axel. Gatekeeping, Gatewatching. Realimentação em tempo Real: novos desafios para o Jornalismo. p. 119- BRAZILIAN JOURNALISM RESEARCH - Volume 7 - Número 1I – 2011 Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Editora Bertrand Brasil S.A, Rio de Janeiro, 1989. ______ . Coisas Ditas. Editora Brasiliense, São Paulo, 2004. SODRÉ, o globalismo como neobarbárie. In: MORAES, Denis de (Org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003 ______ . Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In: MORAES, Denis de (Org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.

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NORONHA, Gabriel Vieira. ROCHA, Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto. Elias e Bourdieu - Para uma sociologia histórica, ou seria uma história sociológica? Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 47-58, 30 mar. 2008. FERNÁNDEZ FERNÁNDEZ, José Manuel. Capital simbólico, dominación y legitimidad. Las raíces weberianas de la sociología de Pierre Bourdieu. Papers: revista de sociología, Nº 98, 1, 2013, p. 33-60. TRIGO, Maria Helena Bueno. Habitus, Campo, Estratégia: Uma leitura de Bourdieu. Cadernos Ceru, Série 2, nº9, 1998. WEY, Hebe. O processo de relações públicas. 2. ed. São Paulo: Summus, 1986.

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Na perspectiva do newsmaking: apontamentos para análise da seleção e construção do acontecimento na relação entre assessoria de imprensa e jornalismo By newsmaking: methodological contribution for analysis of informative discourse, built on the relationship between the press office and journalistic writing. C l a u d i a n e C a r va l h o 1 Resumo: Neste artigo, propomo-nos a compreender a construção discursiva da notícia na relação entre jornalismo e comunicação organizacional, através da assessoria de imprensa (AI). No encontro dessas duas instâncias de produção, a configuração negociada da notícia ocorre mediante a zona de interseção entre o discurso estratégico (da AI) e o discurso jornalístico. Assim, analisando esse espaço intersectivo, pelo viés do newsmaking, localizamos os critérios de noticiabilidade acionados pela assessoria e pela redação jornalística, com vistas ao processo de agendamento.

Palavras chave: Newsmaking. Discurso. Notícia. Comunicação Estratégica. Abstract: This article aims to understand the discursive construction of the news in the relationship between journalism and the organizational communications through the press office. In the meeting of these two instances of production, the negotiated configuration of the news occurs through the intersection zone between the strategic discourse (of the press office) and the journalistic discourse. Thus, when the intersective space is analyzed through the newsmaking perspective, we find the newsworthiness criteria added by the press office and by the journalistic writing, focused on the scheduling process.

Keywords: Newsmaking. Discourse. News. Strategic Communication.

NOTICIABILIDADE: CONJUNÇÃO DE FATORES E NEGOCIAÇÃO ARTIMOS DA constatação de que os assessores de imprensa buscam aderir, em

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certa medida, ao universo discursivo do jornalismo, a fim de conquistar um espaço de legitimidade para negociação das pautas junto às redações dos suportes. Nesse sentido, as noções de noticiabilidade, valores-notícia e critérios de noticiabilidade deixam de ser uma exclusividade da prática jornalística para figurar também na comunicação organizacional (MONTEIRO, 2003; SANT`ANNA, 2007). Com base na compreensão de que a noticiabilidade refere-se aos fatores que potencialmente podem agir no processo de produção da notícia, a pesquisadora Gislene Silva 1.  Faculdade Social da Bahia (Bahia).

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(2014, p. 52) estabelece três dimensões diferenciadas para os seus critérios, a saber: a) na origem dos fatos; b) no tratamento dos fatos e c) na visão dos fatos. Assim, abarca desde os aspectos atinentes à seleção dos fatos sócio-históricos até a configuração narrativa do acontecimento, calcada nos fundamentos éticos, filosóficos e epistemológicos do jornalismo, sem desmerecer a disposição hierárquica da informação no suporte. Essa conjunção de diferentes elementos leva Wolf (2003) a conceber a noticiabilidade como ponto de convergência e de negociação entre a organização do trabalho (rotinas e práticas), a cultura profissional e os valores embutidos. A perspectiva da negociação também é adotada por Nelson Traquina (2002, 2005), que, à luz da teoria etnoconstrucionista, vislumbra a produção da notícia como um processo de percepção, seleção e transformação do acontecimento em discurso informativo. Nesse viés, o autor relembra que a institucionalização do campo jornalístico está diretamente atrelada à profissionalização dos seus agentes, no sentido de exercer a decisão sobre a noticiabilidade do acontecimento (TRAQUINA, 2002, p.94); ou seja, decidir sobre “o conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é, possuir valor como notícia” (TRAQUINA, 2005, p.63). Herbert Gans (1980), Traquina (2002, 2005), Wolf (2003), Sodré (2009) e Alsina (2009) entendem que os valores-notícia atravessam toda a configuração do acontecimento, sendo, portanto, “critérios de relevância difundidos ao longo de todo o processo de produção e estão presentes tanto na seleção das notícias como também permeiam os procedimentos posteriores, porém com importância diferente” (WOLF, 2003, p.202). Diante dessa constatação, o acadêmico italiano traçou a distinção entre valores-notícia de seleção e valores-notícia de construção. Start Hall (et al., 1993) salienta a opacidade dos valores-notícia e os define como um mapa cultural do mundo social. Ponte (2005) corrobora Hall e salienta que esses “são mais do que uma listagem de atributos das notícias, combinados ou combináveis. Operam como estrutura de retaguarda social, profunda e escondida e requerem um conhecimento consensual sobre o mundo” (PONTE, 2005, p.192). Seja definida como mapa, código, esquema de orientação, coordenadas para seleção dos fatos noticiosos, a noção de valor-notícia não se destaca da compreensão da notícia, como construção social e, portanto, há que se considerar a presença dos sujeitos informadores diante da matéria-prima noticiosa (SILVA, G., 2014, p.58). Se um dos pilares de constituição do campo jornalístico diz respeito à profissionalização dos seus agentes para decidir sobre a noticiabilidade do acontecimento, ou seja, exercer a soberania nesse julgamento, hoje, os estudos que apontam para uma reestruturação na identidade do jornalismo sinalizam para o esmaecimento desse poder, uma vez que a seleção do que será notícia e a consequente construção do discurso informativo já não são exclusividades da mídia jornalística (ADHIRGNI, PEREIRA, 2011). Sabe-se que, a partir das ações e serviços da assesssoria de imprensa (AI), o valor-notícia orienta o trabalho de construção do discurso informativo desde a instância da fonte da informação. Por conta desse caráter originário e atravessador, nos debruçaremos mais sobre os valores-notícia.

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O VALOR-NOTÍCIA E A SELEÇÃO DO ACONTECIMENTO É o valor-notícia que retira o fato da generalidade e o destaca como fato sócio-histórico. É na localização de critérios de noticiabilidade que se estabelece o valor-notícia do acontecimento, e, no que tange às assessorias de imprensa, eis aqui a garantia de que um determinado “assunto” está apto a ser enviado aos veículos como conteúdo jornalístico. Lembremos, contudo, que tratar dos processos de seleção e construção da notícia é sublinhar também o processo de publicização, de midiatização do acontecimento. Nesse âmbito, Alsina (2009), Charaudeau (2003, 2012, 2013) e Rodrigues (1993), ao abordarem as potencialidades, atributos e características que tornam um acontecimento hábil à midiatização, já fazem alusão aos critérios de noticiabilidade. Embora tal expressão nem sempre seja citada diretamente, os autores tratam do newsmaking. Os valores-notícia podem também ser entendidos como os critérios que vão tornar o fato interessante à visibilidade, à partilha e à comunhão públicas, porque a configuração da notícia é indissociável da midiatização do acontecimento. Há que se acentuar, entretanto que: “A ideia de noticiabilidade não se ajusta automaticamente à ideia de proeminência na mídia” (SILVA, M., 2014, p.75). O jogo noticioso não é definido a partir das regras isoladas, mas da sua atuação conjunta, agregadora ou desagregadora. A assessoria de imprensa, na dianteira do processo configurativo, tem um duplo interesse: tanto persegue a publicidade, promovida pela mídia massiva, quanto busca a indexação da informação estratégica aos valores do jornalismo (MONTEIRO, 2003; BORDEAUX, 2006). A informação, publicada no espaço editorial do veículo jornalístico, tende a ser lida como um assunto que passou por investigação, pelo crivo da reportagem. O mesmo não acontece com a propaganda, por exemplo, cujo discurso implícito é o do vendedor. Ao assessor também cabe identificar traços que destaquem o acontecimento como jornalístico, ou seja, que o coloquem como passível de midiatização, a partir do discurso informativo. Para estar na mídia, o acontecimento, recordemos Alsina (2009) e Morin (1972), terá que promover variação do ecossistema (ou seja, ser reconhecido como imprevisível e/ou extraordinário e/ou singular), implicar o destinatário (proximidade, interesse humano, intensidade, valores culturais etc.) e ter comunicabilidade (ou seja, o sentido do acontecimento é conferido também pela institucionalização da comunicação jornalística). Mas vale lembrar que os operadores da mediação e da midiatização jornalísticas são respaldados e ancorados na construção do real, da cotidianidade, ordenada pelo presente, pelo aqui-agora. “É próprio da midiatização, entretanto, pautar a singularização do acontecimento pela atualidade” (SODRÉ, 2009, p.60). Elencar, de forma precisa e definitiva, as regras para seleção e eleição do acontecimento que se tornará notícia é uma tarefa árdua e com resultados insatisfatórios, pois as constantes transformações sociais, culturais, políticas, econômicas e, até mesmo, tecnológicas têm impacto sobre essas regras e sobre a passagem do acontecimento para notícia. Além do mais, aspectos contextuais implicam uma discordância entre o que pode ou não ser acontecimento em culturas e épocas distintas ou espaços sócio-geográficos diferentes (o que é notícia numa pequena cidade do interior pode não sê-lo na capital do estado, nem figurar como relevante para o país).

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Mesmo com as dificuldades impostas pela natureza complexa do processo, muitos autores se lançaram ao projeto de investigar sobre as regras que influem na seleção do acontecimento, os chamados critérios de noticiabilidade, que conferem ao acontecimento o valor-notícia (GALTUNG, RUGE, 1993; TUCHMAN, 1993, 2002; BÖCKELMAN, 1983, WOLF, 2003; LIPPMANN, 2008; HALL, 1993; TRAQUINA, 2002, 2005; para citar alguns estrangeiros; e LAGE, 2001; GUERRA, 2008, 2014; SILVA, G., 2014; SILVA, M., 2014; FRANCISCATO, 2014; lista sintética de pesquisadores brasileiros). Desde o primeiro registro de uma pesquisa acadêmica sobre jornalismo, em 1690, na Universidade de Leipzig, já despontavam como preocupação as características dos acontecimentos que lhe conferiam um valor informativo. Referimo-nos à tese doutoral De Relationibus Novellis, na qual o autor Tobias Peucer abordava a seleção de acontecimentos, dignos de registro e divulgação públicos, e tratava da construção da notícia como narrativa. Todas as pesquisas sobre valores-notícia convergem ao mesmo ancoradouro – a percepção da impotência das listagens diante do fato de que eles mudam com o tempo. Nesse sentido, Vicente Campbell traz mais uma provocação ao afirmar que os valores notícia determinam a seleção dos acontecimentos, mas, simultaneamente, a seleção dos fatos noticiosos também determina os valores-notícia (CAMPBELL, 2004, apud Silva, G, 2014, p.67). Esta percepção serve como um argumento às inquietações de Carlos Eduardo Franciscato (2014) ao caráter operacional dos estudos sobre os critérios de noticiabilidade, dada a variabilidade do produto notícia. Neste trabalho, reconhecemos a pertinência dos estudos acerca dos critérios de noticiabilidade, que se consubstanciam em valores-notícia (valoram o que será ou não noticiável), entretanto, também apostamos que a perspectiva dos valores-notícia possa ser somada a outras abordagens, no que tange às pesquisas sobre a produção da notícia.

O VALOR-NOTÍCIA E AS FONTES DE INFORMAÇÃO NA SELEÇÃO DO ACONTECIMENTO PELA ASSESSORIA DE IMPRENSA E JORNALISMO Se, para o jornalismo, a fonte de informação é necessária à construção da narrativa, a assessoria se vale desse pressuposto e se coloca como mediadora da fonte, ou como quem está próxima dela. A tríade fonte – assessoria de imprensa – jornalista está longe de ser tranquila, pois anexa um complicador (a AI) numa relação já marcada por tensionamentos: jornalista/fonte. Dos valores-notícia, listados por Galtung e Ruge (1993), realçamos o que diz respeito à possível ambiguidade apresentada pelo acontecimento, no que tange ao valor-notícia de confiabilidade da fonte. Na configuração do acontecimento em foco neste trabalho, cabe à assessoria reconhecer, em primeira instância, o valor-notícia e, para tanto, precisa levar em conta as diferentes características que conferem ao acontecimento a maior possibilidade de se tornar noticiável. Entretanto, uma das premissas do trabalho da AI é tornar a fonte assessorada uma referência para a mídia em sua respectiva área de atuação. Isso explica o investimento das fontes em media training2 e a construção 2.  Workshop ou curso de capacitação das fontes (porta-vozes) para a relação com a imprensa. No conteúdo programático, estão previstos conteúdos sobre a linguagem jornalística, a rotina produtiva na redação, as especificidades dos diferentes meios, aspectos éticos e estéticos. Além, é claro, da importânia do posicionamento da fonte para a imagem e reputação da organização representada.

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de uma cultura da comunicação organizacional pautada na transparência, ou seja, no compromisso de prestar informações fidedignas à sociedade e manter uma abertura para se reportar aos públicos, sempre que for necessário, e, em especial, não se furtar da necessidade de posicionamento em momentos de crise (NOUTEAU, 2002; BOURDEAU, 2009). À parte essas ações, que indicam a profissionalização das fontes, há que se atentar às suas representações sociais. No geral, um cientista político goza de mais credibilidade que um político em campanha, por exemplo. No mais, a fonte de informação, por si só, pode conjugar e articular diferentes critérios de noticiabilidade. Considerando que os valores-notícia não são monolíticos, estáveis e perenes, mas que sofrem alterações ao longo do tempo, porque são marcados também por aspectos culturais e sociais, Sodré acentua que os valores que sustentam a noticiabilidade de um fato, “ou seja, a condição de possibilidade para que este venha a transformar-se em notícia – podem variar segundo o lugar do fato, do nível de reconhecimento social das pessoas envolvidas, das circunstâncias da ocorrência, da sua importância pública e da categoria editorial do meio de comunicação” (SODRÉ, 2009, p. 21-22). Ao demarcar tantas variáveis, o autor deixa uma porta entreaberta para levantarmos a questão sobre o impacto da AI no processo de seleção do acontecimento e, consequentemente, na indicação das fontes. Explicamos: para além dos atributos da ocorrência, as relações políticas e econômicas, travadas entre assessorias de imprensa e veículos jornalísticos também compõem os critérios de eleição do acontecimento. “Os poderosos promotores podem tentar aumentar a correspondência entre as suas necessidades de acontecimentos e as dos news assemblers, pressionando os media a alterar as rotinas de trabalho” (MOLOTCH, LESTER, 1993, p.40). Molotch e Lester (1993) apontam para uma certa obscuridade na relação entre os promotores (assessorias de imprensa, agências de notícias etc) e os news assemblers (jornalistas dos veículos) no processo de construção da notícia. Segundo os autores, essa obscuridade é atenuada quando fica evidente o controle formal da imprensa. Caso contrário, as margens para acordos e negociações podem driblar, em certa medida, até alguns critérios de noticiabilidade. Os pesquisadores acrescentam: “Embora talvez não estejam conscientes das implicações do trabalho uns dos outros, eles, de qualquer modo, conseguem produzir um produto que favorece as necessidades de acontecimentos de certos grupos sociais e desfavorece as de outros” (MOLOTCH & LESTER, 1993, p.41). O aprofundamento desta abordagem solicita um percurso de caráter mais sociológico etnográfico, que foge às propostas deste texto. Entretanto, no intuito de entender a construção do discurso informativo na relação entre assessoria de imprensa e jornalismo, voltamos a Molotch e Lester, que destacam três tipos de acesso dos promotores às mídias noticiosas: a) acesso habitual, que ocorre quando as necessidades de acontecimento dos promotores coincidem com as dos news assemblers; b) acesso disruptivo, que é marcado pela necessidade dos promotores se fazerem vistos e ouvidos, é a manifestação, o confronto que clama por visibilidade e, por fim, c) acesso direto, o qual é reservado ao próprio jornalista, que pauta reportagens, indicando investigações que pretende desenvolver. Às premissas de que não se faz jornalismo sem as fontes e de que estas são sagradas na cultura jornalística (TRAQUINA, 2002), soma-se ao fato de que as redes de fontes dos veículos são construídas no sentido de agilizar as rotinas de produção, mas também

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refletem a estrutura social e de poder existente (WOLF, 2003). Molotch e Lester frisam que o acesso habitual é uma das “importantes fontes e sustentáculos das relações existentes de poder” (MOLOTCH, LESTER, 1993, p.44). A noção de rede noticiosa, de Gaye Tuchman, oferece atalhos teóricos para ampliar esta ponderação. Segundo a cientista norte-americana, para compreender a construção da notícia, é necessário dar conta da formação da rede noticiosa e da disposição dos jornalistas nela. Para Tuchman (1993), a fixação dessa rede põe em evidência as posições sociais das fontes e fortalece ou legitima espaços sociais de poder, impede determinadas ocorrências de serem noticiadas e atende às demandas de rotinas de produção do jornalismo. Afinal de contas, se focarmos na importância estratégica das fontes à produção noticiosa e também na imponência do fator tempo ao jornalismo, “então podemos compreender por que as fontes estáveis, regulares, institucionais acabam por ser preferidas pelos membros da comunidade jornalística” (TRAQUINA, 2002, p.107). Sobre essas observações, pesa a constatação de que tratar das fontes é abordar, por diferentes ângulos, as questões de noticiabilidade. Neste estágio da nossa reflexão, enquadramos a discussão sobre as fontes, a partir do prisma dos valores-notícia, priorizando, num primeiro momento, a seleção primária do fato e, posteriormente, o tratamento deste na assessoria e na redação. Desta maneira, nos contratos de comunicação estabelecidos para a construção do discurso informativo, as questões sobre as fontes desembocam nos elementos de noticiabilidade, respondendo, em parte, à pergunta “quem informa”. Segundo Charaudeau (2012), o crédito dado à fonte depende da sua posição social; do papel que desempenha na situação de troca; da sua representatividade para o grupo de que é porta-voz e do grau de engajamento que manifesta. Os arranjos entre esses diferentes elementos, na constituição das fontes, podem ser determinantes para a seleção ou o negligenciamento de um acontecimento. Enumerar os critérios de noticiabilidade, mobilizados e despertados pelas diferentes posições, papéis, representatividade e grau de engajamento que as fontes conferem aos acontecimentos, é uma tarefa quase irrealizável. Compensa-se essa dificuldade, trazendo à cena uma outra faceta desta relação triádica entre fonte/assessor de imprensa/jornalista: como se mobilizam e se articulam assessores e jornalistas, entre si, e também diante dos distintos perfis da fonte, a fim de operarem a seleção e a construção do acontecimento. O assessor, a priori, se coloca para o jornalista como um fornecedor de informações da fonte. Ele busca uma adesão à prática jornalística que afirma a soberania do fato e apresenta o acontecimento como “o referente de que se fala, o efeito de realidade da cadeia dos signos, uma espécie de ponto zero da significação” (RODRIGUES, 1993, p. 27). Essa aderência ao discurso de representação da mídia jornalística por parte da assessoria é mais comum, quando a negociação envolve os textos dos gêneros informativos e a fontes tem notoriedade ou consistem em organismos especializados. Por outro lado, se a fonte desponta como testemunha ou marca uma posição específica em algum debate público, aqui, o assessor lança mão dos atributos do descritor-comentador. Como uma espécie de ghost writer, o assessor argumenta, comenta, descreve, a partir da visão da fonte. Esses recursos são mais usados, quando a assessoria, sugere ou envia à redação material vinculado aos gêneros opinativo e interpretativo.

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Seja como fornecedor de informações ou descritor-comentador, o assessor de imprensa, ao selecionar o acontecimento, tem o compromisso de lidar com o discurso informativo estratégico, ou seja, os valores-notícia precisam atender ao jornalismo, mas também às necessidades institucionais. Estar na mídia integra o conjunto de ações de comunicação organizacional que visa conquistar a opinião do receptor e usar a visibilidade como estratégia de sobrevivência no mercado. “Nesse sentido, a notícia institucional, sem abandonar suas características informativas, assume caráter político, passando a ser utilizada estrategicamente nos segmentos sociais que detêm o poder de decisão ou o poder de influenciar decisões que possam beneficiar a instituição que a originou” (MONTEIRO, 2003, p. 148). Segundo Monteiro (2003), o conceito de newsmaking pode ser transposto para dentro das organizações e usado para analisar como ocorrem as divulgações jornalísticas. Isso porque, nessa instância, os critérios de noticiabilidade também tornam possível a rotinização das práticas produtivas da notícia. Entretanto, aqui, acrescentamos que, na seleção do acontecimento, os assessores negociam entre os valores-notícia e os valores (notícia) institucionais.

O VALOR (NOTÍCIA) INSTITUCIONAL ARTICULADO ÀS FONTES DE INFORMAÇÃO PARA SELEÇÃO DA “NOTÍCIA INSTITUCIONAL” Sublinhamos, inicialmente, que o uso da palavra “notícia” entre parênteses, ao referendar os valores institucionais, é sustentado pelo argumento de que a chamada “notícia institucional” (discurso informativo estratégico) conforma valores e outros critérios, além dos previstos na prática jornalística, tais como: referencialidade (fixação das fontes institucionais como referências para assuntos específicos), sustentabilidade, responsabilidade social, engajamento sócio-cultural, tecnologia, esporte e cidadania etc. Esses valores são definidos e manejados, a partir das políticas de comunicação da instituição, identificadas no seu respectivo planejamento estratégico de comunicação3 (KUNSCH, 2003). São valores, portanto, que mudam de acordo com as organizações, uma vez que são cultivados com o intuito de fortalecer identidade, imagem e consolidar marcas. Em síntese, os valores-notícia e os valores (notícia) institucionais devem cumprir um duplo papel: rotinizar as práticas de produção e divulgação jornalísticas na organização e ainda implicar as audiências, seja o jornalista da redação, seja o leitor final. Entretanto, para que haja implicação da audiência, é preciso que ela se reconheça no discurso e que suas expectativas sejam, em alguma medida, contempladas. Por esse viés, seguem os estudos de Guerra (2014), nos quais os valores-notícia são tratados também como expectativa da audiência. “Os valores-notícia funcionam, portanto, como idealizações do espectador real, a partir das quais os jornalistas podem supor qual é o seu interlocutor, esforçando-se para adequar a sua oferta de informações aos interesses presumidos de sua audiência” (GUERRA, 2014, p.43). Assim, os fatos são julgados por suas características intrínsecas, mas também pelo pressuposto interesse do destinatário. 3.  O planejamento estratégico de comunicação envolve a questão das análises de micro e macroambiente, diagnóstico, definição de políticas da comunicaçao, objetivos e metas e os planos de ação, os quais serão divulgados, executados e acompanhados via relatórios e pesquisas.

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Guerra (2014) trata dos valores-notícia no jornalismo por duas vertentes – institucional e organizacional. “A instituição é definida como um conjunto de conceitos, normas e técnicas que definem o jornalismo e a sua prática enquanto atividade social e profissional”. Já a organização é um conjunto finito de pessoas e recursos, voltado à realização do que “a instituição formalmente define como jornalismo” (GUERRA, 2014, p.43). No âmbito institucional, portanto, o valor notícia, enquanto expectativa presumida da audiência, é o que garante a mediação jornalística. Mas, no que tange à dinâmica organizacional, as particularidades e singularidades da relação de cada veículo com suas respectivas audiências forjam, segundo o autor, a noção de valores-notícia de referência. Ao olharmos a produção do discurso informativo na assessoria de imprensa, pelas lentes da pesquisa de Guerra, somos envolvidos na seguinte provocação: os valores-notícia e valores (notícia) institucionais, que balizam a seleção do fato e a construção do discurso informativo estratégico, devem abarcar não apenas as características do acontecimento em si, mas também atender às demandas (editoriais, estruturais e de rotina produtiva) dos veículos, aos quais o texto será endereçado. Ou seja, atender aos valores-notícia de referência. E, pela lógica do contrato de leitura (VÉRON, 2004), ao atender as especificidades do veículo, o assessor estará mirando também o seu respectivo leitor. Essa conquista em cascata, se deve à concepção, implícita no contrato de leitura, de que o produto jornalístico tem previsto um “leitor modelo” (ECO, 1987). Feita a seleção do acontecimento sob essas recomendações, resta à assessoria de imprensa responder a questões como: “A audiência do veículo consiste num público de interesse para a organização fonte?”. Se a resposta à indagação for positiva, busca-se a adequação entre os valores (notícia) institucionais e as expectativas tanto do veículo, quanto, por consequência, do seu leitor. Normalmente, quando a organização tem um trabalho de comunicação planejado, os valores institucionais estão em evidência também na agenda social – sejam esses valores da contemporaneidade ou aqueles de caráter mais atemporal, que se consagram como preocupações em diferentes épocas e culturas, mesmo que com intensidades variadas. Embora não constitua um movimento constante, o valor (notícia) institucional pode despontar como novidade, acarretando abordagens inovadoras às pautas jornalísticas, no que tange aos assuntos, enquadramentos ou fontes de informação, sugerindo, assim, uma estruturação menos trivial aos textos, no que diz respeito à forma e ao conteúdo e, por fim, penetrando nas rotinas e práticas jornalísticas organizacionais. Caso isso ocorra, esses valores (notícia) institucionais podem ser absorvidos pelo que Guerra denominou de valores-notícia potenciais, “isto é, expectativas da audiência ainda não satisfeitas ou satisfeitas de modo incompleto pelos produtos disponíveis, portanto, margem de crescimento e de renovação dos padrões jornalísticos vigentes” (GUERRA, 2014, p.49). Em síntese, na etapa inicial da seleção e da configuração do fato social, a assessoria de imprensa, enquanto promotora da notícia, precisa articular, de forma inseparável, os valores-notícia, os valores (notícia) institucionais e as fontes de informação. Estas últimas, sejam em representação própria (políticos, artistas, atletas etc.)4 ou enquanto 4.  Os artistas ou personalidades geralmente estão associados a outras marcas, além de si mesmos, através da vinculação do patrocínio ou como garoto(a) propaganda da marca. Por conta disso, suas falas e posicionamentos costumam reverberar também nas marcas e/ou instituições às quais estão associados.

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porta-vozes de alguma organização, têm suas falas e posicionamentos comprometidos com a imagem e reputação de marcas. Lembramos que um dos objetivos da assessoria de imprensa costuma ser a consolidação do assessorado enquanto fonte de informação referência para os veículos jornalísticos, uma espécie de fonte especializada, quando já não se trata de cargo oficial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste texto, consideramos as condições de produção da notícia, nas quais o jornalismo desenvolve sua narrativa, tendo como referência a primeira configuração do acontecimento na assessoria de imprensa. Sobre este aspecto, Lippmann (2008) afirma que a redação assume o lugar de um registro de “segunda mão”. Essa situação comunicativa, entretanto, não implica o jornalismo aderente ao discurso organizacional, mas coloca em cena a dimensão do contato e da negociação. A partir da perspectiva do newsmaking, mostramos que os critérios de noticiabilidade, que conformam o valor-notícia, perpassam todo o processo de produção do discurso informativo tanto na redação jornalística quanto na comunicação organizacional. Salientamos, porém, que, no âmbito da assessoria de imprensa, a seleção e a construção da notícia também são postuladas pelos valores institucionais, que se convertem em valores-notícia, dadas as finalidades do discurso informativo estratégico, vinculadas à função de relações públicas. Portanto, dependendo do grau de adesão da redação jornalística à narrativa organizacional (da fonte), é possível a publicização de uma informação que, simultaneamente, cumpra o papel de “fazer saber” e “fazer seduzir”, atendendo aos interesses da organização-fonte. Vale destacar que a AI articula, de maneira inseparável, os valores notícia, os valores institucionais e a fonte de informação (assessorado). Josenildo Guerra (2008, 2014) destaca que os valores-notícia cumprem o papel de rotinizar práticas de produção e divulgação jornalísticas, mas também implicam a audiência. A assessoria de imprensa, então, busca atingir duas instâncias de reconhecimento, o jornalista do suporte e seu respectivo leitor. Concluímos, no percurso, que os valores-notícia (inclusive os valores institucionais) devem ser pensados, prioritariamente, nos seguintes vieses: a) seleção do acontecimento, b) escolha da fonte de informação e c) expectativa da audiência. E as respostas devem ser tensionadas com: 1) a perspectiva intercontratual da condição de produção da notícia na relação entre AI e Jornalismo e 2) a constatação de que, nesta situação comunicativa, existem, a priori, duas narrativas do acontecimento. No mais, sabemos que a relação triádica assessoria de imprensa / redação jornalística / leitor, na produção do discurso informativo, tem como objetivo e possível consequência o processo em cadeia de agendamento: da mídia, em primeiro lugar, e do público, posteriormente. O processo de agendamento congrega um conjunto de funções e papéis na construção do discurso informativo a partir da relação entre assessoria de imprensa e jornalismo. Ele constitui motivação e pano de fundo para a configuração, mas também consiste em possibilidade de resultado desse processo, no que tange à implicação da instância de reconhecimento. E esse caráter do que emerge na finalização do percurso configurativo é confirmado, por exemplo, nos investimentos para mensuração e monitoramento da agenda da mídia e nas pesquisas empíricas com a audiência.

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Apontamentos sobre a cobertura da pauta científica e tecnológica na imprensa do Amapá Notes on the coverage of science and technology agenda in Amapá press Antonio Sardinha1

Resumo: O artigo sistematiza reflexões de pesquisa exploratória com a proposta de observar características gerais da cobertura sobre pauta ligada à Ciência e Tecnologia publicadas nos três principais jornais impressos de Macapá (Amapá) e nos sites das instituições públicas ligadas ao campo científico e tecnológico, de forma a mensurar tendências e delineamentos do agendamento em C&T no contexto da região amazônica.

Palavras-Chave: Jornalismo Especializado. Jornalismo Científico. Amapá. Abstract: The article explores the thoughts of exploratory research with the proposal to observe the general characteristics of the cover on the charges related to Science and Technology published in three major newspapers printed in Macapa (Amapa) and on the sites of public institutions involved in the field of science and technology, in order to measure trends and approach by the media about C&T in the context of the Amazon region.

Keywords: Specialized Journalism. Scientific journalism. Amapá.

INTRODUÇÃO DEBATE CONCEITUAL sobre o jornalismo científico toma como pressuposto a

O

leitura sobre o jornalismo a partir de um campo epistêmico que tem a notícia como fenômeno – e não apenas um gênero informativo – entendido como socialização de quaisquer informações de caráter público, atual e singular e que atendem a diferentes interesses (SILVA, 2009). Sob essa ótica configuramos a especificidade do jornalismo no contexto de divulgação da ciência e, por essa perspectiva, entendemos o equívoco apontado por França (2005) de que “os jornalistas de ciência precisam fazer menos divulgação e mais jornalismo”. Nesse sentido, as tensões entre o jornalismo e ciência como campo de relações de força não estão restritas apenas a questões éticas da ordem dos compromissos e responsabilidade na relação tensionada entre jornalistas e cientistas e a preocupações técnicas para adequar valores e lógicas, linguagens e suportes que permeiam o discurso

1.  Mestre em Comunicação (Unesp), professor da Universidade Federal do Amapá, email: sardinhajor@ yahoo.com.br .

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Apontamentos sobre a cobertura da pauta científica e tecnológica na imprensa do Amapá Antonio Sardinha

da especialização no denominado campo do jornalismo científico. A questão é entender a lógica e os mecanismos que conferem inteligibilidade a discursos e práticas inerentes ao campo jornalístico e científico. Sob a ótica do jornalismo, o processo de construção da realidade operada pelo fenômeno noticioso, a partir de suas especificidades, posiciona a prática jornalística para além de um caráter difusionista e acessório do campo científico. Ao invés de ampliar abordagens, de colocar em conflito os cenários e contextos que organizam a produção do saber científico, o discurso especializado, preocupado em decifrar informacionalmente, apenas comunica a ciência, em uma gestão técnica do canal para que a produção científica circule de um pólo a outro, sob a tutela do campo científico e de seus atores. Como suporte acessório do campo científico, o configurado jornalismo científico ao abrir mão da reportagem como recurso para elucidação e produção de relatos significativos é instrumentalmente um canal em disputas envolvendo atores políticos, grupos sociais e instituições, que se apropriam do conhecimento científico e os recursos (discursivos) de sua legitimação na tessitura de relações de poder. Conforme Chaparro (2004), o papel sociocultural do jornalismo é o de se assumir como espaço público para os confrontos discursivos. Por se caracterizar pela linguagem do relato, pela capacidade de contextualizar os fatos e pela difusão em larga escala do que divulga, o jornalismo dá atributos de discurso aos acontecimentos, e como discurso os socializa (CHAPARRO, 2004, s/p). Para Chaparro (2004), portanto, é na esfera do discurso que Ciência e Jornalismo se desencontram pelos esquemas discursivos distintos de cada um desses campos. De um lado está o campo científico que produz conhecimento legitimado pelos atores desse campo por meio de um discurso permeado por um esquema argumentativo particular, com rigor metodológico e lexical assumido por uma linguagem especializada. Do outro lado está o Jornalismo que socializa fenômenos (a partir das especificidades de seu campo de fala), captando indicações do mundo e as oferecendo à sociedade. Além de relatos, respostas e explicações, que encontra inclusive no saber científico, a eficácia asseverativa e didática da linguagem jornalística se faz por um discurso que privilegia a liberdade de esquemas narrativos adequado para o relato das ações humanas – tarefa fundamental do jornalismo mesmo quando divulga ciência, conforme Chaparro (2004). Nessa perspectiva, a divulgação científica sob a ótica do jornalismo deve ser pensada para além da lógica de suporte que superdimensiona a divulgação. Ao buscar a socialização das tensões e conflitos, o jornalismo que fala da ciência, apropriando-se da natureza discursiva de ambos os campos no espaço público organizado pela especificidade de produzir sentido, opera pela linguagem do relato e da contextualização crítica. Essa compreensão se mantém em se tratando do jornalismo institucional que na contemporaneidade agrega, sob a perspectiva da Comunicação Pública (DUARTE, 2009), a demanda por responder e atender a necessidade de acesso à informação pública na perspectiva da democratização e transparência exigida das instituições na contemporaneidade.

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APONTAMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA EXPLORATÓRIA A perspectiva exploratória da pesquisa justifica-se pela necessidade de oferecer visão geral, de tipo aproximativo, acerca de um determinado fato (GIL, 2008, p.27) pouco abordado em outras investigações, como é a cobertura jornalística sobre a pauta científica e tecnológica na imprensa local. A perspectiva exploratória permite formulação de hipóteses precisas para investigações mais amplas, em etapas posteriores de pesquisa. Metodologicamente, adotamos as técnicas da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2009) que permite a identificação das características mais particulares do conteúdo estudado e sua relação com o contexto social, para além do sentido léxico dos textos. O desmembramento do texto em unidades de significação - unidades de registro e das unidades de contexto e recorte do texto – é importante para sistematizar e descrever presenças e ausências de cada unidade para inferências. A coleta de dados ocorreu ao longo de um mês (06 de julho a 06 de agosto de 2013) no Jornal do Dia, Jornal A Gazeta e Diário do Amapá, os três principais jornais impressos em tiragem e com circulação periódica. As unidades de registro consideradas para coleta de dados foram Ciência, Tecnologia, Descoberta científica, Inovação científica e Pesquisa Científica. As unidades foram buscadas apenas em conteúdo informativo -, notícias, entrevistas e reportagens (MELO, 1985) em todo o jornal, garantindo que na ausência de Editorias específicas, a coleta de dados fosse representativa nos três jornais de maior tiragam que circulam no estado do Amapá. Na amostra coletada, foi dada atenção à (1) presença das unidades em títulos por se firmarem como macroproposições semânticas, que sintetiza a idéia mais ampla contida na informação noticiada (PEREIRA JUNIOR, 2006); (2) editorias na perspectiva de indicar o viés (especializado ou como tema difuso) da cobertura; (3) autoria do conteúdo (agência ou assinada por repórter do próprio jornal); (4) abrangência/contexto a que se refere à matéria (local, nacional, internacional); (5) presença e natureza da fonte ouvida - oficial, oficiosas e independentes (LAGE, 2006), considerando neste caso que a escolha da fonte determina o tipo de discurso (CHARAUDEAU, 2006). A análise qualitativa da cobertura da imprensa local sobre Ciência e Tecnologia exigiu também observar o conteúdo jornalístico produzido pelas equipes de comunicação e disponibilizado pelas principais fontes de informação em ciência e tecnologia no Estado do Amapá. Neste sentido, a primeira parte da análise que apresentaremos concentra-se em observar também sob uma perspectiva exploratória no mesmo período (um mês entre 06 julho e 06 agosto de 2013) os portais institucionais de organizações públicas responsáveis pela produção científica e tecnológica: Universidade Federal do Amapá; Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa Amapá; Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá – IEPA; Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia e Fundação de Amparo à Pesquisa do Amapá. Nesta etapa da pesquisa, procurou-se identificar características gerais da produção jornalística institucional, considerando apenas o conteúdo informativo (notícias, notas e reportagens) publicadas nos portais das instituições na internet – mídia majoritariamente usada para difusão, principalmente para os veículos de comunicação locais, do conteúdo produzido pelas assessorias de imprensa destas instituições.

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A análise exploratória sobre (in) disponibilidade de informação científica nas fontes procurou identificar, portanto, as características do conteúdo divulgado pelas instituições sobre Ciência, Tecnologia, Descoberta científica, Inovação científica e Pesquisa científica, bem como a natureza da informação apresentada sob o viés da Comunicação Pública - categorizada em Duarte (2009) em informações a) institucionais; b) de gestão; c) de utilidade pública; d) de prestação de contas; e) dados públicos. O entendimento é de que caracterizar a cobertura em Ciência e Tecnologia na imprensa local requer apontar a dinâmica de produção da informação sobre estas respectivas áreas nas ações e/ou estratégias de comunicação definidas pelas instituições científicas para a relação com as instituições midiáticas e a sociedade. Registra-se que essa incursão para observer a produção de informação pelas instituições científicas é mais um elemento contextual para inferências sobre a cobertura da imprensa local sobre a agenda científica e tecnológica, considerando o papel das assessorias de imprensa (em especial das organizações públicas) nas disputas pelo agendamento dos discursos institucionais na esfera midiática. Esta incursão, por si só, revela que a constituição e formulação das políticas de comunicação das instituições públicas demandam estudo ainda mais específico a ser apresentado a posteriori, de forma a compreender as perspectivas da comunicação institucional que orientam a produção de informação científica na fonte.

PRINCIPAIS RESULTADOS DA PESQUISA A dispersão e (a falta) de informação científica de interesse público e o excesso de promoção institucional na fonte Das instituições que estão diretamente ligadas à formulação e implementação das políticas públicas em Ciência e Tecnologia acima citadas, todas apresentam (a) informações institucionais básicas em suas páginas na internet sobre função e funcionamento das organizações; estrutura, políticas, serviços, responsabilidades e funções como órgão público. A questão central, neste item, foi observar se o portal oferece informações suficientes sobre sua estrutura e atuação e as condições de acesso cidadão a outras informações não disponíveis nos canais de diálogo colocados a sua disposição. Para os sites analisados, o usuário identifica facilmente na distribuição das informações institucional no interior da página, a área/linha de atuação bem como foco e ação institucional e formas de acesso e contato com a organização (emails, telefones, ouvidoria). Esta categoria sugerida por Duarte (2009) para avaliar as ações de comunicação sob o viés da Comunicação Pública está interligada a (e) informação sobre dados públicos que, por sua vez, relaciona-se a (b) informações de gestão que apresentaremos mais adiante. Informações sobre a instituição que executa uma política pública com diretrizes, metas, recursos e resultados a serem apresentados são dados públicos de interesse da sociedade. Normas legais, estatísticas, decisões judiciais, documentos históricos, legislação e outras normas são importantes instrumentos de controle por parte dos atores sociais interessados na eficiência, abrangência e resultados concretos da ação institucional. Sobre este aspecto, o que convém destacar é que as instituições analisadas apresentam em suas páginas na internet uma ampla quantidade de dados públicos relacionados à transparência na gestão administrativa do órgão (editais e contratações, relatórios de gestão,

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normas e leis que regem a administração pública e a política científica e tecnológica e outras normas referentes à gestão desta política pública). No entanto, estes dados por si só não revelam ou não se traduzem em informação sobre o que significam/representam/impactam no cotidiano do usuário da política pública em questão (pesquisadores, empresas, redes oficiais de ensino, por exemplo). Os dados são públicos, mas não são tratados pela política de comunicação institucional como de interesse público ao identificarmos limitações em transformar dado bruto (integralmente acessível) em informação contextualizada e seletiva, o que os tornam insuficientes, portanto, para serem explorados pelo usuário para avaliação desta política pública. Rothberg (2010) sistematiza como informações necessárias para avaliação de uma pública: dados referentes a antecedentes e diagnósticos que demandam a implementação da política pública; objetivos, metas, recursos e ações planejadas e recursos e ações em execução; eficiência, eficácia; impacto, custo-efetividade, satisfação do usuário e equidade no atendimento às demandas do usuário. A ausência destas informações como dado público para controle e acompanhamento da sociedade sobre as políticas científicas e tecnológicas refletem-se na natureza e disponibilidade das (b) informações de gestão. A questão central observada neste item foi a disponibilidade de dados e conteúdo informativo sobre discursos, metas, intenções, motivações, prioridades e objetivos dos agentes para esclarecer, orientar e municiar o debate público sobre a política científica executada pelo órgão. O foco foi verificar se a instituição se esforça em comunicar o plano de ação, prioridades, execução das atividades, ações políticas de seus agentes, contribuições em desenvolvimento para qualificar, ampliar e fortalecer o debate sobre a política científica e tecnológica. Neste caso, é ampla a quantidade de informações e dados disponibilizados em canais específicos onde são apresentados relatórios, listagem dos programas, projetos vinculados, serviços oferecidos. Estas informações de gestão ainda permeiam a cobertura jornalística institucional, ao retratarem a ação do órgão ou suas realizações (concentrando, na maioria dos casos pesquisados, na promoção da figura do gestor do órgão ao apresentar o resultado da produção institucional à sociedade). Com exceção da Embrapa – Amapá que, como unidade local, compartilha de uma política de comunicação pública desenvolvida pelo órgão em todo país-, as demais instituições não se apropriam de dados e informações (muitas delas até disponíveis em canais dispersos nos portais), como dados em potencial para gerar conteúdo institucional de interesse público. Para fins de ilustração, dados e informações dispersos em um relatório de atividades não são tratados de forma a apresentar conteúdo de interesse público sobre pesquisa cientifica que resulta da ação dos pesquisadores ou atores envolvidos e financiados pela instituição. A contradição identificada é na extensa publicização das ações institucionais que se esgotam e/ou se limita no fato ou na ação e pouco nos seus desdobramentos/resultados, pensando ser a ótica do interesse público da ação de comunicação institucional os parâmetros para orientar da Comunicação Pública nestas organizações (DUARTE, 2009). O que se verifica é o paradigma do tornar público sem uma ação jornalística (institucional) de apresentar/enquadrar/apontar os elementos dispersos no conteúdo disponibilizado que podem interessar à sociedade. O que se percebe é que os portais institucionais se tornam grande repositório de informações de gestão, banco de dados

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que arquiva, armazena e classifica por categorias sem o tratamento por parte de um profissional de comunicação. Este profissional como ator de um processo de Comunicação Pública é responsável pela produção de conteúdo apto a circular de forma acessível e transparente, considerando a natureza pública que este relato deve assumir quando representativo de uma instituição pública. Essa perspectiva potencializada pelas tecnologias digitais, de que dados são informações e, por conseqüência, conhecimento não considera a diferença ontológica e conceitual entre informar e comunicar (WOLTON, 2010; PASQUALI, 2005). Em linhas gerais, o que circula como conteúdo informativo sobre a gestão das instituições científicas e tecnológicas é pouco representativo do que é de interesse público em se tratando de informação científica e tecnológica, dispersa e sem tratamento jornalístico, em canais e links nos portais institucionais. Este apontamento resultante da pesquisa exploratória nos remete a observar o viés de (c) utilidade pública da informação observada na análise do conteúdo institucional. Há que se pensar e traduzir explicitamente em um projeto de comunicação qual conteúdo de utilidade pública uma instituição que formula e implementa uma política pública em ciência e tecnologia pode ofertar à sociedade como informação de interesse. Do ponto de vista do campo jornalístico, isso implica apresentar quais temas relacionados ao cotidiano das pessoas, geralmente serviços e orientações envolvendo a questão científica e tecnológica, são de interesse público. É neste aspecto que a ação do jornalista nas instituições públicas assume dimensão estratégica, pela capacidade de identificar e tratar a informação de interesse público na instituição como um serviço a ser oferecido lidando com as restrições organizacionais, comuns a qualquer processo de produção da informação jornalística. É, portanto, nas sessões e/ou canais denominados ‘Notícias’, presentes em todos os portais analisados, que estão colocadas as possibilidades para mensurar a estratégia/perspectiva da política de comunicação institucional, por se tratar de um canal com conteúdo sob a gestão direta do profissional de jornalismo. Como sessão interligada as demais, é nesta sessão de Notícias que se nucleiam e/ ou perpassam todos os fluxos de informação presentes nos demais espaços de dados e informações do portal. A capilaridade do conteúdo jornalístico se dá pela capacidade de expressar e refletir os principais conteúdos institucionais que circulam pelo portal e no interior da própria instituição. A compreensão da comunicação como serviço público a ser, obrigatoriamente, prestado pelo órgão público, empiricamente se materializa no que os jornalistas produzem para este espaço, em sintonia com o que se espera da informação de utilidade pública como categoria central para pensar a Comunicação Pública da Ciência no contexto do paradoxo identificado por Caldas (2004). Ou seja, se por um lado há avanço na produção científica e tecnológica, por outro, esses avanços não estão publicamente acessíveis em informação sobre usos e papéis econômico e social do conhecimento científico financiado pelas políticas de C&T e os seus respectivos impactos nas transformações de toda uma sociedade. Estas são questões sensíveis em se tratando do território Amazônico, por onde circulam discursivamente conflitos em torno dos paradigmas difundidos e disputados por

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uma infinidade de atores sobre a complexa e multifacetada agenda em torno desenvolvimento e da sustentabilidade – temas controversos na agenda das políticas científicas e tecnológicas na região. A pesquisa exploratória nos canais de comunicação das instituições científicas revela que é neste aspecto da oferta de informação de utilidade pública trazida em conteúdo jornalístico institucional observado nos portais é que estão as contradições mais evidentes: o conteúdo divulgado não reflete a abrangência de dados e informações de interesse público, disponibilizados nem mesmo em outras sessões dos próprios portais. Registra-se como exceção a Embrapa Amapá, que compartilha conteúdo do site institucional do portal da Embrapa e apresenta ampla quantidade de programas de rádio e televisão em plataforma específica digital,com o programas educativos para divulgar a produção científica dos pesquisadores, além de um banco de fontes com indicações de especialistas nas mais diversas de atuação da empresa. Outro registro da pesquisa exploratória que merece destaque é a primeira edição da revista Amapatec, pensada para divulgação científica no estado. A revista foi lançada em outubro 2013 com projeto editorial específico, produzido por uma empresa especializada em Comunicação Corporativa. A versão impressa está disponível para acesso no site da Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, com conteúdo abrangente sobre a produção científica financiada ou apoiada pela secretaria, em uma proposta ainda em fase inicial que, contraditoriamente apresenta em uma única edição, informações e dados de interesse sobre Ciência e Tecnologia que não estão presentes no conjunto da produção institucional de informação peço órgão gestor (Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia) O que se constata com as ressalvas acima é que o que circula e, inclusive chega à esfera midiática local, é o discurso institucional estritamente publicista/divulgador para ação do órgão e de seus dirigentes. A divulgação científica (e não difusão científica entre os pares com biblioteca, artigos e periódicos para acesso de pesquisadores) do produto primeiro que justifica a existência destas instituições – o resultado e discussão sobre usos e contribuições da produção científica e tecnológica para a sociedade - acaba sobreposto por uma estratégia de comunicação institucional que prioriza e mistura promoção institucional como informação de aparente interesse público. O resultado é que o produto de comunicação primeiro acaba sendo (a institucionalização) do release – e a “releasemania” - como primeiro e quase exclusivo protocolo de informação (e não comunicação) do órgão com a sociedade. Sob essa perspectiva não impressiona a natureza do conteúdo que circula, a partir da análise dos dados nos três principais jornais impressos locais, sobre ciência e tecnologia, ponto para a segunda etapa da análise, apresentada a seguir.

A divulgação científica sob a tutela do discurso institucional como viés de cobertura Para fins de análise neste artigo, optamos por considerar a amostra de 44 matérias entre notícias, entrevistas e reportagens, coletadas durante o mês de pesquisa, excluindo notas pela possibilidade maior de inferência, a partir dos critérios de análise apontados.

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A proposta foi descrever as características e tendências da cobertura sobre a temática de ciência e tecnologia no jornalismo impresso local, considerando temas e abordagem centrais do conteúdo jornalístico, origem e natureza das fontes de informação científica e tecnológica. Vale registrar que os três jornais analisados publicam conteúdo ligado ao tema geral Ciência e Tecnologia. Nenhum dos três jornais possui editoria explicitamente criada para cobertura sobre Ciência.

Jornal A Gazeta O conteúdo ligado à Ciência e Tecnologia no Jornal A Gazeta é publicado na editoria de Tecnologia (distribuído em Segurança Digital e Tecnologia no Dia-a-Dia), assumindo viés de anúncio de tecnologias digitais deste nicho de mercado ou prestação de serviços para “sobrevivência” no universo digital. O jornal também publica conteúdos ligados ao campo científico e tecnológico em Cidades, em matérias sobre meio ambiente. Das 16 matérias publicadas no jornal no período de coleta de dados, apenas 7 (sete) apresentam fatos relacionados à realidade local (estado do Amapá e/ou região Amazônica). Todas as matérias eram conteúdo de assessoria de imprensa do Governo do Estado e da Embrapa, noticiando eventos ou ações institucionais ligados ao meio ambiente ou vigilância sanitária, saúde coletiva (como ação de órgãos sanitários de defesa agropecuária, ações de educação ambiental e atividades de pesquisa ligadas à agropecuária local). As demais matérias tinham como origem conteúdo nacional ou internacional e apresentavam conteúdo ligado a inovações e novidades/tendência do mercado de equipamentos eletrônicos e do mundo digital, além conteúdos relacionados a alternativas para tratamento de doenças, novos métodos estudados para atender ao mercado da beleza/estética, segurança digital contra guerras cibernéticas, pesquisa com perfil de usuários e opinião sobre qualidade de serviços de internet, novos aplicativos, prestação de serviços sobre redes sem fio e uso adequado dos aparelhos celulares. Em função da natureza do conteúdo, é previsível que a origem, quando identificada, acaba sendo agências e portais nacionais de notícias como o portal UOL (Universo on Line/Grupo Folha) e Computer World (site especializado em tecnologia). Já as fontes são oficiais, sem diversidade e pluralidade de pontos vistas. A instituição pública científica, o instituto de pesquisa ou a empresa privada interessada na promoção da tecnologia ao público assumem a centralidade da narrativa, sem contrapontos. A figura do especialista (pesquisador) quando presente assume espaço no relato, ora sendo destacado na figura do gênio/inventor de uma descoberta tecnológica, no conteúdo estudado, ora incorporando o tom didático (explicativo) seguindo viés da prestação de serviço sem, no entanto, elucidar (questionar) com análises e contrapontos críticos a narrativa oficial, que responde exclusivamente pelo enquadramento do tema. Jornal do Dia No Jornal do Dia, o conteúdo sobre o tema ligado à Ciência e Tecnologia é distribuído no Caderno Geral, editoria que contempla assuntos diversos. Das 20 matérias coletadas no período, apenas cinco tratavam diretamente da região Amazônica e/ou do Estado do Amapá: ampliação de políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação na Amazônia; apresenta pesquisa sobre conhecimento etnobotânico de

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ribeirinhos do Amapá; divulgação de estudo sobre substâncias farmacológicas na fruta murici no Amazonas; release do programa da Escola de Verão de Farmacognosia e os componentes nutricionais da gruta amazônica Cupuaçu. A origem destas matérias de abrangência local/regional foi de assessorias de imprensa das instituições científicas locais (duas matérias); as demais (três matérias) estavam sem assinatura, o que sugere aproveitamento do release sem a identificação explícita. As matérias de abrangência nacional (11matérias ) e internacional (5 matérias) são de sites como Uol e Agência Brasil, além de agência de assessorias de institucionais de pesquisa com atuação nacional. Em todas as matérias fontes identificadas, apenas um único discurso (o da própria fonte) aparece como elemento único para sustentar o relato, em geral representado pelo pesquisador da instituição que promove/agenda a pauta.

Jornal Diário do Amapá O Jornal Diário do Amapá apresenta a informação sobre ciência e tecnologia predominantemente na editoria de Saúde, com registros dispersos no interior dos cadernos Cidades, Política e Mulher e Geral. Foram identificadas no período analisado, oito (8) matérias. Para registro, foram identificadas uma quantidade excessiva de notas (50), com textos curtos reproduzidos, principalmente, em sessões como Saúde, Mulher e Nota 10 do Jornal, que reproduzem pesquisas e descobertas científicas atreladas a questões comportamentais, estéticas e sobre doenças da vida moderna (como genes e emagrecimento, hábitos alimentares ‘cientificamente comprovados’ como saudáveis e alternativas para tratamento de câncer). A cobertura não destoa dos outros dois jornais pela ausência de produção do próprio jornal sobre o tema e aproveitamento integral de conteúdo de agências nacionais e internacionais de informação, apesar da assinatura pelo editor local do jornal de alguns conteúdos de agência; uso de fontes oficiais vinculadas aos centros e instituições de pesquisa com foco restrito na divulgação da pesquisa, tratada como descoberta pela perspectiva inovadora, inédita e revolucionária. O conteúdo das pesquisas prioriza temas que não dialogam diretamente com as áreas de pesquisa priorizadas/estimuladas pela política científica local com foco na Amazônia e o contexto social da região. Ao contrário, há uso indiscriminado (com foco nos resultados) de pesquisas dos institutos nacionais e internacionais em uma abordagem abrangente sem preocupação em regionalizar ou repercutir localmente o debate suscitado pelo tema apresentado. O relato oficial, pela reprodução integral do discurso da instituição científica, é registrado em todas as matérias identificadas, com destaque para a presença de um número maior, na comparação com os demais jornais, de matérias que focam a divulgação científica do estudo em si e não instituição científica (presente no viés institucional do release incorporado pelo jornal quando observamos a divulgação de temas locais sobre Ciência e Tecnologia).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa empírica exploratória sugere um conjunto de questões a serem investigadas envolvendo o jornalismo especializado na cobertura científica e tecnológica na imprensa local sob a perspectiva de jornalistas e fontes.

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Ressalta-se para fins de considerações finais (e provisórias) que o agendamento da pauta de interesse público envolvendo a área científica e tecnológica que circula na esfera pública local é deficitário, ao ignorar as questões locais, sobretudo envolvendo Amazônia, e priorizar o conteúdo sob forte viés institucional das organizações de pesquisa da região. Com exceção da Embrapa que implementa diretrizes de uma política de comunicação pública da organização sede a que está vinculada, a informação científica, em geral não é tratada na fonte pelo setor de comunicação das instituições que atuam na produção científica em Macapá. Registra-se ausência de conteúdo informativo sobre a complexa e ampla agenda científica e tecnológica regional no viés da informação de interesse público, o que demandaria a priori a garantia do direito à informação sobre a produção científica e tecnológica das instituições envolvidas na execução das políticas públicas de ciência e tecnologia. Entendemos, neste caso, que a ausência de políticas de Comunicação Pública com diretrizes que acompanham a demanda por informação de interesse coletivo sobre políticas de ciência e tecnologia, executadas no âmbito local, contribuem pela interdição do debate público envolvendo a política científica e tecnológica nas especificidades da região Amazônica nos jornais impressos analisados.

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ROTHBERG, D. (2010). Portais eletrônicos de governo e a contribuição da informação e comunicação para a expansão da cidadania. In: Anais do 34º Encontro Nacional da Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Caxambu, MG. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/seminarios_tematicos/ ST02/DRothberg.pdf. Acesso em: 01 fev. 2013. SILVA, Gislene (2009). O fenômeno noticioso: objeto singular, natureza plural. Estudos em Jornalismo e Mídia – Ano VI – nº 2, pp. 9-15, jul./dez.. SODRÉ, Muniz (2007). Sobre a episteme comunicacional. Matrizes, São Paulo, nº 1, 15-26. ______. (2010). Jornalismo como campo de pesquisa. BRAZILIAN JOURNALISM RESEARCH – V6, N.2. TRAQUINA, N. (2005) Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2ª ed., v. 1. WOLTON, Dominique (2010). Informar não é comunicar. Porto Alegre: Sulina.

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Jornalismo sob risco: o caso do leite materno contaminado por agrotóxicos no Diário do Nordeste Journalism in risk: the case of breast milk contaminated by pesticides in Diário do Nordeste R a í z a To u r i n h o

dos

R e i s S i lva L i m a 1

Resumo: Este trabalho visa compreender como o jornalismo produz e circula sentidos sociais sobre os agrotóxicos, a partir da análise de como o conceito de risco aparece no portal Diário do Nordeste (CE) sobre o caso do leite materno contaminado. O caso se refere a uma pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso de 2010, que detectou a presença de vários tipos de agrotóxicos no leite materno de 62 nutrizes. Neste estudo detectamos que o leite materno contaminado é mencionado para como o auge do risco que os agrotóxicos representam para a nossa sociedade, com escassa contextualização dos reais riscos obtidos por este tipo de contaminação.

Palavras-Chave: Risco. Jornalismo. Agrotóxicos. Leite Materno. Diário do Nordeste.

Abstract: This work aims to understand how journalism produces and circulates social meanings about the pesticides, from the analysis of how the concept of risk appears in the Diário do Nordeste website (CE) on the case of breast milk contaminated . The case refers to a Federal University of Mato Grosso Research 2010, which detected the presence of several types of pesticides in breast milk of 62 nursing mothers. In this study we detected that the contaminated breast milk is mentioned as the risk to the height that pesticides pose to our society, with little contextualization of the real risks obtained by this type of contamination.

Keywords: Risk. Journalism. Pesticide. Breast Milk. Diário do Nordeste.

INTRODUÇÃO RRISCAR. SEGUNDO o Houaiss, expor a risco ou perigo ‹ a. a vida ›; expor(-se) à

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boa ou má fortuna; sujeitar(-se) ao arbítrio da sorte; aventurar(-se). Como a própria etimologia indica, o termo que origina o verbo arriscar implica em si mesmo uma adoção racional de uma postura aberta às ameaças que têm alta probabilidade de vir a se concretizar. Embora a ideia de (se) arriscar indique também uma possibilidade positiva, ainda que como significação secundária, o conceito de risco, especialmente em relação a saúde, 1.  Jornalista e mestranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Informação, Comunicação e Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (PPGICS/Icict/Fiocruz). E-mail: [email protected]

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refere-se principalmente a eventos negativos e “de um que-fazer para evitá-los, crescentemente orientado para viabilizar que os indivíduos autogerenciem suas respectivas cotas de riscos, mediante o uso racional das informações que lhes são disponibilizadas” (CARDOSO, 2012, p.18). Assim, de modo geral, o risco pode ser percebido como “uma forma de objetivação do perigo pelo cálculo antecipado das probabilidades de ocorrência de um determinado evento”, mas que não deixa de ser tão heterogêneo quanto as práticas que atravessa e orienta (ibidem). De fato, o termo risco dá margem a tantas significações, que chega ser arriscado definir uma conceituação. Diferentes campos do conhecimento vêm realizando essa tarefa desde o século XIX, atribuindo ao risco significados diversos. Assim, o risco deve ser percebido como um produto histórico-social. Definir o conceito de risco torna-se particularmente difícil em face do caráter polissêmico e dúbio do mesmo: de um lado, como expressão científica e econômica do controle da natureza e do futuro, tendo por base a evolução dos vários campos científicos e do cálculo probabilístico; de outro, como consequência dos problemas à saúde e ao meio ambiente decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico (Porto, 2012, p.109-110).

Diante desse quadro, podemos destacar que, enquanto risco à saúde, existem duas linhas subjacentes às diversas possibilidades de conceituação: “Uma é a existência de um perigo ou ameaça real para a saúde; a outra é a chance de esse perigo se efetivar” (PORTO, 2012, p.110). Em relação aos Agrotóxicos, a exposição aos diversos princípios ativos (434 são liberados atualmente no Brasil, maior consumidor mundial desses insumos) está associada a inúmeros efeitos sobre a saúde humana e ao meio ambiente, a curto, médio e longo prazo. Assim, o contato com essas substâncias carrega uma potencialidade nociva, naturalmente percebida como fatores de riscos, para diversas doenças. Destas, se destacam àquelas crônicas, com difícil comprovação de nexo causal, como cânceres, abortos, má-formações congênitas, problemas neurológicos, alterações genéticas e alergias. No caso particular em que nos detemos, que denominamos de caso do “leite materno contaminado”, esses fatores de riscos são potencializados diante da fragilidade dos seres expostos a estas substâncias (recém-nascidos). O caso veio à tona quando uma pesquisa de mestrado realizada em Lucas do Rio Verde (MT), cidade considerada a capital do agronegócio brasileiro, detectou a presença de todas as 10 substâncias de agrotóxicos testadas em 62 nutrizes, coletadas em até dois meses após o parto. Neste trabalho, nos propomos a compreender os conceitos de riscos e discutir como estes aparecem no jornalismo, sem qualquer pretensão de exaurir a questão. Embora os sentidos sejam constituídos não apenas no âmbito da produção, mas também no da circulação e consumo, aqui nos limitaremos a indicar, seguindo os preceitos da Semiologia dos Discursos Sociais (PINTO, 2002), algumas das marcas textuais impressas nos oito materiais disponíveis no website do Diário do Nordeste que mencionam o caso do Leite Materno Contaminado. Para tanto, partimos das seguintes premissas: os meios de comunicação se configuram na contemporaneidade como a principal instância que propicia a existência pública aos temas e sujeitos sociais (ARAUJO E CARDOSO, 2007) e a ausência ou a superficialidade

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da discussão sobre os agravos à saúde provocados pelos agrotóxicos nos meios de comunicação geram a possibilidade de incorremos no ciclo vicioso Invisibilidade – Inexistência – Incomunicação – Negligenciamento – Doença (ARAUJO et al, 2012). Isto sem perder de vista que as narrativas midiáticas sobre fatores de riscos influenciam na edificação da moralidade dominante na cultura atual, uma vez que a necessidade de constante atenção a todos os campos de nossas vidas que podem influenciar a saúde, a tornam um valor maior a orientar nossas ações cotidianas (VAZ et al, 2007).

RISCOS DIVERSOS OU DIVERSOS RISCOS? A noção de risco é objeto de estudo de quatro grandes campos/disciplinas: as ciências econômicas, a epidemiologia, a engenharia e as ciências sociais (CASTIEL et al, 2010); e pode ser abordada por diferentes perspectivas: epistemológica, histórica, sociocultural. O caráter científico atribuído às análises de risco, que legitimam discursos e procedimentos médicos, trazem consequências sociais e simbólicas que merecem ser melhor compreendidas (CZERESNIA et al, 2013). O risco como o concebemos atualmente tem suas raízes no século passado, quando este estava relacionado a apostas e chances de ganhos e perdas nos chamados jogos de azar. Em meados do século XX, a ideia de risco recebeu forte impulso no campo da engenharia devido à necessidade de estimar danos decorrentes do manuseio de materiais perigosos (radioativos, explosivos, combustíveis) durante a Segunda Guerra Mundial (CASTIEL et al, 2010, p.15). No campo da Saúde, a concepção tem seu estágio embrionário ainda no século XIX, quando o controle das doenças infecciosas por meio da sua causa microbiológica inaugurou a racionalidade epidemiológica moderna (CZERESNIA et al, 2013). Entretanto, a microbiologia se mostrou insuficiente para explicar inteiramente a causa da ocorrência das doenças transmissíveis, visto que nem todos os indivíduos em contato com os micro-organismos adoeciam. Essa constatação estimulou a utilização da estatística para avaliar a probabilidade da interferência de outros fatores, além do chamado agente etiológico, no processo. (...) a partir da década de 1950, com a importância crescente das doenças crônico-degenerativas, cujas causas não eram diretamente identificáveis, houve um maior investimento no desenvolvimento das técnicas de análise de risco. Os modelos estatísticos, aplicados a teorias biológicas e psicossociais, vieram sendo aprimorados [até hoje] (CZERESNIA et al, 2013, p.78-79).

Outro fator que tem um peso elevado na construção sóciohistórica da noção de risco é o próprio individualismo crescente na sociedade contemporânea (Ibidem). Com a percepção das pessoas como indivíduos autônomos, tanto moralmente quanto socialmente, e assim responsáveis pelos seus próprios corpos, nada mais natural do que a tentativa de controle sobre qualquer fator externo indesejável. O sociólogo Ulrich Beck cunhou em 1986 o termo Sociedade de Risco, para designar a lógica sob o qual se rege a sociedade moderno-tardia, fundada em ameaças originadas do progresso científico-tecnológico, no qual o risco é um ser etiológico praticamente onipresente. De acordo com Vianna (2012), se na clássica sociedade industrial a lógica de produção de riquezas dominava a lógica de produção de riscos, na sociedade de

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riscos essa relação é invertida. Enquanto do século XIX até meados do século XX, os riscos estavam restritos às fábricas, atingindo assim localidades e/ou grupos de pessoas isoladamente, na denominada globalização, os riscos adquiriram um novo tipo de dinamismo social e político, se tornando globais, distribuídos a medida que a produção econômica que transpõe as fronteiras nacionais (BECK, 1992:12-13 apud VIANNA, 2012). Lupton (1999) traz à tona os tempos medievais (onde a morte estava a cada esquina, a ponto de ser banal) para lembrar que nunca vivemos tanto, nem em uma época com tantas garantias. Paradoxalmente, nunca nos sentimos tão inseguros. A autora argumenta que a noção de risco ocorre na modernidade para substituir as incertezas, transformando um universo indeterminado por um que pode ser manejado, através do mito estatístico. Czeresnia et al (2013) concorda, visto que o papel das escolhas individuais diante das doenças “tende a ser superestimado, uma vez que a ênfase do discurso do risco é dada aos fatores de exposição que podem ser avaliados e geridos por cada um” (p. 88). De acordo com eles, a noção de risco influencia a tomada de decisão individual e na liberdade de escolha, visto que a informação acerca dos riscos estimados – incluídos aqui aquelas fornecidas pelos meios de comunicação, muito embora acreditamos que seja essa uma associação extremamente complexa – é capaz de modular comportamentos, criando ou desestimulando certos hábitos. Ao abordar o risco nas narrativas midiáticas, Paulo Vaz (2007) argumenta que o conceito de fator de risco generalizou um estado de quase-doença, onde a morte virou um evento a ser adiado a todo custo, por meio de um “cuidado crônico de si”: “Além de fazer com que a morte não faça parte da rotina e de definir esta como o esforço de evitá-la, o conceito cria uma separação existencial nova, entre o tempo em que se pode cuidar de si e o terminal, quando as esperanças são perdidas de uma vez e para sempre” (p. 153). Essa abordagem do risco a ser evitado custe o que custar, além de desconsiderar que a vida se afirma em alternativas nem sempre controláveis, sendo o risco, portanto, um aspecto intrínseco ao padrão evolutivo da vida, (ibidem), reduz a complexidade dos processos a fatores técnicos, criando a falsa impressão de controle. “A incorporação acrítica das reduções, inevitáveis do ponto de vista da lógica interna do método de análise de risco, não é simplesmente um ‘lapso’, mas sim a construção de uma visão de mundo interessada” (CZERESNIA et al, 2013, p. 80). Porto (2012) também alerta para redução do risco a um fenômeno meramente técnico: (...) é importante ‘desnaturalizar’ a lógica do risco como um fenômeno técnico ‘neutro’, um produto quantitativo objetivo de probabilidades e eventos conhecidos, ou ainda um ‘acidente’ fortuito sem causa ou intenção. Ou seja, é necessário realizar a crítica de uma visão tecnicista que desconsidera os determinantes do risco e exclui as populações mais afetadas e vulneráveis da discussão do problema. (Porto, 2012, p. 24)

O autor prega a importância de entendermos os riscos como “fenômenos complexos, multidimensionais, simultaneamente coletivos e singulares, e que possuem dimensões éticas e sociais irredutíveis” (p.91). Para ele, é impossível existir uma sociedade com risco zero, visto que isto representaria “a imobilização das forças que levariam ao progresso técnico e humano” (p.84).

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Ele defende uma abordagem integrada do risco, sendo os riscos à saúde humana compreendidos no contexto da relação mais abrangente entre seres humanos, sociedade e natureza, “relação esta desprezada por vários paradigmas ambientalistas, biomédicos e mesmo das ciências sociais” (ibidem). Nesta perspectiva, onde o risco é concebido a partir de uma visão dinâmica e dialética da saúde, “morte ou doença, em si, deixam de ser parâmetros absolutos na compreensão dos riscos, já que morrer jovem por acidentes ou doenças evitáveis é bem diferente de morrer por causas mais relacionadas ao avançar da idade” (p.99). A partir da abordagem proposta por Porto (2012) podemos inferir que os riscos provenientes da exposição aos agrotóxicos, objeto particular de nosso estudo, fazem parte de um contexto mais amplo, e podem ser considerados como origem de risco ambiental geral ou risco extensivo (àqueles que afetam afetam as pessoas nos locais em que vivem e circulam, e não apenas no trabalho), visto que atinge populações em locais, regiões e até ecossistemas distantes do local onde foi aplicado. De acordo com ele, os problemas ambientais gerais são extremamente complexos, especialmente em contextos vulneráveis (onde os riscos dos sistemas sociotécnico-ambientais são agravados pelas vulnerabilidades sociais), “seja pela assimetria de poder, seja pelas elevadas incertezas em jogo” (p.38), exigindo assim soluções globais que levem em conta a complexidade, o contexto e os recursos existentes. O sociólogo português Boaventura Sousa Santos, no prefácio da 3ª parte do dossiê que a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) produziu sobre os agrotóxicos, ilustra bem a complexidade e o alcance da contaminação por essas substâncias: Os impactos na saúde pública do uso intensivo de agrotóxicos são amplos porque atingem vastos territórios e envolvem diferentes grupos populacionais, como trabalhadores em diversos ramos de atividades, moradores nos arredores de fábricas e fazendas, além de todos nós, consumidores, que consumimos alimentos contaminados. Em todos os espaços ou setores da cadeia produtiva do agronegócio, estão comprovadas intoxicações humanas, cânceres, malformações, doenças de pele, doenças respiratórias, tudo decorrente da contaminação com agrotóxicos e fertilizantes químicos das águas, do ar, do solo. Dois terços dos alimentos consumidos cotidianamente pelos brasileiros estão contaminados pelos agrotóxicos, segundo análise de amostras recolhidas em todas as 26 Unidades Federadas do Brasil, realizadas pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Rigotto et al, 2012, p.13).

No caso enfatizado neste trabalho, o do leite materno contaminado, o conceito de risco é naturalmente amplificado uma vez que os recém-nascidos são naturalmente mais vulneráveis à exposição a agentes químicos presentes no ambiente e, devido as suas características fisiológicas e pelo aleitamento exclusivo até os seis meses, estão mais sujeitos a agravos à saúde ao ingerir o leite contaminado. No estudo conduzido no mestrado da bióloga Danielly Palma, orientada pelo pesquisador da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) Wanderlei Pignati, dos dez tipos de agrotóxicos analisados em 62 amostras de leite materno, todos tiveram resíduos encontrados, sendo que uma delas possuía seis substâncias. Todas as nutrizes (100%) estavam contaminadas por DDE, um derivado (metabólito) do DDT, cujo uso é

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proibido no Brasil desde 1998 por associações com infertilidade masculina e abortos espontâneos, mas que possui alta persistência no organismo humano. Além do DDE, as amostras continham ainda o recentemente banido Endosulfan (44%), o Deltametrina, (37%) e o próprio DDT (13%). O estudo foi realizado no município de Lucas do Rio Verde, cidade ícone do agronegócio que ostenta o título de campeã nacional das contaminações por agrotóxicos. Anualmente, o município é contemplado com 136 litros de insumos por habitante, média 37 vezes maior que a nacional. Na última década a cidade assistiu os índices de câncer saltarem 3 para 40 para cada 10 mil habitantes e os problemas de malformação por mil nascidos de 5 para 20 (QUADRO, 2014; CARNEIRO et al, 2012).

JORNALISMO SOB RISCO O jornalismo exerce um papel essencial na construção social da percepção do risco à saúde, tomando para si o papel de vigilante público que alerta a sociedade sobre os fatores de riscos e suas consequências (OLIVEIRA, 2014). Paralelamente, ao lado de questões de promoção de saúde, os fatores de riscos se configuram como uma questão basilar na cobertura midiática contemporânea sobre saúde: A mídia jornalística pauta e ordena suas narrativas em torno do que julga ser o imaginário contemporâneo da saúde destacando os fatores de risco e as variáveis que interpreta como problemas e ameaças que impedem ou dificultam a saúde individual e coletiva. Em contrapartida oferece, discursivamente, formas de segurança mediante um amplo receituário caracterizado pela difusão de descobertas científicas, inovações tecnológicas, novos métodos de tratamento, orientação e aconselhamento para superar as situações negativas relacionadas à saúde e à doença. (OLIVEIRA, 2014, p.38)

O pesquisador Paulo Vaz, junto aos seus colaboradores (2007), caracteriza um pouco mais este cenário. Em uma pesquisa sobre a cobertura do jornal Folha de S. Paulo dos fatores de risco ligados às doenças cardiovasculares, eles encontraram uma homogeneidade das fontes: “Em 83% do material analisado (232 notícias), as fontes de autoridade são explicitamente médicos ou revistas e manuais médicos (..). O restante não indica a presença de fontes de autoridade diferentes; não encontramos nenhuma menção a medicinas ou terapias alternativas nos 12 anos estudados”. Segundo ele, é recorrente o jornalista assumir o lugar de autoridade no interior de uma discursividade científica. Ao analisar a cobertura sobre a epidemia da dengue no Jornal Nacional em dois momentos, Vaz e Cardoso (2011) perceberam que o discurso do médico/especialista continua latente na construção do verdadeiro na narrativa midiática, apesar de, no decorrer das duas décadas analisadas, ter se deslocado da fonte oficial, on record, para a própria fala dos jornalistas, tanto nos off quanto na fala direta. Por não serem considerados autoridades em saúde pública, os meios de comunicação “negociam com a fala dos epidemiologistas para dar credibilidade à sua versão de uma epidemia. Seu poder consiste em selecionar, de tudo o que os peritos dizem, aquilo que irá aparecer em suas páginas e telas” (VAZ; CARDOSO, 2011, p.2). Aliado ao discurso legitimado pela autoridade especialista, a narrativa midiática em relação ao risco, de modo geral, destina ao indivíduo o poder de evitar o risco.

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O discurso estabelece, aqui, a possibilidade de uma distinção social: não entre agressores e vítimas, mas entre quem sabe e quem não sabe cuidar de si. A forma de a morte aparecer nas notícias sobre saúde também é singular. De um ponto de vista genérico, pode-se observar que a morte, hoje, não é pensada como fazendo parte da ordem, da rotina; ao contrário, o cotidiano regular é visto como a ocasião para evitá-la. (...) No caso das notícias sobre saúde, o diferencial reside no paradoxo de uma representação por ausência: a morte está sempre por vir, podendo seu advento ser, ainda uma vez, adiado por meio de escolhas, cientificamente fundadas, do indivíduo em relação a seu estilo de vida. (VAZ et al, 2007, p. 146)

A proposta de uma visão contextualizada e integrada do risco que Porto (2012) propõe na análise e percepção dos riscos é, de certo modo, tomada para si na cobertura midiática como tarefa do Jornalismo Ambiental. De acordo com Bueno (2007), cabe o jornalismo ambiental não somente informar, mas também explicitar as causas e soluções para os problemas ambientais, mobilizando os cidadãos para fazer frente aos interesses que condicionam o agravamento da questão ambiental. Para tanto, é essencial que o profissional busque uma visão sistêmica, ou seja, a percepção que “as pessoas, a natureza, o meio físico e biológico estão umbilicalmente conectados” (p. 29). Em face da complexidade dos riscos ambientais contemporâneos, o Jornalismo Ambiental propõe uma cobertura engajada, misturando objetividade com defesa (advocacy) para se chegar a um jornalismo sustentável. Essa seria a principal diferença entre o Jornalismo Ambiental o jornalismo sobre assuntos do meio ambiente (BELMONTE et al, 2014). O jornalismo ambiental, partindo de um tema específico (mas transversal), visa ser transformador, mobilizador e promotor de debate por meio de informações qualificadas e em prol de uma sustentabilidade plena. Para sua concretização é necessário buscar respaldo em olhares mais abrangentes, que possibilitem ver as conexões, superar a fragmentação reiterada. Fundem-se, desta forma, a natureza do jornalismo especializado com as demandas socioambientais que acabam por compor o horizonte de reflexão dos paradigmas emergentes. (GIRARDI et al., 2012, p.148 apud BELMONTE et al, 2014)

De acordo com os autores, o risco é uma característica central na produção midiática sobre assuntos ambientais, sendo considerado o principal critério de noticiabilidade do jornalismo ambiental, visto que a noção de risco perpassa tanto os problemas quanto as soluções ambientais. Os autores ressaltam que o valor-notícia é tanto do aumento do risco (mudança do clima, escassez de água, contaminação dos alimentos, extinção de espécies), quanto de sua redução (energia renovável, alimentos saudáveis, transporte público eficiente, moradias sustentáveis). “Os grandes problemas (aumento do risco) têm um alto valor-notícia devido ao impacto econômico e social que causam, mas soluções (redução do risco) também têm relevância jornalística” (BELMONTE et al 2014, p. 2).

O RISCO DO LEITE MATERNO CONTAMINADO NO DIÁRIO DO NORDESTE O Diário do Nordeste (CE) é o maior veículo em circulação do Ceará (na 35ª posição no ranking brasileiro, em 2013, segundo Associação Nacional de Jornais). Ele foi escolhido por ser considerado um veículo referência em Jornalismo Ambiental na região, visto

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que há dez anos dedica uma página semanal ao tema (Gestão Ambiental), acumulando indicações e premiações de abrangência nacional sobre a temática. Além de ter veiculado, em 2013, uma série de 13 reportagens sobre agrotóxicos denominada Viúvas do Veneno, vencedora nacional do Prêmio HSBC/Jornalistas & Cia, nas categorias impresso e Grande Prêmio e finalista de outros três prêmios, incluindo o Esso. Entre os oito materiais encontrados que mencionam o caso do Leite Materno Contaminado, estão um editorial, uma carta de leitor e seis reportagens, duas delas integrantes da série Viúvas do Veneno. Utilizamos um olhar procedente da Semiologia dos Discursos Sociais (PINTO, 2002), que acredita que o sentido não está dado no discurso mas sim em constante processo de produção (semiose infinita), sendo encontrados na superfície dos textos as pistas ou marcas dos processos sociais de produção de sentidos. Embora tenha tido uma repercussão considerável durante o período da divulgação dos resultados do estudo, o caso do Leite Materno Contaminado não foi alvo de nenhuma produção jornalística específica no Diário do Nordeste, aparecendo pela primeira vez no veículo em um editorial publicado no dia 18 de abril de 2011. Intitulado “Agrotóxico do leite”, o editorial utiliza o resultado da pesquisa para evidenciar o perigo da utilização massiva dos agrotóxicos (descritos como produtos letais, o jornal avisa que o fato serve como alerta para o rígido controle sanitário do produto, em face do risco imposto aos recém-nascidos). Logo em seguida, o texto discorre sobre os polos do agronegócio cearense como focos de preocupação com o excesso de substâncias cancerígenas contidas nos produtos usados para o combate às pragas dos alimentos e exemplifica a possibilidade da utilização de insumos naturais para o controle fitossanitário através de cases bem-sucedidos de aplicação da agricultura orgânica no estado. No dia seguinte uma reportagem mais extensa sobre o perigo que representa o uso de massivo sobre agrotóxicos foi publicada, citando o editorial para mencionar o caso e enfatizando a associação entre o aumento exponencial do consumo de agrotóxicos e as taxas de intoxicação. Contudo, esta primeira produção já dá pistas do tom adotado pelo veículo ao mencionar o caso em produções jornalísticas posteriores, incluindo na carta do leitor selecionada para publicação. A comprovação da contaminação do leite materno por agrotóxicos serve, em praticamente todos os materiais analisados apenas de exemplificação do absurdo que representa a utilização massiva de agrotóxicos, o auge do risco: afinal, é o envenenamento de uma substância pura, destinada aos seres mais vulneráveis de nossa espécie. Esta construção pode ser demonstrada por sentenças como “altos níveis de veneno puderam ser detectados, inclusive, no leite materno”; “a exposição a agrotóxicos (...) é tamanha que...” ou “o fato serve de alerta para o rígido controle sanitário do produto, em face do risco imposto aos recém-nascidos”. Nenhuma matéria deteve-se em esclarecer o risco real que tal fato representava, as consequências da contaminação para a mãe e/ou bebê, ou ainda as possíveis causas da detecção de tais compostos. Cabe aqui destacar que na verdade, o leite materno é considerado um bom indicador geral de contaminação por compostos lipofílicos, tais quais os organoclorados (classe de substâncias químicas como DDT, que persistem por longos períodos na natureza e nos seres vivos após a exposição), justamente por ser uma rota importante de excreção dessas substâncias – de forma genérica, a produção de leite materno exige alto teor de gordura,

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“consumindo” os compostos que se acumulam ao longo dos anos no tecido adiposo da mãe (MESQUITA, 2001). Na literatura científica, tanto no Brasil quanto em diversos países, há inúmeros casos relatados de resíduos por organoclorados no leite materno, com destaque para níveis mais elevados de contaminantes em mulheres residentes em regiões agrícolas com intenso uso de agrotóxicos (LANDRIGAN et al., 2002, apud PALMA, 2011). Apesar disso, acredita-se que as vantagens do aleitamento superam os riscos da presença de contaminantes no leite materno. Das seis reportagens que compõem o nosso corpus, quatro foram produzidas pelo repórter Melquíedes Júnior (inclusive as da série premiada) e, assim, guardam características similares entre si. A mais marcante é a nomenclatura. São variadas as denominações utilizadas para referenciar o grupo de substâncias químicas utilizadas no controle de pragas e doenças de plantas (agrotóxico, defensivo agrícola, pesticida, praguicida, veneno agrícola ou remédio de planta). Até a Constituição de 1988, a denominação oficial adotada desse grupo pela legislação brasileira era a Defensivos Agrícolas. O termo Agrotóxico surgiu como um “termo mais ético”, em contrapartida a defensivo agrícola – expressão que conotaria erroneamente que as plantas são completamente vulneráveis a pragas, além de esconder os efeitos negativos à saúde humana e ao meio ambiente (PERES et aç, 2003). De acordo com Araujo e Cardoso (2007), nomear é um modo de atribuir uma identidade arbitrária, a fim de definir os lugares de interlocução, tanto de quem nomeia quanto de quem é nomeado. Para as autoras, categorizar e nomear são um exercício do poder “e sua naturalização é uma forma perversa de construção da hegemonia: sem perceber, pelo uso dessas categorias, reproduzimos relações discriminatórias que não refletem nossas convicções” (ARAUJO; CARDOSO, 2007, p. 97). Na matéria Agrotóxico está com maior poder de contaminação é recorrente a utilização da denominação veneno, principalmente quando o foco se situa em casos de contaminação pelos insumos agrícolas o termo agrotóxico é utilizado poucas vezes e o termo defensivo agrícola aparece apenas na legenda da fotografia, obra provável de edição posterior. Nesta reportagem, manchete do dia, os produtores rurais ou quaisquer representantes do “outro lado” não aparecem em citações diretas, o que foi corrigido no dia seguinte, onde uma matéria coordenada traz a reclamação dos produtores por serem tratados como vilões, sempre utilização a nomeação defensivos agrícolas até o último parágrafo, quando o repórter faz questão de enfatizar sua crença: “Embora seja literalmente um “veneno”, esse tipo de produto é permitido, com legislação específica. Porém há casos de desobediência à legislação em vigor” (JUNIOR, 2011, s.p). A reportagem principal, Manchete sobre agrotóxicos repercute entre deputados, destaca a perplexidade do poder legislativo diante das denúncias veiculadas no jornal, fortalecendo a ideia da mídia enquanto vigilante público (OLIVEIRA, 2014), com a tarefa de pautar políticas públicas e alertar a população para a intoxicação silenciosa, que mata lentamente: Alerta, preocupação e incômodo podem resumir os sentimentos gerados com a constatação da manchete do Diário do Nordeste de ontem, baseada em reportagem do Caderno Regional. O tema foi um dos principais assuntos do dia na roda de discussões: dobrou no Ceará a venda de agrotóxicos para a agricultura, ao passo que aumentaram os casos de intoxicação. Autoridades, movimentos sociais, pesquisadores destacaram a matéria, apontando para a necessidade emergencial da fiscalização ou até proibição de veneno. (JÚNIOR, 2011, s.p)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A utilização massiva de agrotóxicos no Brasil, que nos coloca no topo do ranking mundial de consumo dessas substâncias, e os possíveis danos associados à sua exposição, especialmente se tratando do leite materno, se constitui como um desafio para a cobertura jornalística hodierna. Se por um lado, para evitar incorrer no ciclo vicioso que leva ao negligenciamento, pressionando os poderes públicos a realizar gerenciamento adequado dos riscos, se faz necessário que o tema esteja cada vez mais em pauta nos meios de comunicação. Por um outro, é fundamental que a compreensão dos contextos em que o jornalismo se situa, com a compreensão do risco como uma construção sócio histórica, e que, portanto, pode emergir das narrativas midiáticas sob diferentes ângulos. O caráter extensivo dos riscos gerados pelos agrotóxicos, a ponto de se considerar a contaminação como um fato da vida moderna (como declara Linda Lear no prefácio de Primavera Silenciosa), e o consequente interesse público pelo problema, requer do jornalista um manejo cuidadoso e uma visão sistêmica apurada. Para tanto, acreditamos que os princípios do Jornalismo Ambiental, que se objetiva holístico, mobilizador e engajado, possam ser adotados enquanto perspectiva para a cobertura sobre a questão.

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A postura dos editoriais do jornal O Estado de S. Paulo sobre Dilma Rousseff, durante o segundo turno da eleição presidencial em 2014 The editorial posture of the O Estado de S. Paulo on Dilma Rousseff, during the second round of the presidential election in 2014 A dr i a na M on se r r at C e di l lo M o r a l e s M o r ei r a 1 Resumo: Este trabalho faz uma análise sobre o tratamento da informação em torno da candidata a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, a partir dos textos editoriais publicados no jornal “O Estado de S. Paulo” durante o período de eleição presidencial. Para tal pesquisa foram abordados trabalhos sobre ideologia (GIDDENS, 2010) e outros que planteiam o debate entre jornalismo e democracia no século XXI, desde as perspectivas de McCombs (2009), Dader (2007) assim como Poletti e Brants (2010). A metodologia adotada foi a Análise de Conteúdo, que possibilitou enquanto a resultados que o periódico estudado agiu durante o período de campanha eleitoral, como um instrumento de propaganda ideológica (não oficial).

Palavras-Chave: Eleições. Dilma Rousseff. O Estado de S. Paulo. Abstract: This paper is an analysis of the processing of information about the candidate for President of Brazil, Dilma Rousseff, from the editorial texts published in the newspaper “O Estado de S. Paulo” during the presidential election period. For this study were approached work on ideology (Giddens, 2010) and others who present the debate between journalism and democracy in the twenty-first century, from the perspectives of McCombs (2009), Dader (2007) as well as Poletti and Brants (2010). The methodology adopted was a Content Analysis, which allowed as results that the studied newspaper acted during the campaign period, as an ideological propaganda tool (unofficial).

Keywords: Elections. Dilma Rousseff. O Estado de S. Paulo.

INTRODUÇÃO OR QUE estudar os editoriais dos jornais? Em comparação com as outras seções;

P

“o editorial é a opinião do jornal” (LEÑERO e MARÍN, 1985, p.57), permite indagar sobre as apreciações de um veículo midiático e provavelmente entrar no território da manifestação mais explícita de sua linha editorial. Esta seção, apesar de ser parte do jornalismo opinativo e contar com maior subjetividade, é um espaço que, desde uma perspectiva democrática, carrega responsabilidades com respeito aos direitos das 1.  Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação (Universidade Federal do Paraná), adriana. [email protected]

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audiências tanto quanto as outras partes dos jornais, pois seus conteúdos são apresentados ante públicos numerosos. Assim, conhecer as características que compõem esses textos resulta de interesse nos estudos sobre o jornalismo atual, tão próximo aos interesses dos sistemas políticos. Neste paper, busca-se conhecer e interpretar a forma em que os editoriais do “Estado de São Paulo” apresentaram suas posições sobre a candidata Dilma Rousseff, durante o segundo turno eleitoral de 2014 no Brasil. Este trabalho analisa um corpus de dados obtido do jornal O Estado de S. Paulo, na sua seção Editorial, de 1 a 26 outubro de 2014, datas inseridas no segundo turno da campanha presidencial no Brasil. O levantamento de dados foi realizado durante o último mês de campanha até o dia das eleições, dando um total de 26 dias (26 editoriais). A metodologia utilizada para o desenvolvimento da pesquisa foi a Análise de Conteúdo (AC) (BAUER, 2002). As categorias criadas para a Análise estão diretamente relacionadas com o objeto da pesquisa, que nesse caso, consideramos quatro variáveis principais: Tema geral do Editorial; Abrangência do Editorial; Nome do candidato, e Valência do Candidato/ Governo. Estas variáveis estão baseadas no livro de códigos do Núcleo de Comunicação Política e Opinião Pública da Universidade Federal do Paraná (2014). Mais adiante serão explicadas as variáveis de forma mais aprofundada. Para este trabalho, o jornal O Estado de S. Paulo foi eleito como material de análise por pertencer a uma grande empresa jornalística brasileira, Grupo OESP, também conhecido como Grupo Estado. O Estado de São Paulo é o mais antigo periódico da cidade de São Paulo ainda em venda (ESTADÃO, 2014). É também o quarto jornal brasileiro com maior circulação nacional (ANJ, 2014). Assim também, esta análise pretende contribuir ao debate entre mídia e democracia, pois o regime brasileiro é democrático e, portanto, o que acontece nas suas relações com os veículos midiático terá implicações na sociedade. Cassanova (2002) expõe que “os monopólios dos meios de comunicação conduzem a uma uniformidade da cultura, e inauguram meios de manipulação política. A expansão do modelo de mercado até os meios tem se convertido num dos principais componentes do deterioro das práticas democráticas” (CASSANOVA, 2002, p.9, trad. própria). Outro aspecto que motivou o desenvolvimento deste trabalho foi que a candidata Rousseff pertence a um partido político de ideologia esquerdista (Partido dos Trabalhadores), enquanto que O Estado de São Paulo é um jornal conservador (LATTANZI, 2013, p. 8), e portanto, resulta importante conhecer quais são as características das informações apresentadas no jornal de oposição. Esta pesquisa está dividida em três partes. Primeiramente, é apresentado um breve desenvolvimento teórico e conceitual sobre ideologia, jornalismo e democracia. Na segunda parte deste trabalho é apresentado a análise dos textos editoriais. Nesta parte de nosso texto, realiza-se uma análise interpretativa dos dados obtidos. Finalmente, apresentam-se as considerações finais.

IDEOLOGIA, JORNALISMO E DEMOCRACIA O mundo está mudando e a forma de exercer a política também, as antigas filosofias dominantes (esquerda e direita) se apresentam cada vez mais difusas e aparecem novas configurações políticas, pelo menos no cenário sul-americano, onde os sistemas

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políticos, incluído o Brasil, se encontram em um tipo de crise ao tentar combinar suas bases ideológicas com o desafio de governar para todos os setores sociais. Um exemplo disso é o papel das atuais socialdemocracias, que incluem sua base ideológica tradicional, mas com adequações (neoliberais) nas políticas econômicas para a sua integração no mercado global (GIDDENS, 2010, p.2). Neste sentido, Giddens (2010) expõe o surgimento de mudanças ideológicas nos sistemas políticos no século XXI, as quais surgem como “uma resposta a duas filosofias fracassadas, que tem predominado durante os últimos vinte e cinco anos”. Sob esta ótica é preciso procurar as chaves que, nas práticas dos sistemas políticos atuais, possibilitem o entendimento do que seriam as novas filosofias com que a política construirá sua legitimidade social. Uma é o neoliberalismo, o thatcherismo a sorte do pensamento político que tem sido tão importante para meu país durante tanto tempo. O fundamentalismo de mercado é uma filosofia morta, contraditória. O que aconteceu na Grã Bretanha é que uma filosofia do mercado livre destruiu o conservadorismo. Os dois aspectos que o neoliberalismo combina são simplesmente contraditórios. Tentam unir uma teoria libertaria dos mercados com uma teoria autoritária do Estado e do nacionalismo, e esta combinação é explosiva. Esta combinação é a que destruiu o partido conservador e permitiu que Tony Blair ganhasse com uma maioria tão ampla (GIDDENS, 2010 p.2, trad. própria).

Outra filosofia fracassada, de acordo com este autor é a democracia social por si mesma, a chamada socialdemocracia, que estabelecia o surgimento do Estado do bem-estar e estava ligada às políticas de classe tradicionais. “A socialdemocracia assim definida ou, digamos, a antiga esquerda, é hoje uma filosofia fracassada, tanto como a nova direita” (GIDDENS, 2010 p. 3). Esta visão propõe a dissolução das ideologias políticas rígidas do século XXI, a qual é possível perceber nos governos atuais, por exemplo, na região sul-americana, a qual pertence o Brasil, que incluem bases políticas da esquerda tradicional, mas com adequações aos interesses dos mercados internacionais. Assim, Giddens (2010) sugere a criação de “uma teoria política que não seja nem de direitas nem de esquerdas. Esta filosofia política tem de reagir não só à dissolução destas duas filosofias dominantes, senão também aos câmbios que as tem destruído”. Refletir sobre este último ponto, poderia talvez nos levar a uma compreensão do que será a base dos sistemas políticos futuros, pois hoje muitos desses sistemas parecem obsoletos e faltos de legitimidade. Por outra parte, o jornalismo político joga um importante papel na credibilidade dos governos, pois se encarrega de veicular as informações sobre as principais ações políticas. Poletti e Brants (2010) desenvolvem uma caracterização do que chamam jornalismo cínico que seria aquele que utiliza técnicas para manipular os discursos da imprensa, um periodismo falto de objetividade. Neste sentido, a autora cita a Kiousis (2002) para explicar que “o jornalismo cínico como um conceito multidimensional, consistente de muitas características potenciais” (POLETTI e BRANTS, 2010:331, trad. própria). No jornalismo sobrepõem-se e combinam-se aspectos de atitude anti-política dos jornalistas, um tipo de embalagem do mesmo em tom jornalístico e estilo, e de conteúdo específico no foco da reportagem. Portanto, a autora divide este tipo de jornalismo em quatro dimensões: desconfiança (expressando a atitude do jornalista frente à política), negatividade (ponto

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de vista expressado no tom), ironia e/ou sarcasmo (estilo de apresentação) e escândalo ou a orientação ao conflito (foco dos conteúdos) (POLETTI; BRANTS, 2010 p.332, trad. própria). Isso é bastante palpável, pois não é estranho que as notícias orientadas aos fatos negativos ou ao escândalo são bastante comuns nos jornais atuais. Outro tema relacionado é o papel do jornalismo na democracia, Dader (2007) entra nesta discussão ao falar sobre a reinvindicação do profissionalismo no jornalismo e a sua responsabilidade democrática. Neste sentido, retoma a crítica que Charaudeau (cit. em DADER, 2007, p.50, trad. própria) faz à mídia: “os meios – os de foco jornalístico, se não são a democracia mesma, em todo caso são um espetáculo dela, o qual talvez constitui paradoxalmente uma necessidade”. O autor ponta a importância de “selecionar dados e fatos em função da sua relevância, certificar mediante provas razoáveis a exatidão das notícias, e não enganar as suas audiências com outros dados ou opiniões sem os que a informação se corrompe em banalidade ou exercício de propaganda” (DADER, 2007, p.50, trad. própria). E é neste ponto onde se tem que colocar especial interesse nos estudos sobre a análise do jornalismo político, pois a liberdade de expressão, não deveria ser confundida com a liberdade para enganar as audiências com intencionalidades político-eleitorais ou governamentais. Assim também, a teoria da agenda setting contribui na discussão sobre o papel do jornalismo nas democracias, desde uma perspectiva que inclui o estudo de recepção ao se perguntar: “Quem e como são selecionados os temas que serão transformados em notícia?” A Teoria da Agenda está centrada na ideia de que “os efeitos da comunicação de massa podem resultar de uma volumosa exposição à mídia” (McCOMBS, 2009, p. 184). Enquanto acumulava-se evidência “sobre a influência do agendamento da mídia junto do público, os pesquisadores começaram a perguntar no início da década de 1980 ‘Quem define a agenda da mídia’?” (McCOMBS, 2009, p. 153). Refletir sobre as origens da agenda da mídia faz lembrar muitas outras agendas, tais como as agendas de temas e de questões políticas consideradas pelas casas legislativas e por outros órgãos públicos que são rotineiramente objetos de cobertura da mídia noticiosa, assim como as agendas que competem entre si nas campanhas políticas, ou ainda a agenda de assuntos, usualmente é proposta pelos profissionais das relações públicas... (McCOMBS, 2009, p. 153). Esta ideia acerca de que as mensagens da mídia são construídas a partir de outras agendas resulta importante para McCombs, quem expõe a influência dos press releases (Comunicados de imprensa) nas notícias jornalísticas, muitos dos quais pertencem a grupos com forte presença social como as organizações civis, os partidos políticos ou as agências de relações públicas. “Muito do que sabemos sobre o funcionamento do governo e do comércio origina-se de fontes oficiais de outros profissionais de relações públicas. Estes profissionais da comunicação subsidiam os esforços das organizações noticiosas para cobrir as notícias” (McCOMBS, 2009, p. 159). Um exame do New York Times e do Washington Post ao longo de um período de 21 anos revelou que aproximadamente metade de suas matérias estava substancialmente baseada em press releases e outros subsídios diretos de informação. Cerca de 17, 5% do número total de matérias aparecendo nestes jornais estava baseado, pelo menos em parte, em press releases. As entrevistas coletivas e os briefings representaram outros 32%. O New York Times e o Washington Post são jornais importantes com grandes equipes e imensos recursos. Sua forte

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confiança em fontes de relações públicas revela o papel-chave que os subsídios de informação jogam na construção diária de todas as agendas dos veículos (McCOMBS, 2009, p. 160).

A intervenção das assessorias de imprensa dos aparelhos governamentais ou dos partidos políticos é bastante comum nos conteúdos dos jornais, e este fato não pode ser desconsiderado quando é analisada a relação política do jornalismo, pois a linha editorial de cada um representa de alguma forma esse vínculo. De igual maneira, as fontes empregadas nas reportagens, editoriais ou nas colunas formam parte dessa relação.

ANÁLISE DA POSTURA DOS EDITORIAIS DO ESTADO DE S. PAULO SOBRE DILMA ROUSSEFF NO SEGUNDO TURNO DA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE 2014 Ao todo, foi realizado um levantamento de dados durante o período 1 a 26 de outubro de 2014. O corpus está focado no segundo turno eleitoral (do 5 a 26 de outubro), mas para efeitos desta análise incluímos os 4 dias anteriores, pois não fogem da última parte da jornada eleitoral. A pesquisa observou 26 textos editoriais, os quais foram estudados a partir das seguintes variáveis de conteúdo: Tema Geral, que identifica o assunto predominante no editorial. Essa variável é dividida em doze categorias. 1 – Campanha Eleitoral/Partidos Políticos: o texto indica disputa para o cargo de Presidente da República, Governador do Estado, Senador da República e Deputado Federal e Estadual; 2 – Político Institucional: quando noticia temas envolvendo órgãos federais, estaduais ou municipais, ou ainda, sobre os poderes do executivo, legislativo, judiciário e sociedade organizada; 3 – Economia: quando tratassem de temas que mencionavam o movimento da bolsa de valores e expectativa de produção agrícola, salários, empregos, entre outros; 4 - Política Social: Educação, Saúde, Comércio, Emprego, Indicadores Econômicos e Política econômica; 5 – Infraestrutura e meio ambiente: textos com predomínio de informações relacionadas a obras de desenvolvimento, crescimento industrial, sistema de transporte, moradias, vias urbanas, etc.; 6– Violência e Segurança: textos que tratassem do crescimento da violência, índices, casos isolados, mortes, sistema presidiário, investimento em segurança e combate ao crime; 7- Ético moral: Família, tradição e costumes, temas controversos, corrupção e má gestão do dinheiro público; 8-Política para Esporte: Política de Esporte e eventos esportivos; 9-Cultura/variedades: Política de incentivo à atividade cultural, espaços culturais, parcerias com segmentos culturais, proposta para área de lazer, artistas e estrelas do mundo artístico e política de incentivo ao turismo; 10-Política Estadual/Nacional: Proposta de parceria com governo estadual, federal u outros países 11 – Internacional: textos que tratam de assuntos entre o Brasil, suas entidades públicas e privadas em relação com outras entidades de outros países ou apenas de outros países; 12- Outros. Outra variável é o Nome do Candidato, a qual identifica aos personagens que disputam a eleição para presidente; dividida em 3 categorias: 1) Dilma Rousseff; 2) Aécio Neves; 3) Outros (Marina Silva). Uma variável a mais é a Abrangência a qual está dividida em: 1) Local; 2) Regional; 3) Nacional e 4) Internacional. Finalmente temse a Valência das reportagens coletadas, dividida em 4 caracterizações: 1) Positiva; 2) Negativa; 3) Neutra e 4) Equilibrada.

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Tabela 1. Frequências de temas publicados nos editoriais do Estado de S. Paulo em outubro de 2014. Tema Geral

Frequências %

Frequências no.

Campanha Eleitoral/Partidos políticos

50%

13

Político Institucional

3,85%

1

Economia

19,23%

5

Político Social

3,85%

1

Infraestrutura e meio ambiente

7,69%

2

0%

0

Violência e segurança Ético-moral

15,38%

4

Política para Esporte

0%

0

Cultura/Variedades

0%

0

Política Estadual/Nacional

0%

0

Política Internacional

0%

0

Outros

0%

0

Nos dados analisados, é possível observar que os temas que mais apareceram nos textos editoriais analisados foram Campanha Eleitoral/Partidos Políticos (50%), Economia (19,23%) e Ético-Moral (15,38%). Outro tema abordado foi Infraestrutura e Meio Ambiente (7,69%). Também é interessante ver que temas como Cultura, Violência e segurança, Política para Esportes e incluso Política Internacional são tópicos que não tiveram visibilidade nenhuma nos editoriais (Tabela 1). De acordo com o corpus de dados aqui analisado, O Estado de S. Paulo centrou-se em publicar informações sobre a campanha eleitoral que acontecia nesse momento, e principalmente em temas económicos e ético-morais. Este último principalmente sobre casos de corrupção no governo. Por outra parte, as Frequências dos nomes dos candidatos permitiu ver que a candidata Dilma Rousseff (50%) foi quem mais apareceu nas citações dos editoriais. Depois Aécio Neves (30,95%) e finalmente Mariana Silva (19,04%). Para nossa análise resulta relevante observar que este jornal centrou em maior medida a sua atenção na candidata do PT (Ver Tabela 2). Tabela 2. Frequências de nomes de candidatos publicados nos editoriais do Estado de S. Paulo. Candidato

Frequências

% Frequências

Dilma Rousseff

21

50%

Aécio Neves

13

30,95%

Marina Silva

8

19,04%

Total candidatos

42

100%

Uma informação adicional à anterior foi o resultado da variável Valência ao citar os candidatos ou ao governo. Este último se adicionou ao estar relacionado com a candidata Rousseff, pois esta disputava sua reeleição. Nos dois principais concorrentes a presidente, é possível identificar que as opiniões dos editoriais não beneficiaram nem ao governo nem a Dilma Rousseff, ao dar um 96% e 95,23% de valências negativas quando se falou deles e somente 4,0% e 4,76% neutras. Entretanto, o candidato Aécio Neves obteve 53,84% de valências positivas, 46,15% neutras e nenhuma negativa (Ver Tabela 3).

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Tabela 3. Valências em torno aos candidatos e ao governo, publicadas nos editoriais do Estado de S. Paulo. Candidato/Gov.

Val. Positiva

Val. Negativa

Val. Neutra

Val. Equilibrada

Governo

0%

96%

4,0%

0%

Dilma Rousseff

0%

95,23%

4,76%

0%

53,84%

0%

46,15%

0%

Aécio Neves

Na obtenção de indicadores sobre o tratamento das informações nos editoriais, outra variável foi a Abrangência, a qual centrou-se nos temas nacionais (84,61%) seguido dos temas internacionais (15,38%). Portanto, ao fazer um cruzamento com a informação obtida sobre os tópicos gerais é possível afirmar que nos editoriais analisados prevaleceu o interesse por escrever sobre temas nacionais relacionados às campanhas, economia e casos sobre corrupção. Por outro lado, foram analisados alguns aspectos de tipo mais qualitativo, neste caso a identificação de palavras que pela sua semântica, mostram a construção de conteúdos que permitem ver as posturas para os candidatos e que, ao serem publicados num meio de comunicação deixam ver intencionalidades discursivas bastante claras. Por exemplo, no editorial intitulado “A hora da razão” (05/10/2014), se incluem palavras como “incompetência” ou “fracasso” quando se fala do governo de Dilma Rousseff, enquanto que ao falar sobre Aécio Neves se empregam “competente” e “capacidade”. Este último aspecto resulta importante quando analisamos as citações de Rousseff, pois Poletti e Brants (2010) já colocam a negatividade nos conteúdos como formas de fazer jornalismo cínico e sua influência na construção de legitimidade política; Outro caso é o texto “Dilma e a Polícia Federal” (03/10/2014) ao falar sobre Dilma Rousseff inclui o substantivo e adjetivo “bobagens” e “maliciosa”. Entretanto, e um último exemplo aqui apresentado com o objetivo de apresentar a postura do jornal é o texto “Uma campanha paradoxal” (04/10/2014) que apresenta o verbo “discutir” ao mencionar a Dilma, já com Aécio usa um tom mais neutro ao expor que “Datafolha (lhe) dá um empate técnico com Marina.” Assim podemos ver como os editoriais do Estadão mostram uma clara tendência conservadora, e novamente é possível presenciar aspectos do jornalismo cínico como a negatividade ou a orientação ao conflito (POLETTI; BRANTS, 2010). Finalmente, se deve considerar para justificar as opiniões apresentadas, os editoriais mostram dados sobre economia ou corrupção durante os governos petistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao conhecer os resultados desta pesquisa pode-se verificar que a relação entre Dilma Rousseff candidata e o jornal O Estado de S. Paulo existe um distanciamento ideológico bastante claro. As valências ao citar à candidata foram 95,23% negativas. O fato de ser a candidata mais mencionada nos editoriais também permitiu concluir que o periódico estudado agiu durante o período de campanha eleitoral, como um instrumento de propaganda ideológica (não oficial) ao construir conteúdos negativos em torno da candidata do PT. E neste aspecto resulta importante continuar com este tipo de pesquisa, já que o fato de que os editoriais são textos que por sua natureza podem expressar opiniões

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ideológicas de forma explícita, valeria a pena se questionar sobre como garantir que as informações publicadas atendam não somente ao interesses econômico-políticos, que pouco oferece às audiências. Sobre o tema da dissolução das ideologias que fala Giddens (2010) ao se referir sobre alguns países com regimes social-democrático, esta pesquisa não conseguiu observar este fenômeno devido a que o antagonismo entre o jornal conservador e o governo progressista estudados foi bastante evidente. Porém, a análise aqui apresentada é somente um universo de dados muito pequeno para assegurar essa afirmativa. É relevante refletir sobre o papel da mídia, neste caso, o jornal O Estadão e voltando ao anterior, a sua capacidade de produzir, reproduzir, publicar e comercializar ideologia a partir dos seus conteúdos, num regime democrático onde os meios de comunicação não são propriamente instituições do Estado, mas que agem como tal em períodos eleitorais ao se imiscuir nos assuntos nacionais pela influência implícita que tem na agenda pública. Nestes termos, caberia a questão sobre que tão legitimo é que um editorial utilize seu alcance para promover um candidato em tempos eleitorais. Para posteriores pesquisas, também ficam outras perguntas sobre se os editoriais do periódico O Estadão se encaixa nas classificações que fizeram Poletti e Brants (2010) sobre o jornalismo cínico, pois formaria parte também da discussão sobre os limites da liberdade de expressão. Por último, é importante ressaltar que esta análise é uma interpretação da realidade que parte de um paradigma específico. Este é um estudo exploratório, o que significa que é uma primeira aproximação ao fenômeno estudado que pretende-se ampliar em futuros estudos.

REFERÊNCIAS Associação Nacional de Jornais (2014). Maiores jornais do Brasil. Recuperado em 10 de março de 2015, de: http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil Cassanova, P. El mundo actual: situación y alternativas, Argentina, Siglo XXI Editores, 9p. Dader, J. (2007). Del periodista pasible, a la obviedad, informativa y otras... Estudios sobre el Mensaje Periodistico, Madrid, Universidad Complutense de Madrid, 13, 31-53. ISSN: 1134-1629 Estado de São Paulo (2015). Resumo histórico. Recuperado em 11 de março de 2014, de: http://www.estadao.com.br/historico/resumo/conti1.htm Giddens, A. (2010). Más allá de la derecha y la izquierda. Una nueva política para el nuevo milenio. Recuperado em 10 de março de 2014, de: http://www.panzertruppen.org/2010/ ecoomia/mh010.pdf Lattanzi, J., e Faria, F. (2013). O Estado de S. Paulo: um expoente da imprensa conservadora (1889 – 1929), (XXVII Simpósio Nacional de História, Natal RN, 22 a 26 de julho e 2013). Leñero, V., e Marín (1985). C. Manual de Periodismo. Teoría y técnica de la comunicación impresa, México, Ed. Plus Ultra, 57p. Mc Combs, M. (2009). Teoria da Agenda, São Paulo Brasil, Editora Vozes, 153, 159, 184p. Poletti M., e Brants B. (2010). Between partisanship and cynicism: Italian journalism in a state of flux, SAGE publications, 11(3) 329-346. Doi: 10.1177/1464884909360923

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A crítica jornalística de José Castello: uma análise da coluna semanal do Suplemento Prosa & Verso, do jornal O Globo The José Castello’s Critical journalistic: an analysis of the weekly column of Prosa & Verso Supplement, of the newspaper O Globo M au ro

de

Souza Ven t ur a

1

Resumo: O artigo analisa os textos críticos do jornalista José Castello, publicados em sua coluna semanal do Suplemento “Prosa & Verso”, do jornal O Globo, do Rio de Janeiro. São descritos e analisados os procedimentos críticos e os pressupostos conceituais adotados por José Castello em seus artigos semanais publicados no Suplemento do jornal O Globo, entre os anos de 2011 e 2013, período estudado na pesquisa. Os resultados identificam os princípios que norteiam a atividade crítica de Castello, assim como sua posição em relação aos juízos críticos. Constatou-se que há uma recusa das leituras feitas pela chamada crítica de linhagem acadêmica. Ao recusar a interpretação fechada e o apego ao sentido do texto, decorrentes da aplicação teórica, Castello funda um lugar de fala bem definido, situando sua coluna no âmbito da crítica de linhagem jornalística.

Palavras-chave: Crítica literária. Crítica jornalística. José Castello. Paradigmas críticos. Mediação crítica. Suplementos literários.

Abstract: The paper studies the journalist José Castello’s critical texts, published in his weekly column “Prosa & Verso” Supplement, of the newspaper O Globo of Rio de Janeiro. Are described and analyzed The critical procedures and conceptual assumptions adopted by José Castello are described and analyzed in his weekly articles published in the newspaper O Globo Supplement, between the years 2011 and 2013, the period studied in the research. The results show the principles that guide the Castello’s critical activity, as well as its position on critical judgments. It was found that there is a refusal of the readings made by theoretical critique. Castello refuses to close reading resulting from the theoretical application and founded a place of speech well defined in the context of journalistic criticism.

Keywords: Literary criticism. Journalistic criticism. José Castello. Critical paradigms. Critical mediation. Literary supplements.

1.  Mestre em Jornalismo e Editoração (ECA/USP), Doutor em Teoria Literária (FFLCH/USP) e Professor do Departamento de Comunicação Social e do Curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual Paulista (UNESP). E-mail: [email protected]

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A crítica jornalística de José Castello: uma análise da coluna semanal do Suplemento Prosa & Verso, do jornal O Globo Mauro de Souza Ventura

INTRODUÇÃO EJA EM sua vertente jornalística, literária ou acadêmica, a atividade crítica tem sido,

S

cada vez mais, encarada com suspeita e desqualificada como atividade secundária. Os motivos de tais reações – que envolvem também a figura do crítico – estão ligados, em parte, à reivindicação de autonomia da literatura, como se esta somente comportasse explicações literárias. Outra razão repousa na ideia de transcendência da obra, de algo que não pode ser compreendido ou decifrado pelo conhecimento racional. Esses motivos já inspiraram inúmeros libelos contra a análise “científica” da arte, como o conhecido livro de Marcel Proust, Contra Saint-Beuve, escrito contra os procedimentos de um dos grandes nomes da crítica francesa. Mas estão também na base das críticas publicadas por José Castello em sua coluna semanal do Suplemento Prosa & Verso. Castello é um dos principais representantes da crítica jornalística na atualidade e suas colunas carregam os traços típicos desta linhagem crítica, como a linguagem que instaura um clima de conversa com o leitor, a mistura de digressões e lembranças pessoais no texto, além de uma recusa deliberada em fazer uso de certezas e demonstrações teóricas. Tais elementos parecem fazer o texto deslocar-se para uma conversa fiada, mas, quando menos esperamos, nos conduzem a uma chave de leitura da obra em questão. Neste ponto, o leitor já está definitivamente convencido de seus argumentos. Mais do que isso: o leitor é, com freqüência, fisgado, motivado a ler o livro em questão. As colunas de Castello no Caderno Prosa & Verso são construídas para manter uma relação bastante evidente com o leitor e esta função instrumental insere sua crítica no âmbito do jornalístico. É, portanto, de crítica jornalística que estamos falando. Além disso, há marcas textuais que podem muito bem ser caracterizadas como as de um cronista, de um narrador que se permite escrever em primeira pessoa, como na crítica em que procura uma definição para seu ofício: “Sou um leitor sentimental. Quando leio, guio-me por sentimentos vagos, que me ficaram de leituras antigas e de impressões resistentes, e que, de alguma maneira, formam o leitor que sou.” (Castello, 16/10/2010). Ou em outro trecho, na abertura de uma coluna: “Leio – tento ler, no meu jeito torto e precário de leitor solitário”. (Castello, 07/5/2011, p.4). São essas características que procuraremos identificar e descrever neste capítulo. O corpus da pesquisa é constituído pelos artigos de José Castello publicados em sua coluna semanal do Suplemento “Prosa & Verso”, do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, no período de 2011 a 2013. Foram analisados um total de 114 textos, sendo 43 em 2011; 41 em 2012; e 30 em 2013. Assim, as críticas de José Castello no Suplemento Prosa & Verso foram classificadas em função de determinadas recorrências e características, tais como: concentrações temáticas, posicionamentos assumidos diante das obras, escolhas de objetos críticos, critérios de julgamento, além de outros traços observados na documentação coletada. A análise do corpus foi precedida de um tratamento estatístico do material, a fim de identificar as recorrências e as constantes temáticas presentes em suas colunas. Após essa etapa preliminar, efetuou-se a análise interpretativa, ou conteudística, dos dados classificados na fase anterior.

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MOVIMENTOS DE LEITURA NA CRÍTICA DE JOSÉ CASTELLO O levantamento estatístico acima referido permite visualizar, em primeiro lugar, alguns aspectos daquilo que chamaremos de “agendamento crítico” para as colunas de Castello. Além disso, possibilita a identificação dos pressupostos conceituais e programáticos presentes nas colunas do crítico. O primeiro desses pressupostos surge a partir do seu conceito de leitura, como revela a coluna “O espírito da letra”: O problema é que toda leitura – mesmo a mais atenta e sábia – é, sempre, uma desfiguração. Toda leitura é deformada. Para meu incômodo, voltam-me as palavras de Augusto Roa Bastos: ‘os livros não existem. Na cabeça de cada leitor, um livro é sempre outro livro. O problema não está na constatação de que a letra é um abismo sobrevoado por muitos espíritos. Está em esconder isso e supor que a leitura, ao contrário, é uma pedra. Leninistas e trotskistas ainda hoje discutem a maneira ‘correta’ de ler Karl Marx. Freudianos e lacanianos disputam a posse da ‘verdadeira leitura’ de Sigmund Freud. Um veio fundamentalista atravessa essas divergências. Contra os adeptos da leitura dura e encrespada, em que a letra se faz grilhão, prefiro o sentido que lhe empresta a literatura, em que as palavras traçam estradas sinuosas em que nos perdemos. (Castello, 16/4/2011, p. 4)

A passagem acima é repleta de significação, pois identifica o método utilizado pelo leitor José Castello diante da análise de uma obra. Ao reivindicar para a leitura o estatuto de uma desfiguração ou deformação, Castello desloca o exercício analítico para o inefável, para algo que jamais poderá ser explicado. Como veremos, a crítica de Castello conduz o leitor por estradas sinuosas, bem distantes da segurança (e das amarras) da abordagem científica da literatura. “O leitor é ele também um ficcionista. Entre um livro e quem o escreve abem-se muitas fendas”, assevera em outro artigo. (Castello, 01/1/2011, p.4). Há, claramente, em Castelo, uma recusa das leituras feitas pelos especialistas, ou melhor, pela chamada crítica acadêmica. A interpretação fechada e o apego ao sentido do texto decorrente da aplicação teórica são recusados insistentemente pelo crítico. Isso é evidente, por exemplo, na coluna em que escreve sobre a poesia de Rainer Maria Rilke: É preciso chegar ao avesso da letra. A palavra não passa de uma cortina através da qual tentamos delinear a silhueta do real. Ler através: é o que nos pede a poesia de Rilke, e não a leitura rigorosa – ‘ao pé da letra’ – feita pelos especialistas. Não ao pé, mas frente a frente: este é o desafio que ele nos propõe. (Castello, 02/06/2012, p.4)

O que dizer do trecho acima? Passados mais de meio século desde a campanha de Afrânio Coutinho em favor da crítica especializada estamos diante de uma postura interpretativa que pode ser situada no âmbito do impressionismo crítico. As colunas de Castello deixam evidente sua filiação à vertente da crítica literária, ou, como diria George Steiner (2006), ao velho criticismo, o mesmo que foi alvo de Continho e de seus seguidores que, no decorrer do século 20, empenharam-se em dar um estatuto de cientificidade à tarefa da crítica. Mas Castello trabalha em outra órbita, como estamos procurando demonstrar nesta pesquisa. Em outro artigo, Castello confronta os métodos da literatura e da ciência para reafirmar seus postulados críticos, em que ler, é “ler de lado”:

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Ler um poema é deslocar-se diante do poema. Não é ler de frente, é ler de lado. Não é decifrá-lo-- olhar reto do cientista – mas vigiá-lo – olhar transverso do poeta. Interrogar novas posições, duvidar das conhecidas, desconfiar dos sentidos imediatos. (Castello, 12/3/2011 p.4)

A literatura surge como uma máquina de interrogações, ao passo que as provas fornecidas pela ciência são apenas “uma questão de poder, e não de verdade”: A literatura não é uma fantasia ingênua, um divertimento sem consequências. Ao contrário, ela é uma máquina de interrogar as coisas. Com suas bordas frouxas, seu olhar ‘de banda’, e sua inconstância, só a literatura pode desmascarar as ilusões da verdade. (...) A rigor, os instrumentos científicos não fornecem respostas ao desconhecido. O que fazem? Enquadram o desconhecido no conhecido e, assim, acreditam dominá-lo. (Castello, 5/2/2011, p.4)

Argumentos e experiências de ordem pessoal e histórias de família também informam a crítica de Castello, amarrando e sustentando seus critérios na tarefa da leitura. E nossa hipótese central é a de que esses elementos são mais relevantes para a crítica de Castello do que razões teóricas e argumentos conceituais. Vejamos alguns casos. Pode ser, por exemplo, um vizinho de prédio do colunista, que surge no texto como um interlocutor, como é o caso do “barbeiro aposentado que depois de velho se tornou um grande leitor”. Certo dia, ao sair pela manhã com um romance do escritor angolano Pepetela embaixo do braço, ele encontra o vizinho, que despreza a literatura, por acreditar somente nos fatos e na história. “Por isso meu vizinho despreza a literatura – e, por isso também, Pepetela entra agora em sua lista negra. Meu miserável vizinho acredita que escritores só se interessam pelo inútil”, escreve Castello (12/05/2012, p. 4) No decorrer do artigo, Castello empenha-se em demonstrar que seu vizinho – um leitor comum – está equivocado, e que a literatura não pode ser desprezada. Histórias familiares do próprio Castello são recorrências freqüentes em sua crítica e a memória funciona como uma chave para abrir caminho no mistério da obra. A coluna “O tio e o poeta” é exemplar desse método. Na abertura do texto, o leitor é informado sobre a paralisia infantil que deixou seu tio Luís Guimarães semi-paralisado. Movendo-se com extrema lentidão, o tio “saía de seu quarto cinco minutos antes do almoço para que não o esperassem à mesa”. Mesmo assim, Castello explica que a paralisia do tio era “capaz de movê-lo”. Essa observação atuará como um dispositivo de leitura, já que a lembrança do tio surge no momento específico, ou seja, no meio da leitura de um livro de poemas de Luciano Trigo, intitulado Motivo. Aos poucos, o leitor é conduzido para um movimento de leitura que busca aproximar a imagem do tio Luís com a do poeta Luciano. O que movia meu tio, um homem que, contra todas as probabilidades, conservou, até sua morte, relativa autonomia? A pergunta, estranhamente, é muito parecida com outra, igualmente sem resposta: o que move um poeta (Luciano Trigo), o que o leva a, contrapondo-se à dureza do mundo, insistir em escrever versos? (Castello, 20/07/2013, p. 7).

É, pois, nessa capacidade ou dificuldade de se mover que o crítico encontra seus argumentos para a leitura de um livro de poemas, traçando paralelos entre um e outro,

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como se o poeta escrevesse em nome do tio. Como nos diz o próprio Castello ao final de sua coluna, “esta é só a maneira que hoje leio os poemas de Luciano. É minha maneira de ler. Seus poemas me ajudam a ressuscitar um pouco meu tio querido. Poderia esperar mais da poesia? O que mais um poeta poderia me dar?” (Castello, 20/07/2013, p. 7). A leitura – como Castello a concebe – parece ser uma experiência imprevisível, única, pessoal. Seus motivos, histórias, argumentos, paralelismos, alusões e conclusões não podem ser tomados como modelares, nem são transferíveis a outros críticos. Em outras palavras, seus exemplos de leitura são marcados por uma não-exemplaridade tal que os impede de serem transformados em um método. Ao mesmo tempo, sou levado a pensar que essas recorrências, observadas no decorrer de três anos de colunas, permitem-nos falar de um certo padrão. Logo, não poderiam ser configuradas num método? Mas não haverá mesmo um método nesse procedimento, já que estão presentes nos seus textos, repetem-se, incidem com regularidade em sua crítica? Outro exemplo desse viés pessoal está na coluna em que revela a doença de sua própria mãe, que sofre de Parkinson, para falar de um livro de poemas cujo tema é o envelhecimento e a morte, e cuja autora retrata o drama da mãe, que sofre de Alzheimer. Como ler este poema? A experiência pessoal é, novamente, a chave: “sei do que fala Tamara [Tamara Kamenszain, a autora] porque também eu tenho uma mãe que se perde nos corredores do Parkinson”, escreve o crítico. (Castello, 20/4/2013, p.7). O distanciamento cada vez maior provocado pela doença, que gera progressivamente uma lacuna, um vazio entre mãe e filha (retratado no livro de poemas) é também um sintoma do que se passa entre o crítico e sua mãe. “Sinto isso, cada vez mais, quando vejo minha mãe, Lucy. Quanto mais dela tento me aproximar, e quanto mais ela luta para se agarrar em mim, mais nos afastamos. Tem sido melhor, bem melhor, o silêncio”, escreve Castello (20/4/2013, p.7). De modo semelhante à crítica anterior, aqui também a experiência pessoal é o referencial para a interpretação. Aqui também Castello dirá que a poesia de Tamara fala por ele. O ponto central da leitura é também um ponto de identificação pessoal do crítico com a temática do Alzheimer e do Parkinson. Por fim, a constatação – frequente em Castello – de que a linguagem não consegue dar conta do real, e que esta é uma luta “fadada ao fracasso, para agarrar a coisa. Resta-lhes a grade da linguagem. Cheia de furos, por eles escorre o que não vemos” (Castello, 13/4/2013, p.7). Outro artigo em que a experiência pessoal é convocada para a tarefa da interpretação é “O mundo flutuante”. (Castello, 13/4/2013, p.7). Aqui, o episódio do tio que desapareceu, Mário Guimarães, surge à lembrança de Castello no momento em que lê Histórias da outra margem, romance do japonês Nagai Kafu. O desaparecimento do tio, contado pelo crítico aos participantes de uma oficina literária (aliás, com frequência o crítico cita esta atividade em suas colunas), assim como o relato de uma participante da oficina que também teve um pai desaparecido, servirão de inspiração para a leitura do romance. Ao relatar o seu percurso de leitura, Castello conta ao leitor que, em certo momento do romance, reviu o semblante de seu tio Mário, mas não foi só isso: reviu, também, “a face branca de minha aluna enquanto relatava, aos trancos, o desaparecimento de seu pai.” (Castello, 13/4/2013, p.7). Temos, pois, dois elementos extra-literários, ambos oriundos da esfera pessoal do crítico, informando e inspirando a leitura da ficção.

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Novamente não há referências teóricas, mas a convicção de que a própria literatura é capaz de produzir interpretações, como se fosse uma máquina. Em outros momentos, é a lembrança do convívio com escritores que Castello utiliza como argumento inicial de seu artigo. Pode ser a convivência com João Antonio na redação do Diário de Notícias ou uma carta enviada por Castello a Clarice Lispector, encaminhando-lhe um conto que ele, aos vinte e poucos anos, acabara de escrever. Essas figurações do autor diante do leitor deslocam o texto de Castello para a órbita de um discurso crítico que busca estabelecer um diálogo com o receptor. Está, pois, aqui, uma das funções que consideramos centrais do texto de Castello: o exercício de uma crítica situada numa posição intermediária entre a obra e o público. Vem daí a resistência do crítico em utilizar anteparos teóricos em suas leituras. Deste modo, não é dimensão teórica que constrói seus argumentos críticos, mas, antes, são os elementos textuais, extraídos, em boa medida, de sua experiência de leitor, como no trecho que abre a crítica intitulada “João de bermudas”: “Todo um passado – os anos de minha formação – retorna assim que abro os Contos reunidos de João Antonio”. (Castello, 17/11/2012, p. 7). Não são as referências que surgem, mas é a própria vida pessoal que se manifesta, numa ativação da memória involuntária, para usarmos o conceito proustiano. Por exemplo, no artigo em que relata o telegrama que recebeu de Clarice Lispector, Castello deixa evidente seu afastamento do conceito e da abstração, lição que aprendeu com Clarice: Aprendi muito mais com ela do que com qualquer professor. Aprendi? A palavra não é bem essa, mas eu a uso, por me ser mais conveniente. Não há palavra que explique o que a ficção de Clarice faz com seu leitor. (Castello, 19/05/2012, p.4).

Assim como Clarice, Castello não se interessa por conceitos, pois estes “só acorrentam e calam”. (Castello, 19/05/2012, p.4) Consciente das insuficiências de todo método científico diante de seu objeto, Castello reafirma a autonomia do literário na arte da interpretação, vista aqui como pertencente à esfera do inexplicável, de algo que escapa ao conhecimento. Quando chega ao leitor, a mensagem também continua indecifrável; por mais que tente, ele não consegue abri-la. Tudo o que lhe resta são as palavras. Ler um poema é tentar rasgar um envelope inviolável. (Castello, 22/1/2011, p.4).

Pode-se, mesmo, constatar um viés anti-acadêmico na crítica de Castello, que se posiciona de modo firme na defesa de uma leitura desarmada da obra literária. É também uma resposta contundente aos efeitos devastadores para a crítica provocados pela institucionalização da teoria literária, que buscou revestir a atividade crítica, que sempre esteve ligada a uma linhagem literária e jornalística, de uma roupagem científica e, assim, controlar o trabalho de seus praticantes. “Os acadêmicos pretendem se apropriar dos textos literários através da interpretação teórica”, escreve ele (Castello, 14/07/2012, p.4). É evidente que Castello se arma para enfrentar a leitura de um texto literário, mas ele recorre à sua experiência de leitura e não a um arsenal de ordem teórico-metodológica. Assim, a obra ficcional assume o estatuto de chave interpretativa para a própria ficção. Que método é esse em que a ficção se transforma em ferramenta crítica? Como classificar

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este procedimento, senão a partir de uma suposta autonomia da literatura, como se esta somente pudesse ser interpretada à luz de explicações literárias? Por isso, uma crônica de Rubem Braga surge como fator de explicação para um livro de poemas de Sérgio Alcides, por exemplo. Vejamos, mais uma vez, o movimento de sua leitura. Castello está lendo Rubem Braga enquanto “atravessa”, intrigado, os poemas de Alcídes (Píer). Poemas desafiadores, que me pediam, desde os primeiros versos, um posto de observação – um Píer – desde onde eu pudesse contemplá-los com mais lucidez. Eis que encontro em Braga a plataforma que buscava. Ela me aparece na crônica “O mistério da poesia”, de 1949. (Castello, 06/04/2013, p. 7).

O crítico encontra no cronista, e na crônica, um referencial para a leitura da poesia. Procura demonstrar que a crônica não é um gênero menor, que veicula apenas futilidades, mas que pode comportar também argumentos de ordem interpretativa. Além de destacar elementos em comum entre a crônica de Braga (exegética?) e os poemas de Alcides, Castello se detém na falsa premissa de que os pensamentos profundos, complexos, requerem uma linguagem hermética. “Braga deplora a crença de que, quando turvamos um pouco as águas, elas se tornam mais profundas”, escreve. (Castello, 06/04/2013, p. 7). É justamente esta ideia de que o pensamento complexo está na superfície das coisas que leva Castello a recorrer à poesia de Manoel de Barros para explicar outra obra literária, desta vez o romance de Javier Cercas. Novamente temos um movimento de leitura nada convencional, embora semelhante ao exemplo anterior. Vejamos, mais uma vez, esta maneira enviesada de leitura praticada por Castello: Li “A velocidade da luz” em Cuiabá, onde estive para uma palestra sobre Manoel de Barros. Às vezes, parava de ler o romance de Javier para reler poemas de Manoel. Esses saltos produzem interferências – como os chiados dos velhos rádios. De alguma forma (retorcida, ela também), a voz de Manoel se infiltrou em minha leitura de Javier. Acho que o li como se fosse um poeta. Talvez ele seja um poeta. (Castello, 04/05/2013, p. 7).

Uma ficção se sobrepõe à outra, a voz poética busca iluminar o romance, as interferências de leitura tomam o lugar dos conceitos, num método que nunca deixa o leitor entrever em que direção caminha. “Temos sempre uma maneira torta de ler – e é através deste empenamento que entramos em um livro”, escreve o crítico. (04/05/2013, p. 7). Esta “maneira torta de ler” contamina também o ponto de vista da narrativa, caracterizada por uma voz crítica vacilante, construída mais por questionamentos do que por respostas. Castello é um crítico que não tem, e nem deseja ter, diante do leitor, o domínio pleno de suas leituras. Não se trata de um ponto de vista frágil, mas de uma reiterada recusa em assumir a posição de um crítico legislador. Aos que esperavam esta postura, o crítico responde: Alguns leitores ainda esperam que eu faça a crítica das ficções que leio. Mas o que se passa aqui é outra coisa. Elas, sim, me interrogam e me criticam. Vão mais longe: interrogam e criticam a cena literária que as produz e dentro da qual eu tento pensar. (Castello, 08/06/2013, p.7).

O que se passa, afinal, na crítica de Castello? Nela não se encontram certezas ou respostas prontas, resultantes da aplicação de um método. O crítico não deseja ocupar

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o lugar do crítico, no sentido tradicional da palavra, ou seja, do especialista. É esta autoridade legitimada que ele recusa, buscando legitimar-se no campo a partir de novos parâmetros. Procura, antes, envolver-se ou surpreender-se, com o que lê, como no trecho a seguir, em que reproduz a opinião de um leitor na própria coluna: “‘Que bom que você ainda se surpreende com livros’, me diz uma amiga querida. Seu comentário, sem que ela saiba disso, sintetiza o problema que venho propor a meus leitores” (Castello, 12/01/2013, p. 7). Ora, um crítico que admite publicamente que se surpreende com a leitura de uma obra é, antes, um anti-crítico, que desce de seu pedestal para assumir a condição de leitor, de intérprete, no sentido de que cada interpretação é, sobretudo, uma possibilidade, entre outras. A obra é como uma partitura, em que cada intérprete produz sua versão. Castello parece levar às últimas consequências esta premissa. Para ele, ler uma obra é como empreender uma expedição na selva. “Sou um leitor. Não há um destino certo, tampouco existem placas de sinalização, acostamentos, ou mirantes. É tudo disperso e indefinido” (Castello, 19/10/2013, p. 7). Como, então, apropriar-se de um texto? Qual é o caminho crítico? Ler é tomar posse daquilo que se lê e nesse ponto até mesmo Castello concorda: “um leitor é isso: alguém que se apossa de um livro. Que faz do texto alheio, seu texto. Que nele rasga uma segunda assinatura”. (Castello, 06/10/2012, p.7). Mas é no conceito de leitura que encontramos a chave para compreender o método de José Castello. Está na própria condição fraturada do leitor, que não consegue jamais decifrar o enigma da obra. A literatura é aquilo que não pode ser plenamente conhecido. Por isso, ele dirá que “todo leitor é um detetive impotente, que não chega a decifrar o enigma que tem diante de si” (Castello, 06/10/2012, p.7). A reação à análise teórica, tão visível em suas colunas, remete-nos a uma visão da literatura como algo que se situa na esfera do incognoscível, que escapa à compreensão do analista: “todo pensamento a respeito da literatura esbarra em algo que é inerente à própria literatura: o caráter opaco do real” (Castello, 08/12/2012, p.7). A desconfiança de José Castello no aparato teórico vem, pois, desta opacidade do mundo, que faz com que a experiência estética seja irredutível ao trabalho dos conceitos. Talvez por isso a recorrência à obra e à figura de Clarice Lispector seja tão constante no crítico. “A análise literária a entediava”, escreve Castello (Castello, 08/12/2012, p.7). Recorro, aqui, a um argumento do crítico George Steiner, também ele um defensor do velho criticismo, para quem a arte possui sempre uma dimensão que não pode ser totalmente decifrada. Escreve Steiner: Muito daquilo que é fundamental no discurso teológico, filosófico e estético, é ‘inanalisável’. Essa resistência à análise não representa uma refutação de seus valores de verdade nem de sua função indispensável nas prioridades geradoras da intuição. Pelo contrário. A análise pode ter chegado tarde na história da consciência, e pode mesmo haver uma espécie de consenso que deveria ser estudado com o mais escrupuloso cuidado, segundo o qual o ‘inanalisável’ coincide (em última instância) com o trivial. (Steiner, 2003, p.131)

Ora, vem daí o desejo latente na escrita de Castello, que se observa a cada leitura; uma escrita que está a um passo de se transformar em crônica, pelo tom de conversa com o leitor, e que acaba aderindo, por opção e por convicção, à órbita do literário. Deste modo,

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a ficção, objeto constante de sua coluna, se transforma em sujeito na crítica de Castello. Assim, cabe perguntar se esta escrita de José Castello poderia situá-lo como um crítico-escritor, nos termos formulados por Perrone-Moisés, que considera como críticosescritores todos aqueles “que se lançam numa aventura totalmente nova, um discurso ambíguo e ambivalente, sem predominâncias nem junturas”. (Perrone-Moisés, 1978, p.85). O discurso crítico de Castello tende para o intransitivo, não está interessado em desvendar a verdade da obra; tudo o que ele tem é a si mesmo, suas recordações, suas experiências de leitor. Talvez se possa dizer dele algo semelhante ao que Leyla PerroneMoisés disse de Maurice Blanchot: A obra de Blanchot é uma obra de crítica-escritura. Crítica, porque ela nos ajuda a ler outros autores. Não se pode negar a pertinência de suas observações acerca dos autores estudados, que se tornam “claros”, coerentes, a partir do texto blanchotiano. Os traços por ele recolhidos podem até mesmo ser verificados em outros corpos: aplique-se a leitura de Blanchot a Fernando Pessoa, e ela se mostrará operante. Não é esta a antiga comprovação do valor científico de uma teoria? Escritura, porque essa obra reúne tais observações num fenômeno único e irrepetível (salvo por ele próprio) de enunciação, que é o discurso denso, trágico, inconfundível, onde o escritor Blanchot prossegue seu paciente trabalho de morte. (Perrone-Moisés, 1978, p.93).

Voltemos à nossa hipótese central – a resistência de Castello à teoria como base de seu método crítico --, que transparece de modo mais radical no artigo intitulado “Borges, o desmemoriado”. (Castello, 18/02/2012, p. 4). Aqui, a teoria surge como uma ameaça à leitura. O crítico é classificado como alguém que pensa com a cabeça e a memória de outros. O gancho jornalístico da coluna é o lançamento de uma coletânea de contos de Jorge Luis Borges e, em especial, o conto intitulado “A memória de Shakespeare”, que relata a história de um professor que afirma possuir parte da memória de Shakespeare. Aos poucos, o professor constata que o peso da memória o massacra, tornando-o incapaz de escrever e de criar, já que perdeu a memória de si mesmo. Escreve Castello: O relato de Borges me leva a pensar na força ameaçadora da influência. Pode ser reconfortante pensar com a cabeça (a memória) dos outros. Pode trazer brilho e aparência de grandeza. Você enche seu pensamento de orgulho e de notas de rodapé. Você estufa o peito e se sente maior do que é. (Castello, 18/02/2012, p.4).

Da passagem acima, podemos concluir que, tanto quanto a memória, a influência teórica pesa como uma ameaça e uma limitação ao trabalho do crítico. Note-se que Castello não defende nem pratica uma leitura apressada ou superficial das obras. Ao contrário, ele propõe uma abordagem da obra literária que seja distante, tanto do resenhismo fácil, que assola a imprensa cultural na atualidade, quanto da crítica acadêmica, repleta de referências alheias e notas de rodapé. “Prefira, como Borges, fazer-se de desmemoriado e lidar com memórias falsas”, alerta-nos Castello. (18/02/2012, p.4). Ou ainda nesta sentença-diagnóstico sobre o trabalho do crítico acadêmico: “Penso na memória que, transformada em tradição intelectual, pode ser vendida – ainda que, comprando-a, o sujeito se perca de si e se embrenhe no labirinto do outro” (Castello, 18/02/2012, p.4).

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Quando a realidade é, ela também, uma ficção, não faz sentido ancorar o trabalho da interpretação no arcabouço (labirinto, diria Castello) de métodos e de teorias, caminho trilhado pela crítica acadêmica desde os anos de 1960. A crítica de José Castello nega constantemente essa herança, ou melhor, essa memória emprestada, postiça, que “sempre fará mais o mal do que o bem”. Esta é a ética da leitura de José Castello.

O MÉTODO DE JOSÉ CASTELLO: ALGUMAS CONCLUSÕES Nas páginas anteriores, foram descritos e analisados alguns dos procedimentos críticos e pressupostos conceituais adotados por José Casello em seus artigos. A análise de 114 textos do jornalista, publicados entre os anos de 2011 e 2013 permite identificar alguns dos princípios que norteiam a atividade crítica de Castello, assim como sua posição em relação aos juízos críticos. O primeiro aspecto a ressaltar está no seu conceito de leitura, que em seus textos adquire o estatuto de uma desfiguração ou deformação, que desloca o exercício analítico para o inefável, para algo que jamais poderá ser explicado. Em outras palavras, a crítica de Castello conduz o leitor por estradas sinuosas, bem distantes da segurança (e das amarras) da abordagem científica da literatura. Argumentos e experiências de ordem pessoal e histórias de família também informam a crítica de Castello, amarrando e sustentando seus critérios na tarefa da leitura. Procurou-se enfatizar que esses elementos são mais relevantes, para Castello, do que razões teóricas e argumentos conceituais. Histórias familiares do próprio Castello são recorrências frequentes em sua crítica e o passado funciona como uma chave para abrir caminho no mistério da obra. Deste modo, não é a dimensão teórica que constrói seus argumentos críticos, mas, antes, são os elementos textuais, extraídos, em boa medida, de sua experiência de leitor, que informam sua crítica. As colunas de Castello deixam evidente sua filiação à vertente da crítica literária, a mesma que foi alvo de Continho e de seus seguidores que, no decorrer do século 20, empenharam-se em dar um estatuto de cientificidade à tarefa da crítica. Mas Castello trabalha em outra órbita, como estamos procurando demonstrar nesta pesquisa. Castello concebe a leitura como uma experiência imprevisível, única, pessoal. Seus motivos, histórias, argumentos, paralelismos, alusões e conclusões não podem ser tomados como modelares, nem são transferíveis a outros críticos. Seus exemplos de leitura são marcados por uma não-exemplaridade tal que os impede de serem transformados em um método. Estaríamos diante, então, de um ‘método sem método’, tal qual nos fala Otto Maria Carpeaux, ao comentar a obra crítica de Augusto Meyer. Ao mesmo tempo, somos levados a pensar que essas recorrências, observadas ao longo de três anos de colunas, permitem-nos falar de um certo padrão. Logo, não poderiam ser configuradas num método? Mas, que método é esse em que a ficção se transforma em ferramenta crítica? Como classificar este procedimento, senão a partir de uma suposta autonomia da literatura, como se esta somente pudesse ser interpretada à luz de explicações literárias? Mas será, portanto, inevitável que a análise científica da literatura esteja condenada a destruir a especificidade do elemento literário e a afastar os leitores do prazer da leitura? Por que tantos críticos e escritores, a exemplo de José Castello, fazem questão de proclamar a irredutibilidade da criação, esquecendo-se de que a arte também é uma forma de conhecimento?

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Entre os argumentos em favor da análise critica está o de Pierre Bourdieu, para quem tamanha resistência à análise, tanto por parte dos criadores quanto daqueles que pretendem se identificar com eles em prol de uma leitura “criativa” e não racional, na verdade omite o desejo de ver seu gênio decifrado, e isso seria uma agressão ao narcisismo do criador. Escreve Bourdieu: O amor pela arte, como o amor, mesmo e sobretudo o mais louco, sente-se baseado em seu objeto. É para se convencer de ter razão (ou razões) para amar que recorre com tanta freqüência ao comentário, essa espécie de discurso apologético que o crente dirige a si próprio e que, se tem pelo menos o efeito de redobrar sua crença, pode também despertar e chamar os outros à crença. É por isso que a análise científica, quando é capaz de trazer à luz o que torna a obra de arte necessária, ou seja, a fórmula formadora, o princípio gerador, a razão de ser, fornece à experiência artística, e ao prazer que a acompanha, sua melhor justificação, seu mais rico alimento. (Bourdieu, 2010, p.15)

Destaco da passagem acima dois elementos: o comentário como prova de apego (afetivo) do crítico ao seu objeto e a capacidade da análise científica para “trazer à luz” a razão de ser da experiência artística. A filiação de Bourdieu à tradição kantiana é evidente, como o demonstra a metáfora do “trazer à luz” como traço da razão crítica. Nesse sentido, a análise das colunas de José Castello permite que o situemos no extremo oposto da tradição kantiana. Para Bourdieu, por exemplo, Castello seria um “defensor do incognoscível”, pois seu propósito não seria outro senão “erguer as muralhas inacessíveis da liberdade humana contra as usurpações da ciência (...)”. (Bourdieu, 2010, p.13). Leia-se, a esse respeito, sua posição sobre a teoria literária: Vista de longe, a teoria literária muitas vezes se assemelha a uma construção abstrata e enigmática que, em vez de aproximar-se, se afasta em velocidade de seu objeto. Isso em parte é verdade, e é justamente esse intervalo de suspeita que lhe assegura sua idoneidade e força críticas. Abstrações, conceitos, sistemas teóricos podem funcionar, contudo, como armaduras com que pensadores se defendem de poemas e ficções. (Castello, 30/4/2011, p.4)

A passagem é reveladora dos princípios que norteiam a atividade crítica de Castello, assim como sua posição em relação aos juízos críticos. Os sistemas teóricos são armaduras, mecanismos de defesa e a crítica somente adquire idoneidade se admitir que está situada num intervalo de suspeita. Há nessa passagem uma evidente relativização da força da atividade crítica no processo de interpretação de uma obra. Mais adiante, ele completa: “não só a crítica tem muito a dizer a respeito da ficção; a ficção também tem muito a dizer a respeito da crítica”. (Castello, 30/4/2011, p.4). Assim, crítica e arte situam-se no mesmo patamar; sua existência está sustentada por uma fragilidade de origem. Demarcado, portanto, o posicionamento de José Castello em relação à instância da crítica, cabe, por fim, delimitar seu lugar de fala: para ele, o crítico precisa ser um leitor comum, sem armaduras, sem anteparos. O leitor comum lê mais por prazer do que por conhecimento. Guia-o o instinto de criar para si mesmo alguma forma íntima de plenitude – o desejo de encontrar o objeto que lhe falta. (...) Como se pauta pelo prazer, e não pelo protocolo, o leitor comum lê mais desarmado, e por isso o texto algumas vezes lhe rasga a alma e o derruba. (Castello, 25/01/2011)

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O que se passa, afinal, na crítica de Castello? Nela não se encontram certezas ou respostas prontas, resultantes da aplicação de um método. O crítico não deseja ocupar o lugar do crítico, no sentido tradicional da palavra, ou seja, do especialista. É esta autoridade legitimada que ele recusa, buscando legitimar-se no campo a partir de novos parâmetros. Observa-se, assim, uma recusa das leituras feitas pelos especialistas, ou melhor, pela chamada crítica acadêmica. A interpretação fechada e o apego ao sentido do texto decorrente da aplicação teórica são recusados insistentemente pelo crítico em suas colunas. Este lugar de fala bem definido assinala a distância de José Castello em relação à critica acadêmica, situando sua coluna no âmbito da crítica de linhagem jornalística, pois interessa-lhe sobretudo a comunicação com o leitor, que é, por sua vez, a marca que caracteriza os mediadores. Ao mesmo tempo, o compromisso de Castello com esse leitor o mantém distante do jargão especializado, que, como afirma Edward Said (2007), costuma deixar de fora camadas consideráveis de público, e cujos riscos, no âmbito das humanidades e de uma cultura generalista são hoje evidentes.

REFERÊNCIAS Bourdieu, P. (2010) As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras. Castello, J. (2010, 16 de outubro) A literatura na poltrona. O Globo. Disponível em: http:// oglobo.globo.com/blogs/literatura/posts

Castello, J. (2011, 01 de janeiro) Hilda presa a seu fio. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J. (2011, 22 de janeiro) O poeta do nada. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J. (2011, 25 de janeiro) Um leitor comum. O Globo. Disponível em: http://oglobo. globo.com/blogs/literatura/posts

Castello, J. (2011, 05 de fevereiro) Literatura e ciência. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castelo, J. (2011, 12 de março) Agarrado a um poema. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J. (2011, 16 de abril) O espírito da letra. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J. (2011, 30 de abril) Evando existe. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J. (2011, 07 de maio) Ibn Sina, o teimoso. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J.(2012, 18 de fevereiro) Borges,o desmemoriado.O Globo/Prosa & Verso, p.4 Castello, J. (2012, 12 de maio) De onde viemos. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J. (2012, 19 de maio) Clarice sem avental. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J. (2012, 02 de junho) Rilke em Manhattan. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J. (2012, 14 de julho) Literatura e morte. O Globo/Prosa & Verso, p.4. Castello, J. (2012, 06 de outubro) A chave do sonho. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Castello, J. (2012, 17 de novembro) João de bermudas. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Castello, J. (2012, 08 de dezembro) Clarice indecifrável. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Castello, J. (2013, 12 de janeiro) O desmaio de Proust. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Castello, J. (2013, 06 de abril) Metafísica dos ossos. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Castello, J. (2013, 13 de abril) O mundo flutuante. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Castello, J. (2013, 20 de abril) A poesia na lacuna. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Castello, J. (2013, 04 de maio) Javier e Manoel. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Castello, J. (2013, 08 de junho) Autoria ou afasia. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Castello, J. (2013, 20 de julho) O tio e o poeta. O Globo/Prosa & Verso, p.7.

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Castello, J. (2013, 19 de outubro). Régis em Hong Kong. O Globo/Prosa & Verso, p.7. Perrone-Moisés, L. (1978) Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ed. Ática. Said, E. (2007) Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Companhia das Letras. Steiner, G. (2006) Tolstói ou Dostoiévski. Trad. Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva. Steiner, G. (2003) Gramáticas da criação. Trad. Sergio de Andrade. São Paulo: Ed. Globo.

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Os blogueiros e a cobertura opinativa de Veja nas eleições presidenciais de 2014 The bloggers and opinionated coverage of Veja on the Brazilian elections 2014 F e r n a n d a C ava s s a n a

de

C a r va l h o 1

Resumo: O artigo traz uma breve discussão teórica sobre o papel da cobertura jornalística no período eleitoral, bem como veículos tradicionais passaram a atuar também na internet, explorando ferramentas e características da comunicação online, para produzir e difundir seus conteúdos. Também apresenta a revista e o portal da Veja. Na análise empírica, discorre brevemente sobre alguns dados, descritivos, encontrados sobre a cobertura eleitoral do portal Veja no primeiro turno das eleições presidenciais de 2014, comparando, principalmente, o conteúdo veiculado pelos blogs do portal e os da redação. A partir dos dados, verifica-se que os blogs do veículo publicam mais sobre os principais candidatos que a redação jornalística da revista presente no portal, agregando assim o conteúdo opinativo veiculado nos blogs à cobertura eleitoral produzido pela revista durante a campanha.

Palavras-Chave: Mídia e Política. Cobertura Eleitoral. Eleições Brasileiras. Revista Veja.

Abstract: This paper presents a brief theoretical discussion of the function of press coverage in the election period, also as traditional media began to act on the Internet, exploring tools and features of online communication, to produce and disseminate their content. The paper also presents the Veja magazine and the website of it. The empirical analysis presents descriptive data on coverage of website Veja in the first round of presidential elections in 2014, comparing the content produced by bloggers and by the magazine’s journalists. Furthermore, this paper concludes the bloggers published more about the main candidates that the journalists in the portal, adding the opinionated content in the election coverage produced by Veja.

Keywords: Media and Politics. Election Coverage. Brazilian Elections 2014. Veja Magazine.

1.  Jornalista, especialista em Administração de Marketing e Propaganda, Mestranda no Programa de Pósgraduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista pela CAPES. fercavassana@ hotmail.com

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INTRODUÇÃO STE TRABALHO considera a importância da mídia e do jornalismo no período elei-

E

toral e discute as mudanças na cobertura de veículos tradicionais, que passaram a produzir conteúdo também para a internet. Como parte de uma pesquisa maior que analisa comparativamente a atuação, na internet, das revistas brasileiras durante as eleições de 2014, este artigo pretende apresentar a importância da atuação dos blogueiros da revista Veja, no período de campanha do primeiro turno. Defende-se aqui que a grande potencialidade da internet enquanto meio é a possibilidade dela ser considerada uma mídia e ter, assim, seu papel social analisado, na perspectiva das teorias sociais, ou ser vista enquanto aparato tecnológico, agregando diferentes mídias e veículos dentro de si. Neste caso, não se trata de perceber as diferenças a partir dos outros formatos como de áudio, textos e imagens, estáveis ou em movimento, mas sim de funções e efeitos a partir de como ela é empregada. E é esta perspectiva que adotamos nesta análise, que tem como objeto o portal da revista Veja. Portanto, não pretendemos entrar na discussão sobre que a internet contribui sob aspectos sociais e políticos, mas como ela é utilizada, enquanto instrumento, pela revista, um veículo de comunicação tradicional. A seguir, o trabalho traz uma breve discussão teórica sobre o papel da cobertura jornalística no período eleitoral, seguida de como veículos tradicionais passaram a atuar também na internet, explorando ferramentas e características da comunicação online. Em seguida, apresenta alguns dados e características da revista Veja e de seu portal na web, onde há a publicação de notícias e de posts opinativos produzidos pelos colunistas e blogueiros. Na análise, empírica, discorre brevemente sobre alguns dados, descritivos, encontrados sobre a cobertura eleitoral do portal Veja no primeiro turno das eleições presidenciais de 2014, comparando, principalmente, o conteúdo veiculado pelos blogs do portal e os da redação.

A COBERTURA ELEITORAL Já em 1920, Walter Lippman preocupava-se especialmente com as notícias veiculadas pela imprensa na formação da opinião pública. Para Lippman (1995), a democracia estava ameaçada pelos jornais e suas notícias, uma vez que elas exerciam um papel fundamental na formação da opinião pública, e não eram produzidas de maneira adequada. A preocupação de Lippman estava diretamente ligada à ideia de que os fatos sobre os quais as decisões públicas (como as decisões políticas e, portanto, também as eleitorais) eram tomadas, muitas vezes eram distorcidos. Assim, Lippman (1995) passa a chamar a nossa atenção para o fato de que a democracia só poderia ser exercida por cidadãos informados e que essa informação teria origem nos produtos dos meios de comunicação. Lippman (2008) defende que a opinião pública não responde ao ambiente em que a sociedade se insere, mas sim a um pseudoambiente construído por intermédio da imprensa. Sobre a opinião pública, a mídia atua, principalmente na sua formatação, contribuindo para com novas informações, retificando outras, despertando o interesse da população para determinados assuntos ou, inclusive, na manutenção daquilo que é consenso. É responsável também por, muitas vezes, naturalizar acontecimentos que deveriam ser

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questionados. Para que se haja uma análise do comportamento midiático na formatação da opinião pública, deve-se verificar o que é colocado em primeiro e segundo plano nos veículos, especialmente, durantes as eleições. Rubim (2001) destaca a visibilidade social da política no momento eleitoral, considerando que as eleições “adquirem um caráter eminentemente público e publicizado, porque pretendem a participação de um contingente significativo da população e porque se apresentam percebidas com atenção e interesse” (RUBIM, 2001, p.172). A influência do jornalismo na opinião pública ganha destaque nestes períodos, pois “é no momento do voto ou das tomadas de posição a respeito de temas públicos que a opinião dos cidadãos comuns se cristaliza, indicando tendências e resultados do debate público” (CERVI, 2010, p. 11). No século XXI, com o avanço tecnológico, não é possível mais ter um controle dos meios de comunicação na geração de conteúdo. Esse conteúdo é produzido fora do jornalismo e circula fora dos meios, circula diretamente no debate público. O debate também passa a se caracterizar como mais radical, principalmente porque os grupos se apresentam mais heterogêneos e as posições são mais polarizadas.

Veículos tradicionais na web A internet é considerada, hoje, o principal canal para o compartilhamento de informações, das mais diferentes temáticas e origens, e, por isso, um dos principais meios utilizados pela população para buscá-las. Embora muitas pessoas ainda não tenham acesso à rede mundial de computadores, o seu crescimento é estimado e seu consumo já supera outros meios de comunicação. No Brasil, por exemplo, a internet já é consumida por três vezes mais brasileiros do que os que ainda mantêm o hábito de ler revistas (BRASIL, 2014). De acordo com Aldé (2011, p.31), a ação de se informar pela internet possui um “caráter prático e conveniente”, pois há particulares que motivam a busca de informações online, como praticidade, tempo real, credibilidade, segmentação, detalhamento, pluralidade e interatividade. Essas características permitem afirmar que a internet possibilitou grandes mudanças na comunicação quando comparada às mídias de massa, como a televisão e o rádio. Porém, assim como o público está presente na web, seja consumindo ou produzindo conteúdo, os veículos tradicionais também estão. Os portais de notícia, que integram grandes grupos de comunicação do país em diferentes suportes midiáticos, aparecem ao lado das redes sociais como as páginas mais acessadas pelos brasileiros (BRASIL, 2014, p. 56). Ou seja, o internauta usa a internet para se informar, e, dentro dela, diversas plataformas como blogs, sites e redes sociais. Porém, não se deve comparar diretamente este fato com uma menor influência dos conteúdos jornalísticos, oriundos de grandes produtores de informação. Além do grande acesso aos portais noticiosos, há a difusão do conteúdo pelas diversas plataformas. Assim, o conteúdo jornalístico, muitas vezes produzido pela imprensa tradicional, rádio, tv ou impresso, recircula pela internet, muitas vezes modificado. Segundo Gonzáles (2000), no processo migratório do meio impresso ao virtual, houve uma evolução da imprensa na internet. Da divulgação da página do impresso, digitalizada e em arquivo fechado, passou-se à descoberta da hipertextualidade; e,

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depois, a um modelo mais independente, em que os conteúdos disponibilizados online complementam o que está no papel. O modelo mais atual, denominado multimídia, é aquele em que a linguagem online já é completamente diferenciada da impressa, com diferentes formatos, explorados ao máximo nas páginas dos veículos na rede (GONZÁLES, 2000). Ao produzir conteúdo específico para seu portal, a revista Veja modifica periodicidade, formato e tamanho de seus produtos. Na internet, disponibilizam matérias mais curtas, sem custo aos webleitores e em períodos de tempo para atualizações menores, além de explorar ferramentas próprias da web como vídeos, áudios, galeria de fotos e opções de interatividade. A interatividade permite ao usuário direcionar as informações e gerenciar como acessar o conteúdo de acordo com suas expectativas (CANAVILHAS, 2007). É justamente a proximidade e a participação do público que aparecem como uns dos diferenciais mais importantes da internet sobre o impresso. No caso do portal da Veja, há ferramentas que possibilitam o compartilhamento de seus conteúdos em diferentes redes sociais digitais, bem como o espaço destinado aos comentários do público em cada publicação. A presença de blogs dentro do portal de notícias é outra possibilidade permitida na web. Os veículos destinam páginas específicas para serem alimentadas por um único blogueiro e/ou colunista. Apesar dos blogs serem uma oportunidade para a produção de conteúdo alternativa à mídia tradicional, os blogs que possuem maior número de visitas e difusão de seu conteúdo são os de jornalistas, vinculados à imprensa. Ou seja, não há pluralidade. O conteúdo político eleitoral oriundo de páginas como blogs só ganham destaque quando estes já estão vinculados a grupos de comunicação tradicionais (GARAVELLO, 2009). Segundo Primo (2008), este tipo de blog vinculado a um veículo de imprensa pode ser considerado como do gênero “blog profissional reflexivo”, em que o administrador da página (blogueiro) se destina a opinar e fazer críticas a determinado tema. Primo (2008) descreve que os blogs profissionais são escritos por uma pessoa com especialização em determinada área, não importando se possui formação nela. Neste caso, “cada texto carrega um valor qualitativo prévio em virtude da atuação passada do especialista, ao mesmo tempo em que oferece repercussão no valor futuro dos próximos posts e na própria reputação do autor” (PRIMO, 2008). Os blogs profissionais reflexivo representam uma aproximação à prática de colunismo e articulismo de jornais e revistas (PRIMO, 2008). Entre as diferenças principais da produção de conteúdo para um blog para as editorias de notícias, mesmo nos portais, está a de “não limitação”. O blogueiro domina o espaço, o tamanho da publicação, bem como o direcionamento do seu texto sem se impor às rotinas produtivas do jornalismo, impostas à redação. São blogs jornalísticos por estarem dentro dos veículos tradicionais, mas os autores e o conteúdo se diferenciam das demais notícias oriundas da redação de jornalistas do veículo. Ainda assim, os blogs assumem algumas características jornalísticas especialmente contribuindo na escolha do público sobre o que comentar (QUADROS et al, 2005). Os blogs políticos acabam oferecendo materiais importantes para pesquisas contemporâneas na área de comunicação, especialmente pelos conteúdos veiculados. Alguns trabalhos já apontaram a diferença do conteúdo veiculado por não jornalistas a

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partir de blogs e, inclusive sua influência na cobertura eleitoral de portais jornalísticos (GARAVELLO, 2009). Nas eleições de 2006, por exemplo, o conteúdo eleitoral originado em blogs dominou o debate no período da disputa presidencial especialmente sobre os dois principais candidatos (MALINI, 2006). E há também os blogs políticos mais próximos da disputa que podem ser analisados a partir de suas coberturas em eleições locais, como foi feito em Curitiba na campanha de 2008 (CERVI e VIEIRA, 2009). A seguir veremos com mais detalhes o objeto de análise deste trabalho, o portal e os blogs de Veja.

SOBRE A REVISTA E O PORTAL VEJA Veja é a revista mais lida e vendida no Brasil, circulando com mais de um milhão de exemplares impressos semanalmente (ABRIL, 2014; BRASIL, 2014), à frente das concorrentes em todos os níveis de faixa etária, sexo e renda familiar (BRASIL, 2014, p.79). Uma publicação da Editora Abril, a revista está no mercado desde 1968. Segundo Scalzo (2013, p.31), Veja é o único título semanal de informação no mundo a liderar o segmento em seu país, já que em todos os outros as de informação não são as mais vendidas. O Grupo Abril é um dos maiores de comunicação da América Latina (ABRIL, 2014) e atua nas áreas de mídia, gráfica, educação, distribuição e logística. Só a Editora Abril é proprietária de mais de 80 sites e portais na internet. De acordo com o seu código de conduta, a empresa deve tratar todos os partidos políticos com imparcialidade, rejeitando a utilização de cargos, equipamentos, serviços e recursos do ambiente de trabalho para apoiar partidos ou candidatos políticos, relacionando-se com a esfera pública de forma clara (ABRIL, 2007). A Abril reconhece ainda a importância, a partir de sua responsabilidade perante a sociedade brasileira, da publicação e disseminação de informações corretas, isentas e produzidas em boa fé (GRUPO ABRIL, 2007). Porém, como o veículo agrega blogueiros/colunistas que publicam diariamente conteúdo opinativo em seu próprio portal, não é possível afirmar que esta isenção reflita totalmente sobre a revista. As informações institucionais apresentam o portal de Veja como um site que possui análise, contexto e opinião em suas publicações. Para a revista, o portal é ideal para o leitor que busca análises além da informação, pois conta com “reportagens especiais completas, além de uma equipe de colunistas e blogueiros, com nomes consagrados, que tratam de assuntos especializados” (ABRIL, 2014). Em números, o portal já totaliza 89,8 milhões de acessos, sendo 12,7 milhões de visitantes únicos. Veja também está nas redes sociais digitais, como o Facebook e o Twitter. A revista costuma realizar coberturas políticas contrárias ao partido do governo, tendo acirrado a postura crítica na última década, durante os governos petistas. É comum, por exemplo, a grande visibilidade dada pela revista a escândalos políticos que envolvam pessoas ligadas ao governo, tal como aconteceu com o chamado “Escândalo do Mensalão”, entre 2005 e 2006. Durante as eleições de 2014, deu ênfase à “Operação Lavajato”, escândalo envolvendo a denúncia de corrupção dentro da Petrobras. Veja chegou a antecipar em cinco dias a edição que trazia uma reportagem que afirmava que Dilma Rousseff e Lula estavam cientes de todo o episódio na estatal. A antecipação fez com a revista circulasse três dias antes da votação do segundo turno e a ação da revista foi considerada “terrorismo eleitoral” pela equipe de Dilma Rousseff (MUDAMAIS, 2014).

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Colunistas blogueiros de Veja Sobre o conteúdo político, presente no site da Veja e de interesse a este trabalho, ele é produzido, principalmente, em editorias jornalísticas da revista e em blogs da revista2. Os blogueiros/colunistas de Veja ganham destaque no portal pela liberdade que possuem na produção de seus posts, tanto em relação ao conteúdo, quanto na quantidade de material publicado. Os principais nomes3 dão preferências a análises políticas e, assim como a revista, atuam de maneira crítica ao governo. São figuras públicas, conhecidas nacionalmente pelo seu engajamento político ou por terem atuado como jornalistas nas redações anteriormente. São formadores de opinião. Uma característica encontrada nas publicações destes colunistas é a replicação de matérias dos próprios portais da revista, acrescidas de comentários e interpretações próprias. Assim, o conteúdo antes apenas informativo ou interpretativo do veículo passa a assumir características do texto opinativo, carregado de valores e julgamentos. Apesar de serem apresentados independentes da redação em si e dos demais jornalistas da Veja, eles são representantes do mesmo posicionamento ideológico e compartilham da mesma visão de mundo do veículo no qual mantém seus blogs. A seguir, serão apresentados alguns dados que demonstram a importância dos colunistas para o portal da revista Veja, especialmente no que se observou durante o período eleitoral.

ANÁLISE EMPÍRICA Como anteposto, este trabalho terá como recorte as publicações no portal da revista Veja, durante o primeiro turno4 das eleições de 2014, que citaram pelo menos um dos três principais candidatos à Presidência do Brasil5. A análise se manterá sobre a comparação das publicações oriundas da redação, nas editorias noticiosas do portal, com as oriundas dos posts nos blogs oficiais de Veja. A primeira parte da análise tem como foco a frequência de publicações por mês de acordo com a origem da matéria, identificando quanto produziram no período. Depois a análise aponta as diferenças quantitativas de postagens entre os blogs, para, depois, voltar a análise à visibilidade de candidatos nos títulos das publicações.

Cobertura do 1º turno no portal de Veja A tabela a seguir mostra o número de publicações coletadas e sua origem (de blogs ou das demais notícias do portal) a partir das buscas avançadas pelos nomes dos candidatos no mecanismo dentro do próprio site. Nela, é possível verificar que os blogueiros de Veja publicaram mais sobre a campanha eleitoral do que a redação da revista no portal, 2.  Neste trabalho, para fins de análise no próximo tópico, serão considerados blogueiros os autores identificados pela revista como colunista, conforme a figura 1. Alguns deles se definem como colunistas, outros como blogueiros. Porém, como eles, independentemente desta definição, são responsáveis individualmente pela página em que veiculam seus conteúdos opinativos, aqui, blogueiro e colunista terá o mesmo significado. 3.  Augusto Nunes, Lauro Jardim, Reinaldo Azevedo, Ricardo Setti e Rodrigo Constantino. 4.  Aqui, considera-se como período de primeiro turno as publicações de julho, agosto e setembro de 2014. 5.  Os dados foram obtidos a partir das buscas avançadas no próprio portal da Veja pelo nome dos três principais candidatos. No mês de agosto, utilizam-se os nomes de Campos e Marina nas buscas.

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no período. É perceptível, também, acompanhar como a cobertura eleitoral cresceu ao longo dos meses no primeiro turno. Em julho, há a maior diferença, como pode ser identificado pelos resíduos padronizados6 de (-3,8) para publicações de notícias e (3,2) para postagens em blogs. Isto quer dizer que houve uma concentração de publicação sobre a campanha nos blogs em julho, quando comparado aos outros meses e às notícias da redação do portal. Ainda que o número de notícias no portal sobre a campanha tende a crescer ao longo do tempo, em nenhum mês o número de postagens em blogs é superado pela produção da redação. Tabela 1. Frequência de publicações por origem e mês     Julho

Agosto

Setembro Total

    n % no mês Rp n % no mês Rp n % no mês Rp

Notícia/ Redação

Blog/ Colunista

Total

237 32,9% (-3,8) 564 45,2% (1,7) 607 44,1% (1,2) 1408 42,1%

484 67,1% (3,2) 685 54,8% (-1,4) 770 55,9% (-1,0) 1939 57,9%

721 100%   1249 100%   1377 100%   3347 100%

Fonte: A autora

Há de se considerar, na comparação a partir da leitura da Tabela 1, os limites da produção jornalística do veículo. Enquanto as notícias dependem das rotinas produtivas da redação, as publicações nos blogs são mais independentes, necessitando apenas da disponibilidade do autor responsável para que um post vá ao ar. Para essa leitura, é importante ressaltar alguns pontos, como as próprias características e os eventos da campanha. Em julho, mesmo com o início oficial da disputa, o Brasil ainda sediava a Copa do Mundo da FIFA, evento internacional importante que também dividia a agenda da mídia no período em que se aproximavam as eleições. Já em agosto, além do final da Copa e o início da veiculação das propagandas partidárias e gratuitas no rádio e na tv, houve o acidente que culminou com a morte de um dos três principais candidatos à Presidência do país. Seguido a isso, houve todo o processo de substituição da candidatura de Eduardo Campos a Marina Silva. Ainda com os episódios de agosto, a cobertura sobre a disputa presidencial foi maior em setembro, tanto para os blogs quanto para a redação, na reta final do primeiro turno7. 6.  A análise a partir dos resíduos padronizados possibilita identificarmos quais categorias se associam de modo mais forte. Assim, o cálculo permite identificar se há concentração em uma associação, ou se há menos que a frequência esperada. Ao considerarmos um intervalo de confiança desejável de 95%, os resíduos padronizados acima do limite crítico de ±1,96 demonstram quais pares de categorias das variáveis se associam de maneira mais forte (CERVI, 2014). 7.  Além da aproximação com o dia das eleições, houve cobertura e comentários nos blogs da atuação dos candidatos nos debates promovidos pelos canais de televisão brasileiros. Outra importante característica agregada a esta cobertura eleitoral a partir da instantaneidade promovida pela comunicação online.

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O gráfico abaixo, ilustrando a Tabela1, permite verificar como a frequência de publicações sobre a campanha cresceu ao longo dos meses do primeiro turno e como os blogueiros tiveram uma atuação maior que o noticiário produzido pela redação no período.

Gráfico 1. Frequência de publicações por mês e origem no portal Veja (Fonte: A autora)

Observando o total de publicações em cada mês e no total do primeiro turno, é possível verificar como a produção online de conteúdo pela revista é forte durante sua cobertura eleitoral, tendo em vista que, na versão impressa, o veículo tem periodicidade semanal e um padrão de número de reportagens e páginas, o que limita o conteúdo no impresso.

Gráfico 2. Frequência de publicações por blogueiro da Veja no período (Fonte: A autora)

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Já o Gráfico 2, demonstra como as postagens que citaram os candidatos se distribuíram entre os blogs de Veja. É interessante notar aqui que todos os principais blogueiros/ colunistas tiveram alta frequência de posts sobre a campanha durante o primeiro turno. Lauro Jardim é o que mais postou sobre os candidatos no primeiro turno.

Visibilidade dos candidatos Outra maneira de se olhar para a cobertura eleitoral de um veículo é verificar a visibilidade dada aos candidatos. Isto permite, entre outras análises, verificar se há equilíbrio na cobertura. Entre as possibilidades, para este trabalho, optou-se quantificar o número de vezes que os candidatos foram citados nos títulos das publicações, uma vez que o título da matéria carrega informação, convida o leitor a ler sobre aquele tema e ainda, especialmente com os compartilhamentos em redes sociais digitais, chamam a atenção do webleitor. Tabela 2. Citação de candidato no título por origem da publicação  

 

  Notícia/ Redação Blog/ Colunista

Candidato no Título

 

 

Não cita

Cita

Total

n

630

778

1408

Rp

-5,5

6,1

n

1230

709

1939

Rp

4,6

-5,2

 

1860

1487

3347

Total

Fonte: A autora

A Tabela 2 nos permite afirmar que a cobertura informativa, oriunda da redação, é mais personalizada, pelo menos no que se diz respeito ao título das publicações do portal de Veja. Apesar de publicarem mais, os blogueiros tendem a citar os candidatos mais no corpo do texto do que nos títulos de seus posts8. Na Tabela 2, é possível verificar a distribuição da visibilidade dada aos candidatos no título das publicações de blogueiros e de editoriais informativos no portal da Veja durante os meses de julho, agosto e setembro de 2014. Antes de realizar qualquer afirmação, é preciso ressaltar que o total de aparições de candidatos não representa o número total de títulos em que se mencionava candidatos, uma vez que o mesmo título poderia carregar o nome de mais de um ou até de todos os concorrentes. Tabela 3. Aparição de candidato no título por origem da publicação (1ºturno) Dilma Notícia/ Redação Blog/ Colunista Total

Aécio

Campos/Marina

Total 939

n

356

165

418

Rp

(-1,96)

(0,23)

(1,84)

n

402

146

315

Rp

(2,05)

(-0,24)

(-1,92)

758

311

733

863 1802

Fonte: A autora

8.  Ratificamos aqui que os dados foram obtidos na busca de publicações que citavam os principais candidatos

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Ao entrarmos na comparação de visibilidade entre os candidatos nos títulos, percebemos diferenças nos títulos das matérias publicadas. A frequência da aparição de cada nome nos títulos, representado pelo n na Tabela 3, permite verificarmos que Campos e Marina são mais citados em matérias noticiosas e que Dilma aparece mais nos títulos dos blogueiros de Veja. Porém, o resíduo padronizado nos mostra que há uma concentração significativa de títulos que citam Dilma nos blogs de Veja e uma baixa concentração significativa em títulos que citam Campos ou Marina, também nos blogs. Como trabalhamos aqui com dados iniciais, não é possível afirmar que está concentração de posts com visibilidade de Dilma é negativa ou positiva à candidata. Mesmo sabendo que os blogueiros/colunistas de Veja produzem conteúdo opinativo e tendem a seguir a cobertura da revista, crítica ao atual governo, a informação obtida, aqui, é apenas de caráter descritivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar dessa análise introdutória já demonstrar como a produção do conteúdo opinativo no portal de Veja, ao menos no primeiro turno da cobertura eleitoral de 2014, é maior que a do noticiário da redação; os dados apresentados neste artigo limitam-se a esta constatação descritiva inicial. Este estudo preliminar da pesquisa, apenas aponta como os blogs da revista Veja ganham importância no portal do veículo na internet, sendo responsáveis pela maior parte da cobertura do portal no primeiro turno das eleições. É claro que, em sua versão impressa, Veja ainda tem a possibilidade de carregar suas características do gênero de jornalismo de revista, mais aprofundado e interpretativo (SCALZO, 2013), porém é a sua cobertura online que permite olharmos a sua presença constante, enquanto veículo de comunicação, durante a campanha eleitoral. Especialmente, como os dados mostraram, a partir das publicações dos colunistas, já que seus blogs representaram cerca de 60% das publicações que citaram os principais candidatos no portal durante o primeiro turno. Outra questão que se pode levantar a partir daqui é até onde se assume o tipo de jornalismo praticado pela revista, enquanto veículo noticioso. Tendo em vista seus próprios códigos e manuais de conduta, será que ainda carrega um discurso do século XX, pregando a objetividade e a imparcialidade? Até onde revistas como a Veja conseguem limitar a seus blogueiros o texto opinativo? Será que se torna claro para seu público a sua maneira de realizar a cobertura eleitoral? A pesquisa maior, da qual fazem parte os dados aqui trabalhados, tem, entre seus objetivos parciais, a intenção de aprofundar a análise sobre o papel que esses blogueiros desenvolveram durante toda a cobertura das eleições presidenciais brasileiras de 2014, incluindo o segundo turno e voltando-se, também, para os temas e as valências em relação aos candidatos nas publicações. Somente a partir de então, após uma análise mais aprofundada e ampla, poderemos a chegar a conclusões sobre a cobertura da revista por meio do portal nas eleições de 2014.

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Os blogueiros e a cobertura opinativa de Veja nas eleições presidenciais de 2014 Fernanda Cavassana de Carvalho

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Análise do diário paraibano JÁ e o debate sobre gêneros jornalísticos na atualidade Analysis of the newspaper JÁ and the debate of journalistic genre in the presente A m a n d a C a r va l h o

de

Andrade1

Resumo: Os jornais voltados às classes populares são uma realidade em todo o País e, a cada ano, vão se consolidando na imprensa nacional e regional. Na Paraíba, apenas um jornal segue a linha desse tipo de noticiário, o JÁ. Esses diários estão mudando a concepção de sensacionalismo no sentido de jornalismo de má qualidade, exageros e até notícias mentirosas. O nosso trabalho busca, a partir da ótica dos gêneros jornalísticos, traçar o perfil do JÁ e avaliar se o jornalismo sensacionalista na Paraíba segue as técnicas básicas do jornalismo tradicional. Para isso, retomamos o debate sobre os gêneros jornalísticos a partir do levantamento bibliográfico de José Marques de Melo, Lia Seixas, Manuel Chaparro, Francisco de Assis, entre outros. Nosso trabalho identificou no periódico a organização de uma rotina de distribuição dos conteúdos baseada fundamentalmente no gênero informativo, de maneira limitada, privilegiando sobretudo o formato notícia

Palavras-Chave: Gêneros jornalísticos, sensacionalismo, construção da notícia, fait divers.

Abstract: The newspapers aimed to the popular classes are a reality across Brazil and, each year, will consolidating the national and regional press. In Paraíba, only one newspaper follows the line of such news, called JÁ. These newspapers are changing the design of sensationalism in order shoddy journalism, exaggerations and even untrue news. Our job search, from the perspective of journalistic genres, profiling the JÁ and assess whether the sensationalist journalism in Paraíba follows the basic techniques of traditional journalism. For this, we resumed the debate on journalistic genres from the literature of José Marques de Melo, Lia Seixas, Manuel Chaparro, Francisco de Assis, among others. Our work identified in the periodic organization of a content distribution of routine based primarily on the genre informative, in a limited way, especially favoring the news format.

Keywords: Journalistic genre, sensationalism, newsmaking, fait divers.

1.  Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

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Análise do diário paraibano JÁ e o debate sobre gêneros jornalísticos na atualidade Amanda Carvalho de Andrade

INTRODUÇÃO S GÊNEROS jornalísticos, importante campo de investigação da área, e que foi

O

retomado no país na última década, são uma forma de caracterizarmos conteúdos jornalísticos, notícias, reportagens, artigos de opinião, e tudo o que é veiculado pelo campo, legitimando o discurso. É uma forma de orientar o trabalho do jornalista e sua relação com o público, as audiências. Partimos de uma hipótese inicial de estudo, de que assim como acontece com os jornais de referência, os jornais considerados sensacionalistas – que priorizam a cobertura de fait divers – também constroem o seu noticiário baseado nas técnicas jornalísticas que envolvem as rodinhas de produção, assim como a organização dos conteúdos jornalísticos em formatos previstos pelos gêneros. Podemos observar que eles dividem as notícias em editorias e também seguem os princípios de seleção e construção da notícia, como a técnica da pirâmide invertida. Na Paraíba, um único diário segue a linha sensacionalista: trata-se do periódico diário JÁ, um produto do Sistema Correio da Paraíba, que tem também um jornal diário, Correio da Paraíba, além de uma rede de rádio e tevê. Foi no dia 11 de maio de 2009, uma segunda-feira, que o Sistema Correio de Comunicação botou nas ruas a primeira edição do jornal JÁ. Segundo a descrição do próprio Sistema Correio, na edição do mesmo dia do Jornal Correio da Paraíba (diário de referência do mesmo sistema), o JÁ tinha como principal diferencial o preço (na época custava apenas 25 centavos) e se tratava de uma inovação no mercado editorial paraibano por propor uma “maior acessibilidade, ao mesmo tempo em que apresenta um noticiário compacto, adequando às exigências contemporâneas de uma larga faixa de público que busca informações em linguagem rápida, direta, concisa, objetiva e com credibilidade” (JORNAL CORREIO DA PARAÍBA, 11 de maio de 2009). Colocam-se como objetivos desse trabalho, retomar o debate dos gêneros a partir dos principais autores que abordam o tema, como José Marques de Melo, Francisco de Assis, Lia Seixas, entre outros. Pretendemos ainda, pontuar o debate acerca da viabilidade de estudar o jornalismo sensacionalista na perspectiva dos estudos de gênero. A metodologia do trabalho é a Análise de Conteúdo, de cujas estratégias nos apropriaremos para traçar o perfil do jornal JÁ a partir da concepção dos gêneros jornalísticos no Brasil, que define o gênero tanto pela finalidade do discurso, quanto por sua estrutura linguística. Para isso escolhemos duas editorias: Cidades e Super Notas.

A ESTRATÉGIA SENSACIONALISTA Ao esboçar a história do Jornalismo, Nelson Traquina (2013) nos mostra que, desde a criação dos primeiros informativos feitos à mão, a narrativa sensacional esteve presente nos produtos midiáticos, o que nos mostra que o fenômeno não é recente. Histórias de crimes, mortes, nascimento de seres estranhos, aboboras gigantes brotando no campo, entre outras permeavam os primeiros jornais e continuam até hoje atraindo leitores. Ele ainda nos apresenta que o fazer jornalístico dos jornais sensacionalistas – também chamado de imprensa amarela (yellow press) – não é uma estratégia de mercado nova, mas sim um fenômeno do século XIX que continua válido até hoje. É uma estratégia atribuída aos empresários da comunicação Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst, que viram nas comunidades e nas camadas mais pobres da sociedade um novo público.

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A morte tem o maior valor-notícia dentro de qualquer sistema de jornalismo e esse critério de noticiabilidade existe desde os primórdios do jornalismo, apontou Traquina (2013). O autor cita o exemplo das “folhas volantes”, no século XVII, semanários que não tinham periodicidade, focavam num só tema e os assuntos mais abordados eram milagres, abominações, catástrofes e acontecimentos bizarros, mas sobretudo existia um fascínio pelos homicídios. Séculos mais tarde, outro tipo de jornal mudou completamente a forma de fazer jornalismo, em particular na definição do que é notícia: os penny press. Conforme explanou Traquina, no século XIX os jornais eram dominados pelo polo político e vistos apenas como uma arma política. Após a chegada dos penny press (nome dado por causa do baixo valor que o jornal era vendido) dá início a um novo jornalismo. O New York Sun dava ênfase às notícias locais, às histórias de interesse humano e apresentava reportagens sensacionalistas de fatos surpreendentes. Day (dono do jornal) contratou repórter para escrever artigos em estilo humorístico sobre os casos que surgiam diariamente na delegacia local da polícia (2013, p.65).

Dessa forma, esse tipo de jornalismo conseguiu redefinir a notícia de forma a “satisfazer os gostos, interesses e a capacidade de compreensão das camadas menos instruídas da sociedade” (TRAQUINA, 2013, p. 65). Mesmo acontecimentos políticos e econômicos eram ‘traduzidos’ de forma simples e acessível ao seu público-alvo. As páginas do New York Sun, conforme Traquina (2013), eram repletas de histórias de crimes, escândalos, tragédias e notícias que o homem comum achava interessantes ou divertidas. O resultado dessa nova abordagem foi o crescimento vertiginoso das tiragens, uma média de 30 mil exemplares por dia, quinze vezes mais que a tiragem nos meses de lançamento. Amaral (2006, p. 20) afirma que as palestras da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), em 1969, sistematizaram a história do sensacionalismo no Brasil. Na época, os palestrantes “já partiam do pressuposto de que todo o processo de comunicação é sensacionalista em si, pois mexe com sensações físicas e psíquicas e apela às emoções primitivas por meio de características místicas, sádicas e monstruosas”. Ela ainda cita que, na época, o jornalista Alberto Dines dividiu o sensacionalismo em três grupos: sensacionalismo gráfico (desproporção entre a importância do fato e a ênfase gráfica), sensacionalismo linguístico (uso de determinadas palavras, mais populares) e sensacionalismo temático (destaque às emoções e às sensações sem considerar a responsabilidade social da notícia).

OS GÊNEROS JORNALÍSTICOS: RESGATE BIBLIOGRÁFICO Nas sociedades industriais, “a luta pela existência no caso do jornal tem sido a luta pela circulação” (PARK, 2008, p. 33)2. Para vender mais jornais, os empresários buscaram estratégias que transformaram o modo de fazer jornalismo, muitas praticadas até hoje. Foi no século XVIII que aconteceu outra transformação que influenciou o jornalismo atual: a divisão do espaço do jornal em notícias (news) e comentários (comments), que vieram a ser os primeiros gêneros jornalísticos (informativo e opinativo). Dois séculos mais 2.  O artigo usado no nosso trabalho, A História Natural do Jornal, foi publicado originalmente no The American Journal of Sociology, 29(3), p.273-289, em 1924. Utilizamos a publicação no livro A Era Glacial do Jornalismo, de 2008.

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tarde, o jornalismo norte-americano instituiu o gênero interpretativo. A categorização do discurso jornalístico passou – e passa – por transformações e novos gêneros foram surgindo ao longo dos anos, como apontou Marques de Melo (2009). É o caso do gênero diversional (textos de entretenimento ou lazer) e utilitário (serviço). Os gêneros textuais são uma ferramenta para rotular os discursos para melhor compreensão do seu receptor. É também uma forma de facilitar a produção do discurso, pois o produtor seguirá uma espécie de receita já aceita pela sociedade. O mesmo acontece no discurso jornalístico, o qual também é caracterizado por gêneros. Porém, as categorias não são estáticas e vêm se transformando ao longo das décadas e são diferentes dependendo da cultura e da sociedade. Além disso, é consenso entre os teóricos que não existe um texto feito em apenas um gênero, mas sim um hibridismo entre mais de um. Entretanto, existe sempre um gênero predominante dentro do discurso, o qual o caracteriza. O estudo dos gêneros foi, por muitos séculos, feito no âmbito da literatura. No Jornalismo, a abordagem do discurso jornalístico em gênero começou na metade do século XX, com o francês Jacques Kayser, conforme apontou Marques de Melo (2012). Segundo o autor, há um consenso de que o professor da Universidade de Paris foi o pioneiro no tratamento dos gêneros jornalísticos pelo ponto de vista acadêmico. Apesar de Kayser ter sido o primeiro a reconhecer os gêneros dentro do jornalismo, os jornais já vinham praticando uma divisão do discurso jornalístico. No Brasil, o precursor dos estudos dos gêneros no Jornalismo foi o professor Luiz Beltrão, cujo “conjunto da obra dá suporte a outros estudos que foram determinantes para a classificação dos gêneros jornalísticos vigentes até os dias atuais” (GURGEL, 2012, p. 67). Para Charaudeau (2009, p.206), que faz uma análise do discurso das mídias para definir gênero, propõe que o gênero de informação midiática é definido segundo o resultado do “cruzamento entre um tipo de instância enunciativa, um tipo de modo discursivo, um tipo de conteúdo e um tipo de dispositivo”3. Os gêneros jornalísticos são uma expressão da finalidade do discurso jornalístico, ou seja, são determinados pela intencionalidade daquele discurso. Para Lia Seixas (2009), esse critério de caracterização dos gêneros está ultrapassado e propõe a lógica enunciativa como um critério mais produtivo, que segundo ela incide no problema-chave do jornalismo, a relação operada entre discurso e realidade. Ela propôs quatro principais critérios de definição de gênero para a formação discursiva jornalística (FDJ): lógica enunciativa, força argumentativa, identidade discursiva e potencialidades do mídium4. 3.  O primeiro seria a origem do produtor do discurso e seu grau de implicação: pode ser originado de dentro da mídia (o próprio jornalista) ou fora dela (um especialista, uma personalidade convidada, etc). O modo discursivo transformaria o acontecimento midiático em notícia dando as propriedades de acordo com o tratamento geral que é dado à informação. Conforme o autor, isso permitiria distinguir os tipos de acontecimentos usados pela mídia: o acontecimento relatado (a reportagem), o acontecimento comentado (o editorial) e o acontecimento provocado (o debate). O tipo de conteúdo seria o macrodomínio abordado pela notícia, ou seja, as seções e as rubricas. Já o tipo de dispositivo traz as especificações para o texto e diferencia os gêneros de acordo com o suporte midiático (Charaudeau 2009, p.206). 4.  Lia Seixas (2013, p. 30) explica que a lógica enunciativa se dá na a relação entre os objetos de realidade (os eventos do cotidiano), os compromissos e os tópicos jornalísticos (o saber social sobre objetos, ideias, opiniões, etc.). A força argumentativa se dá na relação entre “o grau de verossimilhança dos enunciados e o nível de evidência dos objetos de realidade, medido pelos tópicos jornalísticos”. E a identidade discursiva está na relação entre competências e as dimensões do enunciador do ato da troca comunicativa.

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Chaparro também propôs uma outra classificação dos gêneros jornalísticos, porém ele também parte da finalidade do discurso. A sua proposta dividiu o discurso jornalístico em Comentário e Relato. No gênero Comentário, ele dividiu em duas espécies: argumentativos, cujos exemplos são a crônica, artigo, cartas e coluna; e gráfico-artísticos, que são as caricaturas e charges. No gênero Relato, ele propôs as espécies narrativas, que são a reportagem, notícia, entrevista e coluna; e as espécies práticas, que são o roteiro, indicadores, agendamentos, previsão do tempo, orientações úteis e cartas-consulta.

OS GÊNEROS JORNALÍSTICOS NO BRASIL A classificação dos gêneros jornalísticos não é estática e está sempre em transformação. No Brasil, os primeiros estudos sobre o tema apontavam para três classificações: informativo, opinativo e interpretativo. Na década de 1990, duas novas classificações foram introduzidas: o jornalismo diversional e o jornalismo utilitário. Optamos por nos debruçar apenas nos gêneros informativo, opinativo e utilitário (de serviço), gêneros encontrados no jornal JÁ, como veremos mais adiante. O gênero informativo foi um dos primeiros a ser identificado nos estudos sobre o tema e traz em si o principal – e maior objetivo – do jornalismo: informar, de forma clara, os principais acontecimentos de uma sociedade, trazer à luz o que estava obscuro. No Brasil são considerados formatos do gênero informativo a nota, notícia, reportagem e entrevista. Alguns autores também consideram os títulos e as chamadas como formatos do gênero informativo, como Rodrigues, Medina, Chaparro e Charaudeau. Segundo eles, os títulos são discursos independentes que têm como objetivo atrair a atenção do receptor para o acontecimento, da mesma forma acontece com as chamadas, cujo resumo da informação leva à leitura do resto do conteúdo. Na notícia, a técnica da pirâmide invertida é usada para legitimar a crença de objetividade, na qual determina ao repórter responder seis questões já no lead: O quê? Quem? Quando? Onde? Como? Por que?. A nota é o relato resumido de um acontecimento, sem necessariamente seguir as regras da pirâmide invertida, técnicas obrigatórias para a construção da notícia, como veremos a seguir. No gênero opinativo, como o próprio nome já diz, é onde o jornalista – ou alguém de fora da instancia midiática – tem a liberdade de expor sua opinião. No espaço midiático, a opinião e a informação são divididas e apresentadas ao público como tal, para não confundir o público. Atualmente, no gênero opinativo estão os formatos Editorial, Comentário, Artigo, Resenha, Coluna, Crônica, Caricatura e Carta. O gênero utilitário, que divulga informações de serviços essenciais, com textos curtos e objetivos, tem os formatos indicador, cotação, roteiro e serviço. Para Vaz (2013, p.138), esse gênero não é complementar, como definiu Marques de Melo, mas sim um gênero independente, que não cabe nas classificações informativas e opinativas. “Este jornalismo possui características próprias que o coloca como um gênero a parte”. Porém, ela afirma que é difícil identificar notícias desse gênero, pois, por muitas vezes, são confundidas com notícias do gênero informativo ou apenas complementos delas. Há também um debate sobre a inserção do sensacionalismo como gênero jornalístico. Rausch (2011) defende que o sensacionalismo pode ser considerado um gênero jornalístico, pois há características próprias que definem o discurso como sensacionalista ou não. Ele

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afirma que existem níveis de sensacionalização e que mesmo um diário considerado de referência pode apresentar um discurso sensacionalista5. Para o nosso trabalho, não vamos considerar o sensacionalismo como gênero jornalístico, mas uma estratégia de construção da notícia. Acreditamos que, como apresentado por Rausch, existem níveis de sensacionalização do acontecimento e essa estratégia não está delimitada apenas aos jornais focados na população popular, mas pode ser encontrada em jornais de referência. Porém, não vamos nos aprofundar nessa questão, por ultrapassar os limites da nossa pesquisa.

OS GÊNEROS NO JÁ Para este trabalho, usamos a análise que estamos desenvolvendo para dissertação de mestrado em Jornalismo na UFPB, cujo foco são as notícias publicadas nas editorias Super Notas e Cidades no jornal JÁ, diário sensacionalista paraibano. Porém, pegamos uma amostragem menor que as 128 notícias analisadas para esse trabalho. No nosso artigo, selecionamos cinco notícias, escolhidas aleatoriamente. A partir da Análise de Conteúdo, analisamos as notícias sob a ótica dos gêneros jornalísticos. Na primeira análise buscamos identificar os critérios apontados por Lia Seixas (2009) para a categorização do discurso em gênero. Ela parte da lógica enunciativa como critério de classificação. Conforme Seixas, para que os textos da formação discursiva jornalística possam ser considerados gêneros, seria necessário a combinação regular de quatro elementos: 1) lógica enunciativa, que se dá na relação entre objetos de realidade, compromissos realizados e tópicos jornalísticos; 2) força argumentativa, que se dá na relação entre o grau de verossimilhança dos enunciados e o nível de evidência dos objetos de realidade (OR), medido pelos tópicos jornalísticos; 3) identidade discursiva, que se dá na relação entre status (competências) e as dimensões de sujeito comunicante, locutor e enunciador do ato da troca comunicativa, e 4) potencialidades do medium (algumas apenas influentes). (SEIXAS, 2012, p. 27 e 28).

Num primeiro momento, identificamos que todas as notícias analisadas são assertivas, “cujo compromisso é firmado com a adequação do enunciado à realidade” (SEIXAS, p.188, 2009). A autora listou os principais objetos de realidade mais frequentes na atividade jornalística6 e nós analisamos os objetos encontrados no discurso do JÁ a partir dessa lista. Na nossa análise, a grande maioria dos objetos de realidade é de objetos de acordo, que é verificável pela simples observação, de fácil comprovação. Em todas as edições analisadas, encontramos apenas um objeto de desacordo na coluna do padre Marcelo Rossi, que tratava do sentimento de injustiça. 5.  Para definir o sensacionalismo como gênero, Rausch criou um quadro codificador, com 19 verbetes baseado em termos usados por oito autores que se dedicaram a problematizar a temática do sensacionalismo na imprensa. Os verbetes foram ordenados em quatro categorias: a) estrutura (distorção; imprecisão; pejorativo); b) características (sensacional; sensacionalismo; sensacionalista); c) temática (crime; escândalo; morte; tabu); d) elementos (calúnia; emoção; estereótipo; exagero; preconceito; ridículo; sádico; sensação; exagero). Dessa forma, é possível caracterizar a presença do gênero jornalismo sensacionalista na notícia. 6.  Seixas (2009) identificou 12 objetos de realidade na atividade jornalística. A lista completa está na tese Redefinindo os gêneros jornalísticos: proposta de novos critérios de classificação (p.186), que pode ser acessado pelo site: http://www.livroslabcom.ubi.pt/pdfs/20110818-seixas_classificacao_2009.pdf

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Na nossa amostragem, todas as composições discursivas tinham objeto de realidade os objetos de acordo de fato dado, que são passíveis de constatação por simples observação intersubjetiva ou provados por documentos ou registros, sendo que três delas também tinham objetos de acordo de declaração das fontes (autoridades, testemunhas, especialistas, etc). Três notícias ainda teve um objeto de acordo de estado psicológico das pessoas. Tabela 1. Análise das notícias a partir dos objetos de realidade Título

Objeto de realidade

Assassinato, dor e mistério no Cristo. Thalita, 16: execução abala comunidade.

Fato Dado: Thalita Emanuelly Gomes Lins foi encontrada morta na manhã de ontem. O corpo crivado de balas estava jogado no meio da rua Pastor Afonso, no Cristo Redentor. Ela tinha apenas 16 anos e morava no mesmo bairro, na rua Antônio Teotônio. O crime está envolto em mistério. A polícia não tem pistas que possam levar a quem matou a garota. Estado das coisas/psicológico das pessoas: Execução brutal em João Pessoa. Os pais de Thalita, Ronaldo Rodrigues de Lima e Maria do Carmo Gomes de Lins estão desesperados.

Rejeitado, rapaz atropela e mata adolescente amada. Paixão assassina em Mangabeira.

Fato Dado: No final da tarde do Dias das Mães, o bairro de Mangabeira, em João Pessoa, viveu o momento dramáticos: a estudante Rossiane de Barros Oliveira, 15, foi atropelada e morta. Declaração das fontes: O acusado é Tiago da Silva Bezerra, 25, conhecido como Belo que – segundo moradores do local, a irmã da vítima e uma amiga que acompanhavam – seguiu as jovens e avançou com uma moto contra Rossiane. O pai da garota, Leonis Jamil de Oliveira, revelou que Tiago teria insistido para namorar Rossiane e a matou por ciúmes. “Minha filha ficou noiva na semana passada e ele não aceitou”. Amigas de escola, familiares e a vizinhança também disseram que o acusado seguia Rossiane e que queria namorar com ela. “Até na escola ele não deixava a menina em paz (...).” A amiga, que se identificou como Gabriela, ficou com o antebraço e as pernas machucadas: “Ele veio direto em cima de Rossiane (...)”. Já a irmã explicou que ninguém tinha amizade com o ‘Belo’. “Eu garanto que minha irmã não tinha nada com ele, a gente nem era amigo”. Estado das coisas/psicológicos das pessoas: O bairro de Mangabeira (...) viveu o momento dramático.

Bom pra taxista. IPI é prorrogado até 2014; Quem pode requerer.

Fato Dado: Uma boa notícia para os taxistas e também para os que usam os táxis, não só na Paraíba, mas em todo o Brasil. O Senado prorrogou a isenção, que terminaria em dezembro deste ano, do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) para a compra de veículos novos por taxistas até o ano de 2014. Declaração das fontes: “Esta é uma conquista muito importante tanto para os taxistas quanto para os portadores de deficiência física, que poderão trabalhar e se locomover com muito mais facilidade (...)”, comemora o senador Gim Argello, que tomou a iniciativa de prorrogar a isenção.

1.137 chances de Fato Dado: O Sine-JP está oferecendo 1.137 vagas de trabalho. Dessas, 800 são para a unidade emprego, tem vaga da Sadia, no município de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, e outras 300 são para um hiperaberta na Sadia e mercado de atacado e varejo que está se instalando em João Pessoa. em hipermercado. Situação das praças preocupa população da Capital, moradores de alguns bairros estão revoltados com abandono.

Fato Dado: O local está tomado pelo mato e há anos não recebe uma reforma. À noite, serve como ponto de droga e esconderijo de assaltantes. Já houve até arrastão no local. Declaração das fontes: Conforme os moradores mais antigos, o abandono é tão grande que o equipamento não tem nem nome. De acordo com Nivaldo Batista, que mora em frente à praça do José Américo, falta ação da Prefeitura da Capital. “A praça é sinônimo de descaso total (...)”, declarou. Para Erivaldo Araújo dos Santos, também morador do José Américo, a polícia faz rondas frequentes, mas o policiamento não é suficiente para garantir o sossego de quem vive nas imediações da praça. “Antes, as pessoas se reuniam aqui, jogavam futebol e dançavam quadrilha. (...)”, lamentou. Os moradores afirmaram que uma criança levou um corte em um dos bancos quebrados e precisou levar pontos. No Ernesto Geisel, a praça Pascoal Carreiro, mais conhecida como Praça dos Radialistas, também está entregue ao abandono. “Os brinquedos estão quebrados e a praça só é limpa porque os moradores não deixam. (...)”, denunciou o pintor Carlos Pereira Miranda. De acordo com a Secretaria de Planejamento de João Pessoa, há projetos em desenvolvimento para as praças Jardim São Paulo, Miguel Adelino dos Santos, Alto do Céu e ainda a praça do bairro Mangabeira VII. (...) Estado das coisas/Pessoas: Os moradores do bairro José Américo, em João Pessoa, estão revoltados com a situação da praça localizada na Rua Antônio Ximenes

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A primeira notícia trouxe um relato sucinto do crime de homicídio contra a adolescente. Não encontramos declarações das fontes, mas citações como “os pais de Thalita (...) admitem uma possibilidade: a filha pode ter sido executada por traficantes de drogas” e “o delegado Francisco Deusdeth Filho iniciou a investigação, mas esbarrou na lei do silêncio”. Nesse caso, o enunciador não apresentou essas informações como declaração dessas fontes, mas sim como resultado de sua apuração. Na notícia seguinte, o jornal deu espaço para a declaração de várias testemunhas e ainda de uma autoridade, no caso a polícia. Essa quantidade reforça a crença subjetiva de que, se várias pessoas estão afirmando a mesma coisa, então foi dessa forma que o fato aconteceu. Na terceira matéria, também temos dois objetos de acordo, que reforçam que o acontecimento realmente existiu e pode ser comprovado. Na quarta matéria, temos apenas o objeto de acordo de fato dado: a notícia traz a informação de vagas de emprego na Paraíba, com um quadro com o número e as vagas, descrevendo apenas as principais chances de emprego que foram oferecidas. Pudemos observar que, quanto mais a notícia era elaborada, mais objetos de acordo ela tinha. É o caso da matéria “Situação das praças preocupa população da Capital. Moradores de alguns bairros estão revoltados com abandono”, que apresenta o objeto de acordo de fato dado e declaração de várias fontes, com falas de três moradores entre aspas relatando o abandono das praças próximas às suas casas, corroborando com a afirmativa do objeto de fato dado, e uma declaração de fonte oficial, no caso a Prefeitura de João Pessoa e até objeto de estado psicológico das pessoas. Quanto aos tópicos jornalísticos7, das notícias analisadas, quatro estão no tópico do factual (crença intersubjetiva de que a atividade jornalística trata apenas de fatos e dados passíveis de constatação ou de verificação) e uma no tópico de quantidade (crença intersubjetiva de que quanto mais declarações têm uma composição, quanto mais pessoas forem ouvidas, mais exato é o conhecimento da realidade). Como podemos ver, a maioria das notícias do JÁ está categorizada no tópico do factual, ou seja, que elas são fatos e dados passíveis de constatação ou de verificação. Isso nos revela que a construção da notícia nesse diário busca a verossimilhança da realidade. Em relação à identidade discursiva, nenhuma notícia do JÁ é assinada, ou seja, o enunciador está ausente. Dessa forma, a responsável por aquelas informações é a instituição jornalística, no caso o próprio diário: o sujeito comunicante de todas as composições analisadas é o editor do jornal (organização jornalística) e, tanto o locutor como enunciador, é apenas a instituição jornalística. Essas características descrevem o formato notícia, apontadas por Seixas (2009). A partir dos critérios apontados por Seixas para classificação dos gêneros, podemos definir o discurso do JÁ como sendo um gênero discursivo jornalístico, que, obrigatoriamente, “tem como enunciador, no ato da troca comunicativa, a instituição jornalística; a competência de procedimento é de sujeito comunicante da organização jornalística” e, frequentemente, “satisfaz a uma ou mais finalidades institucionais; apresenta uma lógica 7.  Os tópicos jornalísticos apontados por Seixas (2009, p.30) são: tópico do factual; tópico de autoridade; tópico da quantidade e tópico da presença.

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enunciativa formada majoritariamente pelo compromisso de adequação do enunciado à realidade, como objetos de acordo e/ou argumentos de acordo operados interpretados segundo tópicos jornalísticos” (SEIXAS, 2009, p.332). Sob o critério da finalidade do discurso jornalístico, podemos afirmar que no JÁ o gênero predominante é o informativo. Do total de notícias analisadas, três são desse gênero e duas são do gênero utilitário (“Bom para taxistas” e “1.137 chances de emprego”). Dos outros gêneros não foram encontrados nenhum exemplo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O JÁ é um jornal voltado às classes populares, cujo noticiário é formado basicamente de fait divers e notícias de serviço, com informações ligeiras e de fácil absorção pelos seus leitores. Sob a ótica dos gêneros jornalísticos, o diário é focado apenas em informar o cidadão dos acontecimentos do cotidiano, sem apresentar nenhuma interpretação (reportagem, no caso do gênero informativo); nem opinião de colunistas, articulistas, entre outros, sobre esses acontecimentos (a coluna do padre Marcelo Rossi trouxe uma visão religiosa de um dos principais temas agendados pelo JÁ: a violência urbana e o sentimento de injustiça). Nos limites desse artigo, algumas questões podem ser apresentadas como pistas para pesquisas futuras. Compreendemos que o jornalismo sensacionalista tem sido um produto apresentado pelos grandes sistemas de mídias comerciais, no sentido de assegurarem receitas financeiras para a manutenção dos sistemas. A preocupação, pois, parece não ser a de informar ao seu público, mas, antes, a de empacotar os fatos, em formatos que apresentam informação ligeira, de fácil fruição. No dizer de Ciro Marcondes Filho, vemos nesse tipo de diário, um processo claro de “mercadorização da notícia”. Por outro lado, uma pesquisa futura poderia averiguar as rotinas de produção desse tipo de diário. Em que medida o trabalho dos jornalistas que trabalham no sistema maior, é apropriado e adequado às rotinas de popularização e sensacionalização? Nossa pesquisa realizada no Programa de Pós-graduação em Jornalismo da UFPB demonstra que prolifera no JÁ uma variedade de estratégias que parecem confirmar essa questão: aproveitamento de noticiário que muitas vezes não tem relação com a comunidade para a qual o JÁ se dirige; empacotamento de matérias publicadas no Jornal Correio da Paraíba, dando-lhes uma feição popularesca ou sensacionalista; organização de uma rotina de distribuição dos conteúdos baseada fundamentalmente no gênero informativo, de maneira limitada, privilegiando sobretudo o formato notícia. Nosso artigo buscou uma aproximação inicial com esse fenômeno, o qual pode ser estudado não somente à luz das análises de conteúdo, mas propicia abordagens que possam buscar uma interpretação dos seus discursos, recuperando a importante discussão acerca dos fait-divers, tão relevante em pesquisas que articulam o jornalismo e os estudos da linguagem.

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A reportagem-poema em Guilherme de Almeida: um estudo da série “Cosmópolis” The reportage-poem in Guilherme de Almeida: a study of the series “Cosmópolis” Michelle Moreira Braz1 M arcelo Bulhões2

Resumo: Realizar um estudo analítico-interpretativo da série “Cosmópolis”, do poeta Guilherme de Almeida, publicada no jornal O Estado de S. Paulo durante o período de março a maio de 1929, é o propósito deste artigo. Atento ao crescente fluxo imigratório e urbanização, Guilherme de Almeida nos convida a um olhar narrativo-poético sobre oito “bairros estrangeiros” da capital paulista. Tal corpus nos instiga a questionar sobre o hibridismo localizado tanto na transgressão dos limites entre prosa e poesia quanto na ruptura de fronteiras entre jornalismo e literatura. Assim, para o estudo da série “Cosmópolis” recorremos às teorias do jornalismo focadas na questão dos gêneros jornalísticos, bem como aos trabalhos de crítica literária e análise poética. Procuramos evidenciar que o que denominamos como “reportagem-poema” se caracteriza no corpus por uma sincronia entre o registro topográfico, chancelada pela figura do repórter, e a construção imagética do espaço, marcadamente em descrições com vislumbres poéticos.

Palavras-Chave: Guilherme de Almeida. Gêneros jornalísticos. Literatura. Imigração.

Abstract: Conduct an analytical-interpretative study of the series “Cosmópolis”, the poet Guilherme de Almeida, published in the newspaper O Estado de S. Paulo during the period march-may 1929, is the purpose of this article. Aware of the growing immigration flows and urbanization, Guilherme de Almeida invites us to a narrative-poetic look at eight “foreign quarters” of the state capital. This corpus encourages us to question about the hybridity located both in transgression of the boundaries between prose and poetry as in breaking boundaries between journalism and literature. Thus, for the study of the series “Cosmópolis” we use the journalism theories focused on the issue of journalistic genres, the literary criticism and poetic analysis. Seeks to show that what we call as “reportage-poem” is characterized in the corpus by a synchrony between

1.  Mestre em Comunicação Midiática pela UNESP e Bacharel em Jornalismo pela mesma instituição. E-mail: [email protected] 2.  Livre-docente pela UNESP, doutor em Literatura Brasileira e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada ambos os títulos pela USP. Professor do Curso de Comunicação Social da UNESP, como também compõe o programa de Pós-graduação em Comunicação da mesma instituição. E-mail: bulhões@faac. unesp.br

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A reportagem-poema em Guilherme de Almeida: um estudo da série “Cosmópolis” Michelle Moreira Braz • Marcelo Bulhões

the topographical record, sealed by the reporter, and the construction of space imagery, markedly in descriptions with poetic glimpses.

Keywords: Guilherme de Almeida. Journalistic genres. Literature. Immigration.

A SÉRIE “COSMÓPOLIS” NTRE MARÇO a maio de 1929, o escritor Guilherme de Almeida (1890-1969) publica

E

no jornal O Estado de S. Paulo a série de textos “Cosmópolis”. Após trinta e dois anos, a coluna foi publicada numa primeira edição em livro pela editora Nacional (1962). E, em virtude dos 450 anos da cidade de São Paulo, “Cosmópolis” obteve um resgate editorial em 2004. Atento ao crescente fluxo imigratório e urbanização, Almeida nos convida a um olhar narrativo-poético sobre oito “bairros estrangeiros” da capital paulista. Na série “Cosmópolis”, tais bairros correspondem, respectivamente, às seguintes etnias: húngaros - “Rapsódia Húngara”; japoneses - “Bazar das Bonecas”; alemães - “Chope Duplo”; judeus - “O Gueto”; bálticos - “A Confusão Báltica”; espanhóis - “Um carvão de Goya”; os portugueses -“Os simples” e o que se convencionou chamar de “turcos”- “O Oriente mais que próximo”. Se comparado a outros poetas e escritores do início do século XX, como os conhecidos (e consagrados) Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, as pesquisas sobre a produção literária e jornalística de Guilherme de Almeida, no campo das Letras, são raras; já no domínio da Comunicação, inexistentes. Ainda que membro da Semana de 22, o poeta Guilherme de Almeida divide opiniões entre a crítica: Foi parnasiano, penumbrista ou modernista? As habilidades técnicas na orquestração do verso fizeram de Almeida um poeta reconhecido por seu virtuosismo, como também por suas oscilações dentro do campo literário. Verifica-se, só para citarmos mais um exemplo, um círculo plural de amigos quase que antagônicos do poeta: desde Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia até Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. A notoriedade de Guilherme de Almeida reside de maneira mais evidente, e sem desconfianças, no campo da tradução. O escritor foi responsável pela inserção de importantes figuras culturais no cenário brasileiro. Realizou várias traduções dos poetas franceses Baudelaire, Verlaine, Valéry; em peças teatrais como Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre, e A importância de ser prudente, de Oscar Wilde; e se dedicou também à divulgação de haikais japoneses. Por sinal, o governo do Estado de São Paulo mantêm até os dias atuais o antigo sobrado do poeta - Museu e Casa Guilherme de Almeida -, como centro de estudos de tradução. Já em relação à sua produção jornalística, deparamo-nos com lacunas reveladoras de um baixo empenho de pesquisas. Consultando História da Imprensa no Brasil (SODRÉ, 1999, p. 340-389), sabemos que o poeta foi colaborador no jornal O pirralho, fundado pelo amigo Oswald de Andrade, em 1911. No auge do Modernismo, Almeida foi editor da revista Klaxon. Graças às suas habilidades em desenho, o poeta arquitetou todo o projeto estético (diagramação) dessa insígnia do modernismo brasileiro.

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A convite de Júlio de Mesquita ingressa, em 1926, no jornal O Estado de S. Paulo. Nesse veículo, inicia uma série de textos sobre cinema, com o pseudônimo de G., numa coluna intitulada “Cinematógrafos”, o que mais tarde culminou na publicação de seu livro Gente de Cinema. No mesmo jornal, em 1929, assina as colunas “A sociedade” - que destacava os eventos da elite paulistana e a coluna “Cosmópolis” sobre os bairros estrangeiros. Paralelamente, a partir de 1927, publica a coluna “Pela Cidade” no jornal Diário Nacional. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, Almeida alista-se como soldado raso no Batalhão da Liga de Defesa Paulista, sendo combatente na cidade de Cunha. Pouco tempo depois, é convocado para retornar à capital a fim de comandar (como redator-chefe) as 14 edições do Jornal das Trincheiras, distribuído entre 14 de agosto a 25 de setembro de 1932. Nesse episódio, verifica-se uma característica marcante de toda a vida literária e jornalística do escritor: o intenso teor de exaltação a São Paulo. Guilherme de Almeida vivenciou as transformações da imprensa brasileira do início do século XX, em que a trajetória de pequenos jornais de caráter doutrinário, muitas vezes empreendimentos individuais e aventureiros, vai cedendo, aos poucos, lugar ao advento das grandes empresas jornalísticas. Em paralelo, a imprensa projeta uma nova fisionomia aos gêneros que hoje podem ser considerados essencialmente jornalísticos, tais como a reportagem, a notícia e a entrevista. Contudo, e no início do século XX, isso não significou uma rigidez de limites textuais. Pelo contrário, a hibridização era frequente pelas colunas de vários jornalistas-escritores, tais como João do Rio, Sylvio Floreal e Benjamin Costallat. Do mesmo modo, identificamos um intercâmbio textual na série de textos publicadas n’O Estado de S. Paulo. Dessa maneira, procuraremos demonstrar como alguns procedimentos afins com o ofício poético, sobretudo os característicos da produção poética de Almeida, estão presentes em suas reportagens, de 1929. Ao mesmo tempo, a série se apresenta claramente por um repórter-flâneur, o que nos instigou a questionar o ato de reportar dessa coluna.

AFINIDADES POÉTICAS Na produção poética de Guilherme de Almeida circulam os mais variados assuntos. O banal, o prosaico, o mundano citadino convivem com o “elevado”. Tal marca, aliás, insere-se na postura modernista de incluir o cotidiano efêmero como matéria literária. Tudo pode virar poesia? Tal dúvida procurou ser uma assertiva para os modernistas. No caso de Almeida, há indícios de que essa necessidade de aproximar o poético do cotidiano, como também certa “libertinagem” de assuntos, não irrompeu com o Modernismo, mas foi apenas reforçada. Na opinião de Afrânio Coutinho, a poesia de Almeida, desde sua fase penumbrista, “reflete o contato e a convivência com o cotidiano, com a simplicidade de tudo o que acalenta” (COUTINHO, 2004, p.583). Em “Cosmópolis”, identificamos claramente um reconhecimento poético do ambiente urbano, a cidade de São Paulo. Sem exceções, há um narrador-poeta que transforma os elementos cotidianos em algo “sublime”. “Transforma nossos pedregulhos em diamantes” como afirma Sergio Milliet (1952, p. 19) sobre a produção poética de Almeida. No caso de “Cosmópolis”, uma das estratégias é a personificação dos objetos do espaço, como podemos observar na reportagem “Um carvão de Goya”:

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A reportagem-poema em Guilherme de Almeida: um estudo da série “Cosmópolis” Michelle Moreira Braz • Marcelo Bulhões

“As sacas abrem as bocas de cereais, bocejam pançudas, empanturradas, nas portas dos armazéns. (...) A lâmpada elétrica, triste, tristíssima, atrás dos vidros sujos das bandeiras, pendurada num fio de moscas sobre a escrivaninha do guarda-livros, e parada, amarela, idiota, entre sacas e réstias, toda assombrada de teias de aranha.” (ALMEIDA, 1962, p.59-65)

Mas o lirismo de “Cosmópolis” não restringe a personificações. Vale destacar que o poeta Guilherme de Almeida era conhecido por suas habilidades com a versificação, o que explicaria, talvez, sua indecisão entre tradição parnasiana-modernista e o Modernismo. Para Sergio Milliet (1952, p.20), a inflexão da tradição literária é até um dos motivos para seu êxito como poeta: “o conhecimento profundo da língua, do valor das palavras, de sua riqueza onomatopéica, do alcance sugestivo de cada letra do alfabeto e das acentuações variadas e repetidas”. A par disso, e segundo Maria Helena Queiroz, a exploração dos elementos sonoros é umas principais das características da sua poesia. Por sinal, a pesquisadora sublinha as principais estratégias sonoras de sua obra: “aliteração, assonância, repetição de sentenças e de palavras pertencentes ao vocabulário musical, a musicalidade da palavra em si mesma, a diversidade rítmica” (QUEIROZ, 2003, p.145). Alguns desses procedimentos se encontram em “Cosmópolis”? Em escala descendente, identificamos um uso abusivo da “repetição de sentenças”, tanto externas quanto internas; já num quadro mias tímido, temos também a presença de rimas internas, aliterações e assonâncias. Por exemplo, o uso da recorrência externa (entre parágrafos) se expõe no texto de “Rapsódia húngara”: Rosa-dos-ventos. Alto da Mooca. É aqui que moram todos os ventos de São Paulo. (...) Rosa-dos-ventos. Dos pneus sobe uma nuvem vermelha que fica atrás, morrendo. O meu cigarro dura um minuto só, todo fumado pelo ar inquieto da altura. Rosa-dos-ventos. O bairro húngaro de São Paulo. De São Paulo? Não sei. São Paulo parece que está tão longe, lá, muito além desta planura cor de barro. (ALMEIDA, 1962, p. 11-12)

Uma vez que estamos reconhecendo as similaridades entre a obra poética de Guilherme de Almeida e a série “Cosmópolis”, algumas recorrências nos permitem até adaptá-las para uma espacialização em verso. Por exemplo, a recorrência interna (dentro do mesmo parágrafo) de um trecho de “Chope duplo” (ALMEIDA, 1962, p.32): É o bairro rasteiro dos bares. É o bairro dos pianos. É o bairro do chope.

Apresentação

Em cada bar há um piano. Em cada piano há um alemão. Em cada alemão há um chope.

Jogo de substituições

Dois chopes duplos. Vinte chopes duplos. Conclusão

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De forma mais discreta, verificam-se alguns “efeitos sonoros”. No primeiro parágrafo de “Chope duplo” já encontramos a assonância: “onze longos roncos de bronze” (ALMEIDA, 1962, p. 31). Em “Rapsódia húngara”, temos a repetição das vogais nasaladas: “longa e lenta como aquela lengalenga fanhosa da sanfona sonolenta” (idem, p.15). Entretanto, as rimas internas são as mais predominantes: “três sorrisos idênticos, simpáticos, rápidos” (idem, p. 26); “ondularam, miaram, ronronaram como gatos sobre o telhado...” (idem, p.32); “ vou com eles, vou neles, enroscado, embaraçado, enovelado, emaranhado...”(idem, p. 78). Mas “Cosmópolis” não agrada apenas aos ouvidos. De acordo com Maria Helena Queiroz (2003), o poder visual é outra das principais características da produção poética de Almeida. O poeta Ronald de Carvalho (1931, p. 52) chegou a declarar que “não conhece maior criador de imagens em nossa literatura”. Na mesma seara lisonjeira, Sergio Milliet esclarece que na poesia de Almeida não “cabe ter ideias”. Ao mesmo tempo, teríamos um arguto poeta-pintor em que “a imagem, que sintetiza um mundo de emoções, equivale na realidade a uma ideia, a toda uma filosofia” (MILLIET, 1952, p. 19). Em “Cosmópolis”, um dos principais procedimentos é comparar objetos e/ou personagens do “bairro estrangeiro” com seu país de origem. Na maioria dos casos, caracterizam-se por comparações diretas, sem grandes esforços, geralmente utilizando os verbos ou conectivos tais como “parecem”, “lembram”, “como”. Associa-se, por exemplo, um pianista de um bar alemão com a “alma de um organista do século XVII”, a oração de uma sinagoga com as palavras de personagens bíblicos. Todavia, vez ou outra, as analogias tornam-se mais elaboradas, caracterizando-se como metáforas. Observemos, por exemplo, um trecho de “O carvão de Goya”: É a hora do barbeiro. Fígaro mora ali, na Rua Benjamim de Oliveira. No quadro de uma porta larga, duas cadeiras diante de dois espelhos. Uma cortina de cretone ao fundo. “Reservado para senhoras” (o progresso de Fígaro). Na porta, um latagão – um manolo – lê o jornal. Fígaro está com Almaviva sob a sua navalha e a sua anedota. Raspa: e a cara freguesa emerge, toda azul, do seu gesto de ópera... (ALMEIDA, 1962, p. 62)

No fragmento, existe uma clara alusão à ópera O barbeiro de Sevilha (1816). Na obra de Rossini, Fígaro é um amigo que auxilia o conde de Almaviva a se casar com Rosina, enteada de um médico da cidade. Para isso, o barbeiro arquiteta um disfarce para o amigo. Em “O carvão de Goya”, tais personagens são transpostos para o contexto do “bairro estrangeiro”, dando a impressão de uma amizade, uma confiabilidade entre o barbeiro espanhol e seu cliente. Em “Oriente mais que próximo”, a fim de ressaltar que em São Paulo só existe “turco”, sem qualquer distinção entre as nacionalidades do Oriente, o narrador explica como fazer um “cocktail”. “Receita para se fazer um turco: coloca-se no shaker da Rua 25 de Março um sírio, um árabe, um armênio, um persa, um egípcio, um kurdo; batese tudo muito bem e – pronto!– sai um turco de tudo isso.” (ALMEIDA, 1962, p. 79). A metáfora da “receita para se fazer um turco” implicou numa abstração e transposição dos “ingredientes”, no caso “misturar e bater” várias etnias, que formaram uma nova realidade simbólica em São Paulo: o “cocktail turco”.

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Por fim, e mesmo que não esteja diretamente relacionada com a produção de Almeida, alguns trechos de “Cosmópolis” comportam a fragmentação da estética modernista. Há uma narração rápida, claramente simulando a sequência de planos de uma montagem cinematográfica. No trecho que citaremos de “Rapsódia Húngara”, se retirássemos a pontuação, observa-se que o fragmento se aproximaria, por exemplo, da prosa de Memórias sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade: Passam, na rua quente, gorduras femininas. Uma, toda azul, da cabeça aos pés (parece um freira), está exata. É uma húngara. Não: é a Hungria. As pernas impressionam-me: parecem garrafas de Champagne de boca para baixo. Não são. São só pernas. Pernas camponesas. Uma lembrança das planícies de trigo maduro e das granjas cercadas de acácias... (ALMEIDA, 1962, p. 14-15)

A REPORTAGEM-POEMA Um dos primeiros aspectos que nos chama atenção em “Cosmópolis” é a percepção de que a configuração da reportagem se faz com a ênfase ao ato de reportar. Existe a marca de uma atitude do flâneur na série, isto é, um caminhante cujo contato com o real, o ambiente das ruas, é imprescindível. O flâneur não consiste apenas naquele que sai para a rua e precisa se “banhar na multidão” – embora esses sejam princípios indicadores de sua atitude. Por sua análise da obra de Walter Benjamin, Willi Bolle (1994, p. 373-376) nos esclarece que o flâneur tem sua gênese na pólis grega. Personagens célebres como Platão e Aristóteles depreciavam o trabalho de escravos, artesãos e comerciantes. Uma vez que essa (vasta) classe lhes permitiu um ócio - dentre outras coisas para o estudo. Na Idade Média, retoma-se, ou melhor, atualiza-se o “desejo mítico de ser isento de trabalhar” (idem, p. 374). Um poeta na sociedade medieval, por exemplo, tinha o ócio como um privilégio reconhecido. Contudo, e no advento da modernidade, o ócio do flâneur é “um protesto contra a divisão do trabalho” (BENJAMIN, 2006, p. 471). Dessa maneira, o flâneur se torna um ocioso: seu antigo privilégio aristocrático alavanca olhos censuradores por parte da sociedade burguesa. Nesse contexto, o flâneur se rende ao capitalismo. E uma de suas principais “alternativas” foi a imprensa. “A base social do flâneur é o jornalismo. Como flâneur, o literato dirige-se ao mercado para pôr-se à venda. Isto é certo, mas não esgota de maneira alguma o aspecto social da flânerie” (idem, p. 490). Na ética capitalista, em que a maioria das profissões se caracteriza por horas exaustivas de trabalho, sem direito de mobilidade, o repórter-flâneur, em certa medida, continua um privilegiado: ele pode sair do seu espaço de trabalho, perambular a cidade e até “a seus olhos, e muitas vezes aos olhos de seus patrões, este valor adquire qualquer coisa de fantástico” (idem). No caso da imprensa brasileira do início do século XX, temos o processo de gradual profissionalização de jornalistas e, respectivamente, melhores salários. Mas atentemos, por exemplo, à fala de Olavo Bilac que resume a suposta crise do flâneur, classificando seu ofício de jornalista como um ato de “prostituição”: Mas se um moço escritor viesse, nesse dia triste, pedir um conselho à minha tristeza e ao meu desconsolado outono, eu lhe diria apenas: Ama a tua arte sobre todas as coisas e tem a coragem, que eu não tive, de morrer de fome para não prostituir o teu talento. (COSTA, 2005, p. 38-39).

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Se um poeta consagrado como Olavo Bilac não teve coragem, o que dirá outros literatos. No caso de Guilherme de Almeida, podemos inferir que o exercício jornalístico, especialmente o cargo de repórter, foi ocasionado, ou melhor, é justificado pela “camaradagem e para estar com os amigos”. Oswald de Andrade o convidou em 1911 para publicar textos n’ O piralho e, depois, para trabalhar na Klaxon. Recebeu o convite de Amadeu Amaral para ingressar n’O Estado de S. Paulo. E num artigo da coluna “Ontem, Hoje, Amanhã”, ressalta, mais uma vez, o “convite de amigos”. Mas agora quer ser apenas “cronista”: Consultou-me, outro dia, o amável otimismo de um amigo de um amigo sobre a possibilidade de me ver feito repórter, isto é, de escrever para uma nova revista uma série de impressões pessoais sobre certos ângulos de nosso cenário urbano, tal como fizera há muitos (não se lembrava quantos) anos passados. (Almeida relata sua experiência em “Cosmópolis”). Meu caro amigo, que tão gentilmente me oferece um lugar de repórter cittadino na sua futura, certamente vitoriosa revista: - o resquício de repórter, que talvez existisse em mim, derreteu-se num cronista aguado, incolor, que para não perder de todo o treino, “faute de mieux” faz de vez em quando suas reportagenzinhas sobre si mesmo. (ALMEIDA, Guilherme. “Cosmópolis”. Diário de S. Paulo, 13 de agosto de 195?3)

“Cosmópolis” apresenta um repórter-flâneur multifacetado. Mas isso não é característica exclusiva da série. O flâneur tem a capacidade de se “sobrepor”, obrigatoriamente possui uma disponibilidade para o “jogo teatral e a metamorfose” (BOLLE, 1994, p. 371). O repórter-flâneur não só transita por ruas, mas possui uma habilidade de improvisação para, por ventura, poder encarnar distintos papéis. Como essas multifacetas são entrelaçadas em “Cosmópolis”? Primeiro, e antes de “representar” distintos papéis, o repórter-flâneur explicita que é uma personagem para dentro da ação. Todas as reportagens se encontram em “primeira pessoa” (narrador homodiegético), tendo, assim, em “eu” narrador. Geralmente, já o identificamos justaposto com a informação do espaço, como podemos observar nos exemplos: (1) Vou, num declínio de tarde, pela Rua Correio Dias. A rua é reta, plena e bem calçada. Mas, de repente, quebra-se e descamba numa ladeira brusca e trôpega, de terra estorricada, e despenca, de buraco em buraco, até uma estrada transversal, vermelha, calma, repousante, que se chama Rua Jurubatuba. (“Os Simples” – ALMEIDA, 1962, p. 70) (2) Rosa-dos-ventos. Alto da Mooca (...) Dos pneus sobre uma nuvem vermelha que fica atrás, morrendo. O meu cigarro dura um só minuto, todo fumado pelo ar inquieto da altura. (“Rapsódia húngara” – ALMEIDA, 1962, p. 12)

Tal repórter tem status de narrador-viajante em “Cosmópolis”. Ele não percorre qualquer rua: cultiva-se o mito de algo “longínquo” e “exótico”. “Japão. Já? – Já, sim” 3.  Mesmo consultando o acervo da Casa Guilherme de Almeida, não conseguimos determinar o ano da publicação do artigo citado.

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(ALMEIDA, 1962, p. 22) é o que atesta o narrador ao constatar que o “Japão de São Paulo” só seria distante se fosse num sonho infantil de “cavar um poço bem fundo” (idem, p. 21). Em poemas de Baudelaire, “o habitante da metrópole pode conhecer a África na próxima esquina” (BOLLE, 1994, p.399). Em “Cosmópolis”, Guilherme de Almeida faz questão da presença de um “mapa”: percorremos com o narrador o trajeto para o encontro do imigrante. Além disso, podemos inferir que em “Cosmópolis” a presença de um narradorviajante camuflado em seu repórter-flâneur faz parte de um processo de “sedução textual”. Como realizar a percepção de bairros visíveis e uma realidade diária de muitos leitores? Transportando esse cotidiano banal para uma ideia de “viagem longínqua”. Se um repórter já possui credibilidade, pois se encontra no palco das ações, isto é, presenciou os fatos. O narrador-viajante tem ainda mais “mérito”: ele se deslocou até lá e voltou para recontar suas percepções dos “bairros estrangeiros”. Em alguns trechos de “Cosmópolis”, especialmente nos primeiros parágrafos, o percurso do narrador-viajante é sofrível, ora até com ares de perigo, enfatizando assim até uma espécie de “heroísmo”: (1) Rua do Oratório: que não tem rua e não é oratório. Uma subida alongada, cansada, arrastada. Vai, não vai... Em segunda: não vai. Foi. Pronto! O bairro húngaro de São Paulo. (“Rapsódia húngara” – ALMEIDA, 1962, p.11) (2) Quarta-feira de trevas. Senti subitamente essa verdade de calendário litúrgico quando o automóvel atravessou uma nuvem suja, quase compacta, que subia dos trilhos para a ponte de ferro marrom da Estação da Luz. Treva: uma treva amarelada, com um cheiro forte de carvão-de-pedra, e toda cortada de apitos, escapou dos dois lados da ponte, enovelou-se no ar, caiu na rua e asfixiou o carro. (“O ‘ghetto’”- ALMEIDA, 1962, p.39)

Segundo Benjamin (1994, p. 200), toda narração possui, mesmo que de forma latente, “uma dimensão utilitária”. Será que também não identificamos isso em “Cosmópolis”? Determinados fragmentos são claramente ambíguos e, ao mesmo tempo, apaziguadores e até “conselheiros” . O imigrante é silencioso, não se acultura, mas todos trabalham. As etnias não deixam “brasileiro entrar”, mas em sua modéstia e pobreza são visíveis os sinais de “esperança e progresso” e, consequentemente, com isso tangenciará o crescimento do país. Mas, voltando às facetas de “Cosmópolis”, outra evidente máscara da voz narrativa é seu caráter detetivesco. Vez ou outra, o repórter-flâneur segue possíveis pistas para o encontro do imigrante, e geralmente, se atenta para sons ambientes e conversas. Ao caminhar pela Rua José Paulino, por exemplo, o narrador não encontra imediatamente os membros do “gueto”. Mas alerta para o taxista: “siga esse homem!” (ALMEIDA, 1962, p.40) – como quem procura capturar um suspeito. Sondar ruídos e conversas alheias é outro registro frequente em seu ato de perambular: (1) Acho que passou pela rua um bando de gansos vagarosos, gagos, como aqueles gansos que os ianques nunca deixam de pôr nas aldeias europeias dos seus filmes. Uma sanfona deu dois soluços e morreu, não sei onde. Um fonógrafo também. Bem perto, para fazer ainda maior o silêncio, andam de comboios – apitos, manobras, chios de chaves, trepidações de dormentes.

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(“A confusão báltica” – ALMEIDA, 1962, p. 53) (2) Uma aspereza de algaravia abencerragem à porta de um armazém. Fala-se em Primo de Rivera, no Jesus del Gran Poder e no jogo do bicho. (“Um carvão de Goya” – idem, p. 63)

A vigência de um “detetive” é quase pontual, mas a máscara do retratista subjetivo é sempre obrigatória. Se alcançar o “bairro estrangeiro” tem ares de viagem longínqua, o repórter-flâneur não se perde entre ruas desconhecidas. Percorre sua topografia como se tivesse um mapa em suas mãos, claramente compassada pelo senso prático do repórter. Isso é explícito em “Rapsódia húngara”, na qual a voz narrativa enfatizada é similar a uma marcha: “Adiante. (...) Adiante” (ALMEIDA, 1962, p.14-15). Em sintonia, ao buscar a fisionomia dos cenários, e suas respectivas personagens, surgem lapsos de devaneio. Vejamos isso mais de perto num trecho de “Chope duplo”: Gente, gente que a gente nunca viu de dia, surge da noite e fica na noite de pianos e chopes. Gente, que a gente nunca viu, parecida com aquele Henrique VIII, ou aquele Burgomestre Meyer, pomposos e estufados, que saíram do pincel quinhentista de Hans Holbein: parecida com aquelas criaturas apocalípticas – o Cavaleiro da Morte, ou A Melancolia – que o estilete de Albert Durer riscou no cobre brunido; parecida com aqueles diabos delirantes dos Contos Noturnos de Hoffmann; parecida com os Nibelungen subterrâneos, os filhos de bruma, os gnomos barbudos e bochechudos dando risadas simpáticas debaixo dos cogumelos molengos da Floresta Negra... Imaginações. Delírios. Literatura. Não é nada disso, não. É apenas uma boa gente que trabalha, de dia, por aí tudo, e vem, de noite, beber cerveja no bairro rasteiro dos bares. (ALMEIDA, 1962, p. 32-33)

No primeiro parágrafo do fragmento citado, há uma cadência de comparações cada vez mais intensas. Primeiro, as referências às figuras históricas logo transitam para obras de artes plásticas e, em seguida, dão um salto para personagens e lendas características da cultura alemã. Já no parágrafo seguinte, como numa espécie de “retomada de consciência”, a voz narrativa desmente os “delírios” realizados. Esse mesmo procedimento é ainda mais enfático em “Rapsódia húngara”: “Deixei ir também por aí, sem querer, nesse vento irresistível o meu pensamento. Loucura. É preciso retê-lo, prendê-lo, apenas nisto: este é o bairro húngaro de São Paulo” (ALMEIDA, 1962, p.12). Ou seja, o narrador se obriga a um policiamento. E, em certos momentos, é até censor de si mesmo. Dessa maneira, o que intitulamos como a “reportagem-poema” se caracteriza no corpus como uma clara sincronia entre narração e descrição. Mas não é qualquer ação narrativa acompanhada de pormenorizações do espaço e personagens. Em “Cosmópolis”, o ato de reportar é acompanhado por uma construção imagética de teor lírico. O repórter perambula e demarca um espaço. Logo em seguida, ou concomitantemente, temos as “impressões poéticas”, geralmente visuais, desse território. É o narrador e sua cena: esse ciclo se repete inúmeras vezes. Contudo, como é o caso das reportagens “Chope duplo” e “Rapsódia húngara”, nem sempre a “reportagem-poema” está tão harmônica no processo de confecção textual. Em alguns casos, surgem algumas “faíscas”. Uma tensão entre a ansiedade de um repórter-flâneur que quer perscrutar ainda mais

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o espaço se fricciona com seu segundo e (principal) rosto: um observador urgente por momentos de contemplação. Mas, e na maioria dos textos, a composição fragmentária e quase constelacional dos “vislumbres poéticos” se entrelaça em concordância com a voz narrativa. O repórter-flâneur é paciente com sua principal máscara de contemplador, deixando-se levar por suas dispersões. Em poucos parágrafos, visualizamos o “barbeiro Fígaro” do bairro espanhol, seguido de uma minuciosa descrição de um interior de uma casa até chegar a uma moça operária com possíveis semelhanças a Carmem, protagonista da ópera de Bizet. Para cada uma dessas imagens existe um nome de rua, reforçando, assim, o ato de perambular do repórter. Uma vez que “a cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto” (BENJAMIN, vol. III, 1994, p. 202). E o flâneur, “sem saber, persegue essa realidade” (idem). Em “Cosmópolis”, o repórter-flâneur quer mais do que percorrer, e se perder, pelo labirinto: ele precisa colecionar inúmeras imagens desse espetáculo, uma fração urbana que lhe parece tão estrangeira. Dessa maneira, para registrar essa lembrança o percurso recorreu a uma “divisão de trabalho”. No plano textual, o repórter-flâneur traça o desenho, registrando de maneira pormenorizada a topografia do espaço, eis a presença da reportagem. Mas constantemente, pega os “lápis de cores” a fim de pintar esse mapa, e assim, obter também uma fisionomia poética-colorida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Tanto nos aspectos contextuais quanto textuais, “Cosmópolis” é um corpus intrigante. Por um lado, a série de Guilherme de Almeida quer sistematizar uma São Paulo ideal: o estrangeiro limitado num espaço geográfico específico e contribuinte para o progresso do país. Já nos aspectos textuais, identificamos um corpus que abraça procedimentos presentes no exercício poético, acompanhado pela figura de um repórter. Na série, a reportagem se faz presente por uma descrição in loco, um contato insubstituível com o real. Averiguamos a presença de um repórter-flâneur camaleônico. Na verdade, o próprio ato de perambular já necessita de uma tensão entre concentração e dispersão. Para adentrar-se e se perder na multidão são necessárias muitas máscaras. No caso dos textos de Guilherme de Almeida, identificamos um repórter com status de narrador-viajante. Não existe o “imigrante na próxima esquina”, e sim, a impressão de uma verdadeira viagem para encontrar cada etnia e seu respectivo “bairro estrangeiro”. Outra característica pertinente de nosso corpus é o vai e vem articulado entre o narrador e sua cena. O repórter-flâneur demarca um espaço, escolhe alguma personagem, e, em seguida, a descrição com “vislumbres poéticos” é realizada por sua principal máscara-parceira: o retratista subjetivo. Existe uma sincronia entre o registro topográfico, compassado pela figura do repórter, e ao mesmo tempo, a busca de uma fisionomia daquele território, sob responsabilidade do “colorista”. Embora os limites deste artigo não pudessem viabilizar uma análise pormenorizada, por meio de “Cosmópolis” procuramos resgatar um flagrante do jornalismo brasileiro, na qual a escrita literária se projeta e convive com a prática e a escrita jornalística.

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REFERÊNCIAS ALMEIDA, Guilherme. (1962) Cosmópolis. São Paulo: editora Nacional. BENJAMIN, Walter. (1994) Obras escolhidas 1ª ed. São Paulo: Brasilense. (volume I e III). BENJAMIM, Walter; BOLLE, Willi (org.). (2006). Passagens. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. BOLLE, Willi. (1994) Fisignomia da metrópole moderna. São Paulo: editora da USP. CARVALHO, Ronald. (1931) Estudos brasileiros. 2ª série. Rio de Janeiro: F. Briguiet. COSTA, Cristiane. (2005) Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil 1904-2004. São Paulo: Companhia das Letras. COUTINHO, Afrânio (org.). (2004) A literatura no Brasil: Era realista e Era de transição. 7ª ed. São Paulo: Global. MILLIET, Sergio. (1952) Panorama da moderna poesia brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. QUEIROZ, Maria Helena. (2003). A variedade literária na obra poética de Guilherme de Almeida. Assis. Tese (Doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa), Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista. SODRÉ, Nelson Werneck. (1999). História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad.

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Mídia Ninja: a narrativa fotojornalística brasileira na era digital Midia Ninja: Brazilian photojournalistic narratives in the digital age M o n i ca M a r t i n e z 1

Resumo: Mídia Ninja (sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) é um grupo de mídia brasileiro conhecido pelo ativismo sociopolítico, que usa redes sociais digitais como uma abordagem alternativa às formas tradicionais de mídia. Este estudo emprega a metodologia de análise de conteúdo (Bardin, 2011) para comparar a produção do Mídia Ninja SP em relação à mídia tradicional (Folha de S.Paulo) durante o jogo de abertura da Copa do Mundo da FIFA (12 de junho de 2014). Os resultados sugerem que o foco da FSP recaiu sobre o impacto dos conflitos na audiência internacional, enquanto o do Mídia Ninja SP foi o mercado doméstico. Fotografias do Mídia Ninja SP foram creditadas ao coletivo e não para fotógrafos individuais e os textos foram menor em tamanho. Contudo ambas as mídias têm uma abordagem ideológica (Kossoy, 2007), que deve ser entendida numa perspectiva ecossistêmica (Menezes, 2013), mostrando que tanto as mídias tradicionais quanto as alternativas são complementares e oferecem ao público a possibilidade de melhor compreensão das realidades complexas.

Palavras-chave: Comunicação; Mídia Digital; Mídia Ninja; Folha de S.Paulo; Análise de Conteúdo.

Abstract: Mídia Ninja (acronym for Independent Narratives, Journalism and Action) is a Brazilian media group. It is known for sociopolitical activism, claiming to use digital social networks as an alternative approach to traditional forms of media. This study employs contend analysis methodology (Bardin, 2011) to compare Mídia Ninja SP production to a traditional media (Folha de S.Paulo) during 2014 Fifa World Cup Brazil opening game (June 12, 2014). Results suggest that FSP focus was on the conflict impact on international audience, while Mídia Ninja SP was focused on the domestic market audience. Mídia Ninja SP photographs were credited to the collective e not to individual photographers, texts were shorter in length. However both Medias have an ideological approach (Kossoy, 2007) and they must be understood in an ecosystem perspective (Menezes, 2013), showing that either traditional and alternative Medias are complementary and offer the audience the possibility to better comprehend complex realities.

Key words: Communication; Digital Media; Mídia Ninja; Folha de S.Paulo; Análise de conteúdo.

1.  Monica Martinez é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (UNISO-SP), e-mail [email protected].

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1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DE 12 JUNHO DE 2014 M MEADOS de junho de 2013, as ruas do Brasil foram tomadas por jovens e, em

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seguida, por outras camadas da população, que protestaram sobre o aumento do preço do transporte público e, em seguida, sobre questões mais amplas, como a corrupção. Logo o movimento tornou-se o maior do país desde 1992, quando os brasileiros organizaram manifestações contra o ex-presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992), que resultaram no impeachment presidencial em dezembro daquele ano. Foi em 2013 também que o Mídia Ninja (sigla em português para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) tornou-se visível e sujeito no próprio sistema midiático que, em teoria, repudia. O grupo foi fundado em 2011 pelo jornalista Bruno Torturra, juntamente com outros ativistas como Rafael Vilela, Filipe Peçanha, Thiago Dezan, Felipe Altenfelder, Dríage Aguiar e Pablo Capilé. Munido de smartphones e câmeras digitais, o Mídia Ninja fez em 2013 cobertura ao vivo postada em redes sociais como o Twitter e o Facebook. “Podemos diferenciar a onda contemporânea de projetos independentes de mídia e coletivos, como Ninja, pelo seu impulso para a democratização dos meios de comunicação. Não é ideologia servida por meio da mídia, mas uma ideologia da mídia: jornalismo cidadão, participativo e com organização transparente, bem como uma rejeição de modelos de receitas à base de lucro das empresas”2 (Landesman, 2013, p. 44, tradução nossa). Além da cobertura noticiosa, durante a semana de 12 de junho de 2014 o Mídia Ninja também inovou ao lançar um novo portal colaborativo em associação com o Oximity, um sistema coletivo para coletar, organizar e disseminar notícias fundado pelo engenheiro elétrico indiano Sanjay Goel e pelo engenheiro alemão Christian Hapke. Esta nova plataforma está disponível em https://ninja.oximity.com.

2. DOZE DE JUNHO: UM DIA DE ALTA TENSÃO Em 2014, o dia dos namorados foi celebrado por muitos casais com um dia de antecedência em São Paulo, uma vez que o Estado sediou a abertura da Copa do Mundo da FIFA (Federação Internacional de Futebol). Desnecessário discorrer sobre a importância do futebol para a vida cotidiana e o imaginário do povo brasileiro (Lever; Meihy, 1999; Damatta, 2003; 1982). Os campeonatos de futebol são um ritual que sincroniza a vida dos brasileiros ao longo do ano. O esporte, aliás, tem sua história associada ao Estado desde a origem, quando foi introduzido em São Paulo por imigrantes britânicos no final do século 19. A primeira bola de futebol foi introduzida no Estado em 1894 por Charles William Miller, que veio ao Brasil trabalhar na São Paulo Railway Company. A difusão do esporte não seguiu os trilhos do trem apenas no Brasil. “O período pioneiro do futebol argentino está inseparavelmente ligado à construção de estradas de ferro a partir de 1860 em Buenos Aires e atingindo, no decurso de 40 anos, o resto da Argentina”3 (Archetti, 2004, p. 407, tradução nossa). 2.  Esta e as demais traduções que se seguem foram feitas livremente a partir do original: “We can differentiate the contemporary wave of independent media projects and collectives, such as Ninja, by their push for the democratization of media. It is not ideology served through media but an ideology of media: citizenjournalism, participatory and transparent organization, and a rejection of corporate profit-based revenue models.” (Landesman, 2013, p. 44). 3.  “The pioneering period of Argentinean soccer is inseparably linked to the building of the railways,

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O acordo da FIFA para sediar o evento foi feito com o governo brasileiro em 2007, sob a presidência do então presidente Luis Inácio Lula da Silva (2003-2011), líder do Partido dos Trabalhadores. O próprio Arena Corinthians era um estádio há muito sonhado pelos torcedores do Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1910. Na manhã de 12 de junho, três desafios principais pairavam sobre o jogo inaugural. O principal foi o fato de o estádio não ter sido inteiramente construído com fundos privados, conforme anunciado no início do contrato. O segundo foi de natureza política, visto que 2014 foi ano de eleições que apontariam, pouco depois da Copa, em outubro/novembro, o novo presidente e vice-presidente do país, deputados, senadores, governadores e vice-governadores, deputados estaduais, assim como o governador e vice-governador do Distrito Federal e os representantes do Distrito Federal, Brasília. O terceiro desafio foi de natureza psicológica e estava relacionado ao termo complexo de vira-lata, criado pelo escritor brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980) em referência ao trauma sofrido pelos brasileiros em outra Copa do Mundo, a de 1950, quando a Seleção Brasileira, jogando no Maracanã, perdeu na final para o Uruguai. Em 2007, o jornalista estadunidense Larry Rohter, correspondente do The New York Times, escreveu sobre esse suposto sentimento de inferioridade nacional: “O Brasil sempre aspirou a ser levado a sério como uma potência mundial pelos pesos-pesados e por isso dói nos brasileiros que os líderes mundiais confundam seu país com a Bolívia, como Ronald Reagan fez uma vez, ou dispensem uma nação tão grande − 180 milhões de pessoas4 − com um “não é um país sério”, como Charles de Gaulle fez”5 (Rohter, 2004). Na verdade, o presidente francês De Gaulle (1959-1969) não foi o autor da frase “Le Brésil n’est pas un pays sérieux”, mas o embaixador brasileiro Alves de Souza Filho (Souza Filho, 1979).

3. SOBRE FOTOJORNALISMO E TEORIA DA IMAGEM Em 2006, Persichetti refletiu sobre a chamada crise do fotojornalismo, momento em que alguns estudiosos proclamavam o fim do fotojornalismo enquanto outros apontavam para possíveis transformações da linguagem do campo. Era uma tentativa de compreender o que estava acontecendo em face de uma nova visualidade provocada pela fotografia digital. Essa revolução desmistifica para o público em geral a suposta objetividade e neutralidade fotográfica, noção na qual, desde o seu surgimento, o fotojornalismo tinha se embasado. O dogma da imagem realista − que só existia para aqueles que não tinham relação com a produção e a criação de imagem − estava sendo revista entre os profissionais e os teóricos da imagem (Persichetti, 2012, p. 93-94): Depois de uma quebra com a imagem dogma – que não se discute e se aceita – a fotografia de imprensa se coloca cada vez mais como participante, deixando de lado uma estética publicitária, que se apoia mais na estética do que no conteúdo, que deixa de lado a informação o fato para se tornar quase que uma mera ilustração, a exemplo do que acontecia no século XIX. (Persichetti, 2012, p. 99). beginning in 1860s in Buenos Aires and reaching, in the course of forty years, the rest of Argentina” (Arquetti, 2004, p. 407). 4.  202.8 milhões de acordo com o censo de 2014 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). 5.  “Brazil has always aspired to be taken seriously as a world power by the heavyweights, and so it pains Brazilians that world leaders could confuse their country with Bolivia, as Ronald Reagan once did, or dismiss a nation so large - it has 180 million people - as “not a serious country,” as Charles de Gaulle did.” (Rohter, 2004).

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Instrumento ambíguo de conhecimento, a imagem exerce contínuo fascínio sobre o ser humano. Ao mesmo tempo em que tem preservado as referências e lembranças, documentando os feitos cotidianos dos indivíduos e das sociedades em suas múltiplas ações, fixando, enfim, a memória histórica, ela também se prestou – e se presta – aos mais interesseiros e dirigidos usos ideológicos (Kossoy, 2007, p. 31). A fotografia está relacionada às formas de comportamento do indivíduo, a partir do momento que se tem uma infinidade de imagens guardadas na memória, sejam elas de natureza endógena ou exógena (Belting apud Baitello, 2005). Imagens que, muitas vezes feitas para um determinado fim, ressurgem num outro contexto, criando ficções documentais. Assim, ao se selecionar um conjunto de imagens para apresentar uma determinada situação, acaba-se por escolher códigos culturais e estéticos que, muitas vezes, criam um discurso que ajuda a comprovar uma ideia. O historiador de fotografia brasileiro Boris Kossoy lembra que “a fotografia resulta do processo de criação do fotógrafo: é sempre construída; e também plena de códigos” (Kossoy, 2007, p.42). Nenhum olhar é inocente. Por trás de qualquer e toda imagem existe um olho ideológico que pretende apresentar um ponto de vista acerca de um determinado assunto. É por essa razão que Kossoy chama a atenção para o possível fim de um positivismo imagético, onde a imagem jornalística continua sendo considerada – embora nunca tenha sido – espelho do real.

4. O CASO DO MÍDIA NINJA E A COMPARAÇÃO COM A FOLHA DE S.PAULO O grupo Mídia Ninja está focado na produção de fotorreportagem durante conflitos. Este artigo tem como objetivo focar na divulgação de fotografias por meio do Facebook do Mídia Ninja SP durante o jogo de abertura World Cup Brasil 2014. Esta produção é comparada à versão impressa da Folha de S.Paulo da edição do dia 13 de junho de 2014, que traz a cobertura de eventos a partir da perspectiva do maior jornal do Brasil, com sede em São Paulo. Foi escolhida a abordagem de análise de conteúdo proposta por Bardin (2011), a principal referência teórica da utilização deste método no Brasil (Martinez & Pessoni, 2014).

4.1. A produção da Folha de S.Paulo O corpus de análise da Folha de S.Paulo consistiu inicialmente em 12 fotos, todas encontradas na seção Poder. Do total, 5 (42%)6 são relacionadas aos protestos sobre a Copa. Mais especificamente, três (25%) foram realizadas em São Paulo e registram o conflito enfrentado no dia 12 entre manifestantes e policiais. Essas três fotos encontram-se na mesma página (A10), sob a manchete “´Black blocs´ se infiltram em atos e enfrentam a polícia de São Paulo”, seguida da linha fina “Protestos foram menores do que o esperado, mas violentos. A fotografia maior (19,5 cm x 10,5 cm), do fotógrafo brasileiro Fabio Braga, tem a seguinte legenda: “’Mascarados enfrentam polícia e colocam fogo em sacos de lixo na zona leste (...)”. A imagem de um homem mascarado, vestido de preto, com o braço direito erguido em postura desafiadora, evoca um terrorista; a ideia sugerida é 6.  Não se trata de uma análise quantitativa, portanto os números são expressos apenas com a intenção de prover uma noção de grandeza.

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completada pelo fogo no canto esquerdo, que ocupa quase um terço do espaço horizontal da imagem. No canto direito, sobre esta mesma fotografia, encontra-se a segunda imagem, em menor escala (4 cm x 5 cm), também feita por Braga, cuja legenda completa a anterior: (...) “no detalhe, jornalista da CNN é socorrida”. A terceira fotografia (10,5 cm x 6 cm) está posicionada ao pé da página, ilustrando a coluna do jornalista Nelson de Sá, com título de “Para Gringo Ver − A tática da polícia”, cuja legenda é: “Do hospital: Arvanitidis, produtora da CNN, mostra via Twitter o braço atingido pela bomba da polícia”. Embora outras 11 pessoas tenham ficado feridas, esta terceira foto, cujo crédito diz apenas reprodução, mostra a contusão no braço de Barbara Arvanitidis. Com base nas imagens, pode-se afirmar que a intenção da edição era a de destacar os elementos de violência, especialmente as ocorrências que tiveram um impacto direto na imprensa internacional. Como se a preocupação principal fosse a de produzir uma cobertura que atendesse as expectativas de uma audiência mundial sobre o conflito.

Figura 1. Fotos 1, 2 e 3 emulam uma cobertura de guerra

4.2 A cobertura do Mídia Ninja via Facebook Durante o dia 12 de junho, a cobertura do Mídia Ninja SP divulgada via Facebook totalizou 15 imagens. A cobertura foi diversificada, abrangendo da ocupação de um prédio abandonado no centro da cidade à celebração batizada de Fan Fest. Desse total, 9 fotos (60%) foram sobre os protestos. Em comum, todos são creditados ao coletivo, nenhum fotógrafo individual é destacado. Em vez de textos mais longos, as fotos são acompanhadas de legendas simples ou fotolegendas, alguns com erros de digitação (ver figura 4 e 7). A qualidade fotográfica é irregular (cf. figuras 2 e 10), com os fotógrafos buscando capturar os eventos no calor do momento, com fotos vívidas e ricas em movimento. Fatos como o cerco da estação Tatuapé subterrâneo prestam quase um serviço em real time para os moradores da cidade.

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Sobre os incidentes, a cobertura do Mídia Ninja SP revelou torcedores brasileiros atendidos por paramédicos durante a repressão do ato “Não terá Copa” (figura 5), mas não jornalistas estrangeiros. Esta pode ser simplesmente uma evidência de o Mídia Ninja SP ter uma equipe menor, ou mesmo a intenção de fotógrafos para se aproximar de conflito, inspirados na abordagem do fotojornalista húngaro Robert Capa (1913-1954). O cofundador da Magnum Photos era conhecido por se aproximar de eventos, especialmente de guerra.

Figura 2. ‘Mais prisões. Manifestante é detido durante evacuação do Metrô Tatuapé, em SP. A ação da Polícia Militar na capital feriu diversas pessoas, entre ativistas e membros da Imprensa.’

Figura 3. Metrô sitiado: Em SP o protesto concentrado na estação Tatuapé é cercado e sufocado com truculência pelas tropas do batalhão de choque da PM. O metrô foi fechado para evitar a concentração de novos atos, impedindo a ida e vinda da população. A Favela do Moinho e a ocupação Copa do Povo seguem com atividades culturais críticas à Copa. Em breve matéria completa sobre o dia de protestos na capital em www.midianinja.org

Figura 4. Canarinha anti gás: Incomodado pelo Gás Lacrimogêneo torcedor cobre o rosto com a camisa da Seleção Brasieira. Polícia reprimiu com violência os protestos na Zona Leste de São Paulo.

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Figura 5. TORCIDA EM CHOQUE. Torcedora do Brasil que estava na Zona Leste passa mal durante a repressão ao Ato Não Vai Ter Copa. Socorristas presentes na manifestação fizeram o atendimento. 

Figura 6. MANIFESTAÇÃO IMPEDIDA: Polícia atua com violência desde as 10h da manhã nas ruas da Zona Leste de São Paulo. O uso da força foi justificado pela necessidade de se garantir o fluxo na Avenida Radial Leste.

Figura 7. CHOQUE EM CAMPO: Grande contigente da tropa de choque presente hoje nas ruas da Zona Leste de São Paulo.

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Figura 8. METROVIÁRIOS RESISTEM: Nesse momento, na Zona Leste de São Paulo, trabalhadores se concentram para um ato de solidariedade aos metroviários que participaram de greve na última semana e exigem a re admissão dos trabalhadores despedidos.

Figura 9. REPRESSÃO NA CONCENTRAÇÃO: Um grande ato estava marcado hoje em São Paulo: Se não tiver direitos Não Vai Ter Copa. Manifestantes começavam a se agrupar ao lado da Estação Carrão do Metrô desde as 10 horas da manhã. Do que depender da Polícia Militar não vai ter ato. A Tropa de choque está no local e já usa bombas de efeito moral, balas de borracha e gás lacrimogênio para dispersar um número ainda pequeno de manifestantes que se concentrava no local. Duas pessoas já foram detidas e jornalistas internacionais também foram atingidos.

Figura 10. No dia que começam os jogos da Copa do Mundo 2014 a Polícia Militar, de São Paulo, usa bombas de efeito moral e tropa de choque para impedir que o ato ‘Não Vai Ter Copa’ chegue até a Radial Leste.

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5. DISCUSSÃO: UM COMPARATIVO ENTRE MÍDIA NINJA SP E FOLHA DE S.PAULO A primeira constatação está relacionada à quantidade de fotos. Do total de 12 fotos publicadas pela Folha de S.Paulo, 5 (42%) foram relacionados aos protestos sobre a Copa. Por outro lado, o Mídia Ninja SP divulgou, via Facebook, um total de 15 imagens, sendo 9 fotos (60%) sobre os protestos. A cobertura da Folha de S.Paulo destaca os elementos de violência, com manifestantes e policiais em confronto, especialmente os que tiveram impacto direto na imprensa internacional, como os ferimentos causados por projéteis disparados por policiais em jornalistas do canal a cabo noticioso  estadunidense CNN. Por outro lado, a cobertura do Mídia Ninja SP foi mais diversificada, tendo aparentemente como foco o mercado doméstico, englobando desde a ocupação de prédio abandonado no centro da cidade até a celebração denominada Fan Fest. Outra diferença importante é relativa aos créditos do fotógrafo. Na Folha de S.Paulo as fotografias foram creditadas ao fotógrafo brasileiro Fabio Braga, com uma única exceção, citada como ‘reprodução’. Ao contrário, nenhum fotógrafo foi destacado na cobertura do Mídia Ninja SP, como todas as fotografias sendo creditadas ao coletivo. O formato de texto também variou em ambos os casos. A Folha de S.Paulo segue o padrão editorial da publicação. Na edição do Mídia Ninja SP, específica para a plataforma digital, as fotografias são acompanhadas de pequenos textos, praticamente fotolegendas. Talvez devido à pressa para liberar o material, o texto foi escrito em um estilo informal, quase ingênuo. Há também a possibilidade de que esta opção seja uma tentativa consciente (ou inconsciente) de corresponder às representações coletivas de uma cobertura midiática ao vivo, uma vez que não há edição posterior de texto. Alinhada com as imagens, o breve texto que as acompanha fornece aos usuários da Internet a sensação de cobertura em tempo real. Finalmente, temos de ressaltar que tanto a cobertura da Folha de S.Paulo quanto Mídia Ninja SP estão inseridas em uma determinada abordagem ideológica. As percepções das audiências podem variar, mas ambas estão ligadas. Ao selecionar um conjunto de imagens para apresentar uma dada situação, tanto os fotojornalistas da Folha de S.Paulo quanto os do Mídia Ninja SP escolhem códigos culturais e estéticos que muitas vezes acabam por criar um discurso ficcional (Kossoy, 2007). Considerar o ativismo de uma mídia independente como uma alternativa à imprensa tradicional pode ser uma postura ingênua, pois sem a noção da continuidade da tradição seria impossível existir ruptura. Uma situação bem estudada pelo historiador inglês Eric Hobsbawm (2012). Neste sentido, o que o grupo Mídia Ninja SP faz é estabelecer um contraponto narrativo à mídia oficial. Quando saem às ruas, os jovens do coletivo não têm as amarras dos formatos jornalísticos, contudo sua produção também corre o risco de se tornar uma espécie de caricatura do próprio sistema midiático que denunciam. Imagens nervosas, sem grandes preocupações estéticas devido à suposta precariedade, são apresentadas como imagens ‘verdadeiras’, ratificando de certa forma uma mentalidade positivista do século 19. Afinal, como diz Kossoy, “o fragmento fotográfico adquire significado quando se percebem as múltiplas teias que o enlaçam ao contexto histórico e à vida social em que se insere e ao mesmo tempo documenta” (Kossoy, 2007, p. 52).

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo compara a cobertura da abertura da Copa do Mundo da FIFA, ocorrida na capital paulista no dia 12 de junho de 2014, realizada pela Folha de S.Paulo, em sua edição no dia 13 de junho, e a em tempo real divulgada pelo Facebook feita pelo coletivo Mídia Ninja SP. O corpus de análise consistiu inicial, no caso a Folha de S.Paulo, em 12 fotos (encontradas na seção Poder) e 15 fotos do Midia Ninja SP. Deste total foram selecionadas as imagens relativas à cobertura de conflito na capital paulista, totalizando 3 fotografias (25%) da Folha de S.Paulo e 9 fotos (60%) do coletivo. Quanto aos resultados do estudo, destacam-se três questões. A primeira é uma suposta intenção do jornal impresso, o maior em circulação no país, de atender uma demanda noticiosa internacional, destacando os elementos que poderiam ser destaque no exterior, caso dos ferimentos nas jornalistas da televisão a cabo estadunidense CNN. Ao contrário, a cobertura do Mídia Ninja SP teve um olhar mais doméstico, concentrandose em divulgar protestos em estações de metrô e ocupações de prédios desocupados no centro da cidade. Um segundo ponto destacado é a forma como esta produção fotojornalística é registrada, com o jornal impresso creditando aos fotógrafos individuais e o Mídia Ninja SP ao coletivo como um todo. Mostra-se, aqui, uma mudança paradigmática. Finalmente, destaca-se a produção textual, com os textos mais longos da mídia impressa e os extremamente curto, quase fotolegendas, do Mídia Ninja SP. Os erros ortográficos e afins parecem ser considerados como parte inerente do processo de cobertura ao vivo, não sendo corrigidos a posteriori. Como todas as mídias, convém lembrar que a fotografia é um reflexo das sociedades que a adotaram ou adotam. Ela pode ser um potente promotor de transformação social e pessoal, de maneira óbvia ou sutil, mas também revela um processo dialético, em evolução, na maioria dos casos inconsciente, que abre novas possibilidades e nega outras (Ritchin, 2009, p. 3). Segundo o estudioso, “o tempo fotográfico não é mais o momento estático de um encontro privilegiado entre o observador e o sujeito, mas é uma reorganização. O papel do fotógrafo, não surpreende, é menos crucial” (Ritchin, 2009, p. 21)7. Além da alteração produtiva, houve mudança na relação do tempo e do espaço na observação fotográfica. Agora não há mais uma narrativa única, porém uma miríade de possibilidades construídas a partir da história e da interpretação de quem a vê: Construímos nossa narrativa por meio de ecos de outras narrativas, por meio da ilusão do autorreflexo, por meio do conhecimento técnico e histórico, por meio da fofoca, dos devaneios, dos preconceitos, da iluminação, dos escrúpulos, da ingenuidade, da compaixão, do engenho. Nenhuma narrativa suscitada por uma imagem é definitiva ou exclusiva, e as medidas para aferir sua justeza variam segundo as mesmas circunstâncias que dão origem a própria narrativa. (Manguel, 2000, p.28, tradução nossa).

7.  Do original: “Il tempo fotográfico non é piu Il momento statico di un incontro privilegiato tra osservatore e soggeto, ma viene rioganizzato. Il ruolo Del fotografo, non soprende, diventa meno cruciale”.

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Quando a narrativa se transforma é claro que também a percepção de mundo se altera. O tempo de olhar, de calma da observação, se altera para um tempo curto e fugidio, um tempo cada vez mais exíguo e que nem sempre nos permite a reflexão sobre a história. Gilles Lipovestky e Jean Serroy sugerem o conceito de cultura-mundo (2011, p. 7). Seriam estas imagens produzidas por estes jovens acostumados e nascidos dentro da fluidez das ideias uma nova maneira de criar esta cultura-mundo? Seja ela qual for, não pode mais ser considerada simplesmente como uma superestrutura de signos, como o aroma e a decoração do mundo real: ela ganhou o mundo, o do tecnocapitalismo planetário, das industrias culturais, do consumismo total, das mídias e das redes. Mas também o mundo do slow food, do consumo consciente, dos produtos de origem certificada, que preservam e incentivam as culturas regionais. A complexa diversidade propiciada por mídias tradicionais, como a Folha de S.Paulo, e inovadoras, como o coletivo Mídia Ninja, provavelmente não deveria mais ser compreendida isoladamente, porém de forma ecossistêmica (Menezes, 2013). Caso contrário, corre-se o risco de se repetir o velho príncipe de Salina, personagem do livro Il gattopardo (O Leopardo), do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957). No filme homônimo dirigido por Luchino Visconti (Il gattopardo, 1963), seu intérprete, o ator estadunidense Burt Lancaster, diz: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Como num giro de 360 graus.

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Mídia Ninja: a narrativa fotojornalística brasileira na era digital Monica Martinez

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Dimensão política da imagem no jornalismo brasileiro e espanhol The political dimension of the images on journalism in brazil and spain Luciano Guimarães1

Resumo: Este artigo pretende investigar as três dimensões (Prática, Ensino e Pesquisa) que determinam o estado do jornalismo visual hoje a partir das experiências na Espanha e no Brasil. Como uma das prerrogativas da abordagem é a de empreender uma forte busca pelo entendimento da dimensão política da imagem para ir além do atual estágio de amadurecimento técnico e de linguagem do jornalismo visual, o presente estudo recorta a cobertura dos noticiários políticos para aprofundar questões que envolvem a ética profissional, evidenciando intenções, estratégias e/ou falhas na prática ou no ensino do jornalismo visual. Pretende trazer uma significativa contribuição para a minha busca na elaboração, organização e descrição da base epistemológica de sustentação do Jornalismo Visual dentro do campo da Comunicação, a partir do interesse central na investigação das estratégias de produção discursiva com ênfase no produto jornalístico de forte apelo visual.

Palavras-Chave: Jornalismo Visual. Imagem. Jornalismo Polítco. Abstract: This paper aims to investigate the three dimensions (Practice, Teaching and Research) encompassing visual journalism today derived from experiences in Spain and Brazil. Since one of the prerequisites of this approach is to take an empowering step towards understanding the political realm of the image to go beyond the current stage of technical maturity and language of visual journalism, this study seeks to investigate the coverage of political news to deepen our understanding of issues involving professional ethics, therefore revealing the intentions, strategies and/or failures behind the practice or teaching of visual journalism. Furthermore, this study aims to make a significant contribution to my quest in the preparation, organization and description of epistemological support for Visual Journalism within the field of Communications, stemming from my central interest in investigating discursive production strategies with a focus on journalistic product with a strong visual appeal.

Keywords: Visual Journalism. Images. Political Jounalism.

1.  Doutor em Comunicação e Semiótica e Livre-docente em Jornalismo Visual. Docente da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). [email protected].

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Dimensão política da imagem no jornalismo brasileiro e espanhol Luciano Guimarães

INTRODUÇÃO ONSIDERANDO-SE QUE o Jornalismo Visual é a integração do material jornalístico

C

verbal com imagens (tipografia, fotografia, ilustrações, videografias etc.) e uma organização espacio-temporal ditada pelo design gráfico de um conjunto significante espacialmente delimitado pelo suporte de determinada mídia, podemos afirmar que na base de cada alteração no Jornalismo Visual sempre esteve alguma relação entre a tradição da escrita e a tradição das imagens. De forma geral, as teorias da imagem compreendem tipologias ou classificações, normas e regras, e uma certa problematização acerca dos usos e funções das imagens e um pouco sobre a natureza das imagens (uma dimensão ontológica). Algumas propõem também um roteiro para análise de imagens, às vezes incluindo um estudo de caso ou uma análise-exemplo. Proponho como outra possibilidade da investigação no Jornalismo Visual uma reflexão crítica que coloque a imagem como elemento fundamental na constituição da informação jornalística veiculada. É conhecido que a notícia impressa, televisual ou on-line não se restringe somente à elaboração do texto com apoio visual; de que, ao contrário, muitas vezes o projeto gráfico, o fotográfico e o videográfico têm participação determinante na construção da notícia. No entanto, só não é maior o crescimento do número de jornalistas que assumem o comando das editorias de arte porque os cursos de Jornalismo ainda se apegam em demasia à ideia de que um jornalista é um profissional do texto (escrito ou oral), ignorando que a necessidade de domínios e habilidades se multiplicaram na mesma proporção em que as mídias se desdobraram e/ou se convergiram. E que as disciplinas que tratam dessa dimensão visual não podem ficar desconectadas das demais, ou com um complemento à formação do jornalista apenas instrumental. Cada vez mais, haverá a possibilidade de que a edição de imagens incorpore outros valores às notícias sob seu domínio, algumas vezes de forma positiva, outras provocando distorções na informação veiculada. E então até mesmo este domínio será questionado. Um problema para o ensino do Jornalismo Visual é quando ao lado do “como fazer” não há uma clara exposição dos impactos do que foi construído, e há uma desconexão evidente entre a habilidade prática e os postulados da ética e da deontologia do Jornalismo. Assim, é possível pensar uma delimitação do Jornalismo Visual a partir das três distintas dimensões fortemente relacionadas entre si: a prática profissional (como uma das atividades profissionais que pode/deve ser desempenhada por jornalistas designers ou designers jornalistas), o ensino (como disciplina dos cursos de Jornalismo) e a pesquisa (como especialidade e objeto da pesquisa em Comunicação). No contexto da cultura da imagem, da crise da visibilidade, da saturação das imagens e da economia dos sinais levada a cabo pela sociedade midiatizada atual, esta proposta insere a produção de sentido no Jornalismo Visual dentro do leque de possibilidades de investigação e reconhece a comunicação e a cultura como indissociáveis, de forma que a produção de sentido em Jornalismo Visual é resultado dos processos culturais de geração, armazenamento e resgate da memória sociocultural e/ou tecnológica, e estratégias da transmissão da informação mediatizada. E proponho que seja uma possibilidade para que os cursos de Jornalismo comecem a cuidar do Jornalismo Visual a partir de uma dimensão política da imagem.

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A DIMENSÃO POLÍTICA DO JORNALISMO VISUAL Como abordo as três dimensões (atividade profissional, ensino e pesquisa), tenho proposto um alargamento do conceito de Jornalismo Visual para toda a produção midiática em que a imagem não seja relegada a um papel meramente ilustrativo ou estético e, portanto, que dependa de uma produção com respeito aos princípios do Jornalismo. Na contramão da necessidade de novos domínios de novas técnicas e novas linguagens no Jornalismo contemporâneo multimidiático, os cursos de Jornalismo ainda atraem muito mais aqueles alunos que tem predileção pela produção textual e reportagem do que os que têm um adequado repertório cultural com as imagens. Mas cada vez mais haverá a possibilidade de que a edição de imagens (em todos os níveis) incorpore outros valores às notícias sob seu domínio, algumas vezes de forma positiva, outras provocando distorções na informação veiculada. E então até mesmo este domínio será questionado. Ainda temos, é verdade, que formar bons jornalistas habilitados para lidar com o universo das imagens e seu potencial informativo. Também é responsabilidade dos professores e pesquisadores promover essa habilidade da forma mais consistente possível, pesquisando e desenvolvendo novos métodos de construção da informação. Para isso, às vezes, é preciso recorrer à simples descrição “de como se faz.” O problema é quando ao lado do “como fazer” não há uma clara exposição dos impactos do que foi construído, e há uma desconexão evidente entre a habilidade prática e os postulados da ética e da deontologia do Jornalismo. No jogo das intenções, o desconhecimento chega a ser irresponsável. Quando proponho alargar a compreensão do Jornalismo Visual para além da página impressa, é porque estamos vislumbrando uma técnica com alterações cada vez mais velozes e que o ensino não mais dá conta dentro de uma ou outra disciplina básica em um curso de graduação em Jornalismo, sem apoio das teorias da imagem, das teorias da mídia, da história da arte, dos estudos culturalistas etc. A questão passa a ser o alargamento do repertório e o alargamento dos objetos do Jornalismo Visual para fazer de cada jornalista não mais um “ser do texto”, mas um jornalista de domínio dos múltiplos códigos da comunicação que possa adequar-se com facilidade a cada mídia (com seus distintos suportes ou meios). Há de ser um jornalista que domine as estratégias e intenções no uso das imagem e que faça isso conscientemente e sabendo que deixará o leitor, o telespectador, o internauta em terreno seguro diante da informação.

A CONTRIBUIÇÃO DO JORNALISMO VISUAL NA FORMAÇÃO DE JORNALISTAS, CONSIDERANDO OS CURSOS DE ENSINO SUPERIOR NO BRASIL E NA ESPANHA Ao observar o ensino de Jornalismo no Brasil, pode-se perceber que o Jornalismo Visual é tratado marginalmente como uma prática instrumental em oficinas ou laboratórios informatizados visando as habilidades para a confecção de leiautes e protótipos de periódicos (jornais e revistas), desconectando forma e conteúdo. Poucas disciplinas têm desdobramento específico; ficam restritas a uma disciplina básica em toda a grade curricular. E praticamente não há disciplinas complementares e de aprofundameto como Infografia, comum na Espanha, por exemplo. Também há pouca participação de teorias da imagem e ouras de repertório visual complementar.

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A educação de nível superior na Espanha está ainda se adequando às diretrizes do Espaço Europeu de Educação Superior (EEES) (ver www.eees.es), que por sua vez atende ao acordado em 1999 por diversos países da Europa na Declaração de Bolonha (e que iniciou o Processo de Bolonha). As carreiras de graduação oferecidas pelas universidades espanholas, incluindo portanto os cursos de graduação em Jornalismo, já cumprem ao menos formalmente os princípios traçados pelo EEES (que determinou o ano de 2010 como limite para sua plena implantação) e são supervisionadas pelo Ministério da Educação do Governo da Espanha. Embora tais princípios uniformizem as universidades quanto ao sistema de créditos (ECTS) e titulações, favoreçam a mobilidade estudantil e docente, incentivem a cooperação interinstitucional e permitem maior liberdade para a organização curricular, investigação e ensino, podemos notar que os cursos de jornalismo na Espanha ainda não se descolaram da estrutura anterior (da reforma de 1991 do Ministério da Educação). Isso, como pretendo demonstrar, tem aspectos positivos e negativos para o ensino do Jornalismo Visual. Durante a ditadura do General Francisco Franco (que durou de 1939 a 1976), vigoraram consecutivamente duas Leis de Imprensa. A primeira foi promulgada em 1938 ainda durante a Guerra Civil. Teve como marcas a censura aplicada pelo Servicio Nacional de Prensa, a nomeação dos diretores dos órgãos de imprensa pelo Ministério do Interior e o Registro Oficial de Periodistas. Não por acaso, foi nesse período que surgiram as primeiros escolas de jornalismo na Espanha (Escuela Oficial de Periodismo de Madri, Escola de Periodismo de Barcelona e a Universidade de Navarra, ligada à Opus Dei). A segunda Lei de Imprensa (Ley de Prensa e Imprenta de 1966), seguido pelo Estatuto da Profissão Jornalística, afrouxou um pouco o controle, porém mantendo o limite a liberdade de expressão e obrigando o jornalismo (empresas e jornalistas) a respeitar os princípios franquistas. Com a morte de Franco, e o país já em período democrático, um decreto-lei real em 1977 liberou o jornalismo das amarras do franquismo e regulou “a cláusula de consciência dos profissionais de informação”, garantindo a independência do jornalista no desempenho de sua profissão. Entre essas duas “leis”, surgiram quase todos os principais cursos de Jornalismo do país. Essa relação entre controle do poder político sobre o jornalismo e a criação dos cursos de Jornalismo determinou a estrutura dos cursos de forma muito semelhante (estrutura curricular mínima obrigatória) ao que ocorreu no Brasil com as diretrizes curriculares de 1969 e 1984. E em ambos os casos o Jornalismo Visual não consegue se desvincular dessa formatação disciplinar que separa conhecimentos e enxerga teoria e prática como instâncias diferentes do ensino. Tanto que a forma mais imediata e eficiente de se mensurar a presença de alguma área ou conhecimento específico na formação do jornalista é identificando nas grades curriculares as disciplinas responsáveis por esse “fragmento”. As disciplinas que abordam a edição gráfica no Jornalismo estão presentes desde a criação dos primeiros cursos de Jornalismo no Brasil e na Espanha, e é possível supor três fases bastantes distintas no ensino do Jornalismo Visual, conformadas aos aspectos de formação e regulamentação dos cursos e do exercício da profissão e desenvolvimento tecnológico.

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A primeira, presente no início das escolas de Jornalismo, corresponde a uma fase em que o jornalista está ainda muito próximo das artes letradas e a edição gráfica ocupa um outro ambiente, pois a tecnologia para composição gráfica de páginas era muito ruidosa, com máquinas de linotipia operando uma série de procedimentos mecânicos desde a datilografia em um teclado de metal, o desclocamento de matrizes de tipos em canaletas, a ação da alavanca que leva a linha composta por matrizes de ferro até uma caldeira de chumbo e da que retira a linha composta já endurecida. Jornalista da redação e gráfico na oficina mantém-se afastados e as questões gráficas ficam à margem das preocupações no ensino de Jornalismo. Vale lembrar que antes do estabelecimento da linotipia como principal sistema de composição, a composição manual do texto em tipos móveis e a “amarração” das páginas era muitas vezes feita pelo próprio jornalista e redator, a fim de otimizar o tempo, principalmente em diários de pequeno porte e folhetins. A segunda fase, que corresponde aos quase quarenta anos seguintes após a Segunda Guerra Mudial, tem como característica a incorporação do planejamento gráfico nas redações e consequentemente no ensino de Jornalismo. As revistas noticiosas, especializadas e de variedades ocupam fatia do mercado de Jornalismo e, com isso, os cursos de graduação em Jornalismo passam a dar mais atenção à linguagem gráfica e a incorporar a rotina de produção gráfica em disciplinas específicas. O diagramador e o editor de arte passam a fazer a intermediação entre a redação, o fotojornalismo e as oficinas, que por sua vez já separam as ruidosas oficinas e suas rotativas de impressão de todos os processos de produção de páginas – agora em pranchetas, estúdios, laboratórios, com a geração de originais de imagens e texto em processo fotográfico (fotomecânica e fotocomposição). O aluno de Jornalismo passava a ter como uma das habilidades o planejamento dos espaços da notícia e desenho de páginas e certo domínio sobre a apresentação do produto jornalístico. A integração texto e arte se tornou parte da proposta do Jornalismo, embora profissionalmente o editor de arte ocupasse espaço privilegiado em relação aos profissionais de “diagramação”, vistos como uma sub-categoria da profissão, não necessariamente com formação em nível superior, muito menos em Jornalismo. A terceira fase, atual, começa na década de 1980 com a informatização das redações e a inserção dos programas gráficos e desktop publishing nas editorias de arte e solidifica-se posteriormente (anos 1990) com o surgimento das mídias digitais online. Com isso, o profissional de imagem que pensava no planejamento do espaço passou a também desenhar a informação. Paradoxalmente, nessa fase o jornalista passa a perder espaço para o artista gráfico (nas mídias impressas) e para o webdesigner e o programador (nas mídias digitais). O pioneirismo inicialmente está em território americano: são considerados marcos o surgimento de um jornalismo diário bastante pautado na imagem como o USA Today, em 1982, influenciando o redesenho de jornais no mundo todo, o desenvolvimento de equipamentos Macintosh (1984) e a Guerra do Golfo (1991). Essa guerra colocou definitivamente em cena a infografia como recurso de narrativa visual e promoveu um novo tipo de profissional da imagem, integrando o perfil do jornalista e o do designer. Tomando esse breve contexto, de forma geral os cursos de Jornalismo Jornalismo Visual mantém-se com o perfil da segunda fase (formando um jornalista com algum conhecimento no planejamento dos espaços e dos elementos que configuram a linguagem visual: composição, diagrama, tipografia, cores, imagens). Uma pequena parte do

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conteúdo programático atende ao perfil desenhado na terceira fase, geralmente com alguma atenção para o design da notícia no final da disciplina responsável pela compreensão geral da edição gráfica. E o aluno dentro do perfil da terceira fase é foco nas disciplinas optativas mais avançadas ou de conteúdos específicos (como as que tratam de infografia). Mas isso é pouco. E no que se refere à pesquisa, o que podemos notar é que há três focos diferentes nos estudos de Jornalismo Visual: um primeiro com abordagem histórica do desenvolvimento da tecnologia ou de determinado periódico (evolução, tendências); um segundo que aborda de forma geral alguma caracerística ou elemento do jornalismo gráfico (cores, tipografia, infografia), e um terceiro que se volta para estudo da linguagem gráfica incluindo estudo de caso. Em nenhuma dessas teses há uma efetiva aproximação do Jornalismo Visual ou desenho jornalístico com as Teorias do Jornalismo, Teorias da Comunicação, Ética e Deontologia Jornalística, ou mesmo com a Teoria Crítica que marca presença em alguns dos cursos de Jornalismo.

AMOSTRAGEM: ALGUNS EXEMPLOS DAS ANÁLISES REALIZADAS À LUZ DA PROPOSTA DE PRINCÍPIOS PARA UMA POLÍTICA DA IMAGEM NO JORNALISMO VISUAL Durante três meses como professor visitante da Universidad de Sevilla (dezembro de 2013 a fevereiro de 2014), não só analisei o ensino de jornalismo visual nos cursos de jornalismo da Espanha como também os principais jornais e telejornais, principalmente no que se refere ao noticiário político. Acompanhei os noticiários dos principais canais de televisão – Canal Sur (local), TVE-1, La 2, Antena 3, Cuatro, Telecinco, la Sexta – em seus programas no início da manhã ou final do dia, sem no entanto identificar nenhuma produção visual relevante no apoio ou direcionamento das notícias como costumeiramente faz as emissoras brasileiras por meio de gráficos e videografia. Serviu, no entanto, para manter-me em condições de perceber a participação do jornalismo visual nas edições impressas e digitais dos principais periódicos. Mantive a atenção em alguns jornais, selecionando as edições em que o jornalismo visual atuava nas notícias políticas, algumas vezes em notícias esportivas ou de cotidiano que na España com frequência têm interferência de questões políticas, principalmente quando se trata de identidade regional (de determinadas comunidades autônomas) ou de soberania nacional e até mesmo de um crescente descontentamento com a monarquia. El País, La Razón (edición de Sevilla), Viva Sevilla, El Correo (de Andalucía), El Mundo (ed. Andalucía e ed. Nacional/Madrid), ABC (ed. de Sevilla), La Vanguardia, Marca, AS, 20 minutos, e a revista Tiempo foram os títulos acompanhados. Tanto o jornalismo político quanto o jornalismo econômico ocupam os espaços mais nobres (incluindo as capas) das edições. E são eles que solicitam mais o desenho de gráficos, infográficos e alguns tipos específicos de imagens como charges, caricaturas e fotomontagens. As edições digitais (para desktop, tablets ou smartphones) ainda utilizam as reproduções (em formato pdf ou jpg) das imagens originalmente produzidas para a edição impressa. Portanto, visto que na versão impressa as imagens estão no contexto adequado do design da página, interagindo com o espaço das matérias e criando outras correlações e leitura integrada, priorizei o registro das edições impressas.

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O design de periódicos na Espanha tem merecido destaque e logo abaixo da produção norteamericana tem reconhecimento inluindo constantes prêmios anuais do encontro da SND (Society for News Design) e Malofiej (o principal premiação da infografia no mundo). O design de El País feito por Reinhard Gäde, por exemplo, promoveu os formatos menores como tablóide e berliner como opções para jornais diários, influenciando o design de jornais do mundo todo. Antes da aposta por um design sóbrio em tablóide, esse formato era comumente associado a jornais sensacionalistas. Uma das observações que merecem atenção para uma contribuir para a crítica do design de notícias no Brasil é a de que alguns dos jornais espanhóis, independentemente de suas identificações com partidos e vertentes políticas, ainda mantém um padrão visual com certos cuidados que podemos considerar éticos, embora tenha significativas excessões. E que no Brasil já se perdeu, e o regular é o desrespeito. Vejamos alguns exemplos: El País: O desenho da edição impressa de El País tem espelhamento (ordem das editorias na sequência de páginas) que sugere uma leitura que primeiramente informa e contextualiza o leitor (do mais amplo para o mais próximo) para depois colocá-lo diante de editoriais, opiniões e análises. Essa disposição é diferente de outros jornais espanhóis (e também dos brasileiros) e exemplifica bem como a forma de apresentação interfere na recepção e apreensão do conteúdo, visto que ter acesso às notícias antes do espaço editorial e das opiniões promove uma leitura diferente daquela obtida na ordem contrária. Em harmonia com os efeitos produzidos pelo noticiário internacional, nacional, regional e local antes das páginas de opinião, há a escolha pelos estilos mais adequados das imagens e a forma como se dá a relação entre textos e imagens e as “duas velocidades de leitura”. Raramente há a utilização de uma imagem de evento anterior em substituição àquele noticiado, por mais semelhantes que possam ser. E quando isso ocorre, a legenda explicita tal uso. Essa forma de registrar a adequação na legenda está incorporada com naturalidade na mídia impressa espanhola, diferentemente do que em alguns casos observados na mídia televisual e principalmente em toda a mídia brasileira. Charges, como um tipo de ilustração altamente editorializada, é um recurso praticamente ausente na cobertura internacional de El País, e participa pouco no noticiário nacional e regional. As tiras de Peridis (José María Pérez González) normalmente aparecem como uma ilustração complementar a algum texto com mais peso interpretativo no noticiário nacional e não foge do tema e do tom da matéria. Diferentemente do que observamos nos mais importantes jornais brasileiros, em que a charge acaba acrescentando um olhar negativo para matérias que se vestem com a aparência de isenção. Nenhuma dessas tiras explora ofensas pessoais ou calúnias como encontramos por exemplo nos jornais brasileiros. Já as páginas de opinião são compostas por imagens também opinativas como ilustrações editoriais e humor gráfico como charges políticas e de sátira social. De forma geral, El País parece manter um padrão responsável na utilização de imagens, mesmo que tenha uma política editorial com alinhamento político ao PSOE (Partido Socialista Obrero Español) e em oposição ao atual governo que é do PP (Partido Popular). El Mundo - Embora o jornal tenha linha editorial e política conservadora, o projeto gráfico não é. Elementos gráficos, cores, imagens e uso do espaço estão dinamicamente

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aplicados possibilitando uma boa agilidade e leveza na leitura. O espelho de El Mundo distribui suas editorias de forma mais convencional e isso promove uma leitura bastante diferente daquela que se encontra em El País. Com sua disposição, os espaços diretos de opinião se dividem em dois momentos: o primeiro traz os editoriais do jornal, principalmente na página 3, e o segundo abre espaço para outras opiniões nas páginas seguintes às da editoria “España”, que é o maior espaço do jornal. O espaço reservado para notícias de temas nacionais, com mais peso para a cobertura política, é assim emoldurado por opiniões e, mais que emoldurado, é permeado em suas páginas com mais alguns espaços (colunas) de articulistas. A edição gráfica da páginas nos principais jornais espanhóis demonstra domínio sobre a relação texto-imagem-espaço nas várias dimensões de um projeto visual (topográfica/espacial, tipográfica e iconográfica). A separação ou a aproximação física e visual ajuda na correlação e hieraquia das informações com diversos níveis e formas. Em El Mundo, não só todas as colunas de opinião estão idenificadas com uma vinheta formada também pela imagem do articulista, mas os títulos dados por eles para seus textos são desenhados na versão itálica (inclinada) da tipografia. Esse uso tipográfico também está nos espaços opinativos de articulistas em El País, mas em El Mundo a diferença mais acentuada entre o desenho da fonte regular e sua versão itálica reforça a ideia de subjetividade, já que o traço tipográfico da fonte dos títulos (chamada Valencia) fica mais gestual e lembra mais a escrita manual, com contraste de hastes e remates bastante curvos, finos e alongados. Assim, o espaço bem delimitado e a tipografia já buscam avisar ao leitor: “aqui você está lendo uma opinião, assinada”. Ou ainda, tipograficamente já é possível perceber e diferenciar os espaços mais subjetivos daqueles que pretendem ser mais objetivos. As primeiras páginas de “Opinión” contam invariavelmente com uma ou duas charges políticas. O que é importante destacar aqui para os objetivos dessa análise é que além dessa certa independência do humor gráfico, há adequação de seu espaço, pois não encontrei nenhuma ocorrência em qualquer outra página que não fosse nitidamente identificada como de opinião. A posição do jornal fica evidente no humor gráfico. Independente de estarem nas matérias que tratam da cobertura local, nacional ou internacional, as imagens são moderadas, mesmo quando tratam de temas políticos e sejam editorializadas. Mas no contexto político de acordos e desacordos, alguma editorialização está presente. Devemos notar sobretudo que uma descrição simples da imagem e uma leitura interpretativa que procure também elementos simbólicos não divergem do que é tratado nos títulos ou nas matérias. La Vanguardia - O design de La Vanguardia (do escritório WBMG, de Milton Glaser e Walter Benard, o mesmo que redesenhou o jornal O Globo, do Rio de Janeiro), tem linhas mais agressivas e mais impacto visual. O resultado de seu conjunto de elementos é uma leitura mais dinâmica, mais possibilidades de leitura em dupla velocidade: um movimento de afastamento e aproximação da página (em relação aos olhos do leitor) conforme figuras e tipografia se projetam para a primeira leitura e depois o texto da matéria com corpo das fontes menor exige o retorno. Essa ergonomia da leitura produz o efeito dinâmico da página também em necessidades diferentes de atenção do leitor a cada instante, impondo uma certa tensão. Tudo isso é reforçado por muitos dos títulos

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que são menos autônomos em sua significação, menos informativos mas que provocam a dúvida e a curiosidade que são satisfeitas na leitura dos subtítulos acima ou abaixo dos títulos. Nas páginas de “Opinión” há mais ilustrações que acompanham os textos sem necessariamente complementá-los do que o humor gráfico/charges. O humor gráfico, no entanto, pode participar diretamente da editoria “Política”. O espaço “Ninots” de Toni Batllori (Antoni Batllorí Obiols) é frequente. Um exemplos de posicionamento da charge que interfere diretamente na matéria: entre o título e o texto. Se por um lado o lado gráfico de La Vanguardia se sobressai, as imagens políticas são bastante moderadas, quase sem editorialização, quase protocolar, mesmo quando o tema foi absolutamente de interesse catalão, como o anúncio de uma data para um referendum secessionista. ABC – Nesse jornal a linha editorial (de direita, defendendo a monarquia e valores do catolicismo) e as opções políticas do jornal estão mais presentes nos textos, principalmente na entrada visual pelos títulos do que o que se pode interpretar a partir das imagens fotográficas. O texto é que define a imagem e não o contrário. Uma leitura a partir das imagens (exceto as charges, que são poucas) não permite perceber mais do que os agentes envolvidos nos acontecimentos e nas notícias, mesmo que a pauta católica seja maior do que em outros jornais. Charge política, normalmente nas páginas de “Opinião” e em espaços bem delimitados e independentes das demais opiniões. La Razón - O design de páginas de La Razón é mais contido do que em ABC. Não há tanta variação e o projeto não tem tanta proximidade com o design de revistas. Títulos longos que ocupam duas ou mais linhas é comum. Alguns destaques tipográficos recebem uma segunda cor (azul composto por ciano e magenta), de forma discreta. Aspecto negativo de La Razón é sua produção de capas polêmicas, utilizando diversos recursos de imagem, texto ou na relação imagem-texto. Algo como tem se tornado a revista Veja no Brasil. La Razón utiliza mais as fontes sem serifas e mantém a grafia de fontes em itálico para os textos opinativos (editoriais e articulistas), como outros jornais. A edição de páginas e de imagens não me parece interferir na leitura das matérias. São principalmente indicativas de quem é e onde está o retratado pela notícia. As ilustrações nos espaços de artigos de opinião ou análises são apenas complementares. Charges apenas abaixo do editorial principal, desenhados normalmente por Caín (que é uma dupla formada pela arte de Federico del Barrio e roteiro de Felipe Hernández Cava). As charges de Caín não são agressivas; bem desenhadas, são sobretudo de um humor rebuscado. O jornalismo televisual espanhol – A intenção de acompanhar e abordar aqui o noticiário da televisão espanhola é apenas complementar alguns aspectos do Jornalismo Visual no comportamento das práticas nos meios impressos e digitais e observar algo diferente do praticado no Brasil. Quando se fala em Jornalismo Visual, habitualmente está-se tratando do design gráfico aplicado ao jornalismo impresso ou ao jornalismo digital online. Mas na televisão ele também participa na composição da notícia, ainda que de forma secundária em relação à própria reportagem e à edição de imagens. Isso ocorre principalmente na videografia que produz vinhetas, gráficos, infográficos e grafismos diversos, com ou sem texto, para apoiar a construção das notícias (organização

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paradigmática e valores simbólicos) e são vinculados à cenografia, à identidade visual e às linhas editorial e política do telejornal ou da emissora. Com a televisão digital e desenvolvimento de novos recursos computacionais, tem aumentado consideravelmente a presença do design gráfico no telejornalismo espanhol. A composição visual pode ser estruturada no telejornalismo em três principais instâncias: Identidade visual, organização do espaço-tempo e desenho da notícia. Todos os elementos gráficos (e videográficos) e cenográficos que tenham como principal função ajudar o telespectador a reconhecer a emissora formam a identidade visual. O cenário (desenho do espaço, mobília, iluminação em harmonia com o jogo de posicionamento de câmeras e enquadramentos), os logos (marcas e logomarcas), as vinhetas de abertura e as de passagem (entre blocos ou na saída e retorno de inserções comerciais), as cores, formas, tipografia e a forma de se inserir as tarjas com caracteres, conhecidas como (que identificam os apresentadores, repórteres, entrevistados ou que “titulam”, “manchetam” uma matéria) são alguns desses elementos que compõem a identidade visual. Participam do conteúdo tratado pelo noticiário na medida em que trabalham com a expectativa e com o reconhecimento dos valores e estilos por parte do telespectador. Assim é que, por exemplo, evidenciam-se a diferença entre a sobriedade dos Informativos Telecinco e o tratamento agressivo e bem-humorado de Al Rojo Vivo. A organização do espaço-tempo se dá no fluxo de informações e na interação entre os participantes ativos da notícia (apresentadores, comentaristas, repórteres, entrevistados), os ambientes (dentro do estúdio e links para reportagens externas) e as temporalidades coordenadas entre a emissão ao vivo e as inserções gravadas. Os diversos recursos gráficos são fundamentais para marcar essa interação, seja por meio de vinhetas e efeitos de transição, pela divisão da tela entre dois ambientes (normalmente entre estúdio e link externo) ou pelas tarjas com geração de caracteres, conhecidas por “arte GC”. Diferentes composições visuais são garantidas pela edição de imagens em tempo real, possibilitadas por posicionamentos de câmeras em diferentes ângulos e enquadramentos que colocam em primeiro plano os apresentadores do telejornal e em segundo plano o fundo composto pelos elementos de estrutura do cenário ou na interação com telas e videowalls. A substituição do Chroma Key (recurso que inseria o sinal de imagem no fundo azul ou verde) pelas telas LED ampliaram as possibilidades de interação entre dois espaços distintos. Uma delas foi o uso da perspectiva e consequentemente uma alternativa ao enquadramento tradicional até então de plano médio da bancada com videografia ao fundo. Os apresentadores também se levantaram e passaram a andar pelo cenário. Não se trata apenas de criar dinamismo, ampliar o espaço e criar o instante de diálogo entre os que estão em dois espaços distintos, nem mesmo apenas de mais uma ilustração ao texto falado, que seria a dimensão estética. Trata-se sobretudo de construir ou dar visibilidade a diferentes níveis de mediação da notícia. A infografia dinâmica do Noticias 1 (Antena 3) só se completa com a participação da apresentadora em pé e ao lado da tela, como antes só víamos nos quadros de meteorologia. A aproximação entre o apresentador no estúdio e a videografia pode produzir efeitos de imersão como em Noticias 2 (Antena 3). E, de outra forma, o Noticias Cuatro 20h (Cuatro), em que o jornalista utiliza o videografismo para passo a passo desenhar a rede e o mapa da corrupção, por exemplo.

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No momento em que a imagem está centrada na bancada em plano medio, a notícia agrega a credibilidade dos apresentadores. O plano americano ou plano geral dos apresentadores no cenário abrem o diálogo com as imagens externas. A tela dividida traz a simetria dos espaços, traz a notícia para o crivo do telejornal. A tela menor “assina” e marca a presença do repórter (e consequentemente do telejornal) no local do acontecimento. Estar dentro, mais próximo ou mais distante da fato noticiado ou do telespectador produz diferentes efeitos de sentido. Se não houver a conexão entre a forma de mediação pelas imagens e o que está sendo dito e como está sendo dito, a composição visual e os grafismos ficarão restritos às funcões meramente estéticas e ainda podem produzir prejuízos ou queda na qualidade da informação. É possível identificar muitas das estratégias o uso de imagens na cobertura política. As figuras públicas da política aparecem em situações bem previsíveis e que geram imagens muito semelhantes nos meios impressos e na televisão: são reuniões, pronunciamentos em coletivas, entrevistas em estúdio ou em gabinetes e momentos em que estão entrando ou saindo de prédios em que estiveram envolvidos em reuniões ou depoimentos fechados para a imprensa, normalmente percorrendo poucos metros entre a porta do carro e a porta do prédio. As entrevistas no estúdio de TV são mais raras, pois “despem” a personalidade política de toda a visualidade que poderia estar a seu favor. O contrário ocorre nas coletivas, em que os partidos políticos ou os órgãos públicos preparam o cenário com forte identificação visual. E os partidos utilizam suas cores sabendo que o efeito produzido na tela será de grande destaque e identificação imediata. PSOE (Partido Socialista Obrero Español), em vermelho, e PP (Partido Popular), em azul, representam não só a clássica oposição cromática de complementares (opostos no círculo cromático) como a política española em si, tendo alternado os últimos quatro presidentes. O jornalismo televisual minimiza esse efeito, ou a aparência de discurso oficial, com a inserção de contraplanos e imagens que mostram a natureza mediada (abre o plano ou muda o ponto de vista para mostrar o trabalho dos jornalistas). Quanto “mais gráfico” for um telejornal, mais promoverá a consciência do telesepectador de que ele está diante de material editado. Por exemplo, no 24 horas Noticias a arte GC e a segunda tela sobre as imagens de imigrantes africanos após entrarem em Ceuta evitam uma leitura mais emocional que talvez fosse a desejada na captura da imagem e na sua edição. Detalhes, como os pés descalços nesta matéria ou em outra sobre a pobreza e infância formam imagens com simbologia inserida na “realidade” mediada. O grafismo age na contramão. E por mais que possam ter cantos arredondados, as linhas retas da arte GC e das bordas que separam as divisões de telas anunciam um pensamento mais racional sobre as notícias. E a quantidade de grafismos de superfície com bordas, tarjas e caracteres aproximam mais ainda a tela da televisão de uma página impressa ou digital. Assim, a identidade visual e todos os elementos de grafismo participam na construção da informação veiculada, assim como participam também na organização e hierarquização das informações na tela a edição sequencial que organiza o fluxo, toda a ambientação do espaço e a presença dos apresentadores, repórteres, comentaristas etc. Mas o design gráfico televisual tem também elementos de participação direta no desenho da notícia por meio de gráficos, infográficos, cartografia animada e demais artes

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videográficas como as vinhetas construídas especificamente para ilustrar certas notícias. Os gráficos na televisão são os recursos que mais se assemelham aos utilizados nos impressos, ainda que possam contar com movimento e desenvolvimento passo a passo. Composição de um parlamento, intenções de voto, porcentagens de apoio a alguma questão etc. podem ser tratados com gráficos convencionais e eventualmente apoiados em outras imagens. Mas pouca atenção tem sido dada para os efeitos de cada opção gráfica para a condução da informação. Em períodos eleitorais, a polarização entre dois partidos políticos (como PSOE e PP na Espanha, Democratas e Republicanos nos Estados Unidos ou PT e PSDB no Brasil) podem ser representados de diversas formas nos mapas que contabilizam os votos e essas possibilidades podem corresponder a intenções políticas ou editoriais de quem as exibe. No noticiário político ou econômico-político, é recorrente e esperado que, se a notícia trata de alguém (positivamente ou negativamente), deverá ser a imagem dessa pessoa a figurar na imagem frisada nas telas de fundo. E essa imagem não fica destituída de outros valores incorporados já que, mesmo que o instante que servirá para ilustrar não tenha nenhum tratamento gráfico suplementar, qualquer instante é um fragmento que isola uma expressão e que será lida sob influência do que é relatado na notícia. Ao contrário dos meios impressos em que não há perfeita simultaneidade entre imagem e texto, a imagem na televisão pode ser vista ao mesmo tempo da recepção do texto falado. E isso faz diferença. De toda a visualidade dos telejornais, é a editorialização dessas imagens de fundo e a interação dos jornalistas que evidenciam mais o jogo político com as intenções do projeto editorial e linhas políticas dos programas e das emissoras. Temas como corrupção podem receber tratamento gráfico mais agressivo dependendo da linha editorial do programa. Quanto mais opinativo e interpretativo for, mais intervenções gráficas. O que podemos observar, no entanto, é que embora muito menos gráfico que o espanhol, o telejornalismo brasileiro incorpora mais valores negativos às notícias políticas em sua videografia e distorce seus gráficos como estratégias para validar suas “convicções” políticas.

PROPOSTA DE PRINCÍPIOS PARA UMA POLÍTICA DA IMAGEM NO JORNALISMO VISUAL Quando abordamos a produção de imagens e de composições gráficas no Jornalismo, nos colocamos diante de uma prática que permite e até deseja maior participação de processos criativos. A liberdade criativa, no entanto, está na contramão dos valores que pautaram a objetividade desejada para a prática do Jornalismo desde que o positivismo separou no Jornalismo o fato da representação e o texto factual do opinativo e do interpretativo. Por mais que os conceitos sobre verdade, objetividade, imparcialidade, representação tenham sido construídos e desconstruídos por estudos de Jornalismo e de Comunicação, assim como as práticas se alteraram ao longo do tempo, as diretrizes que pautam a ética e a deontologia do Jornalismo ainda mantém os lastros em boa parte desses pilares conceituais. Os próprios produtos do Jornalismo são vendidos e legitimados com aderência a esses pilares, principalmente “verdade”, “objetividade” e “imparcialidade”, ainda que muitos tenham conseguido se descolar da imparcialidade como princípio sem comprometer sua imagem de retidão junto aos leitores/espectadores. E a

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imagem é o ponto de instabilidade na vibração dessa frequência positivista, justamente por sua liberdade criativa, por vezes polissêmica. O texto escrito solicita mais rigor ou tem mais mecanismos de controle social enquanto a imagem e a composição gráfica da informação se conformam na percepção estética superficial e na “liberdade criativa” que camuflam as intenções na composição e os valores incorporados na totalidade daquilo que se deseja comunicar. Nos produtos da comunicação jornalística, convivem uma série de expressões gráficas com participações muito distintas. Uma imagem fotográfica atua em uma lógica diferente do gráfico ou do desenho tipográfico, por exemplo. Podemos desenhar de forma mais complexa e totalizante uma página ou uma tela com determinada notícia, onde a disposição espacial e a presença de espaços vazios podem ser significantes, assim como cada elemento isolado pode ter ou não força no direcionamento ou produção de sentido no ato de leitura. Enquanto uma ilustração é reconhecida pelo leitor como uma expressão da subjetividade de seu autor, um gráfico é tido como altamente objetivo, imparcial e fidedigno como representação dos dados de determinada fonte (esta sim, por vezes questionada). A ilustração, no entanto, com todo seu status de liberdade pode ser correto na transparência do que pretende informar enquanto o gráfico pode ter um desenho que na sua representação e relações entre elementos (cores, proporções, estilo, tipografia, destaques, recorte, enquadramento) altere substancialmente o conteúdo original dos dados da fonte original. Por sua vez, a imagem fotográfica transitará tanto entre a expressão estética e a representação de um fato ou acontecimento, e com diversos níveis de reconhecimento por parte daquele que a vê no contexto da página desenhada. No jogo entre imagem e texto, há diversas possibilidades de composição e de leitura, mantendo autonomia na significação de cada elemento ou não. Assim, o Jornalismo Visual constitui-se na maior expressão da impossibilidade da objetividade no jornalismo, pois apesar de todo e qualquer esforço de construir formatos objetivos de produção da notícia, mesmo nos gêneros mais factuais, o Jornalismo Visual pode sempre ser o gênero complementar que hierarquiza, predetermina a leitura, antecipa-se ao texto e dispara repertórios e outras imagens endógenas, configura a leitura do texto e até mesmo pode fragilizar sua credibilidade. Não há o que fragilize mais o Jornalismo Visual do que o não reconhecimento de que o design gráfico (com suas cores, tipografia, grafismos e ilustrações), o humor gráfico (com suas charges, caricaturas e tiras) e a visualização de dados e infografia (com seus gráficos, mapas e narrativas visuais) também desenham as informações jornalísticas, embora nem mesmo possam ser designadas como “de” jornalismo. Um ilustrador, um chargista, um caricaturista, um cartografista, videografista, designer não são necessariamente jornalistas. Aliás, quase nunca são. Mas um editor de arte, um fotojornalista e um infografista podem não ser, mas cada vez mais são. Ou seja, as decisões sobre o uso de imagens no jornalismo são decisões que partem do jornalismo, e aí faz todo sentido se falar em Jornalismo Visual. E se é jornalismo, entra em jogo todas as questões sobre o direito à informação (de qualidade) e a liberdade de expressão. Essa é a dimensão política do Jornalismo Visual que podemos encontrar na produção midiática, que todavia não é plenamente consciente em todos os agentes envolvidos nos processos de produção da notícia, assim como está negligenciada na formação de

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novos jornalistas. Há um distanciamento que parece ser naturalmente constituído nas universidades entre a formação de habilidades para o desenvolvimento de uma prática jornalística (com suas disciplinas específicas) e os conteúdos que se voltam para formar um jornalista com boa formação política, ética e humanista de forma geral. Na prática profissional, encontramos a dimensão política por vezes sendo considerada (servindo tanto para a construção de um Jornalismo correto em seus princípios de ser objeto de interesse público) e por vezes negligenciada (não explorando o potencial de expressão do Jornalismo Visual ou até podendo gerar problemas comunicacionais). Não posso deixar de apontar que o Jornalismo que vem sendo praticado atende a interesses comerciais e políticos sobrepujando o interesse público. Grandes corporações centralizam a circulação de informação, seja diretamente por meio de seus produtos midiáticos como pautando a circulação livre em redes sociais. Colocando em termos de necessidade de programas de ensino que articulem as disciplinas responsáveis pelo Jornalismo Visual com outras que formam a base ética, política e geral humanística, no pano de fundo de toda essa questão também podemos derivar a necessidade de que os profissionais envolvidos na construção visual do Jornalismo tenham tal formação, ou que pelo menos daqueles responsáveis por determinar com o quê e como a visualidade participará da construção da comunicação em seus produtos jornalísticos. Em linhas gerais, essa é a proposta de uma política da imagem no Jornalismo. De forma específica, apresento algumas proposições que devem servir como orientação. Não devem ser tomadas como regulamentação ou qualquer tipo de cerceamento à liberdade de imprensa, mas como diretrizes para tomadas de decisões. Neste momento, estão desenhadas em 20 recomendações: 1. Todos os profissionais responsáveis pelas etapas que vão da pauta até a publicação final devem ter consciência de que cada elemento participa na contrução da informação jornalística. A simples mudança de posição de uma página desenhada no espelho de uma publicação – de página par para página ímpar, por exemplo – pode interferir na forma como a informação será lida. 2. Todos os jornalistas, editores, designers, fotógrafos e ilustradores envolvidos na produção devem ter consciência de que o produto jornalístico será permeado por suas subjetividades. Cabe a cada um deles cuidar para que essas marcas de subjetividade não distorçam a informação e não desprezem o sentido último de servir ao interesse público. 3. A apresentação visual da informação jornalística deve permitir ao leitor/espectador perceber a função e a intenção da sua composição e de seus elementos formantes no que se refere ao conteúdo. 4. Como o Jornalismo Visual é um gênero complementar, o gênero dos elementos de visualidade devem corresponder ao gênero dos elementos textuais ou, em caso de serem de gêneros distintos, não devem ser desenhados de tal forma que um desconstrua o outro, principalmente quando a interferência de um sobre outro não seja perceptível para o leitor/espectador. Nesses casos, a apresentação deve garantir o paralelismo. 5. A composição visual em qualquer uma das dimensões do projeto visual (topográfica, iconográfica, tipográfica e cromática) não deve confundir o leitor/espectador quanto ao gênero ou subgênero do jornalismo da publicação.

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6. Na relação entre texto e imagem, um não deve desqualificar ou negar o outro a menos que a integração texto-imagem seja claramente percebida com essa intenção e não possa gerar leituras desconectadas entre seus elementos. 7. Os responsáveis pelo desenho da informação jornalística devem estar conscientes de que as imagens produzirão recortes mais delimitados do que os já promovidos pelo texto. A imagem pode, por exemplo, tomar um fragmento (de tempo, de espaço, de agentes envolvidos no fato ou acontecimento etc.) como o todo. Nestes casos, a síntese promovida pela imagem deve ser por si correta em sua formulação, o que significa atender ao enunciado no item anterior. 8. Há momentos em que algo possa vir a ser noticiado mas não deve promover interpretações ou conclusões do leitor/espectador de forma antecipada. São casos de acusações e processos em andamentos, acidentes sob investigação etc. Nestes casos, a atenção na edição de imagens deve ser redobrada. Por exemplo, a escolha de uma garrafa quase vazia de bebida alcóolica como primeiro plano em um acidente de carro induz o leitor a concluir teor alcóolico do motorista como causa, mesmo que nem tenha havido conclusão na investigacão do acidente. 9. Toda produção de imagens e de composições visuais opera recortes por meio de seleções e edições. Com isso, para cada informação publicada haverá outras tantas que ficarão fora. Todos os responsáveis devem zelar para que o interesse público prevaleça nessa seleção e que não haja prejuízo para a clareza e retidão da informação. 10. Mais do que um recorte, toda informação jornalística também é uma redução, fruto de codificação. Todo leitor opera uma decodificação no ato da leitura e busca recuperar as dimensões perdidas nessa redução, fazendo uso de seus repertórios. A diferença entre o que foi reduzido e o que foi recuperado (como reconstrução) é o que define as distâncias entre o fato ou acontecimento, o produzido e publicado e o compreendido. As imagens e a disposição visual da informação deve procurar favorecer a retomada das dimensões perdidas com o mínimo desvio possível. 11. Se o discurso institucional de uma publicação criar no leitor a expectativa de que ele está diante de informações pautadas em verdade, realidade, imparcialidade, neutralidade, isenção, objetividade e precisão ­– ainda que compreenda toda relatividade inerente a cada conceito –, toda imagem ou desenho de informação deve procurar atender aos mesmos princípios ou evidenciar seu afastamento deles. A verossimilhança como recurso de imagem deve ser apresentada e reconhecida como tal. 12. Deve haver correpondência de conteúdo entre a leitura superficial e veloz promovida pelos elementos de primeiro plano como títulos, intertítulos, chapéus, olhos, fotos, legendas, gráficos, mapas etc. e a leitura profunda e completa que compreende também os demais elementos da página como as matérias em si. A leitura veloz não deve propositadamente levar o leitor/espectador a um entendimento contraditório em relação ao obtido pela leitura em profundidade. Isso não significa que a leitura superficial deva ser suficiente ou que não possa, incompleta, motivar o leitor a partir para a leitura profunda. 13. A construção visual da informação jornalística deve ter como referência o repertório do seu leitor/espectador em dois sentidos: correspondência ao repertório já existente e conhecido e formação de novo repertório. No segundo caso, deve ser promovido

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cuidando-se para que, até que o objetivo seja alcançado, a ausência no repertório do leitor não distorça a informação. 14. Algumas imagens e composições visuais, principalmente abstratas, podem provocar leituras ambiguas ou diversas interpretações e são válidas como recurso ou como estratégia para promover uma experiência estética, liberdade ou interatividade do leitor/espectador. Os responsáveis pela edição gráfica devem considerar a ambiguidade e a polissemia das imagens e da configuração visual, exercendo alteridade com todos os possíveis leitores, mesmo aqueles que não fazem parte do público-alvo da publicação, cuidando para que a informação não gere socialmente outro sentido que possa ser ofensivo, depreciativo, preconceituoso ou expressão de qualquer outra inadequação cultural. 15. Persuasão e convencimento não devem fazer parte das estratégias das imagens no jornalismo. 16. No caso a imagem fotográfica, a posição da lente de captura induz o ponto de vista do leitor/espectador. Projeta-se a posição do observador na cena. Se for compatível com uma posição possível, o observador assume mesmo que intuitivamente um determinado papel. Em um conflito entre manifestantes e força policial de repressão, o fotógrafo que se posicionar do lado dos manifestantes produzirá imagens em que colocará o leitor/observador em posição de encontro com os policiais; o fotógrafo que se posicionar do lado dos policiais produzirá uma imagem que colocará o leitor diante de protestantes que se parecerão se dirigir ao observador ou contra ele; um fotógrafo que se posicionar no alto de um prédio ou em um helicóptero produzirá uma foto em que não haverá coincidência do ponto de vista da lente com uma visão possível do leitor/ observador e consequentemente a imagem guardará distanciamento dos envolvidos no conflito. O fotojornalista e o editor de imagens deve ter consciência dos efeitos de sentido de cada enquadramento e selecionar aquele(s) que melhor exponha(m), resuma(m) ou contextualize(m) o fato e aquele que coloque o observador em um ponto de vista mais adequado para corresponder ao interesse público do fato. 17. O desenho de uma página ou tela e suas imagens devem promover efeitos de sentido planejados para a melhor exposição do conteúdo jornalístico, evitando-se assim que apenas atendam a uma necessidade de se produzir algo visual ou ilustrado. 18. As imagens agregam valores à informação como, por exemplo, por meio das experiências primárias ou pré-predicativas como demonstrado por Harry Pross. São pares binários de experiências primárias que podem validar certos valores às imagens “dentro-fora”, “esquerda-direita”, “alto-baixo”, “vertical-horizontal”, “claro-escuro”. Os produtores de informações visuais no jornalismo devem evitar utilizar tais formas de agregar valores às imagens com a intenção de validar informações que não se sustentam sem tais recursos e que interfiram na retidão da informação. 19. Propõe-se que antes de ser publicada uma imagem passe por uma análise que ateste sua adequação. Uma das formas de se fazer isso é elaborar, mesmo que mentalmente, uma descrição da imagem como se fosse para um não-vidente, primeiramente de seus elementos plásticos (o que está presente na imagem e com que enquadramento, aspecto denotativo), depois expressivos (o que está enunciando, aspecto conotativo), e finalmente hipoteticamente qual seria a intenção daquela imagem ter aqueles elementos, aquela configuração plástica e aquela expressão gráfica e conteudística. Feito isso, cabe

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ao responsável pelo desenho da informação avaliar se de forma textual tudo isso poderia ser publicado em texto sem comprometimento ético da informação e se há correta correspondência ou complementaridade com os outros elementos textuais da informação. 20. Diferentemente de ilustrações e fotografias, os gráficos são representações que se apoiam em um contrato com o leitor que o considera uma expressão correta, isenta, imparcial e precisa. Isso ocorre principalmente na visualização de dados que se apoiam em dados numéricos, matemáticos, temporais, geográficos, estatísticos etc. Uma série que aponte a evolução e determinado índice econômico em determinado recorte de tempo ou um mapa que aponta o local de determinado acontecimento ou a evolução de determinada ocupação espacial são lidos como jornalismo de precisão. Tanto o jornalista que solicita a produção dessas informações quanto os designers que o produzem devem cuidar para que o tipo de gráfico e o uso de cores, proporções, destaques, tipografia, ícones e demais recursos gráficos mantenham a maior neutralidade possível e adequada correlação entre a informação da fonte original e sua apresentação gráfica. Devem ter plena consciência de que o uso de um ou outro tipo de gráfico, os recortes, seleção, supressão e o destaque para segmentos dos dados, produz diferentes efeitos de sentido que podem interferir diretamente na compreensão dos dados e na matéria como um todo. A evolução de um índice pode parecer controlado ou sem controle simplesmente alterando-se a inclinação de uma linha (alargando-se ou achatando-se um eixo de um gráfico), um gráfico pode alterar a sensação de participação de maior ou menor conforme o desenho escolhido, as cores, ou a posição de cada dado. Muitos são as possibilidades de criar diferentes efeitos em gráficos e há inclusive muitos em que a expressão gráfica sequer corresponde ao desenho correto, com estratégias para que o leitor/espectador não tenha condições de comparar os dados, principalmente nos gráficos exibidos em programas televisivos. Três circunstâncias tornam este momento oportuno para pensar a dimensão política do Jornalismo Visual. 1) Durante a sua campanha à reeleição em 2014, a presidenta do Brasil Dilma Rousseff reafirmou a necessidade de uma regulação da mídia no país e sua intenção em promovê-la durante sua gestão, fazendo com que questões como regulação da mídia (econômica e de conteúdo), liberdade de imprensa e de expressão ganhassem força na pauta do debate público. 2) Todos os cursos de graduação em Jornalismo do Brasil estão revisando seus projetos pedagógicos para atender às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Jornalismo do Ministério da Educação. 3) Recentemente (7/01/2015), a redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo sofreu um ataque terrorista provocando a morte de doze pessoas, entre elas quatro dos principais cartunistas (Charb, Cabu, Tignou e Wolinski), reabrindo o debate sobre a liberdade de expressão e o poder e limites do humor gráfico nas relações humanas, políticas, religiosas, enfim sociais.

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Novas estéticas ao jornalismo televisivo: ruptura e renovação das linguagens a partir do uso das câmeras onipresentes profissionais New aesthetics to TV journalism: ruptures and renewal of languages through the use of the ubiquitous professional cameras M au r a O li v ei r a M a rtins1 Resumo: O presente artigo busca analisar certas mudanças narrativas e estéticas ao telejornalismo, como forma de concretizar uma estratégia aqui chamada de câmera onipresente profissional, que envolve a produção, por parte das emissoras, de conteúdos carregados de sentido de autenticidade por explorar algum elemento da estética típica do amador, ainda que estejam visivelmente mediados pela instância jornalística. Entende-se que este fenômeno como uma forma de reação e resposta dos veículos de telejornalismo a um cenário de midiatização, no qual a proliferação dos dispositivos tecnológicos multiplica os registros visuais amadores, compreendidos pelos espectadores como mais genuínos e menos mediados. Deste modo, as linguagens telejornalísticas tendem a ser reconfiguradas – optando-se por efeitos de silenciamento, de perda de controle da enunciação e de uma baixa mediação por parte das emissoras – como forma de contemplar um espectador que tende a dominar e a desconfiar das já conhecidas linguagens midiáticas.

Palavras-Chave: Telejornalismo. Câmeras onipresentes. Dispositivos de registro do real. Câmeras amadoras. Linguagens jornalísticas.

Abstract: In this article, we intent to analyze some changes observed in the narrative and aesthetics formats of TV journalism, as a strategy that we call professional ubiquitous camera. It involves the production by the TV stations of some journalistic content that can be read as authentic, since it explores an amateur aesthetics, even though this content is highly mediated by the media. We understand this phenomenon can be seen as a response to the omnipresence of technologic devices that visually register the world. Thus, the TV news languages tend to be reconfigured – using some effects as the use of silence, the loss of control of enunciation and a low mediation by the broadcasters – in order to attract a spectator who tends to be aware of the well-known approaches used by media and even to distrust them.

Keywords: TV journalism. Ubiquitous cameras. Real-world recording devices. Amateur cameras. Journalistic languages. 1.  Jornalista, doutoranda do Programa de Pós Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (PPGCOM- USP). Professora-pesquisadora e coordenadora do curso de Jornalismo do UniBrasil Centro Universitário. Email: [email protected].

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1. INTRODUÇÃO M MEIO à cobertura dos protestos populares decorridos em todo o país em junho

E

de 2013, o público do Jornal Nacional assistiu a uma reportagem intitulada Imagens exclusivas mostram ação dos vândalos no Rio2, na qual se exibe mais de 3 minutos – tempo considerado bastante extenso para os parâmetros do telejornalismo – de imagens editadas sem qualquer inserção de recursos tradicionais do jornalismo em televisão, como texto em off ou passagem de um repórter da emissora. À exceção do texto proferido pela apresentadora Patrícia Poeta na bancada do telejornal e uma legenda anexada aos vídeos, que indica temporalidade ao fato e direciona significação ao fato mostrado3, o que se observa é uma série de imagens, destacadas como exclusivas, que foram capturadas por um profissional da emissora4 e exibidas em rede nacional de maneira sobreposta, sequencial, sem um trabalho forte de edição. Ainda que estas imagens sejam de boa qualidade técnica, com enquadramento correto e boa legibilidade da cena – e que, portanto, evidenciem terem sido registradas pelo trabalho de profissionais – há uma espécie de continuidade à estética preconizada nos registros amadores ou conteúdos gerados por usuários (Klatell, 2014), que gradativa e sistematicamente são aproveitados pelos veículos de telejornalismo. Ao exibir um material que, a princípio, parece pouco mediado – pois o trabalho de edição feito pelo telejornal se centraliza no corte e na escolha das imagens, exibidas sob uma espécie de ‘silêncio institucional’, como se o acontecimento falasse por si próprio e não pelo engendramento de um discurso escolhido ou organizado pela emissora – o veículo estabelece certas estratégias de sentido. É possível inferir que a emissora busca, intencionalmente, abrir mão do controle da emissão e aproximar seus modos de narrar a uma estética mais típica dos registros não profissionais. Na presente análise, interessa-nos refletir sobre possíveis mudanças à retórica do telejornalismo, em decorrência, sobretudo, de um processo de midiatização que aponta a uma crise no jornal jornalismo enquanto instância central que reporta e traduz o mundo, ocasionando, assim, rupturas com os formatos tradicionais de veiculação da informação. Neste contexto, a corporação profissional jornalística se vê instada a repensar o controle absoluto que antes tinha do produto básico informativo: a notícia. Em meio à crise evidente das formas tradicionais de jornalismo diante da circulação de informação através da internet em tempo real e fluxo contínuo, o estatuto conceitual da notícia suscita considerações de ordem prática para a corporação editorial, inclusive a de saber se os tradicionais produtores do texto jornalístico ainda podem determinar em última análise o que é ou não uma notícia (Sodré, 2009, p. 23).

Opera ainda como sintoma deste cenário a onipresença dos dispositivos que registram o real, que se popularizam na mão da população e possibilitam que as câmeras estejam sempre em situação de ubiquidade. É possível agora que o público capture a todo instante cenas do mundo e disponibilize este conteúdo em tempo real, seja nas 2.  Reportagem disponível em . Acesso em 05 de março de 2015. 3.  A legenda diz “Vandalismo no Rio de Janeiro ontem à noite”. 4.  Trata-se do repórter cinematográfico Tyndaro Menezes, um dos profissionais “sem rosto” da emissora televisiva, que são razoavelmente conhecidos pelo público pelo nome mas cujo rosto nunca é exibido nas reportagens, de forma a facilitar o trabalho investigativo.

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redes digitais, seja oferecendo-o aos próprios veículos jornalísticos, que se abastecem com frequência deste material, aparentemente pouco mediado e, por isso, entendido coletivamente como mais autêntico ou crível. É praticamente impossível pensar hoje em alguma edição diária de telejornal que não faça uso, em alguma medida, deste conteúdo gerado por usuários. Estas tecnologias, somadas à aquisição coletiva de linguagens midiáticas e a uma facilidade no acesso à produção de mensagens, possibilita que muitos falem – ao menos em âmbitos restritos ao ambiente virtual da internet – o que potencializa uma crise da instituição jornalística enquanto instância autorizada a produzir discursos que traduzem o mundo tal qual ele existe. Este panorama evidencia uma crise na própria identidade do jornalismo clássico como mediação discursiva e no seu papel para a pontuação temporal tradicional dos acontecimentos. A onipresença dos processos midiáticos, a presença permanente na rede, a abolição das distâncias e dos prazos deslocam a notícia do passado (“aconteceu”) para “algo que está acontecendo” (Sodré, 2009, p. 24). A este processo sucede “um sentimento constante de desorientação informativa, provocado sobretudo pela abundância noticiosa” (Nóra e D’abreu, 2014, p. 6), que atesta um decréscimo na confiança histórica atribuída à imprensa como instituição maior a promover e divulgar a verdade. As diferentes versões do fato publicizadas nas redes digitais – sustentadas por signos diversos, como testemunhos pessoais, interpretações e análises diversas, registros visuais amadores divulgados como provas incontestáveis – explicitam ao espectador que não é mais possível ter contato com uma verdade absoluta acerca dos fenômenos que se desenrolam. Assim, o contexto solicita aos veículos de comunicação que repensem seus modos de atuação, no intuito de manter sua legitimidade perante um público que, historicamente, o sustentou pagando pela verdade, e não pela dúvida (Castilho, 2015). Interessa-nos aqui, portanto, propor a reflexão sobre possíveis mudanças estéticas e narrativas constatadas no telejornalismo brasileiro de modo a enfrentar os desafios causados pela onipresença dos processos midiáticos no cotidiano da população. Em especial, vislumbra-se aqui as consequências causadas pela ubiquidade de câmeras amadoras e o aproveitamento sistemático dos conteúdos concretizados por elas na própria instância jornalística, que agora se vê compelida a adaptar suas estratégias para concorrer com a retórica preconizada por este material. Trata-se da busca de novos efeitos de real que tenham condições de confrontar o grau de veracidade atribuído a estes conteúdos gerados externamente ao jornalismo.

2. A CÂMERA ONIPRESENTE PROFISSIONAL ENQUANTO ESTRATÉGIA DE AUTENTICIDADE A reflexão aqui proposta faz parte de pesquisa de doutorado em desenvolvimento , na qual se investiga as diferentes nuances técnicas, estéticas e narrativas pelas quais o telejornalismo faz uso dos materiais gerados pelos dispositivos tecnológicos 5

5.  Refere-se à tese “Em busca de uma estética das câmeras onipresentes – reconfigurações do telejornalismo frente à ubiquidade dos dispositivos de registro do real”, atualmente em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com previsão de defesa para fevereiro de 2016.

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que registram visualmente o real. Conforme já abordado, frente a um cenário de questionamento da legitimidade do jornalismo como instância preferencial para registro e narrativização do mundo, os conteúdos trazidos por estes dispositivos adquirem forte apelo ao público por estarem carregados de uma expectativa de genuinidade. Ou seja, espera-se que estes vídeos revelem um real ocorrido para além da representação controlada do eu (Goffman, 2004), que escape da performance que é concretizada pelo indivíduo – mesmo de forma instintiva, involuntária – sempre que ele tem ciência de estar sendo observado. Ao analisar as situações cotidianas de comunicação desempenhadas pelos sujeitos, Goffman (id) ressalta que o ator sempre demonstrará empenho em administrar aquilo que chega ao conhecimento da plateia, de forma a não destruir a performance que constrói. Por esta perspectiva, é possível inferir que os conteúdos destas câmeras onipresentes são oferecidos ao público sob uma expectativa de autenticidade, pois se espera que eles evidenciem uma ação para além da ciência da presença da câmera (no caso de uma imagem de uma câmera de segurança, por exemplo) ou que pressuponha o esquecimento dela (no caso de registros feitos pelos amadores de infinidade de cenas cotidianas). Haja vista a amplitude deste vasto objeto de pesquisa, propomos categorias no intuito de agrupar as especificidades destas múltiplas imagens, cuja apropriação pelo jornalismo revela um caminho de renovação das estéticas realistas (Polydoro, 2013). Em virtude deste enfoque mais preciso, observamos, em outro momento (Martins, 2014), a divisão entre as câmeras onipresentes (as gravações feitas de modo cotidiano pelas pessoas comuns e/ou profissionais, posteriormente utilizadas pelas mídias) e as câmeras oniscientes (o material capturado pelas câmeras de vigilância, de segurança ou câmeras escondidas, que são incorporadas nas narrativas jornalísticas com a expectativa de registro de um real ocorrido sem qualquer ciência dos participantes da cena). Assim, nossa hipótese central é que as emissoras televisivas utilizam cotidianamente estes registros externos em razão dos efeitos de real possibilitados por eles – efeitos estes que são gerados, em parte, pela evidenciação de uma baixa mediação entre o fato e a câmera (entende-se que os registros amadores utilizam menos recursos de edição e alteração da cena exibida), e reiterados pela falta de qualidade técnica (na maioria das vezes, as imagens amadoras são mal enquadradas, pouco visíveis, não possuem áudio, estão em baixa definição, etc.). Não obstante, é possível reconhecer elementos desta estética não apenas nos conteúdos gerados por usuários6, mas em registros concretizados pelas próprias emissoras, em uma estratégia que chamamos de câmeras onipresentes profissionais, englobada dentro da categoria das câmeras onipresentes. Por esta estratégia, referimo-nos aos conteúdos gerados pelos profissionais de uma emissora e que são carregados de sentido de autenticidade por explorar algum elemento da estética típica do amador, ainda que estejam visivelmente mediados pela instância jornalística. Engloba-se nesta categoria todos os formatos explorados pelas mídias que, voluntária ou involuntariamente, evidenciam a irrupção da espontaneidade como chave de leitura. Tratam-se de formatos que ressaltam 6.  Também chamados de CGUS, numa tradução do que os pesquisadores chamam de user generated content ou UGCs (Klatell, 2014).

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a autenticidade do sujeito que fala a partir de um efeito de certo esquecimento da câmera, conforme a perspectiva já abordada por Goffman (2004), e a irrupção do seu verdadeiro self. É o que se constata, por exemplo, nos formatos que intentam capturar a expressividade incontrolada dos índices corporais que se sobrepõem à performance esperada a todos que se colocam sob os holofotes midiáticos. Culturalmente, entendemos que o corpo não mente e que, portanto, ele explicita aquilo que o homem tenta dissimular pela linguagem (Brooks, 1995). Os formatos que exploram as câmeras onipresentes profissionais buscam aproximar-se aos efeitos das câmeras onipresentes amadoras no intuito de promover uma espécie de esquecimento da mediação para que o almejado verdadeiro eu, que se prenuncia menos pelas palavras e mais pela expressividade emitida pelo corpo, possa por fim se revelar ao público. É a premissa que sustenta, por exemplo, os reality shows, e em todos os formatos de entretenimento operados no intuito de que um indivíduo se dispa de sua persona pública (como a desconstrução da faceta pública de uma celebridade, ou alguém que se desnuda da representação protocolar de sua profissão) e exponha para as câmeras o que coletivamente se entende ser seu self restrito à vida privada. Mais do que verificar a veracidade nas informações naquilo que se narra, esta estratégia intenta registrar estes escapes involuntários à representação – o que já chamamos, em outro momento, de uma estética do equívoco, que se interessa pelos supostos erros ou quebras na representação engendrada pelo indivíduo (Martins, 2012). As emissoras têm lançado mão de recursos retóricos que concretizam narrativas complexas, nas quais se observa certas rupturas com os formatos tradicionais às práticas do telejornalismo. São reportagens que misturam registros profissionais com imagens provindas de câmeras evidentemente amadoras, longas entrevistas exibidas sem cortes, reportagens sem repórteres, vídeos exibidos sem texto em off, optando-se por um aparente silenciamento ou perda de controle da enunciação por parte do veículo. Ou seja, constata-se nos veículos uma gama de formatos híbridos em que as narrativas telejornalísticas são reconfiguradas de modo a aproximarem-se de efeitos estéticos mais comuns às câmeras amadoras. Tais estratégias se adequam a um ideário de transparência, em que documentos entendidos como de autenticidade inegável são visibilizados em razão de sua suposta dimensão reveladora da verdade: Numa cultura moldada em torno do visível (...), os fatos registrados e reproduzidos na forma de vídeo possuem especial força. A estrutura em rede do ciberespaço favorece a emergência do verdadeiro. É um agente de transparência, como prega o ideário hacker e demonstram experiências como o Wikileaks. Os vídeos amadores estariam a serviço dessa verdade, dada a aptidão de circular sem o controle de um poder constituído (Polydoro, 2012, p. 144).

Observa-se que, em virtude de tais efeitos de transparência, mesmo os telejornais compreendidos como referência aos demais – como o Jornal Nacional, da Rede Globo, o mais assistido do país7 – têm readequado seus conteúdos e experimentado linguagens que rompem com os protocolos consolidados para a produção jornalística televisiva. É 7.  Criado em 1969, o Jornal Nacional foi o primeiro programa transmitido em rede nacional. Mesmo com uma perda de audiência nos últimos dez anos, é ainda o líder do setor, com uma audiência maior que a soma da audiência de todos os seus concorrentes (Nóra e D’abreu, 2014).

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isso o que podemos observar, por exemplo, na referida reportagem Imagens exclusivas mostram ação dos vândalos no Rio, exibida pelo telejornal. Nela, visualizamos a seguinte estrutura: uma apresentadora, em balcão, interpela o espectador dizendo: você vai ver agora imagens exclusivas: o repórter Tyndaro Menezes filmou a ação dos vândalos mascarados na via mais importante do bairro do Leblon, na zona sul, a avenida Ataulfo de Paiva. Foram duas horas de caos. Em seguida, exibe-se uma série de imagens organizadas sequencialmente, cujo trabalho de edição se centraliza mais na colagem dos registros do que efetivamente na construção de uma narrativa mediada pelo veículo. A reportagem compreende uma quantidade de planos-sequência8 – posto que cada imagem é capturada apenas por uma câmera que estava na mão de um repórter da emissora, conforme destacado pela apresentadora – que são ‘enfileirados’, com a manutenção do som original do ambiente. Ainda que as imagens estejam razoavelmente tremidas, pulantes, e pressuponham uma câmera pouco estável, a alta qualidade do material aponta à presença de uma qualidade profissional do dispositivo tecnológico. Há apenas dois textos que conectam e significam estas imagens: uma primeira legenda indica Reportagem Tyndaro Menezes, o que legitima se tratar este de um registro jornalístico, produzido por um profissional da área, sob a égide dos procedimentos e técnicas consolidados historicamente à profissão; uma segunda legenda, que aparece o tempo todo no vídeo, nos comunica que tais imagens se referem a cenas de Vandalismo no Rio de Janeiro ontem à noite. No que diz respeito aos recursos sonoros, ouvimos apenas os sons de vidros e móveis quebrando, explosões e alguns gritos. A estratégia, portanto, é deixar que as imagens falem por si – é este o efeito retórico imposto à reportagem.

3. A IMAGEM DENOTADA – TENSÕES ENTRE A PROMESSA DISCURSIVA DA IMAGEM E O SILENCIAMENTO DA EMISSORA Seria possível então indagarmos sobre a natureza desta promessa discursiva, a qual legitimaria tal recurso de uma apropriação silenciosa por parte da emissora destas imagens. Este efeito se sustenta na impressão de uma plenitude analógica da imagem, conforme apontada por Barthes (2002), promessa que se sustenta na crença de que ela estaria mais apta que outras linguagens, como a oralidade e a escrita, a nos apresentar um real para além da intervenção humana. Ao analisar a mensagem fotográfica jornalística, Barthes distingue a imagem fotográfica jornalística das demais imagens geradas pelas artes imitativas ou realistas: enquanto as últimas comportariam duas mensagens, uma “denotada, que é o próprio analogon, e uma mensagem conotada, que é a maneira como a sociedade dá a ler, em certa medida, o que ela pensa” (id, p. 327), a imagem fotográfica seria simplesmente denotação, e todo tipo de texto serviria apenas para impor-lhe significados artificiais, parasitários.

8.  Estratégia fílmica, típica dos documentários mas não exclusiva deles, que pressupõe uma filmagem sequencial, sem cortes, na expectativa de uma aproximação ao real filmado – como se o autor das imagens apenas acompanhasse o ocorrido e se abstivesse de colocar interferências no relato. “A ausência do corte – instrumento que ao mesmo tempo marca a onividência da representação multiangulada e a quebra de sua transparência – torna-se fundamental para compreender a retórica do plano-sequência das imagens amadoras” (Costa, Polydoro, 2012, p. 4).

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O sentimento de denotação ou, se preferir, de plenitude analógica é tão forte que a descrição de uma fotografia é literalmente impossível; porque descrever consiste exatamente em juntar à mensagem denotada um relê ou uma mensagem segunda, mergulhada num código que é a língua (langue), e que constitui fatalmente, por mais cuidado que se tome para ser exato, uma conotação relativamente ao análogo fotográfico: descrever não é portanto apenas ser inexato ou incompleto, é mudar de estrutura, é significar outra coisa além do que mostra (ibid, p. 328).

Ainda que a leitura de Barthes (ibid) da denotação das imagens possa revelar certa imprecisão conceitual – como se toda imagem, mesmo quando gerada mecanicamente, não fosse, ela mesma, um recorte parcial e falível do real, submetido à visão de quem ou o que olha e registra – interessa-nos aqui apontar a analogia deste discurso acerca da imagem ao recurso empregado pelo telejornalismo que aqui consideramos como de certo silenciamento da emissora para que as imagens, supostamente, falem por si mesmas. As imagens carregam, conforme sugere Barthes (ibid), uma promessa de realidade, de uma mensagem sem código – ou seja, de uma reprodução na esfera do visível daquilo que efetivamente transcorreu no mundo. Contudo, o domínio dos processos comunicacionais por parte da população – potencializado pela multiplicação de câmeras que disponibilizam uma vasta quantidade de registros – corroboram para que haja um enfraquecimento da instância jornalística, agora provocada a pensar e testar novas configurações nos seus formatos e modos de funcionamento. Nesta dinâmica, “a hiperprodução de fatos brutos ou ocorrências puras neutraliza as diferenças das pulsações rítmicas da narrativa do cotidiano, tornando indiferentes os conteúdos noticiosos e homogeneizando a manifestação do sentido” (Sodré, 2009, p. 134). Dentre os meios de comunicação, a televisão se fundamenta, justamente, na exploração de imagens e sons sob uma perspectiva de transparência e de revelação do mundo. No formato televisivo, a transmissão direta reivindica a promessa da negação da mentira, da exibição da realidade nua e quente (Jost, 2007). Na reportagem Imagens exclusivas mostram ação dos vândalos no Rio, a intenção de resgate deste efeito de translucidez se evidencia. Há apenas duas intervenções explícitas do veículo na reportagem: a fala da apresentadora em balcão e a legenda que cerca os vídeos; ambas podem ser consideradas ‘parasitárias’ às imagens, em consonância com a perspectiva de Barthes (2002), e juntas intentam conotar um sentido a elas, o de vandalismo, de destruição voluntária de algo entendido como um bem público, o que, certamente, busca desautorizar os protestos que desenrolavam à época. Não obstante, é preciso reiterar que as estratégias nesta reportagem – assim como em muitas outras veiculadas nesta e em outras emissoras – revelam a potencialização de certos recursos como um sintoma de um processo de midiatização. Urge apontar, por exemplo, que o anonimato do repórter Tyndaro Menezes nesta reportagem decorre da desconfiança do público presente nos protestos à chamada mídia hegemônica a que o jornalista ali representava – para que pudessem fazer seu trabalho, muitos jornalistas tiveram que deixar de identificar seus vínculos com suas emissoras, modificando a canopla de seus microfones e deixando de gravar passagens nos locais. Ou seja, a própria ausência do repórter é signo da crise no relato que ele, como profissional, historicamente legitima.

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Assim, o que se constata é que a instância jornalística, em decorrência de diversos fatores já apontados – o colapso da credibilidade como instituição, a urgência na adaptação de sua estética para melhor concorrer com formatos amadores entendidos como mais autênticos – tem-se forçado a repensar suas estruturas narrativas como meio de manter sua legitimidade enquanto leitura autorizada e privilegiada do real. Tendo em vista que “os modos de narrar midiáticos não deixam de ser um afastamento do mundo graças às inúmeras mediações que se interpõem entre o sujeito e o mundo” (Costa, Polydoro, 2012, p. 2) – e, certamente, a consciência disso por parte dos receptores, em razão da onipresença dos relatos midiáticos - caberá ao jornalismo seguir testando formatos e estratégias de modo a resgatar antigos efeitos de transparência e de realismo, hoje já desgastados e postos sob desconfiança frente a ubiquidade de dispositivos que registram o mundo.

REFERÊNCIAS Barthes, R. A mensagem fotográfica. (in) LIMA, Luiz Costa (org). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

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A reinvenção do audiovisual como gênero expressivo no ciberjornalismo: um estudo do Publico.pt e da Rádio Renascença online The audiovisual reinvention in online journalism: a study of Publico.pt and Radio Renaiscença online R aquel R it ter Longhi1

Resumo: Formatos noticiosos no ambiente hipermidiático do ciberjornalismo evoluíram gradativamente a partir de meados dos anos 2000, ocasionando novas configurações de gêneros expressivos, como a infografia, as picture stories, remodeladas nos slideshows noticiosos, e a grande reportagem multimídia. O objetivo deste artigo é explorar e discutir as transformações expressivas que vem sofrendo o gênero do audiovisual, num ambiente que tem na hipermídia sua principal característica. A partir de entrevistas com profissionais e de um estudo exploratório e descritivo de seções multimídia de dois veículos online portugueses – o Publico.pt e a Rádio Renascença online, o trabalho busca atentar para esses novos tipos de configurações de que se reveste o fato noticioso, contemplando especialmente formatos como a grande reportagem multimídia - GRM. Como resultados, o artigo aponta para a exploração criativa da hipermídia na elaboração de produtos jornalísticos nos dois veículos analisados, geralmente apresentados nas suas seções multimídia. Dentre as conclusões, está a de que o audiovisual evolui e vem passando por mutações cruciais enquanto técnica e como gênero expressivo, multiplicando sua presença e importância no ciberjornalismo.

Palavras-Chave: Audiovisual. Gênero expressivo. Ciberjornalismo. Publico.pt. Radio Renascença online

Abstract: News presentation in hypermedia environment of online journalism has undergone a gradual evolution from the mid-2000s, leading to new configurations of expressive genres such as online graphics, picture stories, remodeled in the news slideshows and the multimedia reporting. The aim of this paper is to explore and discuss the significant transformation that the audiovisual expressive genre has suffered in an environment that has its main feature in hypermedia. Through interviews with professionals and an exploratory and descriptive study of multimedia sections of two Portuguese online vehicles - Publico.pt and Radio Renaissance online, this work seeks to pay attention to these new types of settings which contain the news fact, looking especially multimedia reporting - GRM. As a result, the article points to the

1.  Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP), Professora no Departamento de Jornalismo/PosJor da Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected]

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A reinvenção do audiovisual como gênero expressivo no ciberjornalismo: um estudo do Publico.pt e da Rádio Renascença online Raquel Ritter Longhi

creative exploration of hypermedia in developing journalistic products analyzed in the two vehicles, presented in its multimedia sections. The conclusion is that the audiovisual evolves and is undergoing crucial changes as art and as expressive genre, multiplying its presence and importance in online journalism.

Keywords: Audiovisual. Expressive genres. Online Journalism. Publico.pt. Radio Renascença online

HIPERMÍDIA, AUDIOVISUAL E CIBERJORNALISMO ORMATOS NOTICIOSOS no ambiente hipermidiático do ciberjornalismo, tais como

F

a grande reportagem multimídia, estão mostrando uma espécie de reconfiguração de gêneros expressivos, especialmente, o audiovisual. A forte presença desse tipo de formato expressivo no ciberjornalismo tem sido evidente, especialmente nos conteúdos noticiosos hipermidiáticos, como especiais multimídia, webdocumentários, audioslideshows e picture stories. A grande reportagem multimídia tornou-se um dos produtos noticiosos mais difundidos no jornalismo online como um formato que explora os recursos multimidiáticos proporcionados pelo ambiente hipermídia da WWW, como a hipertextualidade, a multimidialidade e a interatividade. Nesse sentido, apresenta aspectos inerentes ao audiovisual como gênero expressivo, quais sejam, a convergência de linguagens (sonora, visual e verbal) e a difusão por meio de telas. Como já referido em trabalho anterior (Longhi, 2014a), as potencialidades de hibridação e convergência de linguagens proporcionada pelo ambiente digital e hipermidiático são definidoras de uma expansão do gênero expressivo do audiovisual, não apenas como conceito, mas como modelo de produção e gênero expressivo, renovados em formatos noticiosos como a grande reportagem multimídia – GRM. Neste artigo, verificamos de que forma esse gênero se reconfigura nos produtos noticiosos multimidiáticos. Num primeiro momento, propomos uma discussão teórico-conceitual sobre gêneros no jornalismo e os conteúdos multimidiáticos - a partir de autores como Salaverría, Larronto-Ureta, Longhi, Massip e López-García, dentre outros. Na segunda parte, fazemos uma análise das seções multimídia dos veículos portugueses Publico.pt e Rádio Renascença online2 acompanhadas de entrevistas com editores e profissionais destes veículos. A forte presença do audiovisual no ciberjornalismo tem sido evidente na forma de produtos que exploram ao limite as potencialidades da hipermídia. Conteúdos noticiosos multmidiáticos evoluíram levando em conta os dispositivos técnicos disponíveis e uma exploração maciça da linguagem hipermidiática do meio. A grande reportagem multimídia tornou-se um dos formatos mais difundidos no jornalismo online e já possui uma trajetória histórica de desenvolvimento e estabilização nesse ambiente (Longhi, 2014b). Sendo a reportagem um gênero que se propõe a desenvolver uma visão aprofundada e contextualizada de um assunto, adapta-se de modo perfeito aos requisitos da WWW no que diz respeito à hipertextualidade (utilização de links para enriquecer a estrutura discursiva), multimidialidade (uso de elementos como imagem, som e conteúdos verbais), atualização; e interatividade (modos de participação do leitor). 2.  www.publico.pt e http://rr.sapo.pt/

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Este pode ser um dos motivos pelos quais a grande reportagem multimídia tornouse um dos formatos mais difundidos no jornalismo online, que teve suas primeiras manifestações com o desenvolvimento e consolidação do Flash como ferramenta de produção, em meados dos anos 2000, e atingiu sua “maturidade” com o estabelecimento do HTML5, a partir de 2011 (Longhi, 2014b). A literatura sobre o uso de multimídia centrou-se no estudo desses conteúdos como parte de um processo de convergência jornalística, como notam Massip e outros (2010). Esses autores observam ainda que, conforme o pesquisador Mark Deuze (2003), a narrativa digital que utilizava múltiplos meios era um elemento potencial do jornalismo online, mas não determinante. A multimidialidade nos conteúdos jornalísticos foi investigada ainda, tendo como preocupação central a presença ou ausência de diferentes modos de representação e sua integração ou não no todo do conteúdo (Canavilhas, 2007; Salaverría, 2005, 2009). Num estudo pioneiro, Canavilhas (2007) observou que a incorporação de conteúdos multimídia na notícia era percebida pelos leitores como uma inovação, e seu consumo, maior que as notícias que utilizavam somente texto. No mesmo estudo, a notícia multimídia foi avaliada como mais atrativa, mais interessante, mais enriquecedora e mais simples (Canavilhas, 2007, apud Massip et all, 2010). A aproximação conceitual ao audiovisual no contexto dos conteúdos multimidiáticos aparece, dentre outros autores, com Laubier, para o qual a noção de “artigo” deveria desaparecer e ser substituída pela de “produção audiovisual”: uma informação apresentada sob a forma textual, ilustrada por vídeo, complementada por ligações (links) documentais e acompanhada por fotos legendadas por uma sequência sonora, originando assim um novo gênero jornalístico (Laubier, apud Salaverría, 2005: 142).

Em investigação sobre a redação jornalística na internet, Salaverría salientava que a reportagem, um gênero propício à exploração das possibilidades hipertextuais, interativas e multimídia, ainda evidenciava um “uso muito discreto” daquelas possibilidades. Identificava, entretanto, que ocasionalmente os meios realizavam reportagens ad hoc para a web (Salaverría, 2005: 162). Considerava, assim, a reportagem multimídia como um gênero mais propriamente ciberjornalístico, caracterizando-se por aproveitar a fundo as possibilidades audiovisuais da Web, mediante o uso de galerias fotográficas, infografias interativas, etc. Hélder Bastos afirmava, em estudo datado de 2010, que, no campo da narrativa jornalística hipermídia assistia-se então ao surgimento das fundações de “um novo gênero jornalístico, assente em paradigmas sobremaneira diversos, e nalguns aspectos dissidentes, daqueles que marcam o texto noticioso dos media tradicionais” (Bastos, 2010: 59). Num contexto em que novas possibilidades são abertas às formas de narrativa, entendemos que a compreensão das especificidades dos formatos webjornalísticos  hipermidiáticos deve levar em conta, necessariamente, a convergência de linguagens propiciadas pelos meios digitais (Longhi, 2014c). Nesse sentido, cabe também a problematização sobre o que seria o “novo”: O novo, aqui, se refere especialmente a formatos hipermidiáticos nos quais a convergência de linguagens em combinação de sentido é definidora. Não se trata apenas de uma disposição

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lado a lado das formas de representação verbais, visuais e sonoras, mas de como vem se efetivando a sua aglutinação num todo de sentido que aparece com características específicas do meio. (Longhi, 2014c, 70-71)

Classificações de alguns autores para o que se pode entender como reportagem jornalística levam em consideração os recursos hipermídia, e vem de encontro à nossa concepção da especificidade dos produtos noticiosos multimidiáticos, especialmente a grande reportagem multimídia, como específicos do ciberjornalismo. Para López García (2003), podem se encontrar três tipos diferenciados de reportagem ciberjornalística – a reportagem de atualidade, o dossiê documental e o especial temático ou informe. O especial seria, segundo ele, o que experimenta em maior medida as possibilidades do discurso digital, por isso, representa o modelo de reportagem específico dos novos meios. Larrondo Ureta define tal formato como “reportagem hipertextual” ou “reportagem hipermídia”. Nós optamos por utilizar o termo “grande reportagem multimídia” por entender que se trata de um produto que explora os recursos multimidiáticos proporcionados pelo ambiente hipermídia da WWW.

Gênero enquanto formato expressivo Na investigação proposta neste artigo, examinamos a reconfiguração de gêneros desde um ponto de vista formal, ou seja, onde o conteúdo é definidor, mas a forma, a estrutura, é também um aspecto relevante, já que estamos no contexto da informação num ambiente hipermidiático, onde a convergência de linguagens e interatividade são especificidades de relevância. Um gênero, no jornalismo, pode ser compreendido como a “forma de expressão que as mensagens informativas, interpretativas e de opinião adotam” (Larrondo-Ureta, s/d: 168). Para esta autora, os gêneros são semelhantes a moldes, que dão forma aos textos jornalísticos para que sejam identificáveis tanto pelo jornalista como pelo público. A dimensão histórica e de processo é observada pela autora como fundamental: “os gêneros, tanto impressos como audiovisuais, são o resultado de uma lenta elaboração histórica vinculada ao desenvolvimento de cada um dos meios de comunicação que surgiram com o passar dos anos, (…) o conceito de gênero se modifica necessariamente com o passar do tempo (Larrondo-Ureta, s/d: 168).

Essa mesma dimensão histórica é responsável pela adaptação da tipologia dos gêneros, “uma tarefa que se complicou nas últimas décadas – diz a autora – pelo fato de que a fronteira entre as diferentes espécies textuais é cada vez mais discutível” (Larrondo-Ureta, s/d: 188). Isso explica porque se produziu, ao longo dos últimos anos, segundo a autora, um debate importante sobre o sistema de gêneros convencional e, por consequência, um notável incremento de tipologias de gêneros e subgêneros (idem). A chegada dos novos meios de comunicação, especialmente a Internet, resultou numa nova crise dos gêneros tracionais do jornalismo, segundo Casasús (1995, apud Larrondo-Ureta, s/d), o que, em parte, também se deve à própria evolução dos gêneros. Muitos estudos, ao lado de problematizar os gêneros no ciberjornalismo, apontam, como consequência, para as modalidades textuais nos novos meios. Salaverría e Cores (2005, apud Larrondo-Ureta, s/d) identificaram quatro categorias, ou níveis concretos:

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1. Repetição: corresponde ao nível mais básico, e diz respeito à mera repetição literal de gêneros e formatos textuais tomados de meios precedentes, fundamentalmente, impressos; 2. Enriquecimento: nível alcançado pelos gêneros que, ainda respeitando o cânon formal de seu gênero correspondente, incorporam as possibilidades hipertextuais, multimídia ou interativas; 3. Renovação: gêneros que, graças às possibilidades comunicativas do ciberespaço recriam gêneros precedentes, o que dá lugar a sua reconfiguração integral. O modelo de gênero renovado é a infografia; 4. Inovação: consiste na criação de gêneros jornalísticos para os cibermeios, sem partir de referentes prévios nos meios impressos e audiovisuais. Não se trata, portanto, de emprestar um gênero anterior e recriá-lo, mas de torná-lo mais claro, como ocorre no caso dos weblogs. (Larrondo-Ureta, s/d: 205). Há que se considerar que, a essa progressão dos gêneros, efetiva-se uma evolução da linguagem, da forma que as mensagens adotam e das tecnologias e do contexto social em que se desenvolvem os meios, conforme a mesma autora. A hibridação, que já vinha sendo motivos da crise nos estudos sobre classificação dos gêneros, é potencializada pelo surgimento de novos tipos de conteúdo no contexto do jornalismo digital. Como gênero expressivo, a grande reportagem multimídia pode ser considerada um modelo específico dos meios digitais (Longhi, 2010). Esta asserção é compartilhada por autores como Larrondo Ureta, que define como modelo narrativo ciberjornalístico, ao lado da infografia multimídia, do chat e dos fóruns de leitores (Larrondo-Ureta, s/d: 206).

A APOSTA DE DOIS VEÍCULOS ONLINE PORTUGUESES NA PRODUÇÃO DE CONTEÚDO MULTIMÍDIA Com o objetivo de melhor enquadrar nossa análise da reconfiguração de gêneros audiovisuais no ambiente hipermidiático noticioso, ilustramos esta investigação com dois exemplos de veículos online portugueses, o Publico.pt e a Rádio Renascença online. A análise foi feita através de estudos exploratórios e descritivos de produtos audiovisuais hipermídia nas seções Multimídia destes veículos, trabalho acompanhado de entrevistas com alguns de seus profissionais. A Rádio Renascença online é um exemplo de reconfiguração no ciberjornalismo, com uma estratégia de convergência editorial em três núcleos específicos: rádio, internet e vídeo. No site da emissora, tal estratégia configura um veículo completamente renovado expressivamente: conta com formatos noticiosos totalmente convergentes e uma seção específica para reportagens especiais, calcadas em modelos como grande reportagem multimídia ou webdocumentários (Longhi, Galvão Jr., 2014). O Publico.pt tem apostado em especiais como grandes reportagens e webdocumentários, envolvendo ainda projetos de jornalismo de dados. Os sites analisados demonstram uma clara opção pela valorização do conteúdo multimídia, ao lado de uma preocupação com as renovações expressivas possíveis desses formatos, para dar conta de um leitor cada vez mais exigente, como atestam as entrevistas realizadas e a análise empreendida. Ambos os veículos são tomados neste artigo, como uma amostra do atual estado da arte da produção multimídia no jornalismo português.

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Publico.pt O Público, um dos mais importantes jornais portugueses, estabeleceu-se no meio digital no ano de 1995, sendo o segundo jornal generalista a entrar na web, conforme Bastos (2010: 161). Durante os três primeiros anos, limitou-se a fornecer versão eletrônica de sua edição impressa, segundo o mesmo autor. Somente a partir de 1999, é que passou a incluir conteúdos próprios, com o serviço “Última Hora” (Bastos, 2010: 161). Em 2005 o jornal registra o domínio Publico.pt, e já conta com uma redação composta por 20 profissionais. Mais recentemente, o Publico.pt reforçou a edição online, através de um núcleo composto por 15 jornalistas e cinco editores online, juntamente a inclusão de um editor especializado em multimídia. O jornal lançou o sistema de pay-wall em novembro de 2013, e reformulou o sistema de publicação, uma vez que todos os profissionais dominam o sistema online, segundo a jornalista Simone Duarte, Diretora Executiva Online do periódico, entrevistada em 22 novembro de 2013. Em 2012, o Publico.pt fez uma reformulação completa do site – “foi a primeira vez que pensamos em refazer o site todo do zero, pensando na arquitetura da informação”, diz Duarte. O trabalho contou com uma consultoria externa ao jornal e foi coordenado por Duarte e a diretora de arte, Sônia Mattos. Dentro de uma estratégia de “ser o jornal com a melhor relação com o leitor”, segundo Duarte, o novo site trouxe a ideia do registro dos leitores, o que pode ser feito na homepage, em “Registo”. Através dessa opção, o leitor faz seu registro com sua conta de Twitter ou Facebook, ou dados de assinante, se for o caso, e acessa uma área de leitura “pública” e outra “privada”. O registro permite guardar artigos para ler mais tarde, ter um perfil no site do Público, participar na moderação de comentários e na votação de enquetes e pesquisas. A página privada garante acesso a uma biblioteca com os artigos escolhidos, aos dados da conta e ao seu perfil; já na página pública, o leitor terá acesso a todos os demais leitores registrados, ao seu nível de reputação, e ao seu histórico de participação nos comentários e inquéritos realizados junto ao site. A partir daí, o Publico.pt tem apostado em formatos especiais multimídia e produções com jornalismo de dados, como o projeto Reaction, que foi desenvolvido com a participação de pesquisadores da Universidade Nova de Lisboa. Mais recentemente, em 2013, foi lançado o projeto Público Mais, que conta com apoio e financiamento de instituições públicas e privadas3 com o objetivo de desenvolver jornalismo de investigação e de referência especialmente em três áreas: grande reportagem, cultura e ciência/meio ambiente, sempre com o aporte da multimídia. A primeira produção multimídia de destaque feita pelo Publico.pt foi A Casa do Vapor,4 de 2012, um webdocumentário de 27 minutos que teve 8 mil compartilhamentos apenas no dia de seu lançamento. Tratam-se de iniciativas que renderam ao jornal grande reconhecimento, como premiações internacionais, dentre as quais se destaca o European Newspaper Award 2014 na categoria Reconhecimento Especial do Júri, para o site do jornal e duas produções multimídia: a grande reportagem Doze anos de incêndios5 (também premiada com a medalha de Bronze do prêmio Malofiej em 2013) e o especial 3.  Mais informações em: http://static.publico.pt/publicomais/ 4.  Disponível em: http://www.publico.pt/multimedia/casa-do-vapor 5.  Disponível em: http://publico.pt/floresta-em-perigo/doze-anos-de-incendios

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Há 50 anos ele teve um discurso com um final perfeito, sobre o célebre discurso de Martin Luther King6 pela “perfeita combinação de fotografia, filmes históricos e texto”, segundo a justificativa do prêmio7. A seção Multimédia do Publico.pt é acessível a partir da barra de menus horizontal na parte superior do site. Disponibiliza produtos noticiosos divididos nas categorias Vídeo, Fotogalerias e Infografia, além de Vídeo TVI, produzidos e veiculados pela rede TVI, pertencente ao mesmo grupo do periódico. Os produtos em destaque aparecem em pop-up pelo clique do mouse sobre o nome da seção, uma estratégia, aliás, válida para todas as seções do site. As fotogalerias são produzidas a partir de temas específicos em pauta no momento, e ainda, na forma das já tradicionais “fotos do dia”, frequentes em vários veículos online. Os vídeos podem ser imagens produzidas pela redação, ou enviadas por leitores. As infografias são produzidas pela redação. Sempre há opções de compartilhamento, compostas por: email; link curto; comentar, guardar e sugerir correção, além das já tradicionais opções de compartilhamento pelo Facebook (recomendar e compartilhar), Google Mais e Twitter. O conteúdo audiovisual é dividido em vídeos produzidos pela redação e os produzidos pela TvI, do mesmo grupo do Publico.pt. Nos especiais e grandes reportagens, materiais em vídeo também são frequentes, mas combinados com as demais linguagens multimídia (Figura 1). Figura 1. Print screen da página inicial da série Filhos do Vento, mostrando imagens dos personagens da história.

Fonte: http://www.publico.pt/multimedia/video/restos-de-tuga-20130713-140426

Numa outra iniciativa a explorar os recursos hipermídia, o jornal lançou Portugueses com certeza8, a primeira série multimídia com patrocínio próprio, que contou com 20 capítulos compostos por depoimentos em vídeo, disponibilizados durante 20 semanas, sempre às segundas-feiras, na homepage do jornal. Relativamente ao design, esta série, assim como todos os produtos multimídia produzidos pelo Público, contam com a opção 6.  Disponível em: http://www.publico.pt/tema-de-capa/jornal/ele-teve-um-sonho-26930400 7.  No press-release sobre a premiação. Disponível em: http://static3.volkskrant.nl/static/asset/2013/ Presseinformation_15_E_3026.pdf 8.  http://www.publico.pt/multimedia/portugueses-com-certeza

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“apagar a luz”, que permite que a imagem seja vista na tela escura, sem as informações adicionais normalmente dispostas na janela do produto. A aposta nos produtos multimídia pelo Publico.pt vem de encontro a uma valorização desse tipo de narrativa que, segundo a editora de online, é o diferencial do veículo. Geralmente, as histórias multimídia têm lugar de destaque na homepage do jornal, embora se encontrem para acesso na seção Multimédia. A preocupação editorial também diz respeito a contar as histórias da forma mais adequada a cada caso, segundo Duarte: “Uma entrevista nem sempre vale vídeo. Então, a gente tenta cada vez mais ter critérios. (…) que história queremos contar, e como queremos contá-la. (…) Usamos multimídia quando achamos que é a melhor maneira de contar uma história”. A equipe atual conta com 15 jornalistas e cinco editores online, abrangendo as áreas de infografia, multimídia, webdesign e direção de arte. Outra produção multimídia de destaque foi Filhos do Vento9, de 2013, financiado pelo projeto Público Mais. O especial conta a história de alguns filhos de militares ex-combatentes portugueses com mulheres guineenses. A página inicial dispõe fotos dos personagens entrevistados, que abrem com uma breve identificação de cada um, reportagens em vídeo e testemunhos, que podem ser comentários sobre a matéria ou também testemunhos sobre o tema. O jornal disponibilizou um email para que o público leitor envie informações a respeito de outros filhos de militares portugueses na mesma situação. A partir da página inicial, ainda pode ser acessada a reportagem em texto “Em busca do pai Tuga”, de Catarina Gomes e Manuel Roberto, enviados à Guiné Bissau. O volume de produções multimídia do Publico.pt é bastante significativo, uma vez que essa opção editorial vem ocupando prioridade no veículo pelo menos desde o ano de 2010. Relativamente à qualidade desses produtos, pode-se afirmar que se tratam de formatos de muito apuro em termos de narrativas jornalísticas textuais e extremo cuidado estético na utilização dos recursos multimídia.

Rádio Renascença online A Rádio Renascença teve sua primeira emissão em 1938, em Lisboa. Na Internet, o primeiro domínio, radiorenascenca.pt, foi registrado em outubro de 1997. Um ano depois foi registrado rr.pt como domínio. Em 2009 foi renovado o site da RR Online (Bastos, 2010). Algumas premiações recentes atestam a qualidade da Rádio Renascença, a terceira mais ouvida em Portugal10: Prêmio Nacional Multimédia da APMP na categoria Media e Comunicação, 2012; Excelência Geral em Ciberjornalismo, Prêmio do Observatório de Ciberjornalismo 2010, 2011, 2012 e 2013 (Longhi, Galvão Jr., 2014). Desde que começou a utilizar o ambiente online, a Renascença introduziu conteúdos multimídia, como conta Pedro Leal, diretor adjunto de informação: “Na época, o que tentávamos vender era multimídia, arquivos de som (mp3), o que era mais fácil, já que éramos uma rádio, e assim, distribuíamos nosso conteúdo em áudio”. Na Web, a Rádio Renascença está presente no site http://rr.sapo.pt e oferece, além do áudio ao vivo emitido 9.  http://www.publico.pt/filhos-do-vento 10.  9,3% de share, ficando atrás da Rádio Comercial (21,1%) e da RFM (20,6%). Estudo Bareme Rádio da Marktest, dezembro de 2013. Fonte: http://www.marktest.com/wap/a/n/id~1c89.aspx (acesso em janeiro 2014).

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via streaming11, vasto conteúdo textual e em vídeo distribuído em hiperlinks e aplicativos para smartphones e tablets que permitem acesso aos conteúdos virtuais. Conforme já estudado anteriormente (Longhi, Galvão Jr., 2014), o site da Rádio Renascença mostra claramente a opção da emissora por manter suas especificidades no meio digital. Através de menus horizontais na parte superior da página, notícias de destaque, notícias mais lidas (geralmente no lado esquerdo da página), anúncios, entre outros o site segue o “padrão” de design dos sites jornalísticos. Ao lado disso, oferece a opção “ouvir emissão”, alterantiva que, uma vez acionada, permanece sempre emitindo em tempo real até ser finalizada pelo ouvinte/navegador. No menu horizontal, há opções para a programação diferida da rádio, ou seja, produzida e disponível para acesso ao ciberouvinte, quando este desejar. Nas matérias de destaque, o vídeo com áudio está sempre presente. As opções de “comentar” e “partilhar” estão sempre disponíveis, mostrando a opção da RR também pela interatividade com o usuário e as redes sociais. Os recursos humanos estão divididos em equipes com vários níveis de desenvolvimento. Há a redação geral, que utiliza I-Phones para captar fotografia e áudio, para poder responder com informação no momento necessário; há um segundo nível, equipes próprias que fazem um tratamento rigoroso de todo material que chega ao online, embora a redação também esteja preparada para atuar no online, conta Leal. Finalmente, uma equipe de vídeo produz matérias mais consistentes, com câmeras próprias, e gravam programas especiais ou entrevistas. A opção pela multimídia é clara, com a produção própria de fotogalerias, infográficos e reportagens, na seção Multimédia. A equipe tem ainda cinco programadores, especialmente voltados à web. As fotogalerias, como tem sido usual nesse tipo de formato, mostram as imagens do dia, ou relacionadas a alguma notícia pontual. Outros produtos focados na linguagem multimídia aparecem como Especiais, na parte inferior da homepage. Em geral, tratam-se de produções em HTML5 ou reportagens em vídeo. No coração do conflito12, por exemplo, é uma grande reportagem multimídia produzida em HTML5, que conta a história de uma psicóloga dos Médicos sem Fronteiras que trabalha nas zonas de guerra de conflito ao redor do mundo. Compõe-se de nove capítulos, com vídeos infográficos e um texto jornalístico no estilo longform (Longhi, 2014b) (Figura 2), caracterizando a tendência mais recente da grande reportagem multimídia, como já referenciado. Nas opções de compartilhamento pelas redes sociais, opções para Facebook, Twitter, Google Mais e uma longa lista composta por mais de 290 sites. Também conta com as opções para seguir a RR no Twitter, Facebook, Google Mais e Instagram.

11.  Forma de transmissão de áudio e vídeo sem a necessidade de efetuar downloads dos conteúdos/ programas. 12.  http://rr.sapo.pt/no-coracao-do-conflito/?

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Figura 2. Print screen da reportagem mutimidia No coração do conflito, com video e texto longform.

Fonte: http://rr.sapo.pt/no-coracao-do-conflito/?

Também na parte inferior da homepage, a seção “Profundidade de Campo”, que agrega as fotogalerias mais recentes, as quais também estão na seção Multimédia. Em julho de 2014, a Rádio Renascença online iniciou uma mudança gradual nos conteúdos, numa renovação completa do site. A primeira mudança foi a criação da Página113, uma espécie de boletim das notícias mais importantes, com veiculação diária – a partir das 08h30 da manhã. Constituir-se em um “órgão total” é o que direcionou a atuação da Renascença no ambiente online, segundo Leal, que salienta que o veículo procurou romper com o pensamento do jornalismo tradicional. Na sua estratégia de convergência editorial, a Renascença aposta na produção de conteúdos noticiosos em três núcleos específicos: o primeiro, voltado para a rádio; o segundo, para a internet e um terceiro que contempla as produções em vídeo. Para Leal, é necessário dar conta de todas as plataformas. “A nossa preocupação com a multimédia é que hoje em dia temos que ser as várias coisas que existem. O segundo problema disso é não comprometer o jornalismo, pois, quando tentamos ser tudo, o desafio do jornalismo é maior, porque temos que ser rigorosos no jornalismo que fazemos”, diz ele.

CONCLUSÃO Conteúdos noticiosos no ambiente hipermidiático mostram um amadurecimento após quase 20 anos de jornalismo nos meios digitais. Tal evolução, que levou em conta os dispositivos técnicos e expressivos do meio, resultam em produtos inovadores, dentre os quais a grande reportagem multimídia. Dentre outros produtos que exploram a linguagem hipermídia, como audioslideshows e infografia, esse formato introduz um tratamento expressivo da linguagem que pode ser analisado como uma reconfiguração do audiovisual. Trata-se, além de tudo, de uma reinvenção desse gênero expressivo, para o qual são exploradas novas linguagens e propostas novas manifestações. Como representante principal dessa tendência renovadora, a grande reportagem multimídia conjuga características audiovisuais como a convergência de linguagens (sonora, visual e 13.  http://pagina1.sapo.pt/

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verbal) e a difusão por meio de telas, dentre outros. Na nossa investigação, procuramos examinar a reconfiguração de gêneros desde um ponto de vista formal, ou seja, onde o conteúdo é definidor, mas a forma, a estrutura, é também um aspecto relevante, já que estamos no contexto da informação num ambiente hipermidiático, onde a convergência de linguagens e interatividade são especificidades de relevância. Nesse contexto, apontamos para o audiovisual como gênero expressivo. Os sites analisados, Publico.pt e Rádio Renascença online demonstram uma clara opção pela valorização do conteúdo multimídia, ao lado de uma preocupação com as renovações expressivas possíveis desses formatos, para dar conta de um leitor cada vez mais exigente, como atestam as entrevistas realizadas e a análise empreendida. Ambos os veículos são tomados neste artigo, como uma amostra do atual estado da arte da produção multimídia no jornalismo português. Há que se ressaltar, finalmente, uma importante iniciativa do Público no que diz respeito ao Brasil: a partir de 17 de março de 2015, o periódico passou a ter uma edição totalmente voltada ao Brasil, seguindo exemplos de outros periódicos online, como o espanhol El País. Conforme noticiado no site, a edição especial online terá uma seleção de artigos de interesse particular aos leitores brasileiros14, apoiado ainda na taxa de tráfego do leitor brasileiro no site do Público, que é de 7 a 10%.

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14.  http://www.publico.pt/portugal/noticia/nova-parceria-leva-publico-a-universo-de-50-milhoes-deleitores-1689321

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A reinvenção do audiovisual como gênero expressivo no ciberjornalismo: um estudo do Publico.pt e da Rádio Renascença online Raquel Ritter Longhi

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Leitores digitais: o novo e complexo desafio do jornalismo no Século 21 Digital readers: the new and complex challenge of journalism in the 21st Century N i lton M a r lú c io

de

A r ruda1

Resumo: Este artigo tem como objetivo promover uma reflexão sobre o desafio do jornalismo no Século 21, por conta da necessidade de garantir a qualidade de seus conteúdos noticiosos mesmo diante das características dos veículos online e dos novos perfis de leitores. Para tanto, partiu-se da hipótese de que, para atraírem jovens leitores, os sites de noticias precisam investir mais em aspectos visuais do que propriamente no aprofundamento das matérias. Neste sentido, foi realizada pesquisa com jovens leitores de periódicos online, analisando suas preferências, hábitos e dificuldades. Também foram analisadas por este estudo algumas propostas curriculares dos cursos de jornalismo a fim de observar a presença de conteúdo digital nas grades dos profissionais em formação.

Palavras-Chave: Conteúdo. Digital. Jornalismo. Notícia. Sites. Abstract: This article aims to promote a reflection on journalism’s challenge in the 21st Century, due to the need to ensure the quality of its news content even before the characteristics of online vehicles and new readers profiles. Therefore, we started with the assumption that, to attract young readers, the news sites need to invest more in visual aspects of what exactly the deepening of materials. In this sense, research was conducted with young readers of online journals, analyzing your preferences, habits and difficulties. We also analyzed in this study some curriculum proposals of journalism courses in order to observe the presence of digital content in the grids of the trainees.

Keywords: Content. Digital. Journalism. News. Sites.

INTRODUÇÃO S NOVOS leitores de notícias, em versão cibernética, confirmam o hábito de não

O

aprofundarem suas visitas aos sites jornalísticos. A leitura apressada e a dinâmica de atualização dos periódicos on line podem fazer com que esse leitor digital não tenha a versão mais completa do noticiário. Por sua vez, o jornalista necessita buscar estratégias criativas para atraí-lo e mantê-lo interessado no site, o que, provavelmente, pode sugerir que a qualidade da informação fique comprometida. A constatação é resultado de uma pesquisa, quantitativa e qualitativa, realizada com jovens que se declaram leitores frequentes dos noticiários digitais. A amostra analisou 1.  Mestre em Sustentabilidade e Comunicação, professor da ESPM Rio e e-mail [email protected].

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preferências, hábitos e dificuldades dos respondentes nas suas relações com os periódicos. Neste sentido, diversos aspectos foram avaliados, sempre do ponto de vista de que a qualidade do noticiário deve ser preservada e priorizada. Ou seja, investigou-se o que mais atrai este novo leitor, o que mais pode lhe afastar de um periódico e como ele se atualiza. A pesquisa levantou também que outras fontes são consultadas para sua informação cotidiana. Complementou este trabalho uma visita aos cursos de formação de jornalistas, a fim de perceber o grau de exposição e de experimentação digital que os futuros profissionais estão sendo submetidos. Metodologicamente, o artigo teve como suporte um referencial bibliográfico baseado em autores que defendem a importância de um jornalismo comprometido com a formação do leitor, além de buscar outros pesquisadores que estão se debruçando sobre os desafios do jornalismo digital dos tempos atuais. De Castells a Ferrari, estudiosos do universo digital, ao professor Marcos Silva, que propõe uma sala de aula cada vez mais interativa; o artigo pautou a nova realidade virtual no velho (e bom) mundo do jornalismo, como defende Alberto Dines. Afinal, se nos tempos exclusivos do jornalismo impresso, o lead era a estratégia para não se perder o leitor mais apressado; na era dos noticiários eletrônicos, diversas outras atrações invadem as telas com o objetivo de atrair o interesse dos internautas. E diante de tantas possibilidades - ilustrativas, lúdicas, criativas - a informação parece correr o risco de ficar em segundo plano. Este artigo tem o objetivo de promover uma reflexão sobre o desafio de se manter a qualidade do jornalismo diante das novidades demandadas pelos periódicos eletrônicos: tamanho de texto, outros elementos que complementam a notícia, dinamismo das atualizações das informações, leitor cada vez mais nômade. O artigo também fez uma releitura comparativa sobre as redes sociais e seus usuários. Com suas características bem peculiares, as redes sociais sugerem um convívio baseado em texto mínimo, fontes aleatórias e nem sempre legitimadas, e determinada especulação. Comprovadamente, estes hábitos estão presentes também entre os novos leitores do jornalismo digital, público estudado pela pesquisa. Portanto, do ponto de vista profissional, como o jornalista pode ser capaz de conquistar esse leitor na medida em que, obrigatoriamente, necessita lhe oferecer conteúdos mais extensos? O artigo levantou, ainda, os dez principais sites brasileiros de notícias, classificados de acordo com a quantidade de acessos diários, a fim de confrontar com os resultados apontados pela pesquisa com os jovens leitores. Além disso, analisou especificamente algumas reportagens de grande repercussão, publicadas recentemente, a fim de mensurar o grau de atualização que foi dado para os fatos noticiados. Um dos exemplos é o acidente aéreo, ocorrido em agosto deste ano, que vitimou um dos candidatos a presidente do Brasil. Como resultados desejados, o artigo apresenta a percepção dos atores citados anteriormente e, principalmente, aponta alternativas para se superarem tais desafios. Novas abordagens para cursos de jornalismo, investimento na formação de leitor de notícias e monitoramento dos sites são algumas das proposições do artigo. Afinal, a proposta é colocar em pauta a garantia do papel transformador do jornalismo, independente do meio e de formatos, valorizando, acima de tudo, a qualidade da informação e do noticiário.

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OS LEITORES DIGITAIS E A URGÊNCIA DA LEITURA A pesquisa foi realizada no segundo semestre de 2014, quando ouviu 200 jovens leitores, residentes na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo desse levantamento foi compreender os hábitos de leitura na internet, sites preferidos de noticias, nível de aprofundamento das leituras do noticiário e níveis de atualização dos assuntos em pauta. Os entrevistados com idade entre 21 e 30 anos somam 58%, seguidos de 31 a 40 (16%), 40 a 50 (16%) e até 20 anos (10%). Na maioria são formados em Comunicação Social (66%), Administração (25%) e outras áreas (9%). Destes, 58% deles ainda são estudantes de graduação, enquanto que 25% estão a mais de dez anos no mercado de trabalho e outros 17% começaram a atuar no mercado a menos de uma década. De todas as respostas, a que chama mais a atenção é a que trata da forma como os jovens leitores acompanham o desdobramento das noticias. Dos entrevistados, 75% revelaram que “fica com a versão mais recente” do que foi publicado, sem nenhuma preocupação em confirmar informações obtidas anteriormente sobre o mesmo assunto. Voltar a noticia original a fim de confirmar as informações, comparar com outros sites e confrontar informações somente em função de determinadas matérias (todos com cerca de 8%) são os itens que complementam a questão que aborda o acompanhamento do noticiário pelos jovens leitores. Conforme a figura 1:

Fonte: o autor.

Do ponto de vista da precisão e veracidade das informações publicadas, a preocupação com a qualidade jornalística fica ainda mais evidente quando se observa a prática de alguns sites de noticias. O recente episódio do acidente com o jatinho que culminou com a morte do candidato à presidência do Brasil – Eduardo Campos, ocorrido em 13 de agosto, ilustra bem o risco existente diante da máxima de publicar primeiro e confirmar depois. Em praticamente todos os sites analisados (os mesmos que serão ranqueados à frente neste artigo), a última versão da noticia não faz nenhuma suíte em relação a informações imprecisas e incompletas publicadas nas primeiras horas do acidente. Considerando a prática dos leitores, no parágrafo anterior, admite-se que, neste caso, os leitores ficaram com a desinformação. Com relação à frequência com que buscam novidades factuais nos sites noticiosos, a pesquisa aponta que 50% acessam duas vezes ao dia, normalmente pela manhã e ao

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final da tarde. Com acessos três vezes ao dia, aparecem 25% e entrando nos sites várias vezes ao dia são 16%. Entrar num site de noticia apenas uma vez ao dia é a prática de 9% dos entrevistados. Das “editorias” de preferência, a chamada geral (espécie de capa ou primeira página) é a escolhida por 40%, enquanto que 20% preferem “esportes”. Completam a relação: “economia” (15%), “politica” (10%), “entretenimento” (5%) e “cultura” (5%).

Fonte: o autor.

Quanto ao nível de aprofundamento da leitura (figura 2, acima), a maioria (50%) admite que lê apenas o lead de cada matéria. Para 25%, a leitura da metade da noticia já é satisfatória, enquanto que outros 24% costumam ler a matéria inteira. Uma pequena fatia (1%), diz que lê apenas os comentários de outros leitores sobre as matérias de seu interesse. Numa livre citação sobre as influências do jornalismo eletrônico, 58% declararam que “o noticiário online pode provocar ansiedade, em função do excesso de informação e da presença dos hipertextos”. Ainda neste campo, outros 50% apontaram o “risco de comprometer o comportamento do leitor” (percepção dos assuntos), além de “diminuir o tempo de reflexão do leitor” sobre o material consultado (41%). Na opinião dos entrevistados, a presença de imagens no noticiário tem um peso muito grande na escolha, acompanhamento e entendimento da matéria a ser lida. Para 33%, a imagem tem peso 5 (numa escala de 1 a 5), para 41% a importância é nota 4 e 16% deram peso 3. Dentre as formas de imagem, os entrevistados se sentem mais atraídos por fotografias (71%), gráficos (15%), ilustrações (2%), vídeos (1%) e outros (11%). Os entrevistados que apontaram o G1 (globo.com) como o site de noticias de sua preferência somam 82%, seguidos dos que preferem o UOL e Estado de São Paulo, ambos com 9%. A preferência apontada pela pesquisa junto a jovens leitores confirma o ranqueamento feito pela eMarketer - uma organização especializada em pesquisas sobre a internet no mundo. Segundo eMarketer, o Brasil apresenta “uma das maiores taxas de consumo e tempo gasto em redes sociais no mundo”. De acordo com estudos realizados em 2014, são 88 milhões de usuários nas redes sociais, mais de um terço da população total. A comScore, líder global em medição de audiência na internet, destaca que os usuários brasileiros

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passam em media 13,2 horas mensais nas redes, contra uma media global de 5,7 horas e de 6,3 horas nos Estados Unidos. Considerando a quantidade de visitas de leitores a sites de notícias, foram relacionados os dez periódicos eletrônicos de maior prestigio no Brasil. A mostra levou em conta também o fato de que os conteúdos é que são responsáveis por essa escolha por parte dos leitores. Do líder ao 10º site de notícias mais acessado, são eles: G1, UOL, portal Terra, Folha Online, R7, Jornal Estado de São Paulo, MSN, IG, Yahoo Brasil e ClicRBS. Os resultados das pesquisas, portanto, apontam para a necessidade de um relacionamento cada vez mais interativo, dinâmico e imediatista. Do ponto de vista jornalístico, no entanto, entende-se que os sites de noticias estão diante de um paradoxo: agilidade e precisão. Como garantir total veracidade do que se publica quando o leitor, por opção e pressa, se limita ao lead e não demonstra interesse no aprofundamento da noticia? Eis uma questão a pautar os sites nossos de cada tela.

DEMANDAS E ESTILOS DE COMUNICAÇÃO DAS NOVAS GERAÇÕES Importante destacar que os respondentes da pesquisa são legítimos representantes das chamadas “gerações Y e Z” - pessoas nascidas, respectivamente, desde a década de 80 até meados dos anos 90, e da segunda metade da década de 90 até os dias de hoje. Considerada a primeira geração verdadeiramente global, os novos atores do convívio social, cujo modelo de “consumo” de informações mudou radicalmente, são a perfeita tradução da necessidade de as relações ocorrerem de forma interativa e compartilhada. Conhecidos como nativos digitais, trazem consigo a necessidade da urgência e da instantaneidade em suas relações. Por sua vez, tais características acabam por impor às instituições – independe de sua área de atuação na sociedade - um novo modelo de relacionamento: mais dinâmico; preferencialmente proativo e, principalmente, em sintonia com o pensamento e as expectativas destes jovens. Na verdade, trata-se de uma geração que veio para ditar um novo ritmo nas relações informacionais que, por sua vez, obrigam as pessoas e os periódicos – principalmente eletrônicos - a se repensarem. Segundo Silva (2012, p. 19), existe a figura de um “novo espectador”, que vem aprendendo a não seguir de modo unitário e contínuo uma transmissão de televisão, fazendo uso do controle remoto. Para o autor, este jovem agora “aprende com a não linearidade, com a complexidade do hipertexto”. Ou seja, a juventude em particular vem passando por uma “mutação perceptiva”. Transita da “percepção tradicional” estática, linear, à percepção baseada na “colagem de fragmentos”. Silva exemplifica com os clipes musicais, que dão lugar a “um crescimento de destreza perceptiva e de velocidade gestáltica”. Essa juventude encontra nas tecnologias hipertextuais um ambiente complexo que traz a nova dimensão de sua “mutação perceptiva” em curso, numa evolução do ciberespaço de web 1.0 para web 2.0. Segundo Castells (1999, p. 497), “embora a forma de organização social em redes tenha existido em outros tempos e espaços, o novo paradigma da tecnologia da informação fornece a base material para sua expansão penetrante em toda a estrutura social”. O autor, que utiliza a expressão “sociedade em rede” para retratar o novo perfil da sociedade na “era da informação”, deixa claro que a organização social em redes não é novidade. No entanto, em sua mais recente obra - Redes de Indignação e

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Esperança - Movimentos Sociais na Era da Internet -, Castells (2012, p. 25) reforça que “em nossa época, as redes digitais, multimodais, de comunicação horizontal, são os veículos mais rápidos e mais autônomos, interativos, reprogramáveis e amplificadores de toda a história”, numa alusão às manifestações populares que estão ocorrendo em todo o mundo com o apoio fundamental das redes sociais. Desta forma, fica evidente que acompanhar as mudanças no mundo não é tarefa fácil. Segundo dados de março de 2013 da Intel Corporation - empresa multinacional de tecnologia dos Estados Unidos – em apenas um minuto, inúmeros fenômenos acontecem: 1,3 mil usuários se conectam a seus celulares e tablets; surgem 100 novos perfis; mais de 61 mil horas de música são ouvidas no aplicativo Pandora; e mais de 100 mil mensagens são trocadas. O estudo mostra, ainda, que mais de dois milhões de buscas são realizadas, mais de seis milhões de páginas são visualizadas, mais de 1,3 milhão de vídeos são vistos e mais de 30 milhões são enviados no YouTube. O estudo disponibiliza outros exemplos de ocorrências neste curto espaço de tempo: 20 milhões de fotografias são vistas e mais de duas mil fotos enviadas para o Flicker, mais de 47 mil aplicativos são baixados, seis novos artigos são publicados, mais de 204 milhões de e-mails são enviados, e o número de dispositivos conectados à internet no mundo já equivale à população mundial. Em 2015, este número deverá ser equivalente ao dobro da população mundial. Quando utilizadas coletivamente, estas facilidades tecnológicas provocam verdadeiras mobilizações sociais. Castells (2012, p.25) analisa o quanto um movimento social é determinado pelas características dos processos de comunicação entre indivíduos engajados. Segundo o autor, “quanto mais interativa e autoconfigurável for uma comunicação, menos hierárquica será a organização e mais participativo o movimento”. Então, ele entende que “os movimentos sociais em rede da era digital representam uma nova espécie em seu gênero”. Percebe-se, portanto, uma prática de convergência de mídias em todas as relações sociais. Seja no ambiente noticioso – veículos eletrônicos – ou no universo corporativo; o leitor tem sido tratado como o grande alvo a ser conquistado, cuja atenção tem sido disputada agressivamente. Diante desta realidade, o jornalismo digital vê seu desafio aumentar significativamente na medida em que precisa manter seu compromisso com a qualidade de conteúdos junto ao seu leitor.

A FORMAÇÃO DOS JORNALISTAS DIANTE DA NOVA REALIDADE Como os produtores de conteúdos estão sendo preparados para este desafio junto aos jovens leitores? Assim, foi necessário passar pela sala de aula a fim de diagnosticar o que vem sendo ensinado aos graduandos de jornalismo nos cursos de comunicação social. Para tanto, foram analisadas as grades curriculares de oito universidades brasileiras, instaladas no estado do Rio de Janeiro, das quais cinco são particulares e três são públicas. Dentre as escolas particulares, foram pesquisadas: Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM, Universidade Estácio de Sá, Pontifícia Universidade Católica – PUC, Faculdades Hélio Alonso – Facha, Universidade Veiga de Almeida – UVA. As universidades públicas pesquisadas são a Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e Federal Fluminense – UFF.

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O termo ciberjornalismo ou periódico digital, em que pese sua evidenciação desde a década de 1990, não aparece em nenhuma das grades curriculares das escolas citadas. Enquanto cadeira acadêmica, as expressões que mais se aproximam do ciberjornalismo são: “jornalismo na internet”, “redação de hipertexto”, “comunicação digital”, “práticas de jornalismo multimídia”, “mídias globais” e “cultura das mídias”. Evidentemente que, independente do aspecto semântico, esta constatação aponta para uma distância entre os ambientes jornalísticos frequentados pelo leitor em relação à preparação dos futuros profissionais que atuarão nestes meios. Numa comparação com as disciplinas mais tradicionais, e considerando-se aquelas mais voltadas para a prática dos veículos de comunicação; as matérias inerentes ao ciberjornalismo aparecem, percentualmente, em grande desvantagem dentro do quadro de horas de estudo. Por exemplo, “jornalismo impresso” (redação, métodos e práticas ou edição), como não poderia ser diferente, está presente em100% das grades das oito universidades. Numa mesma universidade – a UERJ -, esta disciplina está disponível em quatro tempos de aula, tanto no quarto período (dois tempos) quanto no quinto período (um tempo). Por sua vez, a matéria “jornalismo na internet” conta com apenas um tempo (oitavo e último período) dentro da mesma grade. Há, no entanto, uma exceção nesta falta de equilíbrio entre o impresso e o digital nas grades curriculares. As Faculdades Hélio Alonso – Facha – tem quatro disciplinas digitais: “novas tecnologias em jornalismo” (4º período), “redação para novos meios” (5º período), “redação e editoração em jornalismo digital” (6º período) e “projeto em jornalismo digital” (7º período). Além disso, a grade oferece outras matérias inerentes ao universo cibercultural: “cibercultura” (3º período), “mídias globais” e “agência multimídia” (5º período). Os veículos impressos estão contemplados em praticamente toda a grade desta rede de faculdades. Depois dos impressos, o rádio e a televisão são os veículos com mais espaço didático dentre as grades universitárias analisadas. Embora também esteja presente em todas as universidades, o “radiojornalismo” ou “redação, métodos e práticas para o rádio” ocupa, no máximo um tempo de aula (normalmente até o 4º período). A mesma lógica se verifica nas matérias “telejornalismo”, “projetos em TV” ou “práticas de televisão”. Na sequência, estão disponíveis disciplinas como: fotojornalismo (70% das universidades analisadas) e cinema (50%). Analisando-se a grade horária da Facha, onde a presença digital difere favoravelmente das demais universidades citadas neste artigo, chega-se a mais de 16% de tempo destinado às disciplinas próximas do ciberjornalismo em relação a toda grade do curso. Ou seja, das 2.372 horas, as matérias teóricas e práticas destas disciplinas somam 396 horas. Em comparação com as disciplinas práticas voltadas para outros veículos (rádio, jornal impresso, televisão), o tempo é praticamente equivalente. Numa comparação entre as disciplinas voltadas para o jornalismo corporativo e aquelas mais próximas do ciberjornalismo, percebe-se pouca exposição do tema on line aos jornalistas em formação. Por exemplo, na UFF, uma universidade pública, a disciplina “Assessoria de Imprensa” possui 60 horas no curso, o que corresponde a 2,1% da carga horária total. Por sua vez, as matérias “Linguagem Hipertextual” e “Redação

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de Hipertexto”, embora com tempo maior (90 horas), correspondem a 3,2% do tempo da grade. Este desequilíbrio na distribuição de horários fica ainda mais evidente quando se observa uma grade de ensino particular. Na ESPM, por exemplo, que é uma escola que se posiciona como muito próxima do mercado; as disciplinas “redação, métodos e práticas para meios digitais” e “comunicação digital”, somadas e com 144 horas, ocupam apenas 3,8% de toda a carga horária, que é de 3780 horas. Por sua vez, matérias ligadas às corporações (“comunicação corporativa”, “gestão da marca”, “assessoria de imprensa”, “planejamento de comunicação”, “comunicação interna”, “gerenciamento de reputação e crise” e “comunicação e sustentabilidade”) ocupam 13% da grade (total de 504 horas). Como argumentação, o material de divulgação do curso de jornalismo desta faculdade enfatiza que o “futuro do jornalismo passa pela redação tradicional (veículos impressos), comunicação corporativa e assessoria de imprensa”. Quando apresentados os laboratórios que os alunos utilizam, a mesma lógica se materializa: espaços práticos para televisão, rádio e ilhas de edição. Ou seja, o jornalismo online não figura nesta divulgação promocional. O destaque para o tema, na verdade, se resume a uma citação que aponta para a necessidade de “articular os veículos tradicionais com os digitais”. Segundo Ferrari (2008, p.65), “estamos vivenciando, com a internet 2.0, um retorno ao jornalismo cidadão, prática muito presente nas redações do Século XIX”. A autora, especializada em jornalismo na internet, cita a Revolução Francesa, quando “tínhamos milhares de panfletos circulando em volta da Bastilha, todos independentes da grande mídia”. Para ela, não era só o Le Monde que estava presente no conflito, mas jornais pequenos, fanzines, panfletos. Citando o filósofo francês Pierre Lévy, Ferrari destaca que “o ciberespaço ampliou as noções de espaço e tempo e, consequentemente, acabou com os limites geográficos e políticos que norteavam a produção de conteúdo”. Em função de novo modelo de comunicação, a autora defende que o jornalismo resgate seu papel muito mais social, de promoção da cidadania. “A partir do avanço tecnológico do século XX, o jornalismo foi ficando cada vez mais homogêneo, sem sabor”, reclama Ferrari. E exemplifica citando “a Reuters, que detém em torno de 90% das noticias do mundo”. E complementa: “temos um CNN, uma Televisa. Enfim, os conglomerados de mídia que controlam a hegemonia informacional. Sofremos uma retroação na criatividade, na forma de expor o fato”. Para Ferrari, “a internet 2.0 pode ser definida como a segunda geração de serviços disponíveis na internet, o que permite às pessoas colaborar e compartilhar informações online”. Para a autora, a internet tornou-se resposta imediata de toda uma geração que se relaciona pela web que, segundo ela, “encontra seus empregos, trabalha, discute e adquire conhecimento pela rede”. Tal confirmação impõe aos sites de noticias um cuidado ainda maior na elaboração de seus conteúdos para os jovens leitores. Na verdade, um compromisso com o velho e bom jornalismo desde sempre defendido por Dines (1996, p. 90). Segundo ele, “o leitor de hoje não quer apenas saber o que acontece à sua volta, mas assegurar-se da sua situação dentro dos acontecimentos”. Ou seja, Dines preserva o engrandecimento da informação, de forma que ela ofereça a dimensão comparada, a remissão ao passado, a interligação com outros fatos, a incorporação do fato a uma tendência e a sua projeção para o futuro.

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Leitores digitais: o novo e complexo desafio do jornalismo no Século 21 Nilton Marlúcio de Arruda

CONCLUSÃO Todos os autores utilizados para a elaboração deste artigo evidenciam um universo cada vez mais interativo onde as relações estão mediadas por telas e toques. A pesquisa mostra jovens leitores buscando informações noticiosas num ritmo que não permite suítes ou releituras. Enquanto isso, os sites de noticias investem em inovações visuais mirabolantes que disputam espaço com as matérias. Por sua vez, os cursos de jornalismo ainda parecem tímidos no ensino de conteúdos para veículos digitais. Misturando tudo isso e tirando uma “prova de prelo”, é preciso reconhecer que a qualidade dos conteúdos pode ficar comprometida diante de tamanhos desafios do jornalismo digital. Quando os entrevistados admitem, em ampla maioria, que o excesso de informação pode provocar ansiedade, ao mesmo tempo em que se cobra um maior aprofundamento das noticias; chega-se, novamente, a uma situação paradoxal: conteúdo versus tempo de leitura. Assim, entende-se que há outro ponto fundamental nesta reflexão: não cair na armadilha de, tão somente, resolver o conflito com recursos visuais. Em função desta realidade, a busca por alternativas para se superarem tais obstáculos passa a ser a manchete do dia. Sugere-se, então, que o começo seja pelas salas de aula, incluindo novas abordagens para os cursos de jornalismo. Além da adaptação de texto para veículos online, é importante que o jornalista em formação não perca de vista a necessidade de levar ao leitor a informação completa e precisa. Ou seja, que os valores da profissão não se deixem levar pelo glamour do brilho das telas. Ressalte-se que os editores também figuram como protagonistas neste processo de publicação de noticias. Da escola para as redações dos veículos, é imprescindível um investimento na formação de leitor de notícias. Trata-se, portanto, da construção e manutenção de um relacionamento baseado na confiança mútua, numa conquista a ser buscada a cada matéria, todos os dias. Outro importante ponto é a prática do monitoramento dos sites de notícia, de forma a garantir que os interesses do leitor estejam acima da concorrência entre publicações. Reconhecendo o peso e a legitimidade do leitor online, cuja decisão está a um toque do teclado ou da tela, impõe-se aos periódicos um esforço ainda maior no sentido de construir e manter sua credibilidade. Finalmente, a proposta é colocar em pauta a garantia do papel transformador do jornalismo, independente do meio e de formatos, valorizando, acima de tudo, a qualidade da informação e do noticiário.

REFERÊNCIAS Dines, Alberto (1996). O papel do jornal: uma releitura. Novas buscas em comunicação, v. 15, 6ª ed. São Paulo: Summus. Castells, Manuel (2012). Redes de Indignação e Esperança - Movimentos Sociais na Era da Internet. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda. Castells, Manuel (1999). A sociedade em rede. Tradução: R. V. Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Ferrari, Pollyana (2008). Internet 2.0: práticas cotidianas de cidadania. Comunicação interna: a força das empresas, volume 4 (vários autores - organizador Paulo Nassar). São Paulo: ABERJE, 2008. Silva, Marco (2012). Sala de aula interativa: educação, comunicação, mídia clássica... 6ª edição. São Paulo: Edições Loyola (Coleção práticas pedagógicas). ISBN 978-85-15-03708-7 Site pesquisado: http://top10mais.org/top-10-melhores-sites-de-noticias-do-brasil/# (acessado em 10/09/2014).

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O jornalismo e as novas relações com uma audiência conectada, que interage, testemunha, vigia, reage, propaga e amplifica Journalism and its new relationships with a connected audience that interacts, witnesses, watches, reacts, propagates and amplifies G i o va n a M e s q u i t a 1 Resumo: O jornalismo vem passando, desde o final do século XX, por uma série de mudanças observadas na base do processo de produção, de distribuição, de acesso às notícias, e principalmente na relação com a audiência. Com papeis bem definidos em outros momentos, após o que se denomina WEB 2.0 a audiência en­volve-se e é envolvida pelo jornalismo resultando em novas relações que se estabe­lecem a partir de uma convivência facilitada pela convergência das mídias tradicio­nais e digitais. Dentro desse contexto, o artigo reflete sobre as novas relações do jornalismo com uma audiência que não só ressignifica as mensagens que recebe, nem tampouco atua enviando conteúdos para os veículos de comunicação. Mas que se envolve e é envolvida nos processos, nas práticas e nas rotinas jornalísticas possuindo: capacidade de propagação da informação; capacidade de ação; capaci­dade de transformação e capacidade de amplificação, ou seja, uma audiência que denominamos potente. Ao construir a hipótese da Audiência Potente, apresentamos também 11 de suas características. Uma de nossas conclusões é que as notícias não são mais construídas somente a partir da imagem que os jornalistas fazem da audi­ência, mas vem sendo acrescida dos olhares dessa Audiência Potente que balizam os veículos de referência.

Palavras-Chave: Audiência Potente; Jornalismo; Jornalistas; Notícias Abstract: Since the end of the XXth Century, Journalism is going through a period of steep changes observed to occur at the base of the production, distribution and news access processes, and in its relationship with audience. Having had wellde­fined roles until recently, audience now – after the emergence of the WEB 2.0 – in­volves itself with and is involved by Journalism in new relationships that are estab­lished in the mid of shared experiences made easy by the convergence of tradi­tional and digital media. Considering this context, we present some thoughts about those new relationships between Journalism and an audience that not only re-signi­fies the income messages or acts sending content to the communication vehicles, but that also involves itself and is involved in the journalistic processes, practices and routines, demonstrating capacities of: 1.  Doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento Local pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Pesquisadora do Núcleo de Jornalismo e Contemporaneidade da UFPE. E-mail: [email protected]

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propagation; action; transformation and amplification, that is, being a Potent Audience. Alongside the building of the hy­pothesis of the Potent Audience we present its 11 main features. One of the drawn con­clusions is that news are no more built only from the perspective of an audience image produced by journalists; they are now augmented by the points of view of the Potent Audience, which now influences the news reference vehicles.

Keywords: Potent Audience; Journalism; Journalists; News

INTRODUÇÃO ESDE QUE os celulares e outros dispositivos moveis com acesso à Internet ficaram

D

mais acessíveis à população quase toda manifestação, seja de cinco ou de 100 milhões de pes­soas, vai ser filmada, compartilhada, curtida e dependendo de sua movimentação nas redes sociais vai parar em um veículo de comunicação, contribuindo para a construção noticiosa. Pessoas que não cursaram jornalismo, nem necessariamente trabalham na área de comunicação, foram se familiarizando em registrar conteúdos da atualidade, compartilhá-los e amplificá-los. Como a natureza do jornalismo está identificada com a atualidade, muitos desses conteúdos, produzidos por não profissionais, passaram a interessar e, mais do que isso, foram incorporados pelo campo em espaços que não eram somente os de Cartas à Redação. Essa inclusão de agentes no campo jornalístico vem alterando as rotinas jornalísticas e o próprio jornalismo, que desde o final do século XX passa por uma série de mudanças ob­servadas na base dos processos de produção, de distribuição, de acesso às notícias, e prin­cipalmente na relação com a audiência. Com papeis bem definidos em outros momentos, após o que se denomina WEB 2.0 a audi­ência envolve-se e é envolvida pelo jornalismo resultando em novas relações que se esta­belecem a partir de uma convivência facilitada pela convergência das mídias tradicionais e digitais. Dentro desse contexto, o artigo reflete sobre as novas relações do jornalismo com uma au­diência que não só ressignifica as mensagens que recebe, nem tampouco atua enviando conteúdos para os veículos de comunicação. Mas que se envolve e é envolvida nos proces­ sos, nas práticas e nas rotinas jornalísticas possuindo: capacidade de propagação da infor­ mação; capacidade de ação; capacidade de transformação e capacidade de amplificação, ou seja, uma audiência que denominamos potente. Ao construir a hipótese da Audiência Potente, apresentamos também 11 de suas característi­cas(tecnológica, de conectividade, de rede, de interatividade, de autonomia na apropriação do conteúdo, de testemunha, de coprodução, de vigilância, de reação, de propagação e de amplificação).

PERCURSO METODOLÓGICO Esse artigo é fruto de uma pesquisa realizada durante quatro anos, com o intuito de com­preender como as audiências são envolvidas e que mudanças elas têm provocado no pro­cesso produtivo da notícia em veículos de referência, após o que se denominou WEB 2.0, uma fase no desenvolvimento da World Wide Web (www) que favorece e promove

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a parti­cipação dos usuários. Para realizá-la acompanhamos as atividades do Diario de Pernambu­co, fundado em 1825, sediado no Recife(PE) e do lavanguardia.com, edição digital do diá­rio La Vanguardia, o mais importante jornal de Barcelona, segundo da Espanha, depois do El País, e o oitavo diário digital em espanhol de maior audiência do mundo. Dois jornais que são pioneiros em suas cidades, não só na abertura de espaços ditos colaborativos ou participativos, como também na criação de novas editorias, como a de Mídias Sociais (Dia­rio de Pernambuco) e a de Redes Sociais (La Vanguardia), com o objetivo de envolver a audiência na construção da notícia. Com a escolha desses dois importantes diários acreditávamos ser possível responder as nossas perguntas de pesquisa: a audiência, após o que se denomina Web 2.0, é envolvida pelos veículos de referência e consegue intervir no processo produtivo da notícia? Esse en­volvimento da audiência traz mudanças para o jornalismo? A nossa preocupação foi observar e descrever as rotinas dos editores e repórteres que traba­lham em espaços identificados como de “participação” da audiência e nas recém surgidas editorias de Redes Sociais e de Mídias Sociais das empresas objetos de nosso estudo. Pro­curamos compreender como os veículos de referência incorporam os conteúdos advindos da Audiência Potente à sua produção. Seguindo Casetti & Chio (1999), que entendem que é necessário o analista observar a rea­lidade ao vivo, para não correr o risco de ter dados contaminados por mediações, viabiliza­mos uma permanência de duas semanas, em cada uma das redações. No La Vanguardia permanecemos pelo período de quatro a 13 de fevereiro de 2013, enquanto na redação do Diario de Pernambuco, a permanência foi de 24 de outubro a 1º de novembro de 2013. A escolha de uma abordagem etnográfica para a realização da pesquisa de campo, na forma de uma observação participante, possibilitou reunir e obter sistematicamente os dados e as informações sobre as rotinas de produção que acontecem nos media. Como parte da observação, realizamos também entrevistas em profundidade com os jorna­listas envolvidos na pesquisa (editores de Participação e de Mídias Sociais, além de repór­teres). Segundo M. Bauer & G. Gaskell (2002), a entrevista qualitativa fornece os dados básicos para o desenvolvimento e compreensão das relações sociais entre os atores sociais e sua situação. Todas as entrevistas foram realizadas no próprio jornal, algumas na sala de reuniões e outras na própria redação. Entendíamos que a abertura de canais ditos colaborativos ou participativos, bem como a utilização do material produzido pela audiência, em alguns momentos como complementar ao trabalho da redação, não esgotavam a relação audiência-jornalismo. A mudança na pro­dução da notícia surge a partir das novas relações que os veículos passam a estabelecer com a audiência, mediada pelas redes sociais (Twitter e Facebook).

A AUDIÊNCIA POTENTE Uma questão central, que entendemos ser necessário deixar claro, é que a Audiência Potente não é jornalista, mas um novo agente no processo, nas práticas jornalísticas, nas rotinas, que vem afetando o jornalismo de diversas formas. Essa afirmativa vem antes de todas as denominações e caracterizações que trazemos neste trabalho, porque após o que se denominou Web 2.0, que, dentre outras coisas, tornou viável a incorporação,

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aos produtos jornalísticos, de registros de acontecimentos em vídeos e fotografias feitos pela audiência, alguns teóricos questionavam o que diferenciava uma produção do profissional e a do não-profissional. No papel de produtora e receptora de informações, a audiência, para alguns teóricos, ameaçava a atividade jornalística na medida em que tinha acesso aos meios de produção para participar da configuração da realidade. As denominações para o papel desempenhado por essa audiência eram várias: jornalismo participativo, cidadão repórter, jornalismo de código aberto, jornalismo público, jornalismo cívico. Em meio a muitas discussões nesse momento, os autores só conseguiam convergir para o entendimento de que há uma mudança nas relações entre os veículos de comunicação e a audiência, já que esta última, além de ativa e comunicativa, tem, agora, acesso aos meios de produção de conteúdos. Assim, uma das primeiras afirmativas referentes à Audiência Potente, é que ela, embora se integre cada vez mais ao campo jornalístico e contribua com o jornalismo, não é jornalista. Quando nos referimos à Audiência Potente, estamos falando de cidadãs e cidadãos que, de alguma forma, estabelecem uma relação ativa com os veículos de comunicação, envolvendo-se ou sendo envolvidos nos processos, práticas e nas rotinas jornalísticas. A Audiência Potente possui: força de propagação da informação, não necessariamente notícia; capacidade de ação, possibilitada pelo acesso aos meios de produção; capacidade de amplificação uma vez que reverbera o conteúdo, fazendo com que chegue ao maior número possível de pessoas; e capacidade de transformação, na medida em que muda sua forma de ação e de comportamento ao longo do tempo, dependendo de condições culturais, econômicas, sociais, tecnológicas, dentre outras. A Audiência Potente surge em um contexto de mudanças sociais, culturais e tecnológicas, de democratização das ferramentas de produção, redução dos custos do consumo da inform­ação pela democratização da distribuição (ANDERSON, 2006) e da interatividade. A facilidade de acesso às ferramentas de produção possibilita à Audiência Potente dois cam­inhos: criar e alimentar seus próprios espaços de visibilidade (blogs e redes sociais); e disponibilizar um grande número de conteúdos, principalmente em redes sociais2, bastando que tenha disponibilidade, habilidade para usar algumas ferramentas e acesso a um comput­ador ou a dispositivos moveis, como celulares, smartphones, tablets, dentre outros, con­ectados à Internet. No entanto, como bem destaca Anderson (2006, p. 55), “o fato de qualquer um ser capaz de produzir conteúdo só é significativo se outros puderem desfrutá-lo. O computador pessoa­l (PC) transformou todas as pessoas em produtores e editores, mas foi a Internet que con­verteu todo mundo em distribuidores”. Assim, com o acesso aos meios de produção e a fa­cilidade de distribuição, a Audiência Potente pode registrar acontecimentos que, em al­guns casos, são incorporados a um produto jornalístico, ao mesmo tempo em que dispõe de canais pelos quais manifesta seu olhar sobre o mundo que a cerca. Nesse contexto, uma questão central, para a construção do que denominamos Audiência Potente, é a interatividade. Uma das características do jornalismo na Internet3, a 2.  Neste trabalho, enquadramos na definição de rede social: blogs e sites como Twitter, Facebook. 3.  No Manual de Laboratório de Jornalismo na Internet, os pesquisadores Marcos Palacios e Beatriz Ribas (2007) ressaltam como características do jornalismo na Internet, além da Interatividade, a Hipertextualidade,

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interativid­ade, como ressalta Rost (2006, p. 168), é um conceito com “estrecha relación con la evolución que han tenido la informática y las nuevas tecnologias de la información y la comunicación en los últimos 35 años”. Embora numa relação mais visível com as tecnologias da informação, não podemos pensar que a interatividade é uma nova característica das comunicações, Bertold Brecht, entre fi­nais da década de 1920 e início da década de 1930, num discurso sobre a função da radiodifusão, já antecipava o que hoje se convencionou chamar interatividade. Vinculada à criação da informática e da telemática, a interatividade é vista, desde estes campos, como a capacidade dos computadores responderem aos requerimentos dos usuári­os (ROST, 2006). Na comunicação, segundo Rost (2006), o termo recebeu um pouco mais de atenção na dé­cada de 80, com as investigações que tentavam, não só traçar definições, como medir os di­ferentes graus de interação. Essas investigações ganharam, a partir da década de 90, um novo impulso, com o crescimento dos serviços oferecidos pela Internet e, principalmente, com a criação e popularização da World Wide Web. Para Jorge (2013, p.67), a Internet vem recuperar “o lugar de participação das pessoas no processo de comunicação”. Rost (2006, p. 195), autor da tese La Interactividad en el periódico digital, considera interat­ividade: “a capacidade gradual e variável que tem um meio de comunicação para dar aos usuários-leitores um maior poder, tanto na seleção de conteúdos, como nas possibilida­des de expressão e comunicação”. Quando se refere às possibilidades de seleção de conteúdos, o que chama de interatividade seletiva, Rost (2006) está destacando a capacidade dos meios para responder aos requeri­mentos do usuário e oferecer-lhe um menu de conteúdos que o leitor pode escolher. Já as possibilidades de expressão e comunicação, que ele chama de interatividade comunicativa, refere-se aos espaços que abrem o meio para que o leitor emita opiniões e possa realizar in­tercâmbios dialógicos com outros indivíduos (jornalistas, personagens da atualidade e ou­tros leitores). Mais do que as possibilidades de acesso, gestão e distribuição da informação permitidas pela interatividade seletiva, outras relações mais complexas são experimentadas na interativ­idade comunicativa, uma vez que os atores, nessa última, são os indivíduos ou gru­pos de indivíduos que entram em contato em diversos contextos, contribuindo com a cons­tituição das chamadas comunidades virtuais, ou seja, novos espaços de produção simbólica de mundos representados e compartidos (ROST, 2006). Com acesso, habilidade de uso dos dispositivos tecnológicos, conectividade e a possibili­dade de interatividade, a Audiência Potente além de ressigni­ficar as mensagens que recebe, também se envolve com os veículos de comuni­cação das mais diversas formas. A força de propagação dessa Audiência Potente tem levado o jornalista, não só a incorporar esses conteúdos que estão nessas redes conversacionais, mas a movimentar ou ativar essas redes para “ter” os “olhares” desse novo agente, que não é necessariamente uma fonte institucionalizada do jornalismo. Adghirni (2012, p.66) diz que “trata-se de

a Multimedialidade, a Personalização do Conteúdo, a Memória e a Atualização Contínua.

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uma situação de interatividade e de reflexividade inédita na história, que obriga os produtores de conteúdos a ajustarem rapidamente sua produção para os leitores e para os concorrentes”. Essa Audiência Potente que utiliza as redes sociais vem se envolvendo, e sendo envolvida, pelos veículos de comunicação de referência, trazendo novos elementos para o jornalista na construção social da realidade.

AS CARACTERÍSTICAS DA AUDIÊNCIA POTENTE O envolvimento da audiência no âmbito da comunicação, após o que se denominou Web 2.0, varia muito, dependendo de suas necessidades e motivações básicas. Autores como Bowman & Willis (2003), Bruns (2005), Madureira (2010) e Espiritusanto (2011) cataloga­ram alguns níveis de envolvimento da audiência dentro do ecossistema informativo, e al­guns deles são relevantes para a caracterização do que pretendemos definir como Audiên­cia Potente. Para Bowman & Willis (2003) há diferentes possibilidades de envolvimento da audiência na construção do noticiário. A mais elementar seria o comentário, que foi tomando, ao lon­go dos anos, a forma de fóruns, newsgroup, salas de bate-papo e mensagens instantâneas na web. Incluem ainda o processo de filtro e edição, que pode ser passivo, no qual a audi­ência acessa a informação, e o site cria visualizações como, por exemplo, as notícias mais lidas; ou ativo, como o processo de votação de notícias (BOWMAN & WILLIS, 2003). A audiência, segundo Bowman & Willis (2003), “participa” da checagem dos fatos, o que é comum em sites como o http://slashdot.org; faz o registro do flagrante de um acontecimen­to; a complementação da apuração da informação jornalística; e a produção open source de notícias, com a revisão e complementação por pares. Bowman & Willis (2003) ainda inclu­em, nesse processo de envolvimento da audiência, os modelos de transmissão ao vivo de áudio e vídeo, a publicidade colaborativa e o gerenciamento de conhecimento. Espiritusanto (2011) entende que a audiência pode “participar” de uma comunidade ou de um meio por uma questão de ego, status ou reputação, assim como para criar conexões com outros autores ou audiências; para crescer profissionalmente ou pessoalmente; para ter impacto e amplificação das histórias que lhe interessam; por intercâmbio de conhecimento; por solidariedade ou de maneira altruísta, para defender uma causa ou uma posição; ou ain­da para conseguir uma remuneração de seu conteúdo. Ele destaca alguns níveis de “partici­pação” dentro do ecossistema informativo que são relevantes para a construção de nosso conceito de Audiência Potente. Um desses primeiros níveis considerados por Espiritusanto (2011, p.15), diz respeito à atuação da audiência nas redes sociais: Los usuários pueden decir sobre una noticia “me gusta”, y están participando; pueden comentarla, y esa participación aumenta y se amplía. Pero también pueden votarla en los diferentes medios que hay jerarquización de noticias (Digg, Menéame…). Si tenemos en cuenta que la jerarquización de la información es (o era) una de las funciones de los medios de comunicación y del periodista, aquí nos encontraríamos con que los usuarios están realizando, en la actualidad, una labor que hasta ahora correspondía al periodista tradicional.

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A audiência, para Espiritusanto (2011, p.15-16), também pode “aportar material a un me­dio, generar medios propios o compartir contenidos con otras personas”; além disso, pode converter-se em “periodistas ciudadanos” . No que considera um grau maior de implicação, Espiritusanto (2011) afirma que a audiên­cia pode se converter em vigilante dos governos e dos meios de comunicação. Trata-se de “periodistas ciudadanos” comprometidos com uma situação de injustiça, censura, etc (ES­PIRITUSANTO, 2011, p. 16).. Por fim, em sua tipologia da “participação”, Espiritusanto (2011, p. 16) considera que há “periodistas ciudadanos que saben cómo hacer llegar la información de una situación con­creta a la agenda internacional” e os que “deciden informar de los pequeños y grandes he­chos cotidianos que suceden en su comunidad, a sus vecinos, a los que viven dentro de ella (ESPIRITUSANTO, 2011, p. 16)”. Compartilhamos com Espiritusanto (2011) a ideia de que a audiência pode, graças à tecno­logia que tenha a seu alcance e ao uso que saiba fazer dela, atuar no registro fotográfico, de vídeo, de texto ou de áudio, assim como pode oferecer uma enorme contribuição à demo­cracia, na medida em que atua como vigilante do poder ou dos meios de comunicação. No entanto, como ressaltamos antes, apesar disso não consideramos que ela desempenhe o pa­pel de jornalista, continuando, para nós, audiência, com múltiplas características, e potente. Um dos primeiros aspectos que consideramos na caracterização da Audiência Potente é que para sua ação faz-se necessário que ela tenha acesso a dispositivos tecnológicos, tais como computadores, celulares, smartphones, dentre outros. Com o acesso e habilidade para usar os dispositivos tecnológicos é essencial que a Audiência Potente tenha também co­nectividade, no sentido da “capacidad para enviar voz, texto, datos, gráficos, imágenes, ví­deos y películas (...) por medio de una red multipunto, bidireccional y de banda ancha” (MAJÓ, p.71). O acesso à tecnologia e à conectividade diferenciam as possibilidades de ação da audiência. Como bem destaca Espiritusanto (2011, p. 15): Se puede coordinar una acción colectiva contando con la participación de los usuarios a través de listas de correos, grupos de discusión, foros…, pero no será una participación en tiempo real, o a través de las actuales herramientas en línea o redes sociales, como Twitter, Facebook, o Quora, que permiten ofrecer respuestas e interacciones casi inmediatas.

Outro aspecto fundamental para a Audiência Potente é a interatividade. A Internet permite que a Audiência Potente possa interatuar com os veículos de referência, tanto no que Rost (2006) denomina como interatividade seletiva – que diz respeito à interação dos indivíduos com os conteúdos (com a máquina ou com o sistema) – quanto na comunicativa – que corresponde à interação dialógica entre indivíduos ou grupos de indivíduos em seus con­textos mais diversos, com seus diferentes repertórios interpretativos atuando em um âmbito planetário. Para nós, uma das características mais elementares, mas não menos importante, da Audiência Potente é sua autonomia na apropriação do conteúdo, que leva em conta o processo de escolha de quando e onde disporá do conteúdo noticioso. Não é preciso mais estar pontualmente às 20h diante da televisão para assistir o telejornal brasileiro

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de mais tempo no ar, tampouco é preciso estar no Brasil para ter acesso a essas informações. Ou seja, o tem­po de receber a informação, assim como o espaço onde a informação circula, não são mais os mesmos da era analógica. Os dispositivos também são diversos. Voltando ao exemplo do telejornal, podemos assisti-lo na sala diante do aparelho de TV e na Globo, e também no celular ou no laptop, acessando redes sociais como, por exemplo, o youtube. A audiência tem todo um processo decisório de apropriação do conteúdo (o que, quando, onde e com que dispositivo), que pode impactar, por exemplo, na definição dos ratings (audiência média), que são vendidos pelas empresas de comunicação aos anunciantes. Outra característica da Audiência Potente é a capacidade de reação imediata aos conteúdos que lhe são apresentados. Isso possibilita que os veículos de comunicação tenham um extrato em tempo real do que alguns membros de sua audiência estão refletindo sobre as notícias veiculadas. A audiência, com característica de reação, atua comentando as notícias, complementando-as e até corrigindo-as, e, muitas vezes, com um olhar crítico para o tipo de abordagem utilizada pelo veículo de comunicação. Além da capacidade de filtro e da capacidade de reagir aos conteúdos publicados pelo veí­culo de comunicação, pode ser uma característica da Audiência Potente o envolvimento, no acontecimento, como testemunha, na maioria das vezes sendo a única presença a dar uma versão dos fatos. Ela pode conferir a sensação de maior veracidade à notícia. Não é de todo novidade a presença da testemunha do acontecimento no produto noticioso. A diferença agora é que essa testemunha tem acesso a dispositivos, que podem captar aquele aconte­cimento em diversas mídias (áudio, vídeo e fotografia), e facilidade de distribuição do que é captado, podendo fazer uma transmissão em tempo real. Geralmente, a Audiência Po­tente que tem a característica de testemunha, tem também a característica de coprodução, uma vez que, em uma sociedade que valoriza cada vez mais a exposição, não basta apenas presenciar um acontecimento, mas registrá-lo, distribuí-lo e, preferencialmente, exibi-lo em redes sociais. Com a capacidade de coprodução, a Audiência Potente, que está no Facebook e no Twitter, e se envolve com os veículos de referência, pode trazer para a redação registros foto­gráficos, vídeos e textos. Esses últimos são apropriados pelos veículos de diversas formas: como sugestão de pauta; como respostas a sondagens para municiar sobre como pensa a audiência em relação a determinado assunto; como questionamento e crítica à falta de de­terminados assuntos no noticiário e como opinião sobre determinado tema trabalhado pelos veículos de referência. A audiência coprodutora vem, por meio do uso de suas câmeras, ce­lulares ou máquinas fotográficas digitais, dialogando com os jornalistas que trabalham em várias mídias (Internet, rádio, jornal ou televisão), e também com outros cidadãos (VIZEU; MESQUITA, 2011). Dessa forma, essa audiência, que denominamos potente, pode manifestar diversas caracte­rísticas, como a sua formação em redes, o que possibilita aos veículos de comunicação in­formações de diversos lugares no mesmo momento, aumentando sua rede de fontes, ao mesmo tempo em que amplia a visibilidade dos conteúdos, não mais restritos a uma divulgação pelos veículos de comunicação de referência, mas circulando em outros espaços, como por exemplo, nas redes sociais.

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Essa audiência formada em rede apresenta-se também com uma possibilidade de influenci­ar seus pares, podendo mudar os processos de formação de opinião pública. Majó (2012, p. 84) exemplifica: El error informativo cometido por el Gobierno español los dos días después de los actos terroristas ocurridos en Madrid, en marzo de 2004, que cambiaron el resultado de las elecciones y, en sentido inverso, la influencia decisiva de la red en las elecciones norteamericanas de 2008 o en las sublevaciones del norte de África de 2011, muestran esta tendencia hacia unos espacios de comunicación mucho más abiertos, participativos y incluso democráticos, que más se intensificarán y más cambios van a suponer en la vida social.

Cientes da capacidade de distribuir, fazer circular os conteúdos e, consequentemente, da capacidade de propagação dessa Audiência Potente, os veículos de comunicação utilizam estratégias para “viralizar” seus conteúdos noticiosos. Tecnológica - para a ação da Audiência Potente faz-se necessário que ela disponha de disposi­tivos tecnológicos, tais como, computadores, celulares, smartphones, dentre outros; De conectividade - Com o acesso e habilidade para usar os aparatos tecnológicos, é essencial que a Audiência Potente tenha também conectividade, no sentido da “capacidad para enviar voz, texto, datos, gráficos, imágenes, vídeos y películas(...) por medio de una red multpunto, bi­direccional y de banda ancha”(Majó, p.71); De interatividade - A Internet permite que a Audiência Potente possa interatuar com os veícu­los de referência; De autonomia na apropriação do conteúdo – é a capacidade de escolher o que quer dispor do conteúdo noticioso, em que tempo e em que lugar; De rede - funciona quantitativamente, possibilitando aos veículos de comunicação ter informa­ções de diversos lugares ao mesmo tempo, ampliando a visibilidade dos conteúdos; De testemunha - está envolvida no acontecimento e pode dar sua própria versão dos fatos; De coprodução - fornece conteúdos (vídeos, áudios e fotos) que são utilizados pelo jornalismo; De vigilância – atua vigiando, tanto os governos, quanto os meios de comunicação; De reação - reage, por meio de críticas e/ou comentários às notícias; De propagação - possui velocidade informativa; De amplificação – une velocidade informativa a ressignificação do conteúdo. Figura 1. Quadro com as características da Audiência Potente. Fonte: autora do artigo

O ESPANHOL LAVANGUARDIA.COM E O LATINO-AMERICANO DIARIO DE PERNAM­B UCO E SUAS DIVERSAS FORMAS DE ENVOLVER A AUDIÊNCIA Nos jornais pesquisados, observamos que a Audiência Potente é envolvida de diferentes formas. O Diario de Pernambuco iniciou a relação com a Audiência Potente de uma ma­neira tímida, com a criação, em 2007, do Fórum Cidadão Repórter, espaço aberto para a discussão de temas sobre cidadania, transporte, trânsito, cultura, saúde, segurança pública, dentre outros; e, também, para publicação de fotos e vídeos feitos pela audiência.

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O jornalismo e as novas relações com uma audiência conectada, que interage, testemunha, vigia, reage, propaga e amplifica Giovana Mesquita

No ano de 2013, a abertura da editoria de Redes Sociais sinalizou que o jornal vem dando uma atenção maior a essa Audiência Potente, que se movimenta principalmente no Facebook. A ação dos jornalistas da editoria de Mídias Sociais é dividida em divulgar as notícias do Diario nas redes sociais e buscar o que pode ser transformado em notícia, sem­pre atenta aos assuntos que se destacam em espaços conversacionais, como o Facebook e o Twitter. No mesmo ano que criou a editoria de Mídias Sociais, o Diario de Pernambuco lançou também um aplicativo do Cidadão Repórter, para que a audiência envie informações para as redações do Diario e de outros veículos do grupo. No La Vanguardia, o espaço dado à audiência é maior que no Diario de Pernambuco, ha­vendo duas formas de envolvimento da audiência. Uma que aparece explicitamente na pá­gina do diário barcelonês, e outra, que é feita sem que a audiência perceba. A editoria de Participação é o lado visível da relação entre a Audiência Potente e o La Vanguardia. Nela, a audiência é convidada e tem espaço, no veículo de comunicação, para oferecer olhares sobre a realidade, manifestados em diversos gêneros textuais (crônicas, cartas, opi­niões, relatos pessoais, blogs, fotos, desenhos, vídeos); além de trazer informações sobre acontecimentos na região e no País onde mora, apontar erros, ou complementar, com mais informações, a notícia. Isso sem falar em outras formas de envolvimento, como respostas a sondagens, sugestão de temas, que podem ser transformados em notícias e comentários. A segunda forma de envolvimento do La Vanguardia, não publicizada, é feita por meio de estratégias pensadas para atrair para o jornal a audiência que está nas redes sociais. O ma­nual intitulado “Decálogo del prescriptor en las redes sociales - Manual para captarlos y re­lacionarse con ellos”, produzido pela empresa, é um dos indicadores de que a relação veí­culo-audiência não é amadora. Com orientações para os jornalistas, que vão desde “como ganhar a confiança do prescriptor” até a “sugestão” de que os jornalistas analisem que ho­ras e dias a audiência está mais ativa nas redes para que tenham a certeza de que a mensa­gem está chegando, o manual evidencia que o trato com a audiência é pautado por relações comerciais. A própria expressão “captarlos” já dá pistas do tipo de relação proposta. Se o manual orienta todos os jornalistas para que saibam como o jornal quer que a audiência seja tratada, na redação, um novo perfil profissional vem modificando os modos de relacio­namento entre o veículo e sua audiência. O community manager, que faz parte da editoria de Redes Sociais do La Vanguardia, com a função de ouvir, cotidianamente, o que a audiência tem a dizer, fazendo com que os temas sejam propagados e amplificados nesses espa­ços conversacionais, monitorando a reação da audiência à cobertura dada pelo veículo de referência e, nos casos de resistência da audiência à cobertura dada pelos jornais à notícia, fornecendo dados aos editores, para balizar as decisões, que podem resultar, inclusive, em um novo enquadramento dado ao tema. O Diario, mais tardiamente que o La Vanguardia, criou a editoria de Mídias Sociais. Nos dois veículos, o trabalho das editorias de Mídias Sociais ou de Redes Sociais está interliga­do a toda redação, e o que surge dessa relação entre o jornal e a audiência presente nas redes sociais pode influenciar as decisões ao longo de todo processo produtivo da notícia.

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O jornalismo e as novas relações com uma audiência conectada, que interage, testemunha, vigia, reage, propaga e amplifica Giovana Mesquita

CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a presença desse novo agente que se incorpora ao campo jornalístico, as notícias não são mais construídas somente a partir da imagem que os jornalistas têm da audiência. A produção das notícias – que envolvia uma série de paradigmas e práticas profissionais da­das como naturais, somadas à cultura profissional e às restrições ligadas às organizações do trabalho – é acrescida dos olhares dessa Audiência Potente. As redes sociais possibilitam que os jornalistas e as empresas de comunicação tenham acesso, em tempo real, aos interesses dessa Audiência Potente, e esses dados vêm balizan­do as decisões dos veículos de referência. Com a possibilidade de receber informação, mas tendo acesso aos meios de produção, a Audiência Potente convida ainda mais o jornalista a rever sua responsabilidade com a ver­dade, não a verdade filosófica, mas a verdade dos fatos. E nessa busca pela verdade dos fa­tos se faz ainda mais necessário ter rigor no método, numa oposição radical à mentira, as deformações e as omissões.

REFERÊNCIAS Adghirni, Z. L. (2012) Mudanças Estruturais no Jornalismo:travessia de uma zona de turbulência. In: Pereira, Fábio; Moura, Dione; Adghirni, Zélia (Org.). Jornalismo e Sociedade: Teorias e Metodologias. Florianopolis: Insular. Anderson, C. (2006) A cauda longa: do mercado de massa para o mercado de nicho. Rio de Janeiro: Campus. Bauer, M. & Gaskell, G. (2002) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis, Vozes. Bowman, S.; Willis, C. (2003) Nosotros, el medio. The Media Center. Disponível em: http:// www.hypergene.net/wemedia/espanol.php (último acesso em 05/06/2012) Casetti, F.; Chio, F. (1999) Análisis de la televisión: instrumentos, métodos y prácticas de investigación. Barcelona: paidós. Espiritusanto, O. & Rodríguez, P. G. (2011) Periodismo Ciudadano: evolução positiva de la comunicación. Madrid: Fundación Telefónica. Jorge, T. M. (2013) Mutação no jornalismo: como a notícia chega à Internet. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Majó, J. (2012) Evolución de las tecnologías de la comunicación. In: Moragas, M. La comunicación: de los orígenes a Internet. Barcelona: Editorial Gedisa S.A. Madureira, F. (2010) Cidadão-fonte ou cidadão-repórter? O engajamento do público no jornalismo dos grandes portais brasileiros, dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. Rost, A.(2012) La interactividad em el periodico digital. Tese de doutorado, Universidade Autônoma de Barcelona, 2006. Disponível em: . Acesso em: 15 de nov. Vizeu, A; Mesquita, G. (2011) O Cidadão como mediador público: um novo agente no jornalismo. Revista Estudos em Comunicação. Portugal. Acessado em 2011 de: .

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O audiovisual noticioso em dispositivos móveis digitais The audiovisual news in digital mobile devices P a u l o E d u a r d o S i lva L i n s C aja z e i r a 1

Resumo: Este estudo procura refletir em relação ao audiovisual no centro dos processos comunicacionais de convergência digital da audiência de TV, que geram novas formas de participação no jornalismo televisivo. A audiência incorpora-se aos novos formatos jornalísticos distribuídos em Redes Sociais na Web e em aplicações digitais, ao querer participar dos espaços das grandes corporações de informação e comunicação. As emissoras de televisão utilizam-se das tecnologias móveis e das aplicações digitais na Internet na procura por aumentar a participação da audiência, o fluxo de difusão e circulação da notícia no Ciberespaço. Como parte da análise, desenvolveu-se um experimento empírico com a aplicação de um inquérito online de 02 de abril à 03 de maio de 2014 a universitários brasileiros e portugueses de 18 a 35 anos sobre os hábitos de consumo da informação noticiosa de TV, Internet e Facebook. Com isso, comparou-se os dados empíricos ao consumo de mídia pesquisado por órgãos oficiais brasileiros e portugueses: Secretaria de Comunicação Social da República Federativa do Brasil (SECOM) e Observatório de Comunicação Social de Portugal (OBERCOM) no ano de 2014.

Palavras-Chave: audiência de televisão, convergência, interatividade, jornalismo televisivo.

Abstract: This study seeks to reflect relative to the center of audiovisual communication processes digital convergence of TV audience, which generate new forms of participation in television journalism. The audience gets up to new journalistic formats distributed in Social Networking Web and digital applications, to want to participate in the areas of large corporations of information and communication. The television stations are used mobile technologies and digital applications on the Internet in demand to increase audience participation, the diffusion flux and news circulating in cyberspace. As part of the analysis, we developed an empirical experiment with the application of an online survey of April 2 to May 3, 2014 the brazilian university and portuguese 18-35 years on the consumption habits of news TV information and Internet. Therewith, the empirical data was compared to the media consumption researched by Brazilian and Portuguese official agencies: Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República Federativa do Brasil (SECOM) and Centro de Comunicação Social de Portugal (OBERCOM) in 2014.

Keywords: audience of television, convergence, interactivity, television journalism. 1.  Pós-doutor em Ciências da Comunicação (UBI/Portugal), Doutor em Comunicação e Semiótica (PUCSP/ Brasil), professor efetivo do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA/Brasil), [email protected].

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INTRODUÇÃO STE ESTUDO tem como objetivo refletir em relação a audiência e o audiovisual noti-

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cioso no centro dos processos comunicacionais de convergência digital da audiência do jornalismo em televisão, que geram novas formas de participação. Começamos uma reflexão feita pelo pesquisador e professor catedrático da Universidade de Paris III (Nouvelle Sourbonne), François Jost, no contexto das questões centrais que nortearam os trabalhos da conferência internacional “A Informação na Era da Televisão Ubíqua”, que teve lugar na Universidade da Beira Interior, em Portugal, no dia 20 de maio de 2014. Na ocasião, o pesquisador fez a conferência de abertura do evento e relatou que o essencial é saber o que se encontra no centro da convergência midiática. Como a televisão foi levada para a Internet? Os smartphones ou tablets que enviam os seus sinais para a televisão? Numa época em que a televisão não merece mais a designação de pequena tela, voltamos à luta entre cinema e televisão, que não seriam diferenciados senão pelo tamanho da superfície de projeção. A convergência, com a sua conotação ecumênica de paz e de pacificação, está bem longe. Estamos na época das lutas intermedia, que são mais do que escolhas semióticas: das lutas industriais. Segundo o pesquisador, o que assistimos hoje é menos uma luta intermedia, se entendermos por media uma instituição que fabrica e difunde conteúdos destinados a um tipo de público, e mais uma luta entre suportes-objetos. “A escolha não é em que aparelho vou ver o programa, mas se vou preferir ver uma série sozinho em frente ao meu computador, ou se prefiro partilhá-la com a minha família num televisor, ou, ainda, se prefiro vê-la ao mesmo tempo que me comunico com os que estão distantes” (Jost, 2014). O audiovisual e a audiência - ao centro da convergência – transformam-se nos grandes atores desse processo tecnológico. O questionamento: “Em que aparelho vou ver o programa?” nos dará base para refletir em nossa investigação, que se circunscreve na observação dos processos e hábitos da audiência, alterados na última década do século XXI, em razão dos novos modos de interação do TV/público e dos vínculos constituídos na sociedade em constante midiatização. Esse é o cerne da questão que permeia toda essa investigação em torno dessa intercomunicação circular, ampliada pela TV em múltiplas telas e mediada pela tecnologia. A audiência de televisão encontra-se no centro da convergência, em um sistema que a redireciona aos novos espaços, reordena e molda as relações interpessoais com o uso das inovações tecnológicas. O que está em jogo é não apenas ver TV, mas a forma como o conteúdo será consumido. Se alguém, a exemplo, estiver só - e quiser rever a programação - pode usar computadores pessoais (PCs), notebooks, smartphones ou tabletes para visualizar os vídeos em sites ou redes sociais na web ou em aplicativos digitais. A interatividade é uma das palavras que mais ouvimos nos últimos anos. Principalmente com a revolução da internet, das suas possibilidades e potencialidades que trouxeram, esse conceito está sendo bastante discutido e se tornando cada vez mais complexo. Mas ainda encontramos diversos autores e teóricos que visam diferenciar a interação da interatividade. Aqui tentaremos dar um panorama sobre esse conceito e como ele vem sendo aplicado pelo telejornalismo.

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O jornalismo passou por transformações significativas ao longo da história. Passando pela versão impressa, radiofônica e televisiva até chegarmos ao jornalismo digital. Em cada um desses tipos podemos perceber que um processo de interação pode ser encontrado. No jornalismo impresso, as cartas com as opiniões dos leitores chegavam as redações e serviam como modelo de avaliação. O telejornalismo também trabalhava com o recebimento de cartas e ligações que possibilitavam a participação do público, mas ainda assim era uma interação incipiente. Diferentes dos dois últimos o rádio é o único meio de comunicação que necessita dessa interação com o público. Pois, em sua constituição ele apenas funciona com propagador de contend, e para que exista um diálogo com público precisa da participação, por telefone, do mesmo. O conceito de interatividade é um termo que está relacionado com a evolução das tecnologias da informação e da comunicação dos últimos 40 anos. Ela aborda o espaço de relação entre ambas as partes e busca analisar as diferentes instâncias de seleção, intervenção e participação nos conteúdos dos meios. E é justamente nessa era da revolução digital, a qual nós estamos presenciando, que percebemos como esta linguagem vem modificando o jornalismo e da relação dos meios com os usuários. Revisitando os conceitos teóricos do estudo A linguagem da internet vai apelar para a ideia de interatividade como um de seus pilares (Rost, 2014). A interatividade é o conceito chave para compreendermos como o jornalismo está agindo sobre essas novas plataformas midiáticas. E para ajudar-nos numa proposta de definir o que vem a ser a interatividade, Rost afirma que é “a capacidade que um meio de comunicação tem para dar maior poder aos utilizadores tanto na seleção de conteúdos (interatividade seletiva) como nas possibilidades de expressão e comunicação (interatividade comunicativa)” (2014, p. 55). Mais adiante adentraremos nos conceitos de interatividade seletiva e comunicativa. Com os recursos e dispositivos digitais, a televisão se tornou mais interativa. Porém, como questiona Prazeres: “para que serve a interatividade, quais serão os benefícios para as pessoas?” (2011, p. 4). A partir da leitura do texto de Alejandro Rost podemos perceber que são grandes os benefícios da interatividade para os utilizadores. É permitido que eles possam ultrapassar a barreira da recepção e opinar, colaborar, até certo ponto, com a prática jornalística. Aliás, essa “colaboração” é uma das grandes discussões entre os jornalistas e utilizadores, mas nos deteremos à análise da interatividade. A internet e suas plataformas digitais estenderam a relação que até então era mantida, e que em alguns pontos ainda é, de condicionamento entre os media e os utilizadores. Uma distinção permanece entre a participação do público e do trabalho do jornalista, principalmente em relação ao contend e sua elaboração (Rost, 2014). Os cibermeios permitiram que os conteúdos veículos nos meios tradicionais fossem ampliados, e assim repercutir além da tela da TV, já que nosso foco é o telejornalismo. Os sites foram os primeiros exemplos que tivemos dessa transposição. O conteúdo do telejornal é estendido para o site, onde os utilizadores podem acessar e visualizar as reportagens, ainda que o processo de interação nesse cibermeio, em seu início, não fosse de forma tão complexa como virá a ser mais tarde com a chegada das redes sociais. Pois ainda não era permitido ao público agir sob o papel de um gatekeeping. Quando Alejandro Rost definiu o conceito de interatividade, o autor a distingue em

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dois tipos: a interatividade seletiva e a interatividade comunicativa, como foi dito acima. Essas duas tipologias estão respectivamente tratando do controle o receptor e do produtor de conteúdos. A interatividade seletiva é a possibilidade de controle de utilizador sobre o processo de recepção dos conteúdos (o ritmo e a seleção). Essa interatividade está baseada na necessidade que o utilizador com esse contend. De acordo com Rost “O hipertexto – com as suas estruturas e ligações semânticas – é a principal ferramenta para tecer possibilidades interativas de seleção” (2014, p. 57). Em oposição a interatividade comunicativa transcende essa seleção “individual”, visto que o leitor/utilizador irá gerar algum tipo de contend. Afinal, para Rost esse tipo de interatividade “representa as possibilidades de comunicação e expressão que o utilizador tem entre os conteúdos do meio” (2014, p. 58). Na continuação da distinção entre a interatividade seletiva e a interatividade comunicativa podemos estabelecer mais algumas diferenças entre elas e o modo como cada uma afeta a participação do utilizador no ciberespaço do telejornal. Enquanto a interatividade seletiva é uma participação individual já que ela está sendo controlada pelos media, o que é permitido ao utilizador é a participação a partir dos hiperlinks do site. Já a interatividade comunicativa permite uma maior potencialidade de interatividade ao leitor como dialogar, comentar, discutir e etc. Ainda sobre a interatividade comunicativa, podemos subdividi-la em “participativa” e “produtiva”. A interatividade participativa não mantém uma implicação de criação pelo leitor. Ao contrário, na produtiva o leitor produz um contend original como, por exemplo, um video (Suau &Masip, 2011). O tipo de participação que podemos encontrar em quase todos os telejornais nacionais. Contribuição com a discussão e a conceituação de Rost, ainda podemos refletir na diferenciação entre “espaços de intervenção” e “espaços de participação”. O primeiro está relacionado a uma “exploração” pela atividade do leitor/utilizador, já o segundo são os espaços onde o leitor pode manifestar-se discursivamente com o uso dos comentários, por exemplo, nos blogues e nas redes sociais (Raimondo Anselmino, 2012). Rost destaca 4 etapas para cada tipo de interatividade, como podemos ver a seguir. O que nos possibilita refletir sobre pontos específicos de cada uma dessas duas classificações:

1. Interatividade seletiva: a) Opções de seleção mínimas para os utilizadores (1990) – cópia de apenas uma parte dos conteúdos das mídias matrizes; indicações elementares de navegação; b) Avanços dos sites na automatização de processos e a personalização de conteúdos (1998) – publicações de última hora (atualização); recepção de manchetes por correio eletrônico; configurações na página do site; alertas informativos etc. c) Maior modularidade e a incorporação de opções seletivas de blogues (2004) – utilização do formato RSS que habilita outros formatos noticiosos; organização dos feeds em diferentes secções; complexidade dos hipertextos (inserir ligações no corpo do texto). d) Abertura de opções de distribuição multiplataforma (2009) – diferentes aplicações para dispositivos móveis (notebooks, telemóveis, tablets) com a chegada das redes sociais; decomposição/fragmentação do conteúdo noticioso nos sites; as redes sociais como formatos acessíveis dos conteúdos.

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2. Interatividade comunicativa: a) Etapa de presença corporativa (1994) – escassas possibilidades de participação; eliminação das cartas dos leitores. b) Etapa de participação marginal (1999) – consolidação das pesquisas e fóruns como principais fontes de participação; opiniões dos leitores não se misturam com os conteúdos do meio. c) Participação assíncrona em espaços partilhados (2006) - introdução de três “novos” dispositivos para os sítios de notícias: os blogues, os comentários abaixo das notícias e os canais de reportagem cidadã; (quebra de paradigma importante para o jornalismo, pois as intervenções dos leitores se misturam com as dos jornalistas). d) Participação sincrônica, lado a lado (2009) – participação através das redes sociais (Facebook, Twitter); fluxo de mensagens é permanente e sincrônico; (uma contraposição dessa participação é que o número de participantes é visivelmente menos e relação aos visitantes da página). Em 20 anos é visível como o leitor obteve uma grande visibilidade e afetou o mundo digital e a ecologia do media (Rost, 2014). E a partir desse destrinchamento que o autor nos apresenta o impacto que a evolução digital, a Web, causou no modo do fazer jornalístico, no comportamento dos utilizadores e principalmente na utilização das redes sociais. Essa convergência midiática impacta diretamente na circulação de conteúdos e depende fortemente da participação ativa dos consumidores/utilizadores (Jenkins, 2009). A partir de 2009 são perceptíveis as transformações que acontecem na web com a chegada das redes sociais. Elas vão redefinir e propor novos modos de relação e contato, que vão sendo estreitados, entre jornalistas e o seu público. Pois, o que podemos perceber com essa série de mudanças que estamos acompanhando ao longo dos anos é que cada vez mais o leitor deseja e quer interagir. Não apenas recebendo conteúdo, mas propondo pautas, sugestões e comentários que acabam servindo como geradores de ideias para novas matérias. E sentindo essa transformação é que as empresas de comunicação vão se adaptando aos novos tempos, já que as redes sociais funcionam como meio de recepção, difusão e interação. A Televisão na Era Ubíqua A presença ubíqua de informação na sociedade contemporânea tem conduzido a uma rápida alteração de comportamentos do receptor face aos mass media. A premissa one to many dos mídias tradicionais evoluiu para uma self mass comunication (Castells, 2009), numa lógica de comunicação multimídia interpessoal e de ausência crescente do mediador entre as fontes e a notícia. As telas disseminam-se, funcionam em rede, pelo que já não é adequada uma análise isolada da televisão. O avanço vertiginoso da tecnologia digital atirou o medium para um contexto de novos desafios e de dúvidas constantes. Vivemos a Era da plenty television e da informação ubíqua na qual a opção multicanal disponibiliza uma escolha infindável não só nas tradicionais telas de televisão, mas também nas novas plataformas que rapidamente emergiram e fazem parte do cotidiano de milhões de utilizadores. O mercado da televisão generalista free-to-air (Fta) está a mudar velozmente, o que tem causado incertezas inquietantes sobre a

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sustentabilidade de uma atividade que foi tida, durante décadas, como uma das mais poderosas e influentes da história da comunicação (Serra, Sá e Souza Filho, 2015). Estas empresas, que suportam o seu modelo de negócio através do incentivo ao consumo, são agora forçadas a dividir as receitas com os canais da televisão por subscrição e com os novos concorrentes do mercado publicitário que emergiram da web, dos quais se destacam a Google, o Youtube, o Facebook, o Twitter e o Instagram, entre os que possuem um número maior de usuários. Assistimos a uma híper-segmentação de públicos, a um aumento do poder de escolha do espectador e a um desencontro das conveniências do programador e do receptor. Estamos perante um novo contexto mediático, onde se verificam interesses muitas vezes conflitantes entre distribuidores, produtores, anunciantes, fabricantes e consumidores. O espectador passou a ser redistribuidor, produtor e programador de conteúdos, emergindo de uma aparente passividade – decorrente do conceito de interação unilateral no período analógico (Serra, Sá e Souza Filho, 2015). Segundo Canitto (2010), a televisão digital terrestre chega ao Brasil, como de resto do mundo, para substituir a TV analógica e não apenas para aprimorá-la. Mesmo assim, o público deve seguir consumindo conteúdos televisivos diversificados, não se preocupando com a tecnologia em si, mas com a melhora destes conteúdos e a forma de acessá-los. Por isso, o ponto de partida da centralidade do audiovisual não deve ser apenas a tecnologia, mas os telespectadores e seus interesses, que se imbricam no processo de mediação. De acordo com o autor, a televisão não está fadada ao seu fim, mas a uma reconfiguração do meio. “O jovem que fugiu da televisão fugiu mesmo da forma idiotizante de manipular a antiga capacidade massificante do meio. Fugiu de uma tela, mas foi para muitas outras” (p.14). Contudo, na outra ponta, encontram-se públicos formados por adultos e idosos, que encontram no aparelho de televisão tradicional um espaço de produção de sentido. A audiência é algo complexo de medir, temos algumas hipóteses sobre os consumidores. Como completa o pesquisador Dominique Wolton (1996), ao referir-se a dificuldade de identificar os interesses e a formação do público. “Podemos avaliar quantos espectadores assistem a um determinado programa, mas é muito mais difícil saber quem são eles e mais difícil ainda saber por que assistiram” (p, 47). A televisão é um meio de comunicação que se caracteriza pelo predomínio do fluxo sobre o arquivo e esta talvez seja uma das principais diferenças entre TV e internet. Fluxo é a reprodução incessante de conteúdos independente da vontade ou da escolha do receptor. Já o arquivo é o material armazenado que depende de uma demanda para ser exibido. De acordo com Finger (2014), na televisão segmentada, fechado ou por subscrição já existe a possibilidade do vídeo on demand, mas este serviço é oferecido a partir de uma lógica de mercado que determina um custo adicional. De qualquer forma, temos uma independência do telespectador frente à grade de programação. No caso do video on demand, originalmente o conteúdo vai, primeiro, ao ar no dia e horário definidos pela emissora de TV, mas depois fica disponível, em arquivo, para acesso a qualquer momento, de acordo com a vontade do usuário. A internet é o melhor exemplo da lógica do arquivo, tudo fica armazenado em determinado provedor e o conteúdo aparece quando é demandado pelo usuário. Cabe ao público decidir a cada momento por uma das modalidades de consumo do audiovisual (Canitto, 2010).

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A tecnologia da televisão off-line e on-line convergiu abruptamente, revelando, desta forma, os limites dos estudos televisivos e as perspectivas de pesquisa que isolavam este meio dos restantes. É deste ponto de vista que a discussão se justifica e ganha novas condições para uma perspectiva de estudo que procura compreender o audiovisual noticioso e a audiência em relações contínuas mediadas pela tecnologia digital. É neste contexto de ubiquidade da televisão e centralidade do conteúdo produzido e disseminado na internet, que partimos para um exame plural do estado da arte neste campo. Pode-se concluir que nos meios de comunicação online os utilizadores são mais autônomos, mais independentes – alguns dirão, mesmo, mais “livres” – do que em relação ao telejornal de um grande canal de televisão? Não se trata de mais que uma mera constatação que não permite a compreensão do que se experiencia nesta autonomia. Ora, ver pelo aparelho de televisão ou acessar pelo site na internet são experiências temporais bem diferentes. E estas experiências de tempo são especialmente mais interessantes de analisar e comparar, na medida em que não se trata de ficção, mas de fatos, fatos fabricados com acontecimentos do cotidiano. No aparelho de tevê, a nossa experiência sensorial em acompanhar ao telejornal com os seus breaks característicos atua de forma sedutora e aparentemente despretensiosa, e o interesse pelo o que virá nos próximos blocos é bem diferente do que ver a um vídeo na Internet on-line ou off-line fragmentado de um programa televisivo. A natureza factual da história afeta ao telespectador ou usuário na programação na Internet. A própria natureza do tempo é a segunda diferença fundamental. O tempo de acompanhar o jornalista narrando a história na televisão, que foi inserida um contexto com outras histórias que vieram antes na edição do telejornal determina uma linearidade da narrativa. Já a narrativa não-linear da Internet, fragmentada, descontinuada: por vezes acelerada, interrompida quando fazemos outra coisa, retomamos é bem diferente e exige menos atenção do espectador. O tempo do telejornal, por outro lado, é imposto, pela programação do canal de televisão e não nos permite visualizar continuamente ou compartilhar com outros a experiência televisual. O audiovisual noticioso segue no seu ritmo, que não é o mesmo na transmissão direta ou na visualização em sites. O tempo flui com a mesma rapidez, mas os acontecimentos possuem narrativas e trazem sensações diferentes nos suportes ao consumidor de informações (Jost, 2015).

METODOLOGIA E ANÁLISE DOS RESULTADOS Realizou-se, como experimento empírico, um inquérito online aplicado a um grupo fechado de estudantes universitários, brasileiros e portugueses, com o objetivo de traçar um perfil de hábitos de consumo noticioso convergente em TV. A importância da televisão pauta-se à partida da sua penetração em todas as classes sociais, bem como o consumo de informação e entretenimento por públicos segmentados. As redes sociais têm sido uma realidade online altamente explorada por pessoas e empresas, que diversificam as formas de relacionamento e consumo. São fronteiras muito tênues entre o real e o virtual, que vislumbram a construção de uma sociedade de consumo hiper-real. Este estudo representa uma pequena amostra da relação luso-brasileira com a informação, sob a perspectiva do uso de suportes variados no consumo de notícia. Esta análise permite identificar a visão que partilham, quanto aos benefícios do uso

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da TV e da internet em conteúdos informativos. No instrumento de coleta, elaborou-se um questionário com perguntas fechadas, condicionantes ao nível de resposta do inquirido e ao final uma pergunta aberta. Consideraram-se consistências lógicas entre as perguntas, que garantiram a qualidade na análise da coleta de dados. A plataforma do inquérito online foi enviada à coordenação de cursos de graduação e pós-graduação de universidades públicas do Brasil e de Portugal solicitando a colaboração dos estudantes no seu preenchimento. No período em que o inquérito esteve ativo (03 de abril a 03 de maio de 2014), responderam 105 pessoas. A primeira parte do inquérito centralizou-se em dados do utilizador: sexo, idade, ciclo de estudos e morada, com objetivo de delinear o perfil do consumidor de TV e Facebook. Olhando-se a segmentação por sexo, verificou-se que, o total de mulheres, 51,43% era superior aos homens, 48,57%. O que significa que a probabilidade de encontrar um consumidor do sexo feminino, universitário, de TV e internet é maior que do sexo masculino. Estas diferenças de maior número de mulheres que homens também foram evidenciados, por exemplo, na leitura de outras pesquisas publicadas, tanto pelo Observatório de Comunicação (OberCom) de Portugal em 2014, que produziu um inquérito sobre o número de acessos à internet na sociedade portuguesa intitulada, “A Internet em Portugal: sociedade em Rede” como pela Secretaria da Comunicação Social da Presidência da República Federativa do Brasil de 2013 denominada, “Pesquisa Brasileira de Mídia 2014: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira”, quando participaram 52% de mulheres contra 48% de homens. No tocante à idade, 51,43 % dos inquiridos na faixa etária de 18-25 anos; 26-34 anos (30,48%) e 35 ou mais (18,10%). Aos inquiridos foi lhes perguntado o ciclo de estudos a que pertencem. A maioria frequenta os cursos de bacharelado e licenciatura, na graduação, (48%); no mestrado/pós-graduação (39%); e no doutorado (13,33%). O que denota, portanto, a condição de pessoas esclarecidas quanto ao consumo midiático e a importância da informação no seu cotidiano. Se fizermos um cruzamente entre a idade e o ciclo de estudos, encontramos também alguns dados reveladores de 39,05% dos inquiridos ter entre 18 e 25 anos e frequentar cursos de bacharelado. São jovens nascidos nos anos 1990, período de surgimento social da internet, telefone celular (telemóvel), informatização das redações de Jornalismo, TV por cabo e o início do consumo de computadores portáteis. Estes estudantes cresceram habituados a conviver em núcleos familiares transformados, a partir do consumo e uso de produtos de informação e comunicação com tecnologia digital. A digitalização e distribuição dos conteúdos em rede alargou o acesso público permitindo um maior alcance dos consumidores médios. No entanto, apenas nas duas primeiras décadas do século XXI, que realmente a tecnologia digital teve uma maior penetração na sociedade moderna. Quanto à localização geográfica do inquirido, perguntou-se se vivia em Portugal continental, Portugal das ilhas Madeira e Açores, pauses africanos de língua portuguesa e Brasil. E, quase a totalidade dos inquiridos, respondeu morar no Brasil (92,28%) e em Portugal (7,62%). Na segunda parte, procurou-se verificar os hábitos de consumo midiático (TV e internet). Foram feitas doze perguntas fechadas e uma pergunta aberta. Na análise dos dados, dividimos em três formas de consumo: TV, Facebook e suporte de uso

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Na primeira pergunta, intitulada “quantas horas despende para ver televisão (generalista ou aberta)­”, os inquiridos responderam na seguinte ordem: 1hora (43,81%); 1-3 horas (29,52%); 3-5 horas (2,86%); 7h (0,95%); sem respostas (12,38%) e não exibido ou não concluído (10,48%). O número de telespectadores de televisão que acessa uma hora por dia (43,81%) é muito superior aos que despendem de menor tempo. A análise deve ser tecida à luz das características sociodemográficas dos inquiridos. Este grupo é formado por estudantes e professores universitários que, dada sua relação com o trabalho, estágio e estudo, e diante dos afazeres e compromissos cotidianos, encontram menor tempo para despender com televisão. Se considerarmos apenas o consumo médio dos inquiridos, que veem televisão de uma a três horas por dia verifica-se um nível elevado de exposição à mídia. E, ao somarmos as categorias que foram respondidas, juntas correspondem a 77,14%, ou seja, quase 80% dos inquiridos ainda possui o hábito de ver TV no aparelho convencional. Já no caso da utilização das novas midias digitais, a internet, para ver televisão, o consumo parece não estar relacionado com a redução ou menor exposição a esse meio. Dos que assistem TV na internet, 1h, (28,57%); 1-3h (8,57%), 3-5h (3,81%) e 7h (0,95%). Assim, somadas todas as respostas 41,80% veem TV pela internet. O que podemos concluir é que dos 43,81%, a exemplo, que veem uma hora de televisão por dia, 28,57% também acessam diariamente o meio pela internet. Os conteúdos televisivos na internet parecem ter afetado o hábito do telespectador na forma convencional, visto que representam mais do que a metade em relação à TV. Destaca-se também que, do total de inquiridos que dispõem de televisão por cabo, 75% residem em Portugal Continental, contra 53,61% residentes no Brasil. Em termos geográficos, atenta-se ao consumo de TV por cabo em Portugal superior ao Brasil. Confirma-se com isso que a televisão aberta ou generalista permanece como preferência no Brasil, que corresponde a 77,14% em relação aos 53,61% do cabo e 44,30 da internet em termos de conteúdo televisivo. Já em Portugal, 97,50 % dos inquiridos vêem na tevê aberta, 75% por cabo e apenas 25% na internet. Se verificarmos o uso por localização geográfica, os estudantes de Portugal consomem de forma mais intensiva a tevê aberta que os brasileiros, sendo 97,50% contra 77,14%, neste nicho específico de pessoas. Os dois pauses possuem altos índices de exposição a este suporte midiático. Por outro lado, os universitários portugueses também consomem mais por cabo, 75% contra 53,61% dos brasileiros. O que se inverte quando constatamos que o estudante da universidade pública brasileira acessa mais o conteúdo televisivo na internet, 44,30% contra 25% dos portugueses. Se considerarmos apenas o consumo televisivo dos inquiridos brasileiros pela internet, verifica-se que estão de fato em níveis de exposição mais elevados que os portugueses. Todavia, a televisão aberta destaca-se na preferência dos inquiridos, à frente da internet e do cabo. Na última parte do inquérito foi verificado o uso do suporte para ver TV e acessar a internet ou a existência de situações ambivalentes de consumo. Em Portugal (2013), a utilização de acesso a internet em dispostivos móveis (telefone celular, smartphone ou tablet) é de 38,5%. No Brasil (2014), 84% das pessoas em recente pesquisa realizada afirmaram utilizar o desktop (computador de mesa), 40% telefone celular, 8% tablet. Sobre o hábito de utilizar dois suportes ao mesmo tempo em que vê TV, 50% afirmou possuir

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este hábito, 34 % não. Com a proliferação e a redução do custo de dispositivos móveis e equipamentos tecnológicos, a metade dos que afirmaram possuir este hábito segue a nova lógica do mercado de consumo de produtos eletrônicos. A TV e o smartphone (43), TV e notebook (34), TV e tablet (15) e TV e desktop (8) revelam o smartphone como o mais usado em segunda tela quando se vê TV.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A forma de assistir TV está relacionada ao que o autor Jean Baudrillard (1995), se referia como uma discussão a respeito da “lógica social do consumo”, o que pode fazer-nos compreender os sentidos do consumo dos gadgets2. A democratização do acesso à informação pelo uso da tecnologia digital promove uma abertura às novas formas de consumo de valores simbólicos ao público dos telejornais: poder e informação. Trata-se do hábito híbrido de assistir a programas de TV, ao mesmo tempo em que acessa a internet. Além do consumo simultâneo de duas mídias, também constatamos que, o smartphone é o dispositivo mais utilizado para participar no telejornal. As mensagens são muitas vezes um fenômeno instantâneo, dependente do momento em que o programa está sendo mostrado na TV. A extensão dos telejornais em sites, redes sociais online na web ou em aplicativos digitais seria uma das estratégias das emissoras de TV a fim de manter a audiência das notícias. A adoção de múltiplas telas transforma as sessões online, em conectividade constante, e também influencia as pessoas a assistir TV. Porém, a diferença é assistir TV e acessar os gadgets ao mesmo tempo, para navegar, jogar, interagir com amigos, entre outras coisas. Ou apenas assistir em um dos suportes. É preciso considerar que os dispositivos móveis fazem, na atualidade, parte do comportamento do consumidor de informação multiplataformas. Entendemos que as mudanças no fazer e no ser jornalístico com o uso da tecnologia digital no telejornalismo estão apenas começando. O modelo de telejornal na tevê convencional ainda é a referência nas plataformas digitais. Não há alteração no conteúdo jornalístico. Os novos modelos mudaram apenas a forma de circulação e distribuição. Agora temos um jornalismo em televisão, através de sites desenhados a partir dos conceitos de interatividade na internet.

REFERÊNCIAS Cannito, N. (2010). A Televisão na Era Digital: interatividade, convergência e novos modelos de negócios. São Paulo: Summus. Finger. C. (2014). O telejornalismo na hipertelevisão: os desafios dos produtores e dos receptors das notícias no mundo multitelas. In: Vizeu, A; Mello, E; Porcello, F; Coutinho, I. Telejornalismo em questão. Florianópolis: Insular. Jenkins, H. (2009). Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph. Jost, F. (2015). Que relação com o tempo nos é prometida na Era da ubiquidade televisiva. Covilhã: Livros Labcom.

2.  Em inglês: geringonça, dispositivo, pronúncia inglesa: /ɡædʒɪt/)1 , é um equipamento que tem um propósito e uma função específica, prática e útil no cotidiano. São comumente chamados de gadgets dispositivos eletrônicos portáteis como PDAs, celulares, smartphones, leitores de MP3, entre outros.

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Prazeres, S. M. dos. (2011). Telejornalismo na Era digital: Interatividade e Acesso à informação. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, volume XVI, 1-14. Raimondo Anselmino, N. (2012). La prensa online y su público. Un estúdio de los espacios de intervención y participación del lector en Clarín y La Nación. Buenos Aires: Teseo. Rost, Alexandre. Interatividade: definições, estudos e tendências. In. CANAVILHAS, João (Org.), Webjornalismo: 7 características que marcam a diferença. Covilhã, Portugal: UBI/ LabCom, Livros LabCom, 2014. Serra, P; Sá, S e Souza, W. F. (2015). A Televisão Ubíqua. Covilhã: Livros Labcom. Suau, J. e Masip, P. (2011). Models de participació de les audiències en mitjans digitals catalans: anàlisi de La Vanguardia, El Periódico, Vilaweb i 3cat24. Comunicació: Revista de Recerca i d’Anàlisi. Vol. 28 (1) (maig 2011), Societat Catalana de Comunicació. Pp. 83-104.Disponível em:http://www.raco.cat/index.php/Comunicacio/article/view/242622/325285 Wolton, D. (1996). Elogio ao grande público. Uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática

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O uso de newsgames na grande reportagem multimídia The newsgames use in multimedia news stories A n a Pa u l a B o u r s c h e i d 1 A n t o n i o C l á u d i o B r a s i l G o n ç a lv e s 2

Resumo: Esse trabalho analisa o uso de newsgames como componente da grande reportagem multimídia. Tratamos, inicialmente, dos momentos que marcaram a produção jornalística, abordando, depois, o uso de games no jornalismo. A partir da pesquisa exploratória de dois produtos: A batalha de Belo Monte, produzida pelo jornal Folha de São Paulo; e o especial da revista Galileu, Muro de Berlim 25 anos, constatou-se o predomínio, durante todo o jogo, da informação textual. Observamos, ao longo deste trabalho, que a grande reportagem multimídia vem se tornando um espaço para a aplicação de newsgames, o que resulta na oportunidade de aproximar a informação jornalística do aspecto lúdico do jogo.

Palavras-Chave: Jornalismo 1. Grande Reportagem Multimídia 2. Newsgames 3. Abstract: This paper evaluates the use of newsgames as a component of multimedia stories. For that matter, we consider specific periods that marked the journalistic production relating them to the use of games in journalism. We also resort to exploratory research as a methodology to investigate two newsgames: The Battle of Belo Monte, produced by the newspaper Folha de São Paulo; and Berlin Wall 25 years, developed by Galileo magazine. According to our analyses, textual information still prevails in the both samples. Throughout our studies it was evident that multimedia news stories have become a relevant space for the application of newsgames and they also represent a clear opportunity to spread journalistic information using the playfulness aspect of games in general.

Keywords: Journalism 1. Multimedia large reportage 2. Newsgames 3.

INTRODUÇÃO OGAR REQUER seriedade. Cada jogo tem suas próprias regras que devem ser aceitas

J

e respeitadas pelo jogador, que por sua vez, precisa aprender a lidar com o fator tempo, encarar desafios, aceitar a morte, traçar estratégias, fingir, camuflar, representar, enfim, enfrentar perdas e ganhos. O pesquisador Gilson Schwartz (2014), defende que todo o jogo requer sacrifícios imaginários com valor de verdade. 1.  Jornalista, mestranda do programa do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (PósJor-UFSC) aonde pesquisa newsgames. Email:[email protected]. 2.  Jornalista, doutor em Ciência da Informação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor dos cursos de Graduação e Pós-graduação em Jornalismo do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: [email protected].

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Games se definem pela sua necessidade de participação. Surge assim, conforme Mattar (2010), o grande desafio para quem produz games, que é criar jogos divertidos que ao mesmo tempo proporcionem a reflexão e o senso crítico. Games voltados aos jovens de hoje, caracterizados pelo autor como nativos digitais, pois, nasceram e cresceram na era da tecnologia. Atrair essa geração dos nativos digitais, também é o desafio do jornalismo. Bogost et al. (2010), propõem uma nova maneira de se fazer jornalismo a partir do uso de videogames, denominados como newsgames, em tradução livre jogos jornalísticos. Quanto às vantagens que o uso de videogames traz ao jornalismo, os autores citam a capacidade que os newsgames têm de informar, exercitar e tornar a informação interativa.  Neste trabalho, faremos uma pesquisa exploratória, metodologia que de acordo com Severino (2010), visa levantar informações sobre o objeto de pesquisa, para analisar o uso de newsgames como componente da grande reportagem multimídia. Neste caso os objetos serão os newsgames que compõem A batalha de Belo Monte3, produzida pelo jornal Folha de São Paulo; e o especial da revista Galileu, Muro de Berlim 25 anos4. Os dois exemplos adotados ao longo deste trabalho são considerados grande reportagem multimídia, pois contam com os elementos que, conforme Longhi (2010), caracterizam essas iniciativas, “[...]formatos de linguagem multimídia convergentes, integrando gêneros como a entrevista, o documentário, a infografia, a opinião, a crítica, a pesquisa, dentre outros, num único pacote de informação, interativo e multilinear” (LONGHI, 2010, p.153).

AS MUDANÇAS NO MODO DE SE FAZER JORNALISMO A prática jornalística já era discutida há mais de 324 anos atrás, período em que Tobias Peucer apresentou a primeira tese sobre jornalismo, intitulada “De relationibus novellis” (Os relatos jornalísticos), em 1690 na Universidade de Leipzig, na Alemanha. Em seu trabalho, Peucer (2004), destaca que a difusão do jornalismo se deu com o aperfeiçoamento da escrita. Para o pesquisador, as guerras foram às grandes responsáveis por esse avanço, pois motivados pela necessidade em saber o que acontecia nas terras distantes, foram instalados durante esse período os correios públicos e postais. Em meio a esse cenário, o autor destaca que surgiram os primeiros periódicos impressos, alternativa que tornaria os acontecimentos do período conhecidos. Nilson Lage (1987) ressalta que o primeiro jornal a circular foi em Bremen, na Alemanha, no ano de 1609. Conforme Ramón Salaverría (2014), até o início do século XIX, os jornais eram considerados uma monomídia, pois eram exclusivamente textuais, e poucas publicações contavam com ilustrações. O autor avalia que essas publicações “[...] apresentavam-se sem o menor apoio gráfico, carecendo obviamente de fotografias, uma vez que este tipo de linguagem apenas surgiu em 1820, através da técnica da fotogravura idealizada por Joseph N. Niépce” (SALAVERRÍA, 2014, p.30).

3.  Disponível em: arte.folha.uol.com.br/especiais/2013/12/16/belo-monte/index.html. Acesso em: 3 de março de 2015. 4.  Disponível em: www.quedamurodeberlim25anos.com.br/index.html. Acesso em: 3 de março de 2015.

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O pesquisador aponta que, a partir de então, as publicações incorporaram desenhos e fotografias, “[...] convertendo-se, por conseguinte, em meios bimédia. Podemos dizer que estes meios inauguraram a ampla lista de meios jornalísticos multimédia que chegou até aos nossos dias” (SALAVERRÍA, 2014, p.30). O autor atribui à consolidação da televisão a partir do período de 1930, como momento determinante para o avanço das linguagens multimídia. Pois, para ele, o meio televisivo, desde a sua origem, combinou diversas linguagens, como o texto, a imagem parada ou em movimento, o som ambiente, a música e palavra falada. Muita coisa mudou desde a publicação de Tobias Peucer no modo de se fazer jornalismo. Dentre essas mudanças, Salaverría (2014), destaca que a consolidação da internet foi à responsável por disseminar o termo jornalismo multimídia. A rede mundial de computadores surgiu durante a Guerra Fria, em 19575. Sua criação foi motivada pelas forças armadas norte-americanas, que buscavam um canal de comunicação entre tropas amigas distantes. Entre 1970 e 1980, a internet ganhou outra finalidade nos Estados Unidos, passando a ser usada para o meio acadêmico. Sua principal função era a troca de mensagens. A população começou a ter acesso à web só mais tarde, em 1990. O responsável por essa disseminação foi o engenheiro inglês, Tim Bernes-Lee, que criou a Word Wide Web, o que permitiu a criação de sites. Salaverría (2014) avalia que a internet possibilitou que o hipertexto fosse potencializado, isso fez com que se viabilizasse o surgimento de vários elementos multimídia. “Face às limitações de multimedialidade dos meios analógicos anteriores, a Web oferece uma plataforma de enorme versatilidade para a integração de formatos textuais, gráficos e audiovisuais” (SALAVERRÍA, 2014, p.32). O autor destaca ainda, que a internet multiplicou as possibilidades para o crescimento da narrativa multimídia. Corroborando com as ideias de Salaverría, o pesquisador João Canavilhas (2014), classifica o desenvolvimento da internet como responsável pelas marcantes transformações no jornalismo. “Entre as muitas alterações registradas destaca se o aparecimento das versões web dos meios tradicionais, mas também o nascimento de publicações nativas” (CANAVILHAS, 2014, p.1, online). Pesquisadores como Anderson et al. (2013), autores do relatório “O Jornalismo PósIndustrial: adaptação aos novos tempos”, reforçam a questão da influência exercida pela internet para justificar as mudanças que marcaram todo o ecossistema jornalístico na última década, “[...] houve uma explosão de técnicas e ferramentas” (ANDERSON et al, 2013, p.32). Dentre elas, destacamos a grande reportagem multimídia.

GAMES E JORNALISMO A utilização de games no jornalismo resultam em newsgames, jogos que segundo Bogost et al. (2010), são baseados em notícias e feitos para serem veiculados em meios digitais. Para os autores, os newsgames trazem como diferencial ao leitor/jogador a experiência de como as coisas aconteceram, ao invés de uma simples descrição do evento. Os pesquisadores apontam que os jogos têm a capacidade de simular como as coisas funcionam por meio de formatos interativos. 5.  Disponível em: http://www.tecmundo.com.br/infografico/9847-a-historia-da-internet-pre-decada-de60-ate-anos-80-infografico-.htm. Acesso em: 2 de março de 2015.

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Para Brasil (2012), os newsgames são jogos eletrônicos da categoria sérios, com conteúdo jornalístico. “Serious games ou jogos sérios, são projetados com a finalidade de resolver um problema. Embora os jogos possam ser divertidos, o seu principal objetivo é formar, investigar, ou anunciar” (BRASIL, 2012, p.32-33). Pesquisadores como Santos e Seabra (2014), reforçam que a ideia desse tipo de jogo ultrapassa a simples publicação de textos, imagens e animações. Para eles, os newsgames não visam o fim do texto, e sim, propor uma maior relação entre texto e imagem no campo digital. Os autores, defendem que newsgames são agregadores de valores sociais, além de serem plataformas ludo-informacionais, que superam notícias de conteúdo vazio e incluem o cidadão na narrativa jornalística. Newsgames começaram a se tornar conhecidos a partir do trabalho desenvolvido pelo designer uruguaio Gonzalo Frasca, que criou em 2003 o jogo “September 12th” 6. A iniciativa tratava do combate aos terroristas muçulmanos após os ataques às torres gêmeas, ocorrido em 11 de setembro de 2001, em Nova York (EUA). Com base no trabalho desenvolvido por Frasca, veículos de comunicação como os jornais The New York Times e El País passaram a criar e publicar newsgames em seus sites. No Brasil, os newsgames começaram a ser adotados nas redações entre os anos de 2006 e 2007. Neste período, o portal de notícias G1 lançou em seu site o jogo Nanopops, que tinha como temática a política internacional. Atualmente o jogo não está mais disponível para acesso. A revista Superinteressante lançou os jogos: CSI: ciência conta o crime7, onde o jogador é um agente criminal que precisa desvendar um misterioso crime; O jogo da máfia,8 que trata da atuação das máfias em todos os continentes; e o Filosofighters9, uma batalha de ideias entre nove renomados filósofos. A Superinteressante foi uma das pioneiras da área no Brasil, e em 2011 criou uma equipe voltada especialmente para a produção de newsgames. As inúmeras potencialidades oferecidas pela internet estão sendo compreendidas e adotadas pelos veículos jornalísticos. Salaverría (2014) avalia que a exploração de narrativas multimídia integradas parece ser a grande aposta do jornalismo na atualidade. O autor, destaca quanto à importância dos veículos de comunicação em saberem utilizar da melhor forma os vários formatos disponíveis para se fazer jornalismo, como as narrativas jornalísticas baseadas em conteúdos lúdicos e as reportagens multimídia.

A BATALHA DE BELO MONTE Produzida pelo jornal Folha de São Paulo e publicada na seção Tudo Sobre em 2013, A batalha de Belo Monte trata da construção da terceira maior usina hidrelétrica do mundo, localizada no Rio Xingu, próximo ao município de Altamira, norte do Estado do Pará. O produto está dividido em cinco capítulos e conta com as categorias making of, opinião, Folhacóptero e Mapa da Bacia do Xingu. 

6.  Disponível em: http://www.newsgaming.com/games/index12.htm. Acesso em: 1 de março de 2015. 7.  Disponível em : http://super.abril.com.br/multimidia/info_405177.shtml. Acesso em: 2 de março de 2015. 8.  Disponível em: http://super.abril.com.br/multimidia/info_420553.shtml. Acesso em: 2 de março de 2015. 9. Disponível em: http://super.abril.com.br/multimidia/filosofighters-631063.shtml. Acesso em: 2 de março de 2015.

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O site do jornal Folha de São Paulo disponibiliza A batalha de Belo Monte para leitura nas versões web e dispositivos móveis, o leitor pode ainda optar pela leitura em português ou inglês. Já os vídeos que integram a iniciativa contam com tradução em legenda automática disponibilizada pelo Google. O Folhacóptero, descrito na versão web da grande reportagem multimídia como aplicativo interativo e quando acessado de dispositivos móveis é classificado como um infográfico interativo, também pode ser jogado na versão em inglês (figura 1).

Figura 1. Versão do Folhacóptero em inglês10.

Composto por trilha sonora, o Folhacóptero não conta com tempo estipulado para conclusão do jogo, que pode ser jogado de dois modos: um em piloto automático e outro em piloto manual. Nos dois modos, o leitor/jogador precisa localizar argolas informativas que estão espalhas sobre a usina e passar por dentro delas para receber as informações sobre o funcionamento de Belo Monte, a área alagada e o impacto ambiental que causará. Todas as informações são disponibilizadas em forma de texto. Na versão piloto manual o leitor/jogador está do lado de fora do Folhacóptero e precisa guiá-lo até passar por 42 argolas/fases. Os botões de comando estão localizados no teclado do computador: para acelerar é preciso utilizar a barra de espaço; para fazer os ajustes na direção devem ser usadas as teclas de seta; a tecla “T” oferece a opção para transformar o campo do jogo em uma versão em relevo da usina; e a tecla “R” oferece a visualização de uma régua que traz a medida de um quilômetro de distância, opção que pode ser usada para calcular a largura da barragem que compõe a usina. 10.  Disponível em: arte.folha.uol.com.br/especiais/2013/12/16/belo-monte/index.html. Acesso em: 3 de março de 2015.

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Já na versão piloto automático, o leitor/jogador está dentro da cabine do Folhacóptero, o passeio sobre a usina é guiado, a tarefa também é localizar as argolas informativas. Porém, a quantidade de argolas não está descrita, é o leitor/jogador que precisa identificá-las por conta própria. Nessa versão, os botões de comando são mais simples, para avançar deve ser utilizada a tecla de espaço, já para direcionar devem ser acionadas as setas do teclado. Com base nas definições de Santaella e Feitoza (2009), que avaliam que o game tem como característica a imersão, a interatividade e a facilidade de navegação, é possível definir que o Folhacóptero, com base nas particularidades aqui descritas, apresenta as características de um jogo. Dessa forma, não é correto classificá-lo como aplicativo interativo ou infográfico interativo, como faz o veículo responsável pela sua publicação. A indicação seria classificar o Folhacóptero enquanto um newsgame, pois a iniciativa alia a capacidade lúdica dos games com a narrativa textual, e sua narrativa tem como base a informação noticiosa. Analisando o Folhacóptero é possível afirmar que a narrativa baseada no jogo facilita a compreensão da informação jornalística, especialmente de pautas complexas como é o caso da usina de Belo Monte.

MURO DE BERLIM 25 ANOS O especial Muro de Berlim 25 anos, publicado no site da revista Galileu em setembro de 2014, trata do aniversário da queda do muro que dividia a Alemanha entre lados, capitalista e socialista. A grande reportagem multimídia conta com três partes: a linha do tempo, que relembra fatos que marcaram a história do muro de Berlim; o newsgame Pule o muro, que desafia o leitor/jogador a atravessar o muro; e depoimentos em vídeo, espaço em que personagens alemães relembram fatos relacionados ao período em que o muro estava ativo. O Pule o muro, que na abertura da grande reportagem multimídia já é descrito como newsgame, traz ao leitor/jogador o desafio de tentar pular o muro para escapar da Berlim comunista do início dos anos 1970. Ao iniciar o jogo é preciso escolher entre um dos personagens (figura 2): Klaus, descrito como jovem berlinense de 25 anos que trabalha em uma refinaria de gás e acredita que as melhores condições econômicas estão do lado ocidental do muro; ou Karin, estudante de 23 anos que trabalha em uma refinaria de gás e está cansada da falta de liberdade de expressão implantada pela ditadura comunista. Para tentar pular o muro, é preciso traçar estratégias. Os botões de comando de Pule o muro são o mouse e o teclado do computador. Contudo, como o newsgame, assim como toda grande reportagem multimídia, está disponível para ser acessado via dispositivos móveis, a usabilidade fica comprometida, pois com o passar do jogo é solicitado o uso do teclado para dar continuidade ao newsgame. As possibilidades para tentar pular o Muro de Berlim são: coletar as garrafas de bebida para embriagar o capitão Ulrich, assim tentar a fuga pela água; ou emprestar tecido da costureira Hanna e o motor do senhor Helmut para construir um balão e tentar a fuga pelo ar. Não há tempo estipulado para concluir o Pule omuro.

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Figura 2. Para iniciar o jogo o leitor/jogador precisa escolher com qual personagem irá jogar11.

As interações com o capitão Ulrich, a costureira Hanna e com o senhor Helmut podem ser feitas através da fala, do uso da mão ou do pé. Durante o newsgame, o leitor/ jogador dispõe de caixas de texto, onde tem a possibilidade de escolher a forma de interação com os personagens do jogo. Mesmo já sendo descrito na grande reportagem multimídia como newsgame, Pule o muro de fato se caracteriza como tal, pois, cumpre com a ideia de jogo jornalístico defendida por Santos e Seabra (2014): “No tabuleiro de games baseados em informação e notícia, a participação é total, não é algo fortuito, publicado a esmo” (SANTOS E SEABRA, 2014, online). O Pule o muro atende a definição de Santos e Seabra (2014), já que no final da atividade o leitor/jogador se depara com a realidade vivida pelas pessoas que tentaram a fuga no período em que o muro ainda estava ativo, não sendo, desta forma, possível alcançar sucesso na fuga em nenhuma das tentativas, tanta pelo ar com pela água. O objetivo é informar o número de pessoas que morreram tentando fugir. Quando se opta na fuga pelo ar, no final do jogo vem à tona a história de Winfried Freudenberg, última pessoa a morrer tentando atravessar o muro em 8 de março de 1989. Winfried morreu durante a queda do seu balão de fabricação caseira.  O mesmo acontece quando o leitor/jogador opta pela fuga na água. No final do jogo, é narrada a história de um grupo de 14 alemães no dia 8 de junho de 1962, que embebedou o capitão de um barco para atravessar a fronteira, mas acabou morrendo em um tiroteio encabeçado pelos soldados da Alemanha comunista. O Pule o muro vai além da missão de newsgame integrante de uma grande reportagem multimídia, pois além de reforçar sobre questões que já foram abordadas em outros momentos dentro da grande reportagem, traz informações novas sobre o período em que o Muro de Berlim estava ativo.

11.  Disponível em: www.quedamurodeberlim25anos.com.br/index.html. Acesso em: 3 de março de 2015.

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O uso de newsgames na grande reportagem multimídia Ana Paula Bourscheid • Antonio Cláudio Brasil Gonçalves

Em comparação com o Folhacóptero, o Pule o muro conta com uma pitada a mais de ludicidade, uma vez que o leitor/jogador pode explorar de forma mais ampla os recursos que são próprios dos games, como a facilidade de navegação, a imersão e a interatividade. Por outro lado, o Folhacóptero se destaca por estar disponível como aplicativo para dispositivos móveis, além do leitor/jogador poder optar em jogar o newsgame na versão português ou inglês.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir dos pontos abordados nesse artigo, podemos constatar que os newsgames atuam como um elemento que complementa a grande reportagem multimídia. O Folhacóptero, assim como o Pule o muro, são compostos por informações que estão diretamente relacionadas com a pauta principal de cada um dos exemplos. Em cada um desses newsgames o leitor/jogador se vê representado no jogo. Além disso, nos dois exemplos, assim como em todos os newsgames, não há vencedores, nem perdedores. O ponto em comum entre, o Folhacóptero e o Pule o muro, é a predominância da informação textual durante todo o jogo. O pesquisador, João Canavilhas (2014), defende que a supremacia do texto está relacionada ao fato de que “[...] o modelo de referência do online continua a ser a imprensa escrita, o webjornalismo tem no texto o seu elemento fundamental” (CANAVILHAS, 2014, p.4, online). Após dez anos do surgimento das primeiras iniciativas de newsgames no Brasil, é possível perceber que a prática de produzir e publicar newsgames se multiplicou pelas redações brasileiras, e cada vez mais os veículos de comunicação estão utilizando o game como aliado da narrativa jornalística. Vale destacar, que a grande oportunidade que os newsgames trazem ao jornalismo, é a possibilidade de aliar a informação jornalística com o aspecto lúdico do jogo. Iniciativa que por sua vez, oportuniza ao jornalismo aproximar e recuperar seu público, em especial os nativos digitais. A atual fase do jornalismo pode ser entendida como um momento de propagação dos produtos multimídia, exemplo disso, é a inclusão de newsgames na Grande Reportagem Multimídia. Em meio a esse boom das novas formas para se fazer jornalismo, é possível notar que os profissionais da área estão se empenhando para tentar inovar, porém, não sabem ao certo como classificar o que estão produzindo. Citamos aqui o exemplo do Folhacóptero, descrito no site do veículo responsável pela sua publicação como infográfico interativo, quando na verdade o certo seria classificá-lo enquanto um newsgame. Outro ponto, que marca essa fase de constantes inovações no modo de fazer jornalismo, é quanto à importância das redações contarem com profissionais de diferentes áreas de formação, para assim, produzir grandes reportagens multimídia e narrativas jornalísticas baseadas em conteúdos lúdicos, como os newsgames. Dessa forma, torna-se necessário integrar profissionais jornalistas, designers e programadores. Para o futuro, a probabilidade é que o jornalismo seja feito cada vez mais em parceira, de forma multidisciplinar e colaborativa.

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O uso de newsgames na grande reportagem multimídia Ana Paula Bourscheid • Antonio Cláudio Brasil Gonçalves

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Grande reportagem e especial multimídia: aproximações possíveis Great report and multimedia special: possible approaches A n g e l a M a r i a Fa r a h 1

Resumo: O conteúdo jornalístico na web vem passando por uma série de mudanças. Uma delas é o modo de produção e de apresentação da reportagem. Este artigo surge de um olhar aberto às mudanças, bastante inquieto com as transformações que o jornalismo vem sofrendo e também da observação da possibilidade que a web traz para o jornalismo de recriar o espaço para a veiculação de grandes reportagens ou reportagens especiais, precisamente por ter espaço ilimitado. Desse modo, pretende-se analisar as aproximações possíveis entre a produção da grande reportagem e do especial multimídia. Muitos estudiosos têm-se debruçado sobre os formatos, as ferramentas, entre outros quesitos específicos do jornalismo digital. Assim, propõe-se uma reflexão sobre a grande reportagem e sua reinvenção no espaço digital, assim como suas implicações para o jornalismo.

Palavras-chave: Jornalismo online. Grande reportagem. Reportagem multimídia. Abstract: The news content on the web has undergone a lot of changes. One is the mode of production and presentation of the report. In this article we intend to analyze the possible considerations between the output of the large reportage and special multimedia. Thus, it is necessary to analyze what are the traditional features and new and how it impacts journalism. In order to analyze the big story and its change process on the web, it is necessary to review, briefly, the history of web usage by media companies, the history of the story and the big story of the characteristics in the printed vehicle and on the web. This essay comes from an open look to change, quite uneasy with the changes that journalism has suffered and also observing the possibility that the web brings to journalism to recreate the space for the placement of large reports or special reports, precisely because it unlimited space. Many scholars have been poring over formats, tools, and other specific questions of digital journalism. Thus, we propose a reflection on the great story and its reinvention in the digital space, as well as its implications for journalism.

Keywords: Online journalism. Great story. Multimedia reporting.

1.  Doutoranda em Ciências da Comunicação, Universidade de São Paulo, orientada por Profª Dra. Cremilda Medina, [email protected]

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Grande reportagem e especial multimídia: aproximações possíveis Angela Maria Farah

INTRODUÇÃO A DÉCADA de 1970, o jornal The New York Times já havia iniciado a transposição do

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seu conteúdo para a web. Os assinantes do jornal, que possuíam computadores, podiam acessar resumos e textos completos de artigos atuais do jornal por meio do banco de dados denominado New York Times Information Bank (MOHERDAUI, 2002). Outros jornais norte-americanos começaram a oferecer serviço semelhante. Porém, o início da era da informação digital nos Estados Unidos tem como marco o final dos anos 1980. Nessa época, os jornais impressos que queriam usar a web perceberam que precisavam pensar em estratégias diferentes para ganhar esse público ainda desconhecido e a partir daí o usuário da web passou a receber boletins informativos personalizados disponibilizados por vários jornais. Foi a partir de 1995, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, que os jornais digitais com conteúdos específicos para a web começaram a surgir. A reportagem multimídia mais comentada desde o final de 2012 é Snow Fall: the avalanche at Tunnel Creek, produzida pelo The New York Times, assinada por John Branch. Ela conta a história da avalanche em Tunnel Creek, nos Estados Unidos, que matou três dos 16 atletas profissionais que praticavam snowboard naquele local. Demorou seis meses para ser finalizada, foi publicada em dezembro de 2012 e recebeu o Pulitzer, o mais prestigiado prêmio do jornalismo norte-americano, em 2013. Depois disso, passou a ser modelo para a produção de reportagem multimídia para o mundo todo. No Brasil, as primeiras experiências foram do Grupo O Estado de S. Paulo. O Jornal do Commercio, de Recife, também disponibilizava notícias via web. Hoje, as experiências multimídias estão distribuídas entre as grandes empresas de comunicação, como Estadão, Folha de S. Paulo e Agência Brasil, mas há, também, alguns grupos independentes tentando usufruir das características da web para produzir jornalismo de qualidade, como o Grupo Garapa2 e a Pública, Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo3. Este ensaio surge de um olhar curioso, aberto às mudanças, e bastante inquieto com as transformações que o jornalismo vem sofrendo. E também da observação da possibilidade que a web traz para o jornalismo de recriar o espaço para a veiculação de grandes reportagens ou reportagens especiais, precisamente, por ter espaço ilimitado. Muitos estudiosos têm-se debruçado sobre os formatos, as ferramentas, entre outros quesitos específicos do jornalismo digital. Desde a década de 1980, os grandes jornais impressos brasileiros não dedicam mais tanto espaço para as reportagens especiais, por terem um alto custo financeiro e necessitarem da dedicação em tempo integral de um ou mais repórteres para a produção da reportagem. As grandes empresas de comunicação enxugaram seus quadros de profissionais e por isso não investem, como investiram nas décadas de 1960 e 1970, em trabalhos de fôlego como a reportagem especial. É nesse sentido que a web pode contribuir para manter viva a produção da grande reportagem. Basta navegar um pouco pela web para encontrar reportagens especiais nos portais de provedores, de empresas de comunicação, em sites de movimentos sociais, universidades, entre outros. Assim como existem leitores que querem a informação 2.  O grupo pode ser acessado no seguinte endereço: http://garapa.org/ 3.  A agência pode ser acessada no seguinte endereço: http://apublica.org/

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Grande reportagem e especial multimídia: aproximações possíveis Angela Maria Farah

rápida, fácil de ser encontrada, que o deixe informado rapidamente, também há o leitor que quer encontrar os temas da atualidade percebidos em vários ângulos, com riqueza de detalhes e informações, que priorizem a ação humana em sua complexidade. Desse modo, este ensaio propõe uma reflexão sobre a grande reportagem e sua reinvenção no espaço digital, assim como suas implicações para o jornalismo.

A CONVERGÊNCIA NO JORNALISMO Uma das características das produções jornalísticas para a web é a convergência entre os meios de comunicação. É possível construir uma narrativa jornalística utilizando diferentes linguagens em uma mesma plataforma. O pesquisador Henry Jenkins trata dessa questão no livro Cultura da Convergência, evidenciando como a convergência midiática influencia a maneira que os produtos são elaborados, principalmente os de entretenimento. Para ele, essas mudanças podem transformar tanto a disposição e a formatação das redações futuras quanto o conteúdo a ser publicado online e sua estrutura. Assim, o autor define: Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais [...] (JENKINS, 2009, p.29).

Para os estudiosos Ramón Salaverría, José Alberto García Avilés e Pere Masip Masip (2010), a convergência atingiu o jornalismo de diversas maneiras e causou transformações de modo definitivo, apesar de ainda vivenciar esse processo. O conceito de “convergência jornalística” refere-se a um processo de integração de modos de comunicação tradicionalmente separados que afeta a empresas, tecnologias, profissionais e audiências em todas as fases de produção, distribuição e consumo de conteúdos de qualquer tipo. A convergência incide em múltiplas esferas do fazer jornalístico: nas estratégias empresariais, nas mudanças tecnológicas, na elaboração e distribuição de conteúdos por meio de distintas plataformas, no perfil profissional dos jornalistas e nas formas de acesso aos conteúdos (SALAVERRÍA; GARCÍA-AVILÉS; MASIP, 2010, p.58, tradução nossa).4

Desse modo, os autores refletem sobre as consequências da convergência tecnológica e empresarial, e de que modo influenciam na convergência no âmbito profissional e incide no produto jornalístico final. Assim, propõem a seguinte definição para convergência jornalística: A convergência jornalística é um processo multidimensional que, facilitado pela implantação generalizada das tecnologias digitais de telecomunicação, afeta ao âmbito tecnológico, empresarial, professional e editorial dos meios de comunicação, propiciando uma integração 4.  El concepto de “convergencia periodística” alude a un proceso de integración de modos de comunicación tradicionalmente separados que afecta a empresas, tecnologías, profesionales y audiencias en todas las fases de producción, distribución y consumo de contenidos de cualquier tipo. La convergencia incide en múltiples esferas del quehacer periodístico: en las estrategias empresariales, en los cambios tecnológicos, en la elaboración y distribución de contenidos a través de distintas plataformas, en el perfi l profesional de los periodistas y en las formas de acceso a los contenidos (SALAVERRÍA; GARCÍA-AVILÉS; MASIP, 2010, p.58).

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de ferramentas, espaços, métodos de trabalho e linguagens anteriormente desagregados, de forma que os jornalistas elaboram conteúdos que se distribuem por meio de múltiplas plataformas, de acordo com as linguagens próprias de cada uma (SALAVERRÍA; GARCÍA-AVILÉS; MASIP, 2010, p.59, tradução nossa).5

Outra grande mudança provocada pela convergência no jornalismo se dá na formação do perfil do profissional. Salaverría e García-Avilés tratam dessa questão apontando para a polivalência profissional, ou seja, o jornalista precisa dominar a tecnologia digital e suas ferramentas, ter habilidade para trabalhar em equipe, ter preparação para elaborar conteúdos para em diversas plataformas e boa capacidade de reação para lidar com a notícia de última hora. Ditas assim é possível que se diga que o jornalista já precisava ter essas qualidades antes mesmo do advento multimídia. No entanto, agora faz-se absolutamente necessário o conhecimento teórico-prático, caso contrário o jornalista pode perder sua colocação profissional para um designer, programador ou para qualquer outra pessoa que consiga suplantar essas necessidades dessa nova fase do jornalismo. Além de ter essas competências, é preciso mudar o modo como se percebe o produto jornalístico final, como considera Daniela Bertocchi (2014, p.12-13): [...] a atuação do jornalista, uma vez realizada à moda tradicional, revela-se limitada – porque incide apenas em uma parte da modelagem narrativa, e não no sistema como um todo. Incide muito mais no frontend (interface final) que no backend (bastidores). [...] Sugerimos, porém, que no momento histórico em que vivemos, o jornalismo se abra para ter contato com o modus operandi dos diversos estratos do sistema – o que lhe daria a vantagem de compreendê-lo e tirar deste entendimento algum proveito comunicacional. [...] os jornalistas podem compreender sistemas sem precisarem se tornar matemáticos ou programadores. Neste contexto, acreditamos que não bastará ao jornalista criar e manter uma base de dados; para se beneficiar do modelo, será preciso que o jornalista (dos repórteres aos editores-chefe, incluindo os diretores de Redação) cultivem um olhar tanto para o backend como para o frontend jornalísticos, em busca de (re)modelar o sistema continuamente.

A pesquisadora defende, ainda, que o jornalista deve se reconfigurar como profissional e passar a ser um design de experiência: O formato é capaz de revelar o comportamento de todo um sistema narrativo. O jornalista é potencialmente um designer de experiência: ele não apenas “escreve o texto”, mas é a figura também capaz de modelar a narrativa em camadas, com equipes humanas e robôs, tendo como objetivo uma experiência narrativa centrada nos usuários (BERTOCCHI, 2014, p.13).

Para tal transformação acontecer, a autora considera que será preciso modificar a cultura jornalística, desde seu ensino até a sua prática cotidiana. 5.  La convergencia periodística es un proceso multidimensional que, facilitado por la implantación generalizada de las tecnologías digitales de telecomunicación, afecta al ámbito tecnológico, empresarial, profesional y editorial de los medios de comunicación, propiciando una integración de herramientas, espacios, métodos de trabajo y lenguajes anteriormente disgregados, de forma que los periodistas elaboran contenidos que se distribuyen a través de múltiples plataformas, mediante los lenguajes propios de cada uma (SALAVERRÍA; GARCÍA-AVILÉS; MASIP, 2010, p.59).

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A GRANDE REPORTAGEM NA WEB A classificação histórica do jornalismo online proposta por Luciana Mielniczuk apresenta três fases diferentes, de acordo com o modo como a informação é passada para os leitores por meio da internet: a) Primeira Geração – existia apenas a reprodução do conteúdo na internet de tudo aquilo que já havia sido publicado no impresso; b) Segunda Geração – as primeiras experiências de produção para a internet começam a ser realizadas. O jornal impresso ainda é referência para o conteúdo veiculado na web. Nessa geração, as produções começam a apresentar as características de personalização e interatividade. O modo de produção também começa a ser alterado. É nesse momento que surgem os bancos de dados da internet, importante fonte de pesquisa jornalística; c) Terceira Geração – as produções começam a ser pensadas para serem publicadas no ambiente online exclusivamente. Começam a apresentar multimidialidade, além de interatividade e hipertextos, possibilitando ao leitor sair de sua passividade. Alguns estudiosos apontam para a existência da quarta geração, que teria surgido a partir da utilização de banco de dados online na produção de conteúdo, mais ou menos a partir de 2002. A maior parte do que se produz e se analisa nos meios digitais faz parte da terceira e quarta geração. Mielniczuck (2003) propõe a divisão de espaços diferenciados para o tratamento da informação jornalística em um webjornal: Últimas Notícias, Cobertura Cotidiana e Especiais. A autora define assim o espaço de Especiais: Os especiais, [...], na maioria das vezes, referem-se a material informativo mais extenso, elaborado com mais tempo e que ocupam seções específicas do webjornal. [...] [...], o material produzido para as seções especiais fica disponibilizado no sítio de maneira permanente e cumulativa, [...]. Nestas produções, além da memória, são utilizadas com maior freqüência as características da hipertextualidade e multimidialidade na narrativa jornalística. (MIELNICZUCK, 2003, p.52).

A partir do conceito proposto por Mielniczuck, pode-se afirmar que a web traz novamente a possibilidade para os jornalistas realizarem trabalhos de reportagem e publicarem na rede, que diminui os custos da operacionalização porque os trabalhos são planejados e feitos de forma centralizada por empresas de comunicação estruturadas, que poderão utilizar o material nos diversos meios de comunicação da organização. Além de não existir custo de papel, de impressão nem de distribuição e o espaço da rede ser infinito. Raquel Ritter Longui, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), buscou a definição do termo “especial multimídia” em artigo publicado na revista Estudos em Comunicação, apresentada assim: Grande reportagem constituída por formatos de linguagem multimídia convergentes, integrando gêneros como a entrevista, o documentário, a infografia, a opinião, a crítica, a pesquisa, dentre outros, num único pacote de informação, interativo e multilinear (2010, p.153).

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Desse modo, é possível compreender o especial multimídia como uma grande produção de conteúdo jornalístico, adaptada ao meio web e suas potencialidades. Com o desenvolvimento técnico de hardware e software, as narrativas multimidiáticas têm se desenvolvido em número, qualidade e formato. Dois trabalhos recentes, de Daniela Osvald Ramos (2011) e Daniela Bertocchi (2006; 2013), desenvolvidos na Universidade de São Paulo (USP), ampliam a discussão sobre os formatos dos especiais multimídia, avaliando as modificações no modo de produção, no modelo de negócio e na necessidade de se criar alternativas de modelos voltadas especificamente para a web, atendendo suas características específicas, assim como suas potencialidades6. As características que definem a produção de conteúdos jornalísticos para a web, proposta por Marcos Palacios (2002), também descritas por Moherdaui (2002); Ferrari (2003) e Ribas (2003) são: multimidialidade, interatividade, customização do conteúdo (individualização ou personalização), memória, atualização contínua, hipertextualidade, e a utilização dos bancos de dados. Nem todos os produtos jornalísticos têm essas características desenvolvidas em sua plenitude por motivos técnicos, de conveniência ou de adequação. A hipertextualidade é a característica mais estudada e comentada quando se trata de informação na rede. A informação na web é construída por meio de um texto, que possui links que levam o usuário a uma leitura não linear e “própria” sobre o assunto. O discurso fragmentado e não linear é uma das características da informação na web. Porém, alguns autores afirmam que nessa leitura “própria” feita pelo usuário, ele estaria dando linearidade à informação lida. Essa característica é muito importante para a grande reportagem na web, pois garantirá movimento e liberdade para o usuário, possibilitando que ele conheça a extensão do conteúdo e tenha praticidade na leitura para a apreensão do conteúdo. Outra característica é a interatividade. É certo que a web proporciona mais ação e interação do usuário com a informação, pois ele escolhe o que quer ler, ver, ouvir e qual caminho quer fazer. Porém, ainda a interação do usuário muitas vezes é limitada em dizer se gostou ou não da informação veiculada, votar em enquetes, etc. Na grande reportagem na web, o usuário pode interagir escolhendo o caminho de leitura e apreensão do conteúdo, dando sua opinião sobre conteúdo, links, design, etc., e ainda colaborando com novas informações sobre o assunto abordado pela reportagem. Ainda é uma característica com muito potencial para ser desenvolvido. O uso de recursos como áudio, vídeo, fotografia, ilustrações, animações, simulações, além do texto, é chamado de multimidialidade, primeira característica da World Wide Web. Todos esses recursos podem acrescentar novas informações à narrativa webjornalística e também novas experiências no ambiente multimídia para o usuário. A multimidialidade é o diferencial da grande reportagem impressa para a grande reportagem na web, pois o leitor pode ter acesso a muitas informações de maneira ágil, dinâmica, interessante e com interatividade. A personalização é a busca do pesquisador do MIT, Nicholas Negroponte, desde a década de 1990. A configuração de páginas com temas de sua preferência, o design de 6.  Consultar as pesquisas acadêmicas de Daniela Osvald Ramos (2011) e Daniela Bertocchi (2006; 2013).

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uma página, o recebimento de um e-mail com notícias selecionadas de acordo com o perfil do usuário são exemplos de personalização. A possibilidade de guardar os caminhos que a informação segue na web dá--se o nome de memória. Atrelada à memória, está a utilização do banco de dados. Tanto o conceito de memória quanto o desenvolvimento de mais eficientes bancos de dados estão sendo estudados e devem revolucionar grande parte do conteúdo já exposto na web. Das características citadas, a única que não se encaixaria à produção da grande reportagem é a atualização contínua, que está presente nas Últimas Notícias e na Cobertura Cotidiana, pois é responsável pela velocidade da informação na web, com o compromisso da informação em “tempo real” na rede. No entanto, de algum modo, essa é uma grande transformação apresentada pela web para a produção de especiais multimídia: a condição da participação do usuário como produtor do material, trazendo a possibilidade da atualização contínua por meio da criação de um banco de dados sobre o tema da reportagem. Nesse ponto, a cultura da participação, preconizada por Clay Shirky (2011), pode ser evocada. Ela é caracterizada pela: baixa barreira de entrada para expressões artísticas e engajamento civil; forte suporte para criação e compartilhamento de criações dos usuários; passagem de conhecimento dos mais experientes para os novatos; os membros acreditam que as suas contribuições realmente são importantes para o grupo e sentem algum tipo de conexão social com os demais participantes. Desse modo, a cultura participativa requer um novo jeito de tratar a informação, novos métodos educativos e um repensar das estruturas tradicionais e suas propriedades. Shirky (2011) acredita que é possível usar o tempo livre mais o excedente cognitivo para produzirmos conhecimento útil para a sociedade. Nosso ambiente de mídia (ou seja, nosso tecido conjuntivo) mudou. Num histórico piscar de olhos, passamos de um mundo com dois modelos diferentes de mídias – transmissões públicas por profissionais e conversas privadas entre pares de pessoas – para um mundo no qual se mesclam a comunicação social pública e a privada, em que a produção profissional e a amadora se confundem e em que a participação pública voluntária passou de inexistente para fundamental (SHIRKY, 2011, p.186).

As reportagens multimídias podem contribuir para a construção dessa cultura participativa, se as empresas de comunicação souberem lidar com isso, pois, como afirma Shirky (2011, p.74): “As motivações sociais reforçam as pessoas. Nossas novas redes de comunicação encorajam a participação em comunidades e o compartilhamento, ambos intrinsicamente bons, fornecendo também apoio para a autonomia e competência.” A motivação é o fator determinante para compartilhar e a tecnologia é apenas um instrumento facilitador. Acreditando na cultura participativa, mas considerando outros aspectos, os pequisadores Nick Couldry e Henry Jenkins (2014) dizem que é preciso pensar e elaborar o conceito de participação concretamente, a partir de ferramentas, práticas, ideologias e tecnologias que façam parte dela. É preciso manter a participação como um conceito “aberto”, “não terminado”, buscando alternativas para realizá-la efetivamente.

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Além das características do jornalismo online, Ribas (2003) propõe modelos narrativos para o webjornalismo, que dividem-se em três: Linear, Hipertextual Básico e Hipertextual Avançado. Esses modelos correspondem aos três momentos pelos quais a produção jornalística para a web passa ou está passando. Na rede, podem existir produtos que estejam situados no modelo mais avançado e, ao mesmo tempo, produtos que podem ser classificados como básicos ou lineares. O primeiro modelo, o Linear, corresponde ao primeiro estágio do webjornalismo. Nesse estágio, os jornais impressos apenas copiavam seus conteúdos para a web, sem usar o novo meio com suas características próprias. No segundo estágio do webjornalismo, o modelo é o Hipertextual Básico, que caracteriza-se pelo uso do link para organizar as informações presentes no texto, e apresenta um pouco do uso da interatividade. O modelo Hipertextual Avançado faz parte do terceiro estágio do webjornalismo, no qual algumas publicações começam a organizar as narrativas informativas em blocos de texto com links, que levam o usuário a conhecer novas informações sobre o tema em questão por meio de vídeo, áudio, ilustrações, animações e fotografias. A interatividade e o arquivo ou memória são mais valorizados nesse modelo. Para a IJNET - Rede de Jornalistas Internacionais (2011), há alguns elementos que podem definir uma boa reportagem multimídia. De acordo com a Rede, as matérias multimídias aproveitam os pontos fortes de cada meio, como os vídeos para mostrar ação; as fotos para capturar um momento-chave no tempo ou uma forte emoção; o áudio para registrar as falas mais interessantes, importantes ou polêmicas; e os gráficos servem para estruturar processos ou dados complexos de modo facilitado aos usuários, que também podem ser interativos. Essa potencialidade multimídia é o que agrega ferramentas e que compreende um novo desenho de interface e a imersão narrativa do usuário, pois os softwares e hardwares têm relevância cada vez maior no cenário da produção informativa (LONGUI, 2014). No Brasil, um exemplo bastante interessante que pode ser citado, entre tantos existentes, é o especial multimídia Infância Perdida7, produzido pelo Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, de Recife, que tem um portal que reúne o conteúdo dos veículos de comunicação pertencentes ao grupo e também conteúdo produzido especificamente para a web, e vem ganhando muitos prêmios por suas produções de especiais multimídias. A partir de agosto de 2010, o projeto especial sobre o abuso sexual de crianças e adolescentes em Pernambuco, composto por uma série de cinco reportagens exibida pela TV Jornal, afiliada do SBT em Pernambuco; outra série de quatro matérias veiculada na Rádio Jornal 780 AM; uma série de três reportagens publicada no Jornal do Commercio, deu origem à reportage multimídia “Infância perdida”, publicada no site do grupo do Jornal do Commercio. A equipe de reportagem percorreu quase dois mil quilômetros e municípios de todas as regiões do Estado em busca de histórias de crianças e adolescentes que foram abusados. A reportagem foi premiada, em diversas categorias, em quatro grandes concursos nacionais8. 7.  A reportagem está disponível no seguinte endereço: http://www2.uol.com.br/JC/sites/infanciaperdida/ 8.  3º Prêmio Imprensa Embratel, em 2011- venceu o prêmio na categoria Regional Nordeste; 32º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, em 2010 - ganharam os prêmios principais nas respectivas

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Grande reportagem e especial multimídia: aproximações possíveis Angela Maria Farah

Figura 1. Página inicial da reportagem multimídia Infância Perdida

O tema da reportagem exigiria tratamento de profundidade e a opção do grupo foi trabalhar com uma grande equipe fazendo o assunto estar presente em todos os meios de comunicação do grupo e a versão final, que reúne todo o conteúdo, é a grande reportagem multimídia, que mantém o conteúdo sempre ativo por estar na disponível na internet. O projeto envolveu quatro profissionais de produção, reportagem, edição de vídeos e áudios; e um professional de cada área: fotografia, imagens, ilustrações, design e edição; além dos especialistas que deram consultoria sobre as mais diversas questões acerca da temática tratada9. Apesar de ser um projeto multimídia, ele não apresenta características de interação efetivas do público, a não ser o tradicional contato por e-mail com os autores da reportagem, assim como não usa tecnologias inovadoras para sua apresentação. No entanto, deve-se considerar o esforço do grupo nesse tipo de produção por ser pioneiro e ainda procurar soluções para a realização de reportagens especiais.

APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS A web mudou a comunicação. Acelerou-a, transformou e revolucionou o formato. A evolução das tecnologias Flash e HTML5 transformou e possibilitou o surgimento e a sofisticação das reportagens multimídias. Há diferentes formatos e ideias sendo executadas e pesquisadas acerca da reportagem multimídia, estando, nesse momento, em uma fase de franco crescimento. No entanto, não se pode esquecer que a reportagem é a especialidade do jornalismo, na qual desenvolve-se a capacidade ética, técnica e estética do jornalista. É importante avançar tecnicamente, desenvolver novas ferramentas para buscar mais informação ou até para fazer essa informação chegar a mais pessoas, tornando-as parte disso. categorias, o especial multimídia recebeu menção honrosa; 27º Prêmio de Direitos Humanos de Jornalismo 2010 - ganhou o prêmio principal na respectiva categoria; 5° Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo 2010 - vencedor na categoria ‘Mídia Alternativa, Comunitária e Online’. 9.  O expediente pode ser consultado no seguinte endereço, no link Expediente: http://www2.uol.com. br/JC/sites/infanciaperdida/

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Grande reportagem e especial multimídia: aproximações possíveis Angela Maria Farah

Para além do simples aparato tecnológico, ainda é preciso que o jornalista lembre-se da lição dada pelos estudiosos da Nova História: é preciso compreender mais do que explicar. É preciso compreender que as histórias, a memória e o testemunho são construídos pela subjetividade humana, mas que é essa a nossa própria história: como contamos e recontamos o que vivemos. Estar sujeito às interferências da memória, da experiência, da vivência, é estar vivo, e admitir-se humano. É nessa intertextualidade humana, que passa pelo texto e pela oratura, tão rica quando a literatura, como diz Medina (2003), em que se descobre os interstícios da vida, das diferentes experiências, das distintas visões de mundo, e de como todas essas pessoas convivem, sobrevivem, levam suas vidas adiante. Qualquer relato do real é um ato de cultura. Desse modo, é preciso estar atento às descontinuidades, a possibilidade de criar, de inventar no momento da necessidade (neurociência), da criatividade – o ato emancipatório, como preconiza Ilya Prigogine. De qualquer modo, está presente no jornalista a necessidade de questionar e/ou duvidar das histórias globais – panoramas, porque a perspectiva panorâmica é inviável. A história é temática, recortada e autoral e está sempre a relacionar o universal e o local/singular. Medina define o jornalista como um leitor cultural, como um escritor romancista. Desse modo, o repórter amplia seu relato, porque percebe o que está a sua volta, a volta do seu entrevistado, relaciona-se com o presente, para poder reportá-lo com competência ética, técnica e estética. Como define a pesquisadora: “[...]: abrimos [nós, jornalistas] nossa cosmovisão para a amplitude das leituras culturais, aos poucos a estreitamos em função de exigências específicas, voltamos a realimentar nossa estreiteza com as larguezas do outro, seguimos aplicando a situações próprias que novamente se esgotam” (MEDINA, 1996, p.34). É nesse sentido que Cremilda Medina busca apontar, em muitas áreas da ciência, modos de compreensão da realidade, que contribuem para o trabalho do jornalista, esse leitor cultural dos fatos e fenômenos sociais. Desse modo, faz-se necessário buscar a experimentação de novos formatos e novas formações para as equipes que produzem a reportagem multimídia, pois essas experiências trarão um novo caminho ao jornalismo e uma grande contribuição para a participação da sociedade no processo de produção e gestão da informação, sem esquecer-se de que o jornalismo se faz a partir de valores humanos e profissionais.

5 REFERÊNCIAS BERTOCCHI, D. (2014) Dos dados aos formatos: o sistema narrativo no jornalismo digital. XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014. Disponível em: . Acesso em: 29 jan. 2015. _____. (2013) Dos Dados aos Formatos – Um modelo teórico para o design do sistema narrativo no jornalismo digital. 248 f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.

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Grande reportagem e especial multimídia: aproximações possíveis Angela Maria Farah

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O que é tecnologia para os jornais brasileiros? Um estudo sobre representações temáticas What is technology for the Brazilian newspapers? A study about thematic representations Andressa Kikuti1

Resumo: A tematização da tecnologia há anos vem sendo percebida nos jornais brasileiros, demonstrando que existe uma preocupação em noticiar tais assuntos. No entanto, é necessário pensar qual é o significado de tecnologia para os jornais, uma vez que o termo possui diferentes interpretações. Este artigo, fruto da pesquisa de mestrado em Jornalismo da autora, orientada pelo coautor, tem como proposta identificar quais as temáticas presentes nas seções on-line de tecnologia de quatro jornais brasileiros: Folha de S. Paulo, Estadão, Gazeta do Povo e Correio Braziliense. A metodologia é um estudo de caso que utiliza como ferramentas a coleta de dados quantitativa (durante os meses de setembro e outubro de 2014), entrevistas com editores e repórteres responsáveis pela produção do conteúdo jornalístico e acesso a fontes documentais A análise permite traçar uma trajetória sobre a origem e desenvolvimento das seções analisadas, e também traz de maneira detalhada a incidência de outros temas nas seções de tecnologia, como cultura digital, legislação, inovações tecnológicas, bugs, educação para os meios e políticas sociais digitais. Como resultado, obtém-se um panorama do jornalismo sobre tecnologia no Brasil no que tange às suas múltiplas representações temáticas, e gera-se uma reflexão sobre a configuração atual das quatro seções.

Palavras-Chave: Jornalismo sobre tecnologia. Tematização. Jornalismo Especializado.

Abstract: The thematization is been realized for years in the brazilian newspapers, showing that there is a concern in reporting these themes. However, it’s necessary to think what is the meaning of technology for the newspapers, once the term may have different interpretations. This paper, result of the Master’s research in Journalism of the author, oriented by the co-author, has the purpose of identify which themes are present in the technology online sections, in four Brazilian newspapers: Folha de S. Paulo, Estadão, Correio Braziliense e Gazeta do Povo. The methodology is a study of case that uses as tools the quantitative data collection (during the months September and October of 2014), interviews with editors and reporters responsible for the journalistic production, and access to documentary sources. The analisys allows us to draft a trajectory about the origins and development of the analyzed sections, and also brings, in a detailed

1.  Mestre em Jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: andressakikuti@ gmail.com.

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way, the incidence of other themes in technology sections, like digital culture, law, technologic innovation, bugs, media education and digital social policies. As a result, we obtain an outlook of journalism about technology in Brazil, in a sense of its multiple thematic representations, and we generate a reflection about the current settings of these four sections.

Keywords: Journalism about technology. Thematization. Specialized Journalism.

INTRODUÇÃO TEMATIZAÇÃO DA tecnologia há anos vem sendo percebida nos jornais brasilei-

A

ros, na forma de cadernos, editorias, ou páginas temáticas. Tal fato demonstra que existe uma preocupação destes jornais em noticiar tais assuntos. É necessário pensar, porém, qual é o significado de tecnologia para os jornais, uma vez que o termo possui distintas acepções (segundo Estéfano Veraszto (2008), há pelo menos dez concepções diferentes para tecnologia). A pergunta central que este artigo tenta responder é “Como o jornalismo enxerga a tecnologia nas suas seções temáticas?” ou, em outras palavras, “qual a representação da tecnologia nas seções de tecnologia dos jornais brasileiros?”. Para isto, investigamos as seções temáticas de sites de quatro jornais brasileiros: O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Gazeta do Povo e Correio Braziliense, a partir de um pacote metodológico para o estudo do jornalismo, que tem como base o estudo de caso. A hipótese inicial, fruto de constatações pessoais que motivaram a escolha deste tema de pesquisa, é que as seções de jornalismo sobre tecnologia no Brasil são tematicamente inclinadas a assuntos mercadológicos, privilegiando o produto por si só em vez dos seus impactos sociais, e chegando a ofuscar em quantidade as matérias dedicadas a tratar a tecnologia em seu contexto social, cultural, midiático, político e jurídico. Sendo a tecnologia uma importante questão contemporânea, e tendo em mente o compromisso teórico da atividade jornalística com o interesse público, nem sempre cumprido, a inclinação mercadológica dessas editorias torna esta pesquisa temática pertinente no estudo do jornalismo. Para verificar a representação da tecnologia nas seções de tecnologia dos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Correio Braziliense e Gazeta do Povo, foi desenvolvido um pacote metodológico, centrado no olhar jornalístico, e cuja base é o método Estudo de Caso. Os instrumentos utilizados foram: coleta de dados, em análise quantitativa e qualitativa do material encontrado, em um período de dois meses (setembro e outubro de 2014). As coletas foram realizadas uma vez por semana, às terças-feiras. Também foram utilizadas pesquisas documentais e entrevistas com profissionais responsáveis pelas seções temáticas, a fim de obter um panorama amplo mas também detalhado do objeto de pesquisa. Para a análise temática, foram analisadas as matérias que ocupavam a coluna principal de cada site, não importando se o conteúdo era informativo ou opinativo, desde que tivesse cunho jornalístico. Parte-se do pressuposto de que a eleição temática aponta para um modo de o jornal entender a própria realidade social, e aqui também é possível

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verificar se esta compreensão está ou não em sintonia com o conceito considerado ideal por esta pesquisa. Como conclusão, é possível afirmar que a estrutura redacional das seções de tecnologia analisadas contribui muito para a configuração do jornalismo sobre tecnologia no Brasil, tematicamente voltado para questões de mercado, o que confirma a hipótese inicial.

TECNOLOGIA E JORNALISMO Primeiramente, é preciso pensar o que é tecnologia e como ela deveria ser tratada pelo jornalismo, para depois verificar como ela de fato é tratada nas seções escolhidas. Autores como Neil Postman (1994), Álvaro Vieira Pinto (2005) e Estéfano Veraszto et.al. (2008) dedicam-se a mostrar que há diversas acepções para o termo tecnologia, e cada uma delas revela uma maneira distinta de enxergar o seu papel no mundo. De maneira geral, pode-se afirmar que as acepções de tecnologia se distribuem em dois eixos de pensamento: um que faz referência ao aspecto técnico, neutro e universal da tecnologia, e outro que incorporaria os aspectos organizacionais e culturais. Neste último, a interação entre os diferentes agentes e processos sociais acaba sendo mais importante do que a lógica interna desses componentes. Para esta pesquisa, adotamos uma expectativa de conceito de tecnologia ideal para o jornalismo: aquele focado nas mudanças sociais, como o conceito desenvolvido por Veraszto (et al, 2008, p.78): “a tecnologia é um conjunto de saberes inerentes ao desenvolvimento e concepção dos instrumentos (artefatos, sistemas, processos e ambientes) criados pelo homem através da história para satisfazer suas necessidades e requerimentos pessoais e coletivos”.

A TECNOLOGIA NA GAZETA DO POVO A cobertura sobre tecnologia na Gazeta do Povo, jornal de maior tiragem no Estado do Paraná, teve diferentes momentos. Começou em 2004, com uma página temática semanal no jornal impresso. Em 2006 ela virou caderno, também semanal e com quatro páginas – período em que os assuntos deste escopo tiveram mais visibilidade no jornal. Ele circulou até o ano de 2012 quando, com o enxugamento de editorias feito pela Gazeta do Povo, a tecnologia deixou de possuir um espaço próprio, tornando-se parte da editoria de Economia, que atualmente publica assuntos relacionados à tecnologia no decorrer da semana, de forma diluída. No site, a seção Tecnologia também é alimentada por este conteúdo produzido para o impresso, somado ao conteúdo proveniente de agências de notícias. Como a tecnologia não tem uma editoria própria no jornal, não há uma equipe de jornalistas dedicada a cobri-la. Mas um jornalista profissional é responsável pela temática: o editor-assistente de Economia, Rafael Waltrick, que está na função desde março de 2014 e divide seu tempo entre a produção de conteúdo sobre tecnologia e edição da editoria de Economia para o impresso e para o on-line. O total de tags atribuídas às matérias da editoria de Tecnologia da Gazeta do Povo durante os dois meses mencionados foi 143. A constatação numérica sobre temas mais recorrentes é compatível com o fato desta seção estar alocada dentro da editoria de

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Economia da Gazeta – o que, obviamente, privilegia pautas e enfoques econômicos nas notícias. Também é consonante com o que Rafael Waltrick (2014)2 elenca como os principais assuntos da tecnologia para o jornal: produtos, start-ups, questões ligadas à telefonia, a informática, negócios, e conectividade. Matérias sobre Economia representam 58,74%, o que significa um número expressivo do total. Subdividindo, são 38 tags (ou 26,57%) para “Lançamento de produtos e serviços”, 33 tags (ou 23,07%) para “Mercado”, nove tags (ou 6,29%) para “Outros” temas de Economia, três tags (2,09%) para “Empreendedorismo” e uma tag (0,69%) para “Teste de produtos e serviços”. O segundo grande tema mais mencionado foi Direito na Web, com 23 tags no total (16,08%). Subdivide-se em oito tags (5,59%) para “Uso da Internet”; Seis tags (4,19%) para “Legislação sobre produtos e serviços” e outras seis tags (4,19%) para “Crimes cibernéticos”; e duas tags (2,09%) para matérias que tratavam de “Embates legais”. Embora apareça como segunda colocada, a frequência de temas que envolvem questões legais é bem menor do que a frequência de matérias de Economia. Cultura Digital é o terceiro tema mais mencionado desta amostra, com 15 tags atribuídas, ou 10,48% do total. Entre os títulos, encontram-se: “Android é sistema mais usado para ver pornografia no celular, diz pesquisa” e “Curitibano fez sucesso ao compor música sertaneja inspirada no Orkut”. A partir deles, percebe-se que o enfoque dos textos foi comportamental, ou seja, questões cotidianas e sociais dos usuários da internet. Há uma questão aqui que é importante mencionar: segundo Waltrick, esses temas entram em menor escala na seção de Tecnologia porque questões comportamentais são geralmente assumidas pela editoria de Vida e Cidadania da Gazeta do Povo, e não pela editoria de Economia. Isto evidencia que, embora a Gazeta do Povo não possua uma editoria exclusiva para tecnologia, a cobertura destes temas está diluída dentro do jornal. Inovações tecnológicas apareceram representadas em 12 matérias no período, com 8,39% do total. A perspectiva de inovação aparece em matérias como “Facebook planeja recursos para monitoramento da saúde”, publicada no dia 14 de outubro, ou “Google desenvolve telas para montar TVs gigantes, diz jornal”, datada de 07 de outubro, por exemplo. Ainda que as matérias tratem de empresas elaborando produtos e serviços, o foco da cobertura centra-se na novidade da tecnologia propriamente dita, ao invés de seus bônus e ônus monetários. Bugs foram mencionados seis vezes, ou em 4,19% do total de matérias da Gazeta do Povo no período. Os Bugs são relatados em textos jornalísticos como “Facebook fica inacessível para brasileiros no começo da tarde” ou “Apple soube de falha no iCloud seis meses antes de vazamento, diz jornal”, do dia 30 de setembro. Educação para os Meios e Políticas Sociais Digitais apareceram representadas em três matérias jornalísticas, representando uma fatia de 2,09% do total de matérias coletadas neste veículo. Assim como nos demais jornais analisados, a perspectiva social e de inclusão digital não é uma prioridade temática dessa seção na Gazeta do Povo.

2.  Em entrevista concedida à autora desta pesquisa, em 05 de dezembro de 2014, via Skype.

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A TECNOLOGIA NO CORREIO BRAZILIENSE Foi no ano de 1995 que o jornal Correio Braziliense começou a publicar assuntos ligados à Tecnologia em uma editoria própria: chamava-se “Informática & Telecomunicações”. As primeiras matérias desta seção especializada abordavam temas que iam desde sistemas automatizados de caixas de supermercado até tutorias de como configurar um computador, de acordo com o sub-editor de suplementos do Correio Braziliense, Ataide de Almeida Júnior (2014)3. Com o tempo, as telecomunicações saíram de cena e o caderno passou a chamar-se apenas “Informática”. O Correio Braziliense impresso possui duas editorias que abordam a tecnologia: o caderno de Informática, que sai às terças-feiras e foca em temas como comportamento e lançamentos, e seção Tecnologia, publicada nas segundas, quartas e sextas-feiras, focada em assuntos como robótica e inovações tecnológicas. Já a seção de Tecnologia do site do Correio Braziliense recebe os conteúdos dessas duas editorias do impresso, abarcando ambos os focos temáticos, além de textos provenientes de agências de notícias. A equipe de tecnologia é composta por seis profissionais: um editor, um subeditor, uma repórter e três estagiários – que também se dividem para cuidar dos demais suplementos do jornal (Turismo e Veículos). Unindo os dados coletados nos dois meses, chega-se aos resultados descritos a seguir. O total de tags atribuídas às matérias da editoria de Tecnologia do Correio Braziliense durante dois meses de coleta foi 61. A temática Economia corresponde a 65,57% delas, com 40 tags atribuídas. A partir desses dados, fica visível que o enfoque da seção de Tecnologia do Correio Braziliense são questões ligadas à Economia. Segundo o subeditor da seção, Ataide de Almeida Junior (2014) “Lançamento de produtos e serviços” é um dos eixos temáticos de maior interesse para o veículo – afirmação comprovada pela análise de dados, e que faz sentido quando se considera o público majoritário do veículo, pertencente às classes A e B. Cultura Digital ocupa o segundo lugar entre as temáticas mais recorrentes nesta análise, embora bem menos mencionada do que a primeira colocada: obteve 10 tags no período (16,39%), que subdividem-se em “Comportamento e sociabilidade on-line” com seis tags (9,83%); e “Produção cultural: criação através da tecnologia” com quatro tags (6,55%). O Correio Braziliense também abordou grandes marcos na cultura digital, no período analisado, como em “Orkut sai do ar nesta terça-feira; relembre algumas comunidades”, postada no dia 30 de setembro. Criações artísticas/culturais através da web também ganharam destaque, a exemplo da matéria “Pincéis tecnológicos: artistas usam ferramentas do cotidiano para criar”, publicada em 07 de outubro. De acordo com Almeida Júnior (2014), o comportamento de usuários na internet também é um dos focos temáticos da editoria, afirmação reiterada pela análise de dados desta pesquisa. Direito na web é o terceiro tema mais mencionado, com sete tags (11,47%) no período. Subdivide-se em “Legislação sobre produtos e serviços”, atribuída duas vezes (3,27%); “Uso da internet”, atribuída três vezes (4,91%); e “Crimes cibernéticos”, atribuída duas vezes (3,27%). “Embates legais” não foi encontrada nesta amostra. Mesmo com tímida expressividade, as questões legais também entram no rol de interesse do veículo. 3.  Em entrevista a essa pesquisa, por telefone, no dia 02 de dezembro de 2014.

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Há temas que não apareceram representados pelo Correio Braziliense no período, mas que aparecem nas editorias temáticas de outros jornais analisados. São eles “Compartilhamento & consumo” de produtos culturais, “Embates legais” e “Bugs”.

A TECNOLOGIA NO LINK, DO ESTADÃO O Link, seção de Tecnologia do portal Estadão, surgiu no ano de 2004, mais especificamente no dia 17 de outubro, a partir de uma reformulação editorial do jornal4. Foi o primeiro veículo cross media do Brasil5 (tinha dois cadernos (um no Estado e um no Jornal da Tarde), o conteúdo do site, uma rede social e um programa de rádio na Eldorado AM e FM). De acordo com o jornalista Lucas Pretti (2013)6, que foi repórter do Link entre 2008 e 2009, quando este surgiu, não havia nada parecido nos jornais brasileiros: além da inovação no formato, sua proposta editorial veio para romper com aquilo que era publicado sobre tecnologia no jornal até então. “O caderno de informática era de informática, não era de internet. São coisas diferentes. O de informática falava sobre computador, câmeras, sobre objetos. O Link tratava de games, de internet, de cultura digital”. Em 2010, uma transformação em seu site o expandiu e consolidou como veículo especializado em internet: além da reforma visual, os conteúdos passaram a ser publicados na plataforma aberta Wordpress, e houve a estreia de cinco novos blogs, todos sob o comando de repórteres do Link. Através deles é possível perceber que a linha editorial do veículo caminhava cada vez mais para o viés da cultura digital e inclusão digital, afastando-se do caráter mercadológico comum das editorias de informática. Em 2013 uma nova transformação, desta vez no sentido contrário. Em abril, o Estadão anunciou uma grande reformulação em sua estrutura editorial, que descontinuaria alguns cadernos e acomodaria seus conteúdos em outras seções. Foi o que ocorreu com o Link: de caderno semanal, passou a ser uma seção dentro do caderno de Economia & Negócios. Diminuíram as páginas do impresso (foram de seis para duas), e antigos repórteres e colunistas se desligaram da publicação. Imediatamente foi possível sentir as mudanças editoriais ocasionadas pela vinculação do Link à editoria de Economia: matérias sobre cultura livre, que antes eram marcas facilmente reconhecíveis no Link, diminuiram significativamente (KIKUTI, XAVIER, 2013, p.12). O ex-editor, Alexandre Matias, chegou a publicar um texto de despedida7 em sua coluna, em 14 de abril de 2013, onde diz que o Link não era apenas um caderno, mas um experimento jornalístico, uma referência “não apenas entre os veículos que cobrem tecnologia, mas no jornalismo brasileiro”. Embora não seja mais um caderno impresso, o Link continua tendo suas páginas no jornal, e também seu espaço próprio no site. Ele passou por algumas mudanças gráficas e também editoriais até se constituir como está atualmente: se por um lado seu 4. Texto de anúncio das reformas e da criação do Link disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/ geral,estado-novo-visual-novos-cadernos,20041017p33049. Acesso em 05/01/2015 às 23h45. 5.  Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20041025-40550-nac-73-inf-l11-not/busca/Link. Acesso em 06/01/2015 às 13h13. 6.  Em entrevista a essa pesquisa, via Skype, em dezembro de 2013. 7.  Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/alexandre-matias/2013/04/14/cinco-anos-mudando-a-carado-jornalismo-de-tecnologia/. Acesso em 06/01/2015.

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conteúdo noticioso é vinculado formalmente à editoria de Economia & Negócios, como já mencionado, no site alguns blogs procuram resgatar a veia de cultura digital e livre, como o “Código Aberto”, dedicado a assuntos relacionados a software livre, e a reestreia do “LOL”, sob comando do jornalista Bruno Capelas. Quatro profissionais são responsáveis pelo conteúdo do Link (um editor, dois repórteres e um estagiário). Por estarem atualmente dentro do caderno de Negócios, estes jornalistas também contribuem com matérias e notas para este caderno, embora sempre dentro da área de tecnologia. O atual editor é Camilo Geoffrey da Rocha, que concedeu-nos entrevista para esta pesquisa, por e-mail. Entre os meses de setembro e outubro, foram selecionadas 88 matérias do Link para análise, e para elas foram atribuídas 106 tags. Os temas mais representados foram Economia (47,16%), Cultura Digital (20,75%), Direito na web (19,81%), Educação para os Meios e Políticas Sociais Digitais (5,66%), Inovações Tecnológicas (4,71%) e Bugs (1,88%). O que foi encontrado na amostra é compatível com a descrição do próprio editor sobre os assuntos de interesse do veículo: aplicativos, redes sociais, aparelhos e gadgets, comportamento, negócios, inovação, política ligada à tecnologia, legislação, cultura e entretenimento digital. Entre as campeãs garantidas de audiência, segundo Rocha (2015), estão notícias sobre a marca Apple e seu gadget mais famoso, iPhone; notícias sobre o WhatsApp; matérias de serviço e explicação (por exemplo: “como ver Netflix dos EUA no Brasil”, ou “o que é internet das coisas”, etc.); posts sobre memes e humor (do blog LOL); games; e análises sobre questões de legislação e do consumidor.

A TECNOLOGIA NO TEC, DA FOLHA DE S. PAULO No dia 26 de maio de 2010, surge o suplemento Tec8 na Folha de S. Paulo, para falar sobre assuntos ligados à tecnologia. O Tec surgiu em substituição ao suplemento de Informática, que já era editado pelo jornal desde março de 1983, cujo objetivo era cobrir as áreas de vídeo, áudio, fotografia e computadores. Na chamada de capa, a primeira edição anunciava “os principais lançamentos do setor, a chegada de uma nova tecnologia de televisão ao Brasil e a situação da crescente indústria nacional de microcomputadores9”. Quando passou a se chamar Tec, o suplemento ganhou outro design e novos colaboradores, e embora não tenha sido encontrado nenhum texto formal falando sobre as mudanças, é possível perceber que a linha editorial do antigo Informática e do Tec é a mesma: de acordo com uma sondagem feita para esta pesquisa, os conteúdos encontrados nas últimas edições de Informática e nas primeiras edições do Tec giravam em torno de temáticas semelhantes, como produtos, prestação de serviços e cultura digital. Ele continuou sendo publicado nas quartas-feiras até o dia 23 de novembro de 2010, quando é anunciada sua mudança para as segundas10.

8.  Primeira edição do Tec com este nome, disponível aqui: http://acervo.folha.com.br/fsp/2010/05/26/28/. Acesso em 05/01/2014 às 22h23. 9.  Aqui consta a página inicial do jornal Folha de S. Paulo em que se anuncia a criação do suplemento de Informática: http://acervo.folha.com.br/fsp/1983/03/02/2/. Acesso em 05/01/2015 às 21h04. 10.  Nota da mudança do Tec para as segundas anunciada em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2011/11/23/28/. Acesso em 05/01/2014 às 22h34.

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Em 2013, o Tec sofreu uma diminuição no número de páginas: foi de oito para seis. E em julho de 2014, a maior mudança de todas: o Tec deixou seu status de caderno para virar página temática, acomodada na editoria Mercado. Agora, no impresso, ele é publicado às terças-feiras, com cerca de três páginas. No site da Folha, o Tec continua com um espaço próprio para publicação de assuntos relacionados à tecnologia. Quadrinhos e os colunistas são publicados exclusivamente no site (com exceção de Ronaldo Lemos, que permanece também no impresso). Juntando os dados dos dois meses analisados, chega-se aos seguintes números: o total de matérias analisadas no Tec, em setembro e outubro, foi de 162. Para a análise temática, foram atribuídas 204 tags às matérias, distribuídas nas categorias temáticas elaboradas por este estudo. As tags relacionadas à Economia somam 105, ou 51,47% do total da amostra, seguindo a tendência percebida nos demais jornais analisados de que a Economia é a temática predominante nas seções de tecnologia, aparecendo sempre em mais da metade das matérias. O “Lançamento de produtos e serviços” é responsável por 45 tags (22,05% do total). Chama a atenção a coleta do dia 09 de setembro de 2014, em que mais da metade (nove, de 17) das matérias analisadas foram categorizadas como lançamentos. A coincidência da data da coleta com a semana em que ocorreu o TechCrunch Disrupt, maior evento de start-ups do mundo, pode ter influenciado na quantidade de matérias cujo foco era o lançamento de algum produto ou serviço, embora a incidência desta tag seja alta mesmo em outras semanas, como se verifica na análise. Direito na Web é a segunda temática mais recorrente na análise do Tec durante os meses de setembro e outubro, com 36 tags (ou 17,64%) do total. Mas muito próxima da segunda colocada está a terceira temática mais tratada no Tec, que é Cultura Digital. Ela leva 35 tags, ou 17,15% do total no período analisado. Destas, “comportamento & sociabilidade on-line” é maioria, com 22 tags (ou 10,78% do total). Inovações tecnológicas teve 14 tags no período analisado, correspondendo a 6,86% da amostra. Na sequência, encontramos Educação para os meios e Políticas sociais digitais apareceu de forma tímida na amostra, com 10 tags no total, correspondendo a 4,90%. Já matérias sobre Bugs foram 4 no período, correspondendo a 1,96% do total na amostra.

ANÁLISE GERAL Esta análise geral permite tecer considerações mais detalhadas a respeito da representação temática da tecnologia nas seções analisadas, e ponderar a afinidade desta representação com as concepções de tecnologia trazidas anteriormente. De maneira geral, uma das principais considerações feitas a partir desta análise é que a estrutura das redações (ou seja, quem produz e como produz esses conteúdos) influencia diretamente na composição do material que é publicado. As seções de tecnologia dos jornais brasileiros surgiram em momentos distintos, porém recentes na história do jornalismo no país, e, com o passar dos anos, todas elas apresentaram transformações, assim como suas temáticas. Em geral, cresceram e atingiram o auge alguns anos após seu surgimento, e mais recentemente participaram de um processo de redução de espaço e investimento, atendendo às demandas financeiras de seus jornais. É fundamental perceber que as mudanças nas versões impressas dos

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jornais interferem diretamente no conteúdo publicado pelos sites, que são o objeto desta pesquisa, e por isso é tão importante trazê-las (afinal, todos os veículos analisados tem suas raízes fincadas no modelo impresso). Sobretudo porque, quando existem, as duas versões são produzidas pelos mesmos jornalistas: as redações do impresso e on-line são integradas, seguindo o modelo de fusão iniciado no Brasil pelo Estadão, em 2006. A diminuição de espaço e investimento para as editorias de tecnologia parece ser mesmo uma tendência ocasionada por readaptações editoriais dos jornais, assim como o abrigo de seus conteúdos por editorias de economia – o que reflete tematicamente no material publicado. Dos quatro veículos analisados, apenas um não vincula formalmente a seção de tecnologia a uma editoria de economia: o Correio Braziliense, que continua noticiando a tecnologia em um espaço à parte. Curiosamente, porém, este foi o jornal que mais apresentou conteúdo com enfoque mercadológico na análise temática desta pesquisa: economia atingiu 65,57% de tudo o que foi publicado no Correio durante o período de coleta de dados. Há um direcionamento tácito para esse caminho, e isto nos dá um forte indício sobre “o que é tecnologia” para estes veículos atualmente: a materialização de ideias em produtos comercializáveis, consumíveis pelo público leitor, e também as transações comerciais de empresas do setor. Quando somado a redações enxutas, com poucos profissionais para produzir material jornalístico aprofundado e bem investigado, o resultado é que muita vezes as seções de tecnologia dos jornais brasileiros acabam fazendo o papel de catálogo, de cardápio de novidades a serem degustadas pelos leitores. É preciso dizer que a tônica da economia nas seções de tecnologia já era um resultado esperado, embora antes não se tivesse a dimensão do quanto ela influenciaria no quadro temático construído por este estudo. A incidência de tais notícias econômicas preocupa, mas somente porque a porcentagem é alta (em geral, passa da metade do conteúdo publicado em cada seção, e fica muito acima de qualquer outra temática), e porque os enfoques predominantes são o “lançamento de produtos e serviços” e “mercado”. Tem-se clareza de que a tecnologia é complexa, multifacetada, e a economia é um de seus pilares estruturais. É fundamental que ela esteja ali, presente entre as pautas dos jornais, satisfazendo o público sedento por esta demanda informativa. A crítica é mesmo o desequilíbrio com relação a outros temas também importantes. Até mesmo dentro da economia há desequilíbrio: uma das tags ligadas a ela na pesquisa, “Empreendedorismo”, conquista números modestos: 3,27% de tudo o que foi publicado no Correio Braziliense, 2,83% no Link, 0,98% no Tec, e 2,09% na Gazeta do Povo (até nela, cujo um dos assuntos de interesse é, declaradamente, start-ups). O mesmo pode-se dizer da cultura digital que se faz presente em todas as seções analisadas, principalmente quando se trata de comportamento, sociabilidade, hábitos contemporâneos na web e relações entre usuários, gadgets, aplicativos e sites. As proporções são semelhantes no Correio Braziliense (16,39%) e no Tec (17,15%), mas entre a seção que mais noticia a cultura digital (Link, 20,75%) e a que menos noticia (Gazeta, 10,48%), a proporção quase dobra. Acredita-se que alguns assuntos relacionados à cultura digital não teriam garantia de espaço em outras editorias, como, por exemplo, a produção cultural possibilitada pela tecnologia, o compartilhamento e o consumo de cultura na internet (reconfigurado a partir da web 2.0).

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As temáticas ligadas ao direito na web, noticiadas em escala reduzida nas seções analisadas, mobilizam diretamente questões como os direitos autorais, noção de propriedade (também reconfigurada a partir da web), liberdade e criatividade, e merecem uma atenção a parte nesta análise por dois motivos. O primeiro, e principal deles, é que o ato de noticiar tais temas acenaria fortemente com a lógica sob a qual se respalda conceito de tecnologia considerado mais apropriado para o jornalismo por parte desta pesquisa: a tecnologia focada nas mudanças sociais. Resgatando o que foi dito no tópico sobre Tecnologia e Jornalismo, este conceito ideal dialoga com a definição de Veraszto (et al, 2008, p.78), para o qual a tecnologia é “um conjunto de saberes inerentes ao desenvolvimento e concepção dos instrumentos criados pelo homem através da história para satisfazer suas necessidades e requerimentos pessoais e coletivos” [grifo nosso]. Uma definição ampla, mas que faz sentido com o jornalismo se tais instrumentos representarem efetivas soluções de transformação social, como no conceito de tecnologia social da ANDI (2006). Isso tudo porque é premissa do jornalismo buscar o interesse público, e sua relevância se assegura no exercício do contra-poder. Entre os assuntos de interesse público ligados à tecnologia estão a cultura popular na internet, a cultura do download, do remix (em outros termos, cultura livre), e o desenvolvimento colaborativo e aberto de softwares (ou movimento software livre). Ambos democratizam o processo criativo e estimulam a inclusão digital. O segundo motivo é o fato de tais temas não terem sido encontrados em todos os jornais analisados. Nenhuma matéria sobre compartilhamento e consumo foi achada no Correio Braziliense. Nos outros, a incidência foi pequena: 2,09% na Gazeta, 2,94% no Tec e 1,88% no Link. Tais números evidenciam claramente que não é este o conceito de tecnologia atualmente seguido pelos jornais Estadão, Folha de S. Paulo, Gazeta do Povo e Correio Braziliense, embora houvesse uma expectativa, justificada por este estudo. Tal premissa talvez não seja seguida por ser adversa a outras posições editoriais dos jornais ou ao enfoque mercadológico das seções, mas não é jornalísticamente inviável: existem veículos especializados em tecnologia que se dedicam, em maior ou menor grau, à abordagem e problematização de tais temas, como o website Torrent Freak, a revista Wired, o website Olhar Digital, além de espaços não (predominantemente) jornalísticos como o blog BaixaCultura, o portal Observatório Pirata, o website Overmundo, e alguns fóruns do Reddit. Outros temas relevantes e presentes nas seções analisadas são as inovações tecnológicas, educação para os meios e políticas sociais digitais (outro tema ligado ao conceito de tecnologia defendido por este trabalho, o qual os jornais noticiam em diferentes proporções, ainda que todas pequenas: 5,66% no Link, 4,90% no Tec, 2,09% na Gazeta do Povo e 1,63% no Correio Braziliense), e bugs. Todos estes temas são noticiados pontualmente, não se tendo percebido a formação de uma agenda temática ou de uma preocupação perene nos jornais. Qual é, então, a compreensão de tecnologia utilizada pelos veículos analisados? Resgatando as concepções trazidas nos capítulos anteriores, é possível dizer que a representação da tecnologia nas seções de tecnologia dos jornais brasileiros é um misto entre a instrumentalista - que trata a tecnologia como sendo ferramentas, equipamentos criados para uma diversidade de tarefas -, e a utilitarista – que confere à tecnologia uma visão funcionalista, exaltando sua finalidade e dando menos atenção aos processos envolvidos em sua elaboração.

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CONCLUSÕES Ao término este trabalho, é possível afirmar que a pesquisa encontrou subsídios para compreender e delinear a configuração atual do jornalismo sobre tecnologia no Brasil, a partir de quatro casos. Desta forma, o principal objetivo da pesquisa foi atingido. O jornalismo sobre tecnologia possui uma particularidade, que é temática, voltada mais para o mercado e menos para abordagens sociais e culturais. Não se aproxima de uma expectativa de conceito social usado por este estudo - embora seja possível verificar exemplos de notícias com determinado esforço neste sentido, mas não de forma estrutural, como seria desejável - e segue a lógica das modificações decorrentes das transformações ocorridas nas empresas jornalísticas. Cumpre a busca por um equilíbrio comercial, mas em alguns momentos ignora o verdadeiro papel do jornalismo na sociedade, que vai muito além de simplesmente informar. Suas funções também envolvem contextualizar, resgatar, problematizar e debater assuntos de interesse público, exercendo um papel didático, principalmente quando as pessoas precisam de orientação sobre determinado tema. É importante lembrar que nessa época de abundância informativa e de relativa autonomia do público na busca e compartilhamento de informações, a relevância do jornalismo se sustenta no exercício do contra poder, no questionamento do status quo. Quanto mais sua independência temática for suprimida, e seus recursos forem escassos no que se refere a tempo e pessoal, mais difícil é cumprir esta tarefa nas seções de tecnologia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDI (2006). Desafios da Sustentabilidade: tecnologia social no foco dos jornais brasileiros. Coordenação Vert Vivarta. Pesquisa: Guilherme Canela. Realização: ANDI, Banco do Brasil, Petrobrás. São Paulo: Cortez. KIKUTI, Andressa; XAVIER, Cintia (2013). O impacto da reconfiguração do Estadão no caderno de tecnologia Link e a abordagem da cultura digital. In: Anais do XVI Seminário de Inverno de Estudos em Comunicação: O Jornalismo entre a mediação cidadã e o diálogo com a ciência. Ponta Grossa, UEPG. PINTO, Álvaro Vieira (2005). O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto. POSTMAN, Neil (1994). Tecnopólio: A rendição da cultura à tecnologia. São Paulo: Nobel. VERASZTO, E.V; SILVA, D.; MIRANDA, N.; SIMON, F.O (2008). Tecnologia: Buscando uma definição para o conceito. In: Revista Prisma.com, n.7. Disponível em: http://revistas. ua.pt/index.php/prismacom/article/view/681.

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Os impactos da tecnologia na produção jornalística e a formação do profissional The technology impact on journalism production and the professional training Pa u l a M e l a n i R o c h a 1

Resumo: O processo de produção das notícias vem agregando mais espaços para os repórteres visitarem em busca da apuração de informações. A internet abriu um leque de possibilidades de acesso a diferentes fontes e a rua passou a ser ocupada pelo jornalismo móvel e seus aplicativos de busca. O objetivo da reflexão é olhar para a formação do futuro jornalista com foco nos procedimentos de apuração nesses diferentes espaços e suas possibilidades, sem se limitar às amarras das fontes oficiais. A reflexão enquadra-se na Discussão Temática Estudos do Jornalismo, na tentativa de agregar à linha de trabalho sobre os Impactos das Tecnologias no fazer e no pensar o jornalismo. A metodologia envolve pesquisa bibliográfica sobre produção jornalística, apuração e jornalismo móvel. A análise conta também com relato de experiência em docência e projeto de extensão.

Palavras-Chave: Jornalismo. Produção Jornalística. Tecnologia. Apuração. Formação profissional.

Abstract: The news production process has been adding more spaces for reporters to visit in search of investigating information. The internet has opened up a range of possibilities access to sources and the street became occupied by the mobile journalism and its search applications. The purpose of reflection is to look at the formation of the future journalist focusing on investigation procedures in these different spaces and possibilities, but not limited to the constraints of the official sources. The reflection is part of the Thematic Discussion Journalism Studies, in an attempt to add to the line of work on the Impact of Technology on how and think journalism. The methodology involves a literature search on journalistic production, investigation and mobile journalism. The analysis also has the experience with teaching and extension project.

Keywords: Journalism. Journalistic production. Technology. Investigation. Professional Training.

1.  Professora do Mestrado e da graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Pesquisadora-colaboradora do LabJor/UNICAMP. Pós-doutora em Jornalismo pela Universidade Fernando Pessoa (PT). Coordena o projeto de pesquisa O Conhecimento no Jornalismo (cadastrado no CNPq). [email protected]

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS JORNALISTA CLAUDIO Abramo dizia que o lugar do repórter é na rua. Do período

O

em que ele atuou como jornalista até hoje, parte dos jornais passou por uma fase de apuração de reportagens, preferencialmente por telefone. Os jornalistas apuravam as notícias de dentro da redação. Com a redução dos custos nas redações dos impressos, como meta de políticas de gestão das empresas de comunicação, essa prática acentuou, pois significou o corte de gastos com motoristas e/ou taxis e também o enxugamento de repórteres contratados. Com menos jornalistas produzindo a mesma quantidade de conteúdo para fechar o jornal, trabalhar dentro da redação por telefone, de certa forma, garantia mais agilidade mesmo que comprometendo a qualidade do material. É válido lembrar que no Brasil, o uso dos celulares, sobretudo a partir de 2000, tornou-se um instrumento facilitador para localizar as fontes mesmo de dentro da redação. Atualmente, na sociedade do século XXI, o processo de produção das notícias vem passando por novas transformações, em especial a apuração jornalística, agregando mais espaços para os repórteres visitarem em busca da apuração de informações. Entre os espaços, estão as redes sociais, coletivos, sites de buscas, sites oficiais, bancos de dados, aplicativos de celulares e ainda a rua que passa a ser ocupada pelo jornalismo móvel e seus aplicativos de busca. O processo de investigação e checagem das informações não é mais brando com as possibilidades das novas tecnologias. Ao contrário, esse é justamente um risco que deve ser evitado pelo profissional. O objetivo da reflexão é olhar para a formação do futuro jornalista com foco nos procedimentos de apuração nesses diferentes espaços. Busca apontar a necessidade em transpor para a academia e para a estrutura curricular disciplinas que discutam a apuração, obtenção e checagem dos dados no jornalismo e a sua relevância no processo de produção jornalística. A reflexão enquadra-se na Discussão Temática Estudos do Jornalismo, na tentativa de agregar à linha de trabalho sobre os Impactos das Tecnologias no fazer e no pensar o jornalismo. A metodologia adotada é pesquisa bibliográfica envolvendo processo de produção jornalística, procedimentos de apuração e jornalismo móvel, bem como relato da experiência como professora ministrando disciplinas de redação jornalística e reportagem, durante seis anos, coordenando projeto de extensão de um programa mensal em audiovisual e a realização em três anos seguidos de um jornal produzido em um dia. A análise discute a baixa preocupação por parte dos acadêmicos com a apuração, o desconhecimento dos seus procedimentos e a prevalência da cultura de consultar apenas duas fontes para construir o texto. Os resultados apontam a criação de uma disciplina especifica sobre procedimentos de apuração e a preocupação em compor na grade curricular disciplinas transversais que reiteram apuração como um dos elementos primordiais do exercício do jornalismo.

A APURAÇÃO NO PROCESSO DE PRODUÇÃO JORNALÍSTICA E AS TECNOLOGIAS DIGITAIS Entende-se como processo de produção jornalística desde a seleção da pauta a partir da sua noticiabilidade, passando pela apuração, construção e edição do texto até a publicação (TRAQUINA, 2005). Todo esse processo é norteado por diferentes

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categorias de valores-notícias. Conforme pontua Wolf (1995), há os critérios substantivos presentes na etapa da seleção como notoriedade, proximidade, relevância, novidade, tempo, notabilidade, inesperado, conflito (controvérsia) e infração (escândalo). Há os critérios contextuais, também na seleção, sendo disponibilidade, equilíbrio, visualidade, concorrência e dia noticioso. Segundo o autor, durante a etapa da construção estão os valores-notícia simplificação, amplificação, relevância, personalização, dramatização e consonância. Traquina (2005) considera também os valores-notícia segundo a concepção da empresa jornalística, linha editorial bem como a própria organização jornalística referente à linha de produção. A apuração corresponde aos procedimentos necessários em busca do levantamento de informações por meio de análise de dados e documentos, consultas e entrevistas a fontes primárias e secundárias, pesquisa do tema, observações sobre o ocorrido, o ambiente do acontecimento e os envolvidos, bem como rechecagem do material adquirido, na tentativa de aferir a autenticidade dos dados e de uma melhor apreensão do acontecimento. É interessante na rechecagem confrontar as informações. Pereira Jr. (2006, p.72) exemplifica com a prática que era exercida pelo jornal Washington Posto na tentativa de “dar sentido aos fatos” e encontrar a “unidade”, cabia aos editores “testar cada contradição de versões até não sobrar incongruências”, fazer o check list das afirmações e descartar as que não eram confirmadas por mais de duas fontes. Confrontar as informações é elementar no jornalismo. Caputo (2006) também apregoa a necessidade de confrontar cada informação conquistada pelo jornalista com novos problemas e novas entrevistas. Quanto melhor a apuração e a aplicação desses procedimentos, maior o domínio do jornalista sobre a cobertura realizada e, consequentemente, uma importante etapa superada para garantir uma melhor qualidade do conteúdo veiculado. No entanto, a apuração não ocorre apenas na fase inicial do processo de produção jornalística, ela é contínua, perpassa pela construção e, quando necessário, pela edição do texto. Para Pereira Jr. (2006) seria necessário aplicar uma disciplina de verificação durante toda a rotina produtiva, aplicando antídotos para as incertezas na construção da realidade. O autor defende que a verificação deve ocorrer em três momentos diferentes de uma reportagem - no planejamento da apuração, na revisão do material apurado e na revisão das informações editadas. A observação é um dos procedimentos da apuração pouco explorado pelos jornalistas no exercício da cobertura diária, isto se deve à diminuição das saídas do repórter a campo e também à própria falta de incentivo do profissional que tem que correr para produzir o conteúdo noticioso pressionado por outras demandas. O que não deixa de ser uma falha, pois a presença ou ausência de gestos, cenas, movimentos e ambientes são informações importantes para o entendimento do fato e sua contextualização. São dados que legitimam o contar pelo jornalista. Como pontuam Rocha e Xavier (2013, p.151): “A observação do jornalista deve ser traduzida em dados na construção do texto, não de forma exaustiva e descritiva, mas agregando conteúdo ao tema reportado. O senso apurado de observação capacita o repórter a apreender melhor os elementos que cercam a investigação” (ROCHA; XAVIER, 2013, p. 151). Os procedimentos de apuração são uma forma de tentar apreender o fenômeno e o fato em si e de garantir um maior distanciamento da subjetividade. Não que esta vá

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deixar de estar presente no conteúdo noticioso, mas quanto melhor a apuração mais se aproxima da objetividade, mesmo sem alcançá-la de fato. “O conhecimento total da realidade continua sendo uma utopia, a busca deste é, no entanto, o que nos leva a ir adiante” (SPONHOLZ, 2009, p.13). Nas coberturas diárias sobressaem textos curtos no formato de notícias, com a estrutura da pirâmide invertida, reiterando o legado do “duelo de versões”, ou ainda os dois lados do fato, e preferencialmente dando voz a fontes oficiais. O tamanho do texto final não deve espelhar o esforço de todo o processo apuração para sua construção. Há um trabalho realizado pelo jornalista e, em um segundo momento, pelo editor que está imerso nas entrelinhas do texto. Nesse sentido, Pereira Jr. (2006) reforça que o trabalho do repórter deve ir além de ouvir as duas “versões”, ou os “dois lados” do fato. Para o autor a publicação de versões que se anulam desinforma o leitor e o trabalho tanto do repórter quanto o do editor deve impedir esta prática. “Onde o que é dito por uma fonte é apenas contradito por outra, sem maior checagem” (PEREIRA JR, 2006, p.72). Em contraposição a essa prática das versões, Chaparro (2006) coloca que se o jornalista incorporasse parte dos procedimentos científicos, como método de pesquisa, recorte do objeto, investigação, verificação, aferição, contextualização e profundidade, o seu trabalho seria mais confiável e menos superficial. Groth (2011) já defendia uma metodologia científica aplicada ao exercício do jornalismo diário, tanto nos jornais quanto nas revistas, no desenvolvimento de uma reportagem, passos que o jornalista deveria repetir independente da sociedade e da sua cultura específica. Também na defesa de um procedimento sistematizado, para Sponholz (2009), os jornalistas têm que testar suas suspeitas, ter métodos de investigação, além da percepção individual. São esses procedimentos de apuração que permitem diferenciar o contar jornalístico do senso comum. A produção dessa nova realidade difere do senso comum também porque quando o jornalista conhece a realidade, processa e estrutura os conteúdos vivenciados, ele não o faz somente de acordo com uma perspectiva própria, com base no que pessoalmente já sabe, mas também segundo regras profissionais (Sponholz, 2009 p.108).

A apuração não está na gênese do jornalismo. Ela chega depois, no modelo industrial, quando inicia a ida do repórter ao local onde o fato aconteceu, assim, a apuração nasce junto com a reportagem e com os correspondentes. A partir de 1880, o jornalismo, sobretudo americano, vive essa transição, troca os editoriais agressivos, voltados principalmente à política, para buscar a imparcialidade. Os repórteres passavam a ser “atores no drama do mundo dos jornais” e os editores se preocupavam em publicar retratos imparciais e precisos de realidade (SCHUDSON, 2010, p.80). Isso reflete no cuidado com a produção da notícia, quando os editores passaram a exigir mais objetividade dos repórteres. Como a notícia era mais ou menos “inventada” nos anos 1830, o repórter foi uma invenção social dos anos de 1880 e de 1890. Os primeiros jornais haviam sido equipes de um homem só: um único indivíduo atuava como impressor, agente de publicidade, editor e repórter. Os “correspondentes”, nos jornais do século XVIII e início do século XIX, eram geralmente viajantes ou amigos do editor em portos estrangeiros, que enviavam correspondências para os periódicos de suas cidades-natal. No curso do século XIX, os editores passaram a confiar

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menos nessas fontes informais de notícias e mais nos escritores free-lancers e repóteres contratados, que eram pagos para escrever (Schudson, 2010, p. 81).

Ao longo dos anos, com as transposições dos modos de fazer jornalismo e as próprias transformações da profissão, o processo de apuração se tornou mais complexo e novos caminhos em busca de dados e informações surgiram. O jornalismo investigativo, por exemplo, impulsionou a utilização de análise de documentos na apuração das reportagens, em alguns casos o uso de câmeras escondidas e “disfarce”, assim como o gênero interpretativo motivou a pluralidade de fontes. As novidades passaram a ser agregadas no processo de produção dependendo dos rumos de construção da pauta. A internet trouxe novos avanços com a crescente disponibilização de dados na rede. Downie Jr e Schudson (2009) mostram que a internet pode proporcionar a interatividade com o público, a oferta de recursos multimídia na construção da reportagem e também a possibilidade de encontrar informações e pessoas. Um exemplo apontado pelos autores foi a procura de fontes através do U.S. Forest Service, pelas repórteres Bettina Boxall e Julie Cart do jornal Los Angeles Times, em 2009, utilizando pesquisa no Google, durante a cobertura sobre o aumento do número de incêndios criminosos na Califórnia. “You stumble across documents and sources that you didn’t even know existed and, with a few keystrokes, they are rolling off your computer printer. It has made basic research faster, easier, and richer” (DOWNIE JR; SCHUDSON, 2009, p.13)2. Por outro lado, os jornalistas devem aprender a encontrar os dados disponibilizados na internet e fazer as conexões devidas de acordo com os objetivos da reportagem. Lorenz (2014) vê a necessidade do jornalista ir além do que está visível na rede, desvendar os labirintos da interne e oferecer ao leitor informações úteis para um maior entendimento contextual e crítico. Na economia global de hoje existem conexões invisíveis entre produtos, as pessoas e vocês. A linguagem desta rede são os dados: pequenos pontos de informação que muitas vezes não são relevantes em uma primeira instância, mas que são extraordinariamente importantes quando vistos de ângulo certo (Lorenz, 2014, s/p.).

Não menos importante e em paralelo a esse cenário de mudanças gradativas, encontra-se o desenvolvimento de políticas públicas e demandas sociais fortalecendo a constituição de sociedades democráticas e oferecendo ferramentas úteis para o processo de apuração, como por exemplo, a Lei de acesso a Informação e os Portais de transparência. Os jornalistas também precisam aprender os mecanismos para obter informações via os trâmites da lei de acesso bem como navegar nos portais de transparência. Tudo isso exige capacitação do profissional e conhecimento das estratégias e possibilidades. A tecnologia também propiciou o desenvolvimento do jornalismo móvel que perpassa pelo processo de produção jornalística com inovações na apuração. De acordo com Westlund (2012) a convergência tecnológica entre celulares e plataformas multimídias existe desde a década de 1990, porém a produção e utilização de conteúdos noticiosos bem como o acesso a notícias móveis por parte do público só passa a ocorrer 2.  “Você tropeça em documentos e fontes que você nem sabia que existiam e, com algumas teclas digitadas, eles vão rolando na impressora do seu computador. Ele faz a pesquisa básica mais rápido, mais fácil e mais rica”. (Tradução do autor).

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cotidianamente com o nascimento comercial de dispositivos móveis habilitados para touchscreen, oferecidos com assinaturas fixas para a internet móvel. O autor defende que o celular permite processar tanto a comunicação quanto a informação por meio de áudios, textos, vídeos gráficos e animação. Assim, o celular pode-se caracterizar como um meio de convergência do jornalismo, na medida em que os aplicativos permitem aos usuários estarem em “website em particular” (BRADSHAW, 2014), distribuindo conteúdos informativos em diferentes formatos. O celular mudou a cultura do consumidor de conteúdo informativo. Embora as notícias ainda não ocupem o ranking dos serviços utilizados pelo celular, elas estão na quinta posição. Segundo informações obtidas no curso de Jornalismo Móvel, oferecido no segundo semestre de 2014, pelo Knight Center, os aplicativos mais utilizados pelos usuários brasileiros são os de games com 68% da fatia do mercado, seguidos pelas redes sociais com 67%, mapas, navegação e buscas com 51%, vídeos e filmes com 49%, e os de notícias com 45%. Nesse cenário, empresas jornalísticas de países como EUA, Suíça, Alemanha vem pesquisando aplicativos para auxiliar na divulgação do conteúdo noticioso e também como ferramenta para apuração. No Brasil, um exemplo utilizado pelos jornalistas na busca de fontes é o aplicativo WhatsApp que serve para receber conteúdo dos leitores e para localizar fontes. O jornal carioca Extra inovou na utilização do aplicativo WhatsApp, sendo um dos primeiros jornais brasileiros a utilizá-lo no auxílio de coberturas jornalísticas. A ideia da criação da rede WhatsApp partiu do editor Fábio Gusmão, em 2013, quando o jornalista Guilherme Amado realizava a produção da série de reportagens “Os embaixadores do Narcosul”, publicada a partir de maio de 2014. O repórter contou com a colaboração de jornalistas de diferentes países no processo de investigação e apuração de informações sobre o narcotráfico na América do Sul, envolvendo diferentes países em extensão total de 16 mil quilômetros. A experiência resultou, ainda em 2013, na instalação de uma estação de monitoramento de conteúdo enviado por WhatsApp na redação do Extra sobre as manifestações nas ruas do país, ou seja, institucionalizou a escuta do aplicativo na redação. Em entrevista ao Centro Knight para o Jornalismo nas Américas3, publicada em 24 de junho de 2014, Fábio Gusmão disse que se inspirou na divulgação das manifestações na Primavera Árabe e que o aplicativo aproximou mais o jornal do público. O editor informou que o jornal possui 26 mil usuários cadastrados, um registro de mais de um milhão de mensagens enviadas para a redação, 50 mil fotos, 2 mil vídeos e 1,8 mil áudios. Assim, diferente do rádio, a rede WhatsApp envolve um número alto de usuários e de informações para serem rastreadas, selecionadas e apuradas. Para facilitar o trabalho, o jornal adequou um monitor na visualização do conteúdo (enviado via telefonia móvel), o qual é instrumentalizado por um profissional da redação. Além disso, há dois monitores instalados na redação, para os colegas acompanharem a movimentação. Aplicativos localizadores de outros celulares também já são utilizados em coberturas de rua em busca de fontes que presenciaram o acontecimento e que estão próximas do local. Outra vantagem do celular na apuração é a facilidade de mobilidade para captar áudio e imagem e a viabilidade de enviar o conteúdo para qualquer lugar. Todas essas ferramentas 3.  Disponibilizada no site https://knightcenter.utexas.edu/pt-br/comment/reply/15665. Acessado em 8 de fevereiro de 2015.

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já estão sendo utilizadas tanto em empresas de impressos, como emissoras de rádio e TV e sites. O interessante é também a participação do público agregando conteúdo à apuração.

A APURAÇÃO NA ACADEMIA, RELATO DE EXPERIÊNCIA Desde 2002 a autora trabalha o processo de apuração na academia com alunos que cursam jornalismo. No início em disciplinas como telejornalismo e redação jornalística e em projetos laboratoriais de telejornalismo e impresso. Durante oito anos coordenei o curso de Comunicação Social/Jornalismo em uma faculdade de Ribeirão Preto e, naquele período, inseri na grade curricular, junto com decisão do colegiado de curso, as disciplinas Apuração Jornalística e Jornalismo Investigativo. A partir de 2010, quando ingressei na Universidade Estadual de Ponta Grossa passei a ministrar as disciplinas Redação Jornalística III e Redação Jornalística IV, esta última com menor frequência. Durante dois anos coordenei o jornal laboratório impresso junto com mais um professor do departamento e há cinco anos coordeno o projeto de extensão Programa Ade!, um produto em audiovisual com conteúdo jornalístico. Ainda na disciplina de Redação Jornalística III, em três anos consecutivos desenvolvi, junto com os alunos, a produção de um jornal feito em um dia, denominado O Dia. É importante dizer que dos mais de dez anos que trabalhei no mercado, oito foram em emissoras de televisão nos cargos de assistente de chefia (produtor) e chefe de reportagem que estão diretamente relacionados à apuração jornalística. Com esse breve relato, justifico a importância que atribuo à apuração no processo de produção jornalística. Não tem como reportar um fato sem conhecê-lo e para isso, é necessário apurar, investigar. Desde o ano passado sou associada à ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e tive a oportunidade de participar de dois cursos: Lei de Acesso a Informação: o que jornalistas precisam saber; Introdução ao Jornalismo Móvel. No entanto, a experiência de docência mostra que os alunos não priorizam a apuração na construção do texto jornalístico. Durante os dois primeiros anos as disciplinas enfatizam o texto noticioso, no formato notícia. A disciplina Redação Jornalística III é ministrada no terceiro ano da grade curricular. Os alunos até então entendem que para produzir uma reportagem basta ouvir as duas versões. Eles não se interam antes sobre o assunto, não desenvolvem pauta com informações e possíveis fontes e muito menos pesquisam previamente o tema. Apresentam na reunião de pauta como uma simples ideia. Esse é o primeiro ato de desconstrução de uma prática, o que a experiência tem demonstrado que demanda tempo e cobrança, em média dois a três meses, com aulas semanais e assim mesmo, as pautas apresentam um amontoado de informações da internet, algumas até desconectadas do tema. Se aplicada no exercício da profissão, as informações disponibilizadas podem até confundir e não esclarecer o fato a ser noticiado. No segundo momento, já na etapa da apuração da reportagem, grande parte dos alunos entende como a apuração ouvir os “dois lados” e se um por algum motivo um deles não quis falar ou não foi encontrado, a resposta é considerada dada e replicada no texto como algo resolvido tanto para o aluno enquanto repórter como para quem ele concebe como leitor. Associado a esse aspecto há um tão relevante quanto que é a dependência e defesa do uso de fontes oficiais, como essenciais na apresentação do texto. Na concepção deles, a sustentação do texto são as fontes oficiais. Quebrar esse legado

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demanda meses. Mas os alunos conseguem ao longo do ano trazer mais pluralidade de vozes para o texto e mesmo diferentes fontes para cercar o acontecimento. Pesquisas em site são exercícios desenvolvidos na disciplina, primando pela confiabilidade da busca e análise dos dados encontrados. Nesse sentido, a maior dificuldade é a leitura de dados disponibilizados em sites de institutos de pesquisa como IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Fundação Getúlio Vargas, Fundação Perseu Abramo entre outros. Os alunos têm dificuldade de rastrear os dados, ler e entender as tabelas, selecionar a busca e conectar com a pauta. São aplicados exercícios, que eles cumprem, mas a maioria dos alunos evita aplicar tal conhecimento na produção de conteúdo em atividades laboratoriais. Análise de documentos no auxílio da produção de reportagens é esporádico. Durante quatro anos ministrando a disciplina, isso ocorreu em menos de oito textos. A observação é um procedimento que os alunos adotam e passam a explorar ao longo da produção dos textos em Redação Jornalística III, enriquecendo o conteúdo e principalmente mudando a sua postura no local da apuração, pois passam a observar o ambiente, as pessoas, cenas, gestos, enfim e testam estas informações na construção do texto. A entrevista, embora seja um dos procedimentos mais utilizados pelos alunos, ela traz vícios como não se inteirar do assunto antes de abordar o entrevistado, não ouvir a resposta e formular outra pergunta constituindo um diálogo, não esgotar o conteúdo, aceitar respostas prontas, não confrontar informações e dados, enfim os alunos concebem a entrevista como um procedimento que exige técnicas e conhecimento. Rechecar os dados, é outro procedimento da apuração que passa despercebido pelo alunado. O texto é editado e revisto, mas a preocupação é a coerência e erros de grafia e não a checagem, verificação e confronto das informações e dados apresentados. O interessante é que no exercício prático de desenvolver o jornal em um dia, as fontes oficiais voltaram a ocupar posição privilegiada nos textos, apuração envolvendo documentos foi praticamente nula e a rechecagem não ocorreu. No entanto, percebeu-se nas três experiências, um cuidado em pesquisar antes o tema e mesmo em apresentar as pautas com mais sustentação. A observação foi marcante em um texto sobre os prejuízos que a chuva causou em Ponta Grossa, realizada no exercício de 2013. O texto trazia casas em situação de risco e destelhadas e foi um mérito do aluno ao se deslocar para o local indicado por fontes, observar o cenário do acontecimento e reportá-lo no texto. A experiência no projeto de extensão apresentou percepções similares quanto à rechecagem, uso de documentos e pesquisa de dados. Porém diferente da experiência anterior, no programa audiovisual os alunos não apresentam pautas pré apuradas e sim apenas ideias a serem desenvolvidas. Um prejuízo para a rotina produtiva, pois grande parte cai quando inicia a apuração, simplesmente porque não tem noticiabilidade, com agravante de não pensar a imagem. Também não é unânime por parte dos alunos pesquisar o tema que irá cobrir, mas é válido ressaltar aqui que quando tratou-se de uma entrevista, aí sempre percebeu-se a preocupação em se inteirar do tema e elaborar antes uma pauta de perguntas. Diferente dos exemplos anteriores, no programa não apresenta prevalência de fontes oficiais. Essas praticamente não aparecem em entrevistas, a informação vêm muitas meses no off do aluno.

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Aplicativos de celulares não foram abordados na disciplina e nem no exercício do jornal diário. Já no projeto de extensão, os alunos utilizam o WhatsApp inclusive como grupo de discussão de pautas e questionamentos de dados. Reportagem com auxílio de computador, embora discutida em sala de aula, foi aplicada apenas em duas pautas durante os quatro anos em que ministrei a disciplina. É válido ressaltar que o curso de Jornalismo não oferecia a disciplina Jornalismo Investigativo na grade curricular, parte do conteúdo foi incorporada em Redação Jornalística III por iniciativa do professor. Assim os alunos não tinham conhecimento sobre as técnicas de apuração em computador durante as disciplinas. Outra ressalva é que procedimentos de investigação como reportagens com auxílio de computador, análise de documentos bem como obter informações utilizando a Lei de Acesso a Informações demandam tempo para debruçar-se sobre os dados, analisar, seguir os passos legais no trâmite de acesso a informação, ou seja, são procedimentos complexos que não são apreendidos em um único exercício. A própria dificuldade que os circundam, pela exigência da persistência por parte do repórter em obter a informação e tempo hábil, tornam difíceis de conciliar a prática sem repensar o projeto pedagógico. No ensejo da discussão de uma nova grade curricular concebida a partir das Diretrizes Curriculares para os cursos de Jornalismo, aprovadas em setembro de 2013, a qual fortalece as especificidades da formação em jornalismo, sugeriu-se a criação de uma disciplina sobre apuração jornalística, a qual deveria ser oferecida no primeiro ano do curso. As novas Diretrizes propõem a construção das grades curriculares contemplando seis eixos temáticos: Eixo de formação humanística; Eixo de fundamentação específica; Eixo de fundamentação conceitual; Eixo de formação profissional; Eixo de aplicação processual e Eixo de prática laboratorial. Os seis eixos fortalecem as especificidades da profissão e o conhecimento necessário aos jornalistas para o exercício da profissão. A disciplina proposta com foco em apuração atenderia basicamente os eixos de formação contextual e profissional: Eixo de formação contextual, que tem por objetivo embasar o conhecimento das teorias da comunicação, informação e cibercultura, suas dimensões filosóficas, políticas, psicológicas e sócio-culturais, suas rotinas de produção e processos de recepção, bem como a regulamentação dos sistemas midiáticos, em função do mercado potencial, além dos princípios que regem as áreas conexas. (...)Eixo de formação profissional: que tem por objetivo embasar o conhecimento teórico e prático, familiarizando os estudantes com o universo dos processos de gestão, produção, métodos e técnicas de apuração, redação e edição jornalística, fomentando a investigação dos acontecimentos relatados pelas fontes, bem como a crítica e a prática redacional em língua portuguesa, com os gêneros e os formatos jornalísticos instituídos, as inovações tecnológicas, retóricas e argumentativas. (Marques de Melo et. All., 2009, p. 21).

A ideia é já na formação inicial do futuro profissional apontar a importância da apuração no processo de produção jornalística, conhecer e aplicar seus procedimentos bem como incorporar as inovações do mercado, não como uma ferramenta técnica, mas como as inovações tecnológicas transformaram o processo de busca e apuração da informação. Uma transformação no fazer jornalístico.

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O conteúdo da ementa sugere trazer a definição de pauta, seus requisitos, os procedimentos de apuração jornalística envolvendo pesquisa, observação, busca de sites, base de dados entrevista com fontes primárias e secundárias, documentação e rechecagem. Menciona também práticas de investigação jornalística mais aprofundada, apuração com auxílio de computador explorando os canais da internet além do uso de tecnologia móvel e aplicativos no processo de apuração. A proposta é trazer para a formação do profissional a complexidade do processo de apuração jornalística e seus procedimentos em busca de informações. Com a ressalva de ocorrer logo no início do curso para criar a cultura no alunado de utilizar esse aprendizado ao longo do curso em outras disciplinas práticas, independente do formato (áudio, audiovisual, texto, imagem e animação gráfica) e nos projetos laboratoriais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A reflexão busca chamar a atenção aos cursos de formação em jornalismo na implementação das novas Diretrizes Curriculares em compasso com as transformações da profissão e a complexidade do fazer jornalístico na sociedade atual. O fluxo de informação disponível na sociedade globalizada e a tecnologia digital repercutem na academia propiciando uma reflexão das suas grades curriculares com conteúdos que dialoguem com essa nova conjectura. A experiência em ministrar a disciplina de produção de reportagem durante quatro anos e coordenar o projeto de extensão fez repensar a necessidade de ensinar os procedimentos de apuração, discutir as tecnologias digitais e reiterar a relevância da apuração no processo de produção jornalística, construindo os alicerces logo na formação do aluno. A reflexão apresentada é preliminar embora tenha resultado na criação de uma disciplina específica ela será ministrada, apenas a partir do segundo semestre de 2015. A proposta é observar o retorno por parte dos alunos, verificar como eles irão absorver o conteúdo e aplicá-lo durante o curso. Assim, só daqui a quatro anos será possível aferir se os objetivos da disciplina foram atingidos ou não.

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Análise das competências do jornalista brasileiro frente a alterações provocadas pela inserção das tecnologias da informação e comunicação Analysis of the Brazilian journalist competences facing the changes caused by the insertion of the information and communication technologies D a n i e l a F ava r o G a r r o s s i n i 1 Resumo: O desenvolvimento tecnológico provocou um processo de mudança, em curso tanto no Brasil, quanto no exterior, expressado pela convergência dos meios. Com ênfase em uma investigação sobre o âmbito de exercício profissional do jornalista, partimos do princípio de que a inserção das TICs gerou transformações na produção e organização do trabalho jornalístico, promovendo o desenvolvimento de novas competências na rotina profissional do jornalista brasileiro e de novos fluxos de trabalho. Para tanto, como suporte metodológico foi realizada uma pesquisa de métodos mistos, que levou em conta a triangulação entre pesquisa qualitativa e quantitativa com objetivo de investigar quais são os fatores de mudança que levaram, segundo a percepção do jornalista brasileiro, a alterações nas competências executadas em sua rotina de trabalho. A partir da aplicação de um instrumento de coleta de dados, foram analisados 993 respostas de jornalistas de todo Brasil por meio de análises univariada e multivariada (análise fatorial), utilizadas para identificação do perfil da amostra e das competências exercidas pelo profissional, respectivamente.

Palavras-Chave: Tecnologias da Informação e Comunicação. Jornalismo. Mudanças Estruturais. Rotinas produtivas. Competências.

Abstract: Technological development resulted in a process of ongoing change, as much in Brazil as abroad, expressed by the convergence of means. With an emphasis on researching the scope of professional practice of journalists, we assumed that the inclusion of ICTs generated transformations in the production and organization of journalistic work, promoting the development of new skills in the professional routine of Brazilian journalists and advanced labor flows. In order to achieve that premise, as methodological support we performed a mixed methods research, which took into account the triangulation between qualitative and quantitative research aiming at investigating what are the drivers of change that led, according to Brazilian journalists’ perception, to substantial modifications in the skills required in their routine work. Through the application of an instrument of data collection, 993 responses from journalists 1.  Doutora. Professora adjunto do Departamento de Design , da Universidade de Brasília e coordenadora do Núcleo de Multimídia e Internet (NMI-FT-UNB), laboratório de pesquisa ligado ao Departamento de Engenharia Elétrica - Faculdade de Tecnologia, Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

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all over Brazil were analyzed by univariate and multivariate analysis (factor analysis), used for the identification of the sample´s profile and the competences exerted by the professionals, respectively.

Keywords: Information and Communication Technologies. Journalism. Structural Changes. Productive routines. Competences.

INTRODUÇÃO S TECNOLOGIAS da Informação e Comunicação são entendidas como um conjunto

A

de tecnologias utilizadas na produção, no processamento, no compartilhamento, na distribuição e no armazenamento da informação e podem contribuir com o desenvolvimento de atividades profissionais no mercado de trabalho. O tema da mudança na organização do trabalho não é novo, mas ganhou contornos diferentes nos últimos anos. O aumento na instabilidade ambiental e, o acirramento da competição colocaram a questão da mudança como central para a sobrevivência das organizações (WOOD Jr., 2009). Outros autores, por meio de uma perspectiva mais abrangente, atribuem as mudanças organizacionais rápidas e vertiginosas a transformações na própria estrutura da sociedade. Castells (2003) remete o conceito de mudança a um tipo de alteração ligado a um novo modo de desenvolvimento, o informacionalismo, historicamente moldado pela reestruturação do modo capitalista de produção, característico do final do século XX. Dada a profundidade das alterações na estrutura social em ocorrência, desde o final do século passado, alguns autores como Silva (2001) atribuem este fator a uma mudança de época, e não a uma época de mudanças. Organizações de todos os portes deparam-se com cenários substancialmente mais dinâmicos e que levam em conta um período de adaptação pautado por alterações do ambiente em que estão inseridas (MARCH, 1981).Tal fator tem consequências diretas, não apenas para a produção das notícias, mas para uma audiência que, em muitos casos, prioriza a leitura com urgência e a busca por serviços específicos, como informações sobre o trânsito em determinada localidade ou região. As alterações sugerem que podem existir outras rotas de acesso a uma audiência também em mutação. De acordo com Santos (1997), uma revolução acelerada pelas tecnologias de difusão, graças às quais a notícia se tornou a mais eficaz ferramenta do agir institucional, nos cenários e conflitos da atualidade. Para a análise proposta na presente pesquisa será adotada a definição de Mudança Organizacional como “qualquer transformação de natureza estrutural, estratégica, cultural, tecnológica, humana ou de qualquer outro componente, capaz de gerar impacto em partes ou no conjunto da organização” (WOOD Jr.; CURADO, CAMPOS, 2009, p. 287). No que tange ao jornalismo, inserimos a discussão em um panorama mais amplo,em que é possível afirmar que a estrutura típica de uma redação passará por um processo irreversível de integração de suportes, centrado no atendimento a um tipo de consumo apoiado em uma forte base tecnológica. Este cenário envolve alterações nos papéis, na rotina do profissional e nas competências exercidas em suas práticas laborais. Assim,

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tomamos mudança organizacional como “alterações nos componentes organizacionais - pessoas, trabalho, estrutura formal e cultura, que possam ter consequências relevantes de natureza positiva ou negativa para a eficiência, eficácia e, ou sustentabilidade organizacional” (LIMA, 2003, p. 25). Integrado a um ambiente multiplataforma, com uma produção sistêmica e voltada a um consumo que inclui dispositivos móveis, com foco em diferentes produtos associados e serviços, o jornalista se vê de forma quase que invariável em um contexto de mudança organizacional. Waterman (1987) trata da mudança organizacional como um fator de renovação, voltado à sobrevivência das empresas. As organizações, segundo ele, devem buscar uma convivência “feliz” com a mudança e esta deve fazer parte do cotidiano organizacional. Segundo Drucker (1988), a empresa moderna nasceu da guerra franco-prussiana, a partir de conceitos militares. Sobre este tema, o presente trabalho propõe uma investigação acerca da utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) no ambiente profissional do jornalista brasileiro e como este fator alterou as competências desenvolvidas em sua rotina de trabalho, a partir da percepção dos jornalistas brasileiros que integraram a amostra deste estudo. Por conseguinte, partimos da premissa que novas competências são requeridas em um contexto de mutação provocada pela migração da plataforma impressa para a online e as alterações do impresso para o digital causam mudanças não só na forma de gestão da empresa, como também na organização do trabalho do profissional de jornalismo. Logo, existe um processo importante de mudança em curso catalisado de fora para dentro. É neste contexto que buscamos compreender como as relações entre mercado e o profissional são responsáveis pelo fluxo de alterações. Para isto, utilizar-se-á como objeto de investigação e análise, a percepção do jornalista brasileiro como forma de entendimento do processo de construção de competências no exercício profissional em um contexto de transformação provocada pela migração da plataforma impressa para a online e as alterações causadas não só na forma de gestão da empresa, como também na organização do trabalho do profissional de jornalismo. Nesse contexto, o profissional é estudado à luz de um olhar sobre a mudança organizacional, que segundo Motta e Wood Jr. (2009), reproduz fortemente as necessidades do sistema social em que a organização se insere, e, consequentemente, leva seus participantes a agirem de acordo com as lógicas desta reprodução. Com vistas a uma análise calcada na percepção do profissional, é necessário investigar quais dimensões são levadas em conta por este profissional durante o exercício de sua profissão, quais são as competências por ele desenvolvidas para atuação em um mercado extremamente dinâmico, caracterizado por um movimento crescente, marcado pela oferta de novas possibilidades tecnológicas, responsáveis por ampliar as possibilidades comunicativas e de acesso à informação. Buscamos ampliar a compreensão sobre as competências exercidas pelo jornalista brasileiro em um contexto de inserção das TICs, a partir da percepção dos jornalistas que integraram a amostra desta pesquisa. A ideia é que o estudo possa contribuir também para o estabelecimento de novos caminhos para a formação do ensino superior no Brasil e consequentemente para uma maior inserção destes profissionais no mercado de trabalho.

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1.1 A tecnologia como ampliadora do espectro de atuação do jornalista: o conceito de competência e savoir-faire Competências é um termo que representa a “capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles” (PERRENOUD, 1999. p. 7). Segundo o autor, para enfrentar uma situação da melhor maneira possível, deve-se pôr em ação e em sinergia vários recursos cognitivos complementares, entre os quais estão os conhecimentos. Um exemplo que ilustra bem este conceito é o do futebol, cuja competência do centroavante que imobiliza um contraataque está em desmarcar-se e também em pedir para que lhe passem a bola, em ter cuidado com o impedimento, em antecipar os movimentos da defesa, em imaginar uma estratégia para passar pela defesa, em localizar o árbitro. “Outros tantos esquemas podem ser trabalhados separadamente, no treino, mas um ataque eficaz dependerá da sua orquestração” (PERRENOUD, 1999, p. 24). O autor, para contextualizar o significado do termo, nos apresenta como exemplo o médico, um profissional cujas competências clínicas vão muito além de uma memorização precisa e de uma lembrança sobre anatomia, sintomas típicos, e determinados tipos de patologia. A representação gráfica do conceito de competências em Chiavenato (2010), pode ser visualizado em múltiplos aspectos e afetada pelo ambiente externo o qual este indivíduo está inserido. Os conhecimentos, as habilidades e a atitude aliados ao conceito de julgamento, juntamente com as influências organizacionais, as ambientais e somados ainda às características inatas e adquiridas vai permitir o desenvolvimento das competências do indivíduo. Estas, como mencionado anteriormente, permitirão o acréscimo de valores pessoais e organizacionais. Como mostrado na Figura 1, é possível avaliar o processo em cadeia ao qual Chiavenato (2010) se referiu em sua obra. As competências, segundo o autor, são um dos principais objetos de análise em processos seletivos de empresas por possuírem raízes em diferentes meios. Segundo o autor, o desenvolvimento de competências se apóia em três fatores, os CHAs (capacidades ou conhecimentos, habilidades e atitudes). Deste modo, as competências são designadas como o resultado dos CHAs. Cada um dos elementos do CHA é interdependente, como aponta a Figura 1. Não é possível haver o CHA ou o desenvolvimento de habilidades sem a presença dos três. É preciso que haja a capacidade (conhecimentos), para que se possa fazer algo; a habilidade, para que se saiba como colocar em prática; e a atitude, para que se tenha vontade e motivação para efetuar a ação. O autor complementa a definição dos CHAs pela noção de talento humano, na qual se incluem o conceito de julgamento. Além de cada um dos elementos do CHA, o autor define julgamento como: “saber analisar a situação e o contexto. Significa saber obter dados e informação, ter espírito crítico, julgar os fatos, ponderar com equilíbrio e definir prioridades” (Chiavenato, 2010. p. 52). Sendo as competências uma parte da construção da mentalidade de um indivíduo, as ações que envolvem a assimilação, uso e controle de recursos através da utilização dos CHAs permite que a visibilidade da competência seja percebida. Esse progresso colabora com a edificação de uma identidade profissional apropriada às situações-problemas individuais e coletivas num ambiente corporativo.

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Figura 1. Formação das competências. Fonte: (adaptado pelo autora a partir de CHIAVENATO, 2010. p. 142).

2. METODOLOGIA E RESULTADOS Como forma de atingir os objetivos propostos, foi utilizada um tipo de estruturado de coleta de dados, formado pela construção de uma escala Likert, multi-itens, em que pode ser medida a percepção e atitude do jornalista frente a uma série de situações apresentadas, ou assertivas, formadas por questões afirmativas, asserções propostas, em que os respondentes participantes da amostra declararam com firmeza em que grau concordavam ou discordavam de uma asserção proposta sobre cinco temas, ou dimensões: i) Processos de produção jornalística; ii) Habilidade Crítico-reflexiva; iii) Linguagem e Técnica Discursiva; iv) Habilidades Comportamentais e, v) Desenvolvimento Tecnológico. A esta etapa também coube o tipo de análise proposto à pesquisa quantitativa, que foi definida pela Análise Fatorial, em função da possibilidade de agrupamento dos fatores, de acordo com os blocos de assertivas construídos. Com um enunciado claro do problema, a hipótese levantada se refere à existência de um contexto de mudança propiciado pela inserção das TICs no ambiente organizacional no que tange à percepção sobre alterações no perfil do profissional de jornalismo, a partir de uma percepção interna do setor. A pesquisa quantitativa foi fundamental para observar os fenômenos sob a ótica de um quadro geral de mudança. A esta hipótese são previstas novas competências requeridas em um contexto de mudança provocada pelo desenvolvimento tecnológico, que exerce influência direta no comportamento organizacional, a partir do desenvolvimento de novas competências para o exercício profissional,

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como apontou a amostra de jornalistas brasileiros investigada. Os dados obtidos corroboraram com a hipótese levantada e apontaram para um quadro de mudança em curso, em que o desenvolvimento tecnológico proporcionou novas rotinas de trabalho. Foi de forma a desenhar o processo de mudança em curso e o papel do desenvolvimento tecnológico na formação de novas competências para o jornalista profissional que foi feita esta caracterização do universo profissional, a partir de dimensões que conseguissem responder à questão proposta: o processo de mudança promoveu uma alteração nas habilidades e competências do profissional de jornalismo no Brasil. Neste trabalho a realização do planejamento amostral foi empreendida de forma a atingir o maior número de entrevistados possíveis dentro do período destinado à coleta dos dados, ocorrido entre os dias 08/07/2013 a 18/09/2013. Assim, foram obtidas 1.102 respostas de jornalistas brasileiros que participaram da pesquisa, respondendo à enquete online proposta e que compõem a amostra do presente trabalho. Foram retirados 22 questionários em que os respondentes discordavam em participar ou que a concordância não havia sido assinalada e outros 148 questionários deixados em branco. Para evitar inconsistências, também foram eliminadas 16 respostas preenchidas por estagiários, sem formação superior completa ou por estudantes de jornalismo, sem experiência profissional. A este estoque foram acrescidas 77 respostas de indivíduos que claramente assinalaram exercer dupla função, como por exemplo, repórter e editor. Desta forma, do total de 1.102 respostas obtidas, foram analisadas 993 respostas, sendo que 496 indivíduos chegaram ao final, completando o formulário como um todo e respondendo às questões contidas na escala multi-itens apresentada. Nesse sentido, o presente estudo buscou coletar a maior quantidade possível de informações, restringida por limitações de tempo e recursos financeiros. Diante da grande quantidade de jornalistas no Brasil2, pode-se classificar, em termos estatísticos, a população do estudo como infinita. O cálculo do erro amostral, nessa situação, é definido a partir da expressão:

Fórmula 1. Fórmula para cálculo do erro amostral Fórmula 1. Fórmula para cálculo do erro amostral Fórmula 1.

Fórmula para cálculo do erro amostral

EmEm que:que: • • •



Em que: : erro amostral • : erro amostral : desvio-padrão populacional : valor crítico, determinado a: desvio-padrão partir da distribuição Normal padrão, em função • populacional

de : nível de significância





: valor crítico, determinado a partir da distribuição Normal p de : nível de significância

2.  Mick e Lima (2013) em um trabalho amplo sobre o perfil do jornalista brasileiro e uma definição das características demográficas, políticas e do trabalho jornalístico em 2012, estimam que o total de jornalistas registrados entre 1980 e 2010 foi de 145 mil. Número tomado na pesquisa elaborada pelos autores para a definição da margem de erro e da composição do plano amostral.

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: nível de significância

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Este trabalho irá adotar nível de significância de 5% (α=0,05), o que implica em Z α ⁄ 2 = 1,96, aproximadamente. O desvio-padrão populacional, que é desconhecido, pode ser estimado com base no desvio-padrão amostral. Pode-se, ainda, maximizar esta estimativa, a fim de obter o pior quadro em relação ao erro amostral. O máximo valor que o desvio pode assumir na amostra coletada, devido aos escores atribuídos às alternativas de respostas, é de, aproximadamente, 2. Desta maneira, o erro amostral para os dados obtidos é calculado por:

Portanto,

O resultado indica um erro amostral de 0,175, aproximadamente. Conclui-se que, mesmo maximizando a estimativa do desvio-padrão, o erro amostral é considerado pequeno. Pode-se depreender, diante do exposto, que a amostra coletada é abrangente e suficiente representativa para as análises realizadas. Os jornalistas brasileiros que responderam ao instrumento de coleta de dados e integram a amostra final da pesquisa, composta por 993 respondentes, são uma categoria profissional majoritariamente feminina, composta por 55% de mulheres e 44% homens3 e jovem4.A média de idade dos respondentes é de 37 anos. Com relação à faixa etária, o maior número de respondentes, 349 pessoas, tem entre 26 a 35 anos (35,15% do total), seguido por 24,57% jornalistas com idade entre 36 a 50 anos e 15,91%, com 18 a 25 anos, conforme a Tabela 1, que mostra a distribuição territorial dos respondentes acompanha os critérios de composição do plano amostral, com 32,43% dos jornalistas brasileiros participantes localizados na região Centro-Oeste, seguidos por 31,22% da região Sudeste, 13,19% da região Nordeste, 10,07% da região Norte e 11,88% da região Sul. Tabela 1. Faixas de idade da amostra de jornalistas brasileiros pesquisada. Quantidade

Percentual

De 18 a 25 anos

Faixas de idade

158

15,91%

De 26 a 35 anos

349

35,15%

De 36 a 50 anos

244

24,57%

De 51 a 65 anos

140

14,10%

Mais de 65 anos

11

1,11%

Não Informada

91

9,16%

993

100,00%

Total

Fonte: (Elaboração das autoras).

3. 1% não informou o dado relativo ao sexo no instrumento de coleta de dados. 4. Os dados que apontam a feminilização e a idade da amostra investigada na presente pesquisa corroboram com os resultados apresentados por Mick e Lima (2013). MICK, Jacques; LIMA, Samuel. Perfil do jornalista brasileiro: características demográficas, políticas e do trabalho jornalístico em 2012. Florianópolis: Insular, 2013.

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Análise das competências do jornalista brasileiro frente a alterações provocadas pela inserção das tecnologias da informação e comunicação Daniela Favaro Garrossini

Dentre as funções exercidas, a amostra dos profissionais que participaram da pesquisa é composta por 22,76% que exercem a função de editor; 36,46% são repórteres; 23,97% são assessores e 16,01% responderam atuar em funções distintas das de editor, repórter e assessor, categorizadas acima.

2.1 A produção para multiplataformas como fator determinante para atuação em um mercado permeado pelo desenvolvimento tecnológico A questão da Produção para Multiplataformas, foi dividida em nove variáveis, intituladas: PPJ 02; PPJ 03; PPJ07; PPJ08; LTD 03; DT 12; DT 13; DT 18; DT 20. Este fator representa uma ligação forte com atividades que confirmam um tipo específico de produção que é feita para mais de um suporte, como TV, rádio, jornal e web. O profissional que afirmou concordar com as variáveis incluídas neste bloco apresenta níveis altos de adesão e concordância com este tipo de atividade profissional no âmbito do jornalismo, como a variável PPJ02: “Meu trabalho é direcionado para uma produção multimídia”, conforme mostra o Gráfico 1:

Gráfico 1. Porcentagem de concordância com a variável PPJ02: “Meu trabalho é direcionado para uma produção multimídia”. Fonte: (Elaboração das autoras).

Relacionado a um tipo específico de produção, este fator é primordial para uma análise contemporânea do jornalismo, em que o conceito de jornalismo multimidiático5 forma o cerne central de estudos voltados ao entendimento dos processos que envolvem os meios de produção da informação, as rotinas produtivas e o trabalho do jornalista profissional em um contexto de convergência tecnológica. A variável PPJ08: “Em meu dia-a-dia profissional, tenho que fazer várias atividades, como por exemplo, formular pautas e planejar coberturas, produzir questões e conduzir entrevistas para diferentes plataformas, como web, rádio, TV e jornal” reflete o quadro proposto, em que segundo a percepção da amostra 5.  Este conceito foi publicado em artigo apresentado em coautoria com Fabio Henrique Pereira, da Universidade de Brasília. Vide: PEREIRA, F. H. ; KALUME, Ana Carolina. La concentration multimédia et le nouveau profil du journaliste au brésil. Le cas du groupe Folha de S.Paulo. In: Concentration de la Propriété des médias, changements technologiques et pluralisme de l’ information, 2013, Montréal (Canadá). Colloque Concentration de la Propriété des médias, changements technologiques et pluralisme de l’ information, 2013.

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entrevistada, 30,04% concordam com o fato de que é necessário dominar distintas atividades dentro de uma rotina que envolve uma produção para multiplataformas. Jorge e Pereira (2009, p.2) afirmam que o fenômeno do jornalismo multimídia é representado por uma integração sincrônica e unitária de conteúdos expressados em diversos códigos, principalmente mediante textos, sons e imagens. Os autores mencionam a classificação de Mark Deuze (2004) que afirma que o jornalismo multimídia é produzido em um contexto digital, no qual estão áudio, vídeo e texto, cujo destino é exclusivo à internet.

Gráfico 2. Porcentagem de concordância com a variável PPJ08: “Em meu dia-a-dia profissional, tenho que fazer várias atividades, como por exemplo, formular pautas e planejar coberturas, produzir questões e conduzir entrevistas para diferentes plataformas, como web, rádio, TV e jornal”. Fonte: (Elaboração da autora).

Para a amostra investigada na presente pesquisa, este contexto deve envolver também o domínio de diferentes linguagens voltadas a um tipo de produção que não se apresenta mais de forma segmentada, como apresenta o Gráfico 3. É importante esclarecer que multimídia neste trabalho de pesquisa é abordado no sentido de uma narrativa multimidiática, não devendo ser tomado como sinônimo de multitarefa, mesmo que esta seja uma terminologia tida como sinônimo para muitas empresas jornalísticas. Por outro lado, é igualmente relevante ressaltar que não se pode negar que, política e economicamente, o profissional dedicado às produções multimidiáticas é submetido a uma sobrecarga.

Gráfico 3. Porcentagem de concordância com a variável LTD03: “Consigo dominar a linguagem apropriada às diferentes plataformas, como jornal, rádio, TV e web, já que a produção hoje não é mais segmentada”. Fonte: (Elaboração da autora).

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A variável DT 20: “Ao pensar em minha atuação como jornalista, me considero um profissional multitarefa” apresenta um alto grau de concordância por parte dos profissionais que responderam ao instrumento de coleta de dados. Segundo os respondentes, 46,6% afirmaram concordar que atuam como profissionais multitarefas, como mostra o Gráfico 4, que segue:

Gráfico 4. Porcentagem de concordância com a variável DT 20: “Ao pensar em minha atuação como jornalista, me considero um profissional multitarefa”. Fonte: (Elaboração da autora).

A explicação para a junção de tarefas pode estar em parte nos cortes de gastos, mudança no quadro de funcionários e na união de funções que geram para o profissional, em muitos casos, a obrigatoriedade de atuação e especialização em múltiplas tarefas, como produzir fotografias e produtos audiovisuais que possam acrescentar à informação produzida de forma textual. Em parte, como processo inexorável de uma profissão em mutação, que passa a exigir um tipo de atuação não mais voltado para a produção destinada a um único tipo de plataforma. Do ponto de vista profissional, frequentemente a crítica recai sobre um tipo de atividade ligada diretamente à precarização das condições de trabalho, muitas vezes indistinta de um discurso de mudança inevitável. Multimídia, multiplataforma ou em alguns casos, simplesmente, multitarefa, o profissional que atua em um contexto de migração do meio impresso para o meio digital, insere-se em um contexto de mudança no modelo de negócio das organizações de mídia, indissociado de um aumento em sua carga horária de trabalho e do acumulo de funções, sob o discurso de atuação para múltiplas plataformas. Sobre tais pontos de vista, partimos da premissa de que o modelo de negócio, antes voltado à oferta de um ou dois serviços, hoje encontra na convergência o aumento da oferta e diversificação de produtos mediáticos. Não apenas do ponto de vista da maior capacidade de transmissão, mas financeiro, cultural e comercial, as indústrias jornalísticas trataram de aperfeiçoar o quanto antes sua produção em um contexto de alteração profunda, em que os fluxos informativos multiplicam-se por meio de plataformas surgidas essencialmente com base na convergência tecnológica.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo iniciou-se com um olhar sobre o mercado de trabalho e a contextualização do significado de mudança organizacional que norteou o desenvolvimento desta tese. Um primeiro ponto que chama atenção foi a de que o tema da mudança na organização do trabalho não é novo, mas ganhou contornos diferentes nos últimos anos. O aumento na instabilidade ambiental e, o acirramento da competição colocaram a questão da mudança como central para a sobrevivência das organizações, em um contexto permeado pelo desenvolvimento tecnológico. Tal fator no jornalismo ganha ênfase com o fato de que ao lidar com a mudança organizacional como qualquer transformação de natureza estrutural, estratégica, cultural, tecnológica, humana ou de um outro componente, capaz de gerar impacto em partes ou no conjunto da organização, temos a hipótese de que o exercício do jornalismo no Brasil sofreu alterações pela inserção das TICs e o mesmo ganhou contornos distintos a partir do exercício de novas competências. A gênese de pesquisa empreendida neste trabalho levou em conta um fator determinante para a confirmação da hipótese levantada. Segundo a percepção da amostra investigada, composta por 993 jornalistas brasileiros, sim, há mudança na produção jornalística, sim, há o desenvolvimento de novas competências nas rotinas produtivas do jornalista e sim, há o desenvolvimento de novos fluxos de trabalho a partir da inserção das TICs no ambiente organizacional. Estes fatores são comprovados na análise presente no trabalho, cujos resultados nos mostram que mais de 80% dos jornalistas participantes do estudo perceberam mudanças significativas na profissão e as atribuem à introdução das TICs nas redações. Este percentual de respondentes entende que as TICs alteraram de alguma forma suas rotinas profissionais, pelo desenvolvimento de novas competências e novos fluxos de trabalho, dinamizados pela abertura de novos canais de comunicação, pela utilização de dispositivos móveis nos processos de apuração, comunicação com a equipe e com os superiores e na transmissão da notícia, que foi possível ser empreendida “em tempo real” por meio do dinamismo proporcionado pela utilização das TICs.

REFERÊNCIAS Castells, M. (2003). A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra. Chiavenato, Idalberto. (2010). Gestão de pessoas. Rio de Janeiro: Elesevier. Deuze, M. (2004). What is multimedia journalism? Journalism Studies. Routledge, May 2004. 5(2),139-152. Recuperado em 13 mar. 2012, de: http://convergence.journalism.indiana. edu/media/documents/Convergence/DeuzeMultimedia.JS.pdf Druker, Peter F. (1988).The coming of the new organization. Havard Business Review, Boston, 68 (6), 45-53. Jorge, T. M. &Pereira, F. H. (2009) Jornalismo on-line no Brasil: reflexões sobre perfil do profissional multimídia. Revista Famecos. 40,57-62. March, James G. (1981). Footnotes to organizational change. Administrative Science Quarterly, Ithaca, 26(4), 563-577. Mick, J.; Lima, S. (2013) Perfil do jornalista brasileiro: características demográficas, políticas e do trabalho jornalístico em 2012. Florianópolis: Insular.

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A segunda tela como extensão da televisão digital The second screen as an extension of digital TV T ac i a n a

de

Lima Burgos1

Resumo: Este artigo tem com objetivo analisar as interações sociais que ocorrem nos dispositivos móveis e que configuram o hábito de usar a segunda tela enquanto se assiste televisão. Os resultados mostraram que a audiência conectada estende e amplia na segunda tela sua experiência com a TV. A interação entre receptores e emissores de conteúdo, ou entre a própria audiência tem inovado a experiência dos telespectadores com a televisão. Concluímos que o uso de um dispositivo móvel não substitui a mídia tradicional, pelo contrário, ratifica e complementa. Utilizamos a teoria das Hipermediações de Scolari (2008) associada ao método da etnografia digital e aplicamos no campo empírico do aplicativo Globo, da Rede Globo de Televisão.

Palavras-Chave: Segunda tela. Televisão Digital. Aplicativo Interação. Abstract: This paper analysis the social interactions that occur on mobile devices and that form the habit of using the second screen while watching tv. The results showed that the audience connected extends and expands on the second screen your experience with TV. The interaction with receptors and content issuers, or between the audience itself has innovated the viewer’s experience with television. We conclude that the use of a mobile device does not replace traditional media, on the contrary, confirms and complements. We used the theory of Hipermediations of Scolari (2008) associated with the method of digital ethnography and applied in the empirical field Globo app, of Rede Globo de Televisão.

Keywords: The second screen. Digital Television. Application. Interaction.

INTRODUÇÃO CRESCENTE POPULARIZAÇÃO e apropriação das tecnologias digitais, especial-

A

mente da internet, tem favorecido a participação do telespectador no processo de produção de conteúdo pelo fato de que ele não mais apenas recebe, mas também compartilha, assim como produz e critica conteúdo midiático num processo de interação em tempo real. Este hábito, proporcionado pela troca de informações entre telespectadores, potencializado pelas mídias digitais, enseja novas estratégias de retenção de público, e, por conseguinte, novos produtos midiáticos. “Os novos consumidores são mais conectados socialmente. Se o trabalho de consumidores de mídia já foi silencioso 1.  Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social da UFRN e membro docente permanente do Programa de Pós - Graduação em Estudos da Mídia, PPGEM/UFRN, [email protected].

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e invisível, os novos consumidores são agora barulhentos e públicos” (JENKINS, 2009, p.47), um comportamento que para Lévy (1999, p.11) “é resultado de um movimento internacional de jovens ávidos para experimentar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as mídias clássicas nos propõem”. Segundo o autor, cabe aos atuais produtores de conteúdo explorar as possibilidades e os recursos que surgem nos diversos campos, entre eles, o econômico, o político, o cultural e o humano. Sem alternativa, a televisão da era digital tenta adaptar-se aos hábitos da audiência conectada e acompanhar o ritmo das transformações. Essas novas práticas culturais se configuram no ciberespaço por meio das mídias digitais interativas. Lemos (1997, p. 2) afirma que “podemos dizer que os novos media digitais vão proporcionar uma nova “qualidade” de interação, ou o que chamamos hoje de “interatividade”: uma interação técnica de tipo “eletrônico-digital””, ou seja, uma ação dialógica entre homem e máquina. Uma nova forma de relação que envolve, especialmente, a televisão. Nesta fase de convergência da mídia tradicional com os novos meios, Gosciola (2013) destaca que é fundamental absorver o processo da transmidiação, ou seja, a narrativa adotada para as novas mídias em que uma história é dividida em várias partes e distribuída para plataformas mais adequadas ao seu objetivo, sem ser essencial para a compreensão de nenhuma delas. Segundo o autor, as estratégias de mídia pouco progridem em comparação aos meios digitais convergentes porque estes estão em rede, são portáteis, ubíquos e pervasivos. A cultura participativa fomentada no ciberespaço potencializa a transmidiação porque tudo está interconectado e as atividades cotidianas incorporadas à rede. “Penso que as narrativas vão se permeando a partir da evolução dos recursos e procedimentos de comunicação, promovida principalmente pela convergência e miniaturização das mídias” (GOSCIOLA, 2013, p. 285). Para Immacolata e Gomes (2014, p. 260) o objetivo da narrativa transmídia “é criar uma experiência de entretenimento unificada e coordenada, ampliando a narração ou agregando novos detalhes ao que já é conhecido”. A televisão digital brasileira se insere nesse contexto adicionando à exibição da sua programação aplicativos para interação, tais como: Aplicativo Globo, BBB15, Medida Certa, entre outros. Tais aplicativos, instalados em smartphones ou tablets interligam a navegação na internet com o conteúdo televisivo e passam a atuar como segunda tela. Uma conjunção que amplia a participação e interação dos telespectadores com o conteúdo televisivo. Nesta pesquisa, foi verificado o empenho em estender a transmissão dos conteúdos televisivos para a plataforma virtual e que a narrativa transmídia foi essencial na produção e distribuição do conteúdo, além da tentativa de fidelizar os espectadores que estão em rede, navegando na internet por influência de conteúdo televisivo. Segundo Scolari (2008) Não só muda o processo de produção: o produto também é diferente. As hipermediações se caracterizam por gerar metaprodutos que combinam linguagens e meios tradicionais dentro de um formato interativo. A hipertextualidade, a multimedialidade e a interatividade são alguns dos traços distintivos desta produção (Scolari, 2008, p 287. Tradução nossa). 2 2.  Pero no sólo cambia el proceso de producción: el producto también es diferente. Las hipermediaciones se aracterizan por generar metaproductos que combinan los lenguajes y medios tradicionales dentro de un formato interactivo. La hipertextualidad, la multimedialidad y la interactividad son algunos de los rasgos distintivos de esta producción (Scolari, 2008, p.287).

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A teoria das Hipermediações de Scolari (2008) nos traz a base para tratar da comunicação digital interativa e o atual ecossistema de meios. De acordo com a teoria, a distribuição muitos a muitos está transformando o principal e tradicional modelo de distribuição da indústria audiovisual, o sistema broadcasting. Desde que a comunicação se tornou interativa e multimídia as pessoas criaram novas rotinas produtivas mantendo o usuário/consumidor em constante atuação, colaboração, criação e compartilhamento de conteúdo e ideias. Neste sentido, o presente artigo visa analisar como ocorrem as interações firmadas entre os conteúdos veiculados pela televisão digital brasileira e os usuários de aplicativos móveis de programas de TV, mais especificamente entre os utilizadores do Aplicativo Globo, da Rede Globo de Televisão, durante as transmissões dos jogos da copa do mundo, de 2014, tendo em vista a aplicação do conceito de segunda tela. Como método, empregamos a Etnografia Digital associada à técnica da observação não participante. Este artigo faz parte da pesquisa de mestrado em andamento intitulada A segunda tela como extensão da televisão digital: uma reconfiguração do hábito de ver TV, a qual integra o Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia, da UFRN, Brasil, na linha produção de sentido.

UMA NOVA FORMA DE VER TV O já habitual consumo de conteúdo na internet, principalmente por parte do público jovem, desencadeou uma tendência verificada nas últimas pesquisas: é crescente o uso de duas mídias simultaneamente. De acordo com Immacolata e Gomez (2014), graças à expansão dos serviços de banda larga e tecnologia 3G, além dos pacotes de dados ofertados pelas operadoras de telefonia móvel, em 2013, o Brasil tinha mais de 102 milhões de usuários de internet, destes, 43 milhões estavam on-line via dispositivos móveis. Ainda, segundo os autores, 60 milhões de pessoas, em média, acessam conteúdos televisivos via internet. Hábito que tem sido sempre mais incentivado pela indústria audiovisual como estratégia para reter a audiência que migrava para a internet. O consumo simultâneo de mídias, sendo consumo aqui considerado como apreensão tangível e intangível de ideias e produtos, especialmente os da grade de programação televisiva, prova o que vários teóricos, tais como Scolari (2008), Cannito (2010) e Jenkins (2009) haviam previsto: os meios de comunicação tradicionais não estão sendo substituídos, mas aprimorados, reprogramados para convergir com outras tecnologias. Diante deste cenário, convém refletir Como a difusão de novas práticas midiáticas interativas (como navegar na internet, viver em Second Life, ou jogar videogame) afetam os meios tradicionais. Esta experiência de fruição hipertextual tem construído um tipo de leitor acostumado à interatividade e às redes, um usuário expert em textualidades fragmentadas com grande capacidade de adaptação a novos meios de interação. Os meios de comunicação estão tendo que adaptar-se a estes novos espectadores. Isso não significa, convém repetir, que vão desaparecer as formas televisivas anteriores, senão que passa para um segundo plano ou se combinam com as novas para dar lugar a formatos híbridos (Scolari, 2008, p. 5, tradução nossa).3 3.  Cómo afecta la difusión de nuevas prácticas mediáticas interactivas (como navegar en la web, vivir en

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Esta cultura digital junto às práticas midiáticas interativas deu origem a um hábito popularmente denominado segunda tela. O termo, que não tem autoria definida na literatura acadêmica, se convencionou utilizar quando o telespectador faz uso de um dispositivo eletrônico móvel, como smartphone ou tablet, enquanto assiste à primeira tela, ou tela principal, que neste estudo é a da TV. Cannata (2014) reforça que segunda tela é quando a navegação na internet é direcionada por conteúdo televisivo. Considerar, portanto, o smartphone a segunda tela, significa dizer que, naquele momento, a navegação feita pelo usuário nesse dispositivo sofreu a influência ou a orientação, intencional ou não, do conteúdo exibido na primeira tela, no caso, a televisão. Portanto, a definição de primeira ou segunda tela diz sobre a atenção inicial e o foco de concentração do usuário no momento que dispõe de duas telas. Se a televisão não exercer qualquer influência sobre os rumos da navegação na rede, a experiência não é de segunda tela (Cannata, 2014, p. 75).

Esta conjuntura exige pensar as formas de consumo de conteúdo midiático, especialmente no que concerne às relações do público com a televisão mediante a convergência digital. Nesse sentido Braga (2012) exorta que as interações sociais são o lugar de ocorrência da comunicação. Corroborando este pensamento Martín-Barbero (2001) sugere investigar as interações comunicativas culturais, ele acrescenta que “a recepção não é apenas uma etapa do processo de comunicação. É um lugar novo, de onde devemos repensar os estudos e a pesquisa de comunicação” (SOUSA, 2002, p. 39). Estes conceitos embasam nossa fundamentação teórica sobre a análise das interações no ambiente de mídias digitais. Partimos do pressuposto de que é por meio da tela de dispositivos móveis que o telespectador conectado está interagindo com conteúdo televisivo e com outros atores sociais.

METODOLOGIA O campo empírico para análise das interações sociais em dispositivos móveis é o Aplicativo Globo, da Rede Globo de Televisão. A pesquisa foi realizada de 12 de junho e 13 de julho, período de realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Com o objetivo de diagnosticar como ocorrem as interações na referida comunidade virtual, foi utilizado como método a Etnografia Digital associada à técnica da observação não participante, que traz subsídios para refletir sobre as interações que ocorrem entre a audiência conectada e os produtores de conteúdo audiovisual. “Uma vez que pensemos o ciberespaço como um lugar onde as pessoas fazem coisas, nós podemos começar a estudar exatamente o que é que elas fazem e por que, nos seus termos, elas o fazem” (HINE, 2000, p. 21). Seguindo este conceito pretende-se descobrir como estão sendo exploradas as possibilidades interacionais entre audiência online e conteúdo televisivo disponibilizado por meio de aplicativos móveis, tendo em conta a interatividade e o modelo de TV Digital no Brasil. Enquanto ocorriam as transmissões dos jogos de futebol second life, o videojugar) a los médios tradicionales. Esta experiência de fruición hipertextual ha construido un tipo lector acostumbrado a la interactividad y las redes, un usuário experto en textualidades fragmentadas con gran capacidade de adaptción a nuevos entornos de interacción. Los medios de comunicación han debido adaptarse a estos nuevos espectadores. Esto no significa, conviene repetirlo, que desaparezcan las formas televisivas anteriores sino que pasan a un segundo plano o se combinam con las nuevas para dar lugar a formatos híbridos (Scolari, 2008, p. 5).

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os dados eram coletados, a partir de um smartphone Samsung Galaxi S4 e por um Iphone 4S, em forma de print da tela do app. Capturamos textos, vídeos e imagens dos chats, comentários, palpites, enquetes, quizes e seus resultados. As observações ocorreram duas horas por dia (o tempo de duração das partidas de futebol) e foram anotadas em diário de bordo. Nosso conceito de aplicativos móveis como segunda tela segue a definição de Frederick e Lal (2011) que explicam que aplicativos são programas (softwares) que auxiliam seus usuários no desempenho de tarefas específicas. Outra definição diz que aplicativo é o “conjunto de estratégias de expansão da trama ficcional desenvolvidas para plataformas como Blackberry, Android, IPhone, IpodTouch e Ipads por meio das quais são disponibilizados conteúdos da grade de programação das emissoras (mobile TV)”, (IMMACOLATA;GOMEZ, 2014, p.83).

APLICATIVOS PARA SEGUNDA TELA X TV DIGITAL Com frequência, novos produtos midiáticos, autointitulados interativos, são lançados com a finalidade de estreitar o laço social com o público. Neste sentido, os aplicativos têm sido bastante difundidos com a pretensão de expandir conteúdo televisivo para outras plataformas permitindo interação entre receptores e emissores de conteúdo, e entre a própria audiência. Praticamente todas as emissoras de TV possuem aplicativos, colaborativos e repositórios de conteúdos, específicos para os diversos programas das suas grades, onde há persistentes convites à participação via segunda tela com incentivos a fazer download dos apps. O objetivo quase sempre é reter a audiência imergindo o telespectador no ambiente do programa, seja jornalístico, de entretenimento ou esportivo, como acontece nos campeonatos de futebol exibidos pelas emissoras de tv Band e Globo, por exemplo. Esta prática é uma tendência prevista há alguns anos pelos teóricos de comunicação, tais como Flusser (2008) e Scolari (2008). Desde o momento em que os nativos digitais – uma geração crescida em torno de interações digitais – desenvolveram novas competências perceptivas e cognitivas (e, como bem apontaria McLuhan, destruído outras) a partir de suas experiências hipertextuais, os meios tradicionais devem adaptar seu discurso a estes novos espectadores. Não é o mesmo conquistar uma audiência formada no rádio, no impresso ou na mesma televisão que produzir para novas gerações com competências interpretativas geradas em experiências hipertextuais como a navegação na web, o uso de software ou os videogames (Scolari, 2008, p.2, tradução nossa).4

Contudo, o modelo de negócios prevalecente entre as emissoras de televisão no Brasil não prioriza os aspectos interativos da TV digital. O modelo japonês de TV digital adotado no Brasil desde 2006 prevê um sistema que favorece a inclusão digital e o 4.  Desde el momento em que los nativos digitales – uma generación crecida entornos digitales interactivoshan desarollado nuevas competencias perceptivas e cognitivas (y, como bien apuntaría McLuhan, han narcotizado otras) a partir de sus experiencias hipertextuales, los medios tradicionales deben adaptar su discurso a estos nuevos espectadores. No es lo mismo conquistar uma audiencia formada em la radio, la prensa o en la misma televisión que producir programas para nuevas generaciones com competencias interpretativas generadas en experiencias hipertextuales como la navegación en la web, el uso del software o los videojuegos (Scolari, 2008, p.2).

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acesso à internet, além da convergência das tecnologias de comunicação. Porém, Não há investimentos em programas informativos interativos. Prevalece o temor da possibilidade de a TV digital provocar queda de audiência e que isso venha a impactar o mercado publicitário, devido ao aumento da oferta de canais, da multiprogramação, e ainda pela oferta de serviços audiovisuais gratuitos. Schlitter (2011, p. 121), alerta que “a interatividade na TV deve permear todos os aspectos da experiência televisiva na era digital, mas o que vemos é a repetição do mesmo modelo funcional, catalogado e hierárquico”. Consequência desta postura da indústria audiovisual brasileira é que as tecnologias que estão sendo produzidas têm dado preferência à produção e distribuição de conteúdos já estabelecidos pelas emissoras, de forma a não ameaçar o mercado já consolidado. As construções discursivas e os programas com novos formatos têm se capilarizado em subprodutos da televisão na internet. Um exemplo é o programa jornalístico Globo Esporte. As ferramentas interativas deste programa com o público e entre o público são o site Globoesporte.com e o aplicativo Globo, desenvolvido pela Rede Globo para ser acessado via Tablets e Smartphones, e não pela TV digital. Percebemos, com isto, que a interatividade na TV digital é programada para funcionar como internet e que falta uma linguagem específica, própria para ela. Segundo Schlitter (2011, p. 19) “do ponto de vista do consumidor as mudanças têm sido mais evolucionárias do que revolucionárias”. O resultado é uma TV digital reativa e não interativa. Em sua dissertação de mestrado, Canatta (2014) observa Embora a televisão digital tenha mudado a realidade analógica ao oferecer novas possibilidades de interação, como o acesso permanente a conteúdos extras ou a consulta à grade de programação, e na combinação com a internet permita a navegação e a interação nos sites de rede social na própria tela da TV, acredita-se que a conversa em torno da televisão seguirá acontecendo em outras telas. A pouca usabilidade do controle remoto para aplicações interativas, a inexistência de um canal de retorno plenamente estabelecido para a solução de interatividade no sistema brasileiro de televisão digital e, principalmente, o fato da tela da TV ser coletiva e compartilhada por todos que dividem o mesmo ambiente, enquanto os smartphones e tablets possuem telas individuais, são fatores que colaboram para esta característica. Por outro lado, a popularização de dispositivos móveis com acesso a internet leva cada vez mais a conversa para fora do ambiente da televisão (Canatta, 2014, p. 64).

Desta forma, a segunda tela vai se consolidando como alternativa ao modelo tradicional de TV, tendo em conta que a TV Digital ainda não se estabeleceu com todos os recursos que pode oferecer a audiência conectada.

Aplicativo Globo O aplicativo Globo funcionava como uma rede social, em que as pessoas comentam, criticam e discutem com outros interagentes interessados no mesmo conteúdo. Funcionava também como repositório de informações com notícias atuais, históricas e curiosidades sobre os jogos. Para ter acesso ao app era necessário fazer o download a

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partir do endereço http://app.globoesporte.globo.com/aplicativoglobo/. Dentro do aplicativo, o torcedor tinha a possibilidade de dar palpites sobre lances do jogo (Figura 1), participar de quiz (Figura 2) e enquetes em tempo real (Figura 3), conversar com outros torcedores (Figura 4), além de obter informações adicionais sobre o jogo, como escalação (Figura 5), estatísticas, replays dos melhores momentos (Figura 6) e assistir às jogadas por outro ângulo (Figura 7).

Figura 1. Palpite sobre lances

Figura 2. Quiz

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Figura 3. Enquete.

Figura 4. Bate papo.

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Figura 5. Escalação.

Figura 6. Replay dos melhores momentos.

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Figura 7. Outros ângulos.

ANÁLISE DO APLICATIVO GLOBO COMO SEGUNDA TELA Durante o Mundial de 2014 realizado no Brasil, a Rede Globo de Televisão utilizou o aplicativo Globo como extensão das transmissões esportivas. A interação se dava somente durante as transmissões dos jogos de futebol pela emissora, deixando o app de funcionar no restante dos dias e horários que não havia jogo. Ao iniciar a cobertura esportiva das partidas, os narradores da emissora convidavam os telespectadores a baixar o aplicativo disponível no site do programa Globo Esporte para os sistemas Android e IOS. Durante as transmissões dos jogos o aplicativo alcançou a marca de 1 milhão de downloads. O hábito de usar a segunda tela era reforçado continuamente durante as transmissões televisivas dos jogos, pois ao mesmo tempo em que o telespectador assistia TV era levado a manter atenção sobre que acontecia no dispositivo móvel, devido às constantes atualizações e novidades no software. As interações sociais dentro do aplicativo Globo durante a transmissões dos jogos da Copa do Mundo de 2014 envolveram pessoas dos mais diversos estados federativos brasileiros. O volume de conversas no chat bate papo eram extensos ao ponto de se tornar impossível acompanhar. Quem participava das enquetes online e respondia aos quizzes ia automaticamente para o ranking (Figura 8) do aplicativo que concedia como premiação uma visita a Central da Copa, na rede Globo de Televisão a quem acumulasse a maior pontuação. Segundo a Teoria das Hipermediações de Scolari (2008) as características da televisão da era digital, denominada pelo autor de hipertelevisão, são a convergência de linguagens e meios em uma única mídia, além da fragmentação do relato na tela, o ritmo acelerado, e o desenvolvimento de estruturas narrativas cada vez mais complexas, entre elas a transmídia. O estudo das interações sociais no aplicativo de segunda tela denominado Globo ratifica as constatações do autor no momento em que temos um software desenvolvido para dispositivos móveis imergindo o espectador no cenário de um estádio de futebol, simulando as câmeras da televisão, oferecendo ângulos de visualização de lances diferentes dos oferecidos pela TV, possibilitando conversar online sobre o conteúdo exibido nas duas plataformas, mas que ao mesmo tempo só existe em função do que é transmitido na TV.

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Figura 8. Ranking.

RESULTADOS ALCANÇADOS Do ponto de vista da audiência, percebemos que o telespectador observado nesta pesquisa estende para a internet e amplia na rede sua relação com a televisão. As análises dos dados observados mostram que a interação entre receptores e emissores de conteúdo, ou entre a própria audiência por meio da segunda tela tem inovado a experiência dos telespectadores com a televisão e que o uso de um dispositivo móvel não substitui a mídia tradicional, pelo contrário, ratifica e complementa. Observamos ainda que os usuários do aplicativo Globo efetuaram engajamentos, participaram de jogos, interagiram discursivamente e aproveitaram tudo o que foi disponibilizado pelo app. A nosso ver, as interações sociais no app Globo acontecem de forma a tornar a segunda tela uma extensão da televisão sempre conectada a internet. Entretanto, também percebemos que a interação via app Globo ainda é incipiente devido à sua natureza de controle de conteúdo e à limitação de trocas simbólicas disponibilizadas no software. Toda a interatividade é limitada a votação em modelo de sim ou não, ou escolha entre três opções disponíveis, e chat. Mas a despeito de tudo isso, a possibilidade de interagir com telespectadores de locais diversos e com os produtores de conteúdo audiovisual via dispositivos móveis enquanto se assiste ao conteúdo televisivo cria uma experiência jamais vivenciada pela audiência da televisão brasileira, e traz novamente a TV para o centro das discussões acadêmico-científicas.

REFERÊNCIAS Braga, J. L. (2012). Interação como contexto da comunicação. Apresentado no GT Epistemologia da Comunicação, no XXI Encontro Anual da Compós. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2012. Disponível em: http://www.compos.org.br/biblioteca.php Canatta, F. (2014). TV e Segunda Tela: uma análise do horário nobre no Twitter. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social, PUCRS.

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Porto Alegre. Recuperado em 19 de março, 2015. http://repositorio.pucrs.br/dspace/ handle/10923/5648 Cannito, N. G. (2010). A televisão na era digital: interatividade, convergência e novos modelos de negócio. São Paulo: Summus. Flusser, V. (2008). O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Anablume. Frederick, G. R & Lal, R. (2011). Dominando o desenvolvimento web para smartphone. 1. ed. Rio de Janeiro: Alta Books. Gosciola, V. (2013). Transmidiação: formas narrativas em novas mídias. Fonseca, Journal of comunication - Monográfico 2, pp. 280-295. Hine, C. (2000).Virtual Ethnography. London: SAGE Publications. Immacolata, M. & Gómez, O. (2014). Estratégias de produção transmídia na ficção televisiva: Anuário Obitel 2014. Porto Alegre: Sulina. Jenkins, H. (2009). Cultura da Convergência. Tradução Susana Alexandria. São Paulo: Aleph, 2ª edição. Lemos, A. (1997). Anjos interativos e retribalização do mundo: sobre interatividade e interfaces digitais. Tendências XXI, Lisboa. Lévy, P. (1999). Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34. Martín-Barbero, J. (2001). Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2ª ed. Rio de janeiro: Editora UFRJ. Scolari, C. A. (2008). Hipermediaciones: Elementos para una teoria de La Comunicación Digital Interactiva. Gedisa. Scolari, C. A. (2008). Hacia la hipertelevisión. Los primeros síntomas de una nueva configuración del dispositivo televisivo. Revista Académica de la Federación Latinoamericana de Facultades de Comunicación social. Diálogos de La Comunicación, Nº 77, Julio, deciembre. Disponível em: http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2694422.pdf Schlitter, J. P. A. (2011). TV Digital Interativa: Convergência das mídias e Interfaces do usuário. São Paulo: Blucher. Sousa, M. W. de (Org.) (2002). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense.

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Velocidade, apuração e credibilidade: provocações e reflexões acerca da prática jornalística na internet Speed, enquiry and credibility: provocations and reflection about the journalistic practice on the internet Luis Fernando A ssunção 1 K a r l a Ca ldas Eh r enberg2 \ Resumo: O imperativo da velocidade na atual sociedade é tema de estudos em diferentes áreas de investigação. Característica básica dos processos comunicacionais realizados por meio da internet, a velocidade não apenas se torna condição de existência como se comporta como elemento influenciador na produção dos conteúdos digitais disponíveis na rede. Refletir sobre a sua influência na prática jornalística é o objetivo principal desse artigo, que se utiliza de diferentes autores que discorrem sobre o universo digital e sobre o fazer jornalístico, para garantir o suporte acadêmico necessário a essa reflexão. Por meio de levantamento bibliográfico, esse artigo de caráter teórico busca provocar no leitor uma inquietação sobre a relação entre velocidade, apuração e credibilidade do jornalismo no mundo da internet.

Palavras-chave: jornalismo, internet, webjornalismo, valores-notícia, jornalismo de tempo real

Summary: The imperative of the velocity in the today’s society it is subject of studies in different areas of investigation. The velocity is the basic characteristic of the communications process performed through the Internet, and not only becomes a condition of existence how it behaves as an influential element in the production of digital content available on the web. Reflect on their influence on journalistic practice is the main objective of this article, which is used of different authors who talks about the digital universe and about the practical journalism, to ensure the academic support necessary to this reflection. Through bibliographic research, this article of the theoretical character seek to provoke in the reader a concern about the relationship between velocity, investigation and credibility of journalism in the internet world.

Keywords: journalism, internet, web journalism, news values, real-time journalism

1.  Doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos e professor do curso de Jornalismo do Unasp – EC. [email protected]. 2.  Doutoranda do PósCom da Umesp, bolsista do CNPQ, e professora dos cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda e RTV no Unasp-EC. [email protected].

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INTRODUÇÃO S AVANÇOS tecnológicos sempre acompanharam o desenvolvimento da vida

O

humana. Desde a metade do século passado, os sistemas digitalizados tornaram-se parte integrante da vida social, não apenas influenciando-a mas, principalmente, constituindo-a. A maneira da sociedade se organizar, se relacionar, se comunicar e produzir passou a ser regida pela digitalização de processos, que permitiu um aumento no trânsito do fluxo de informações. Essa nova configuração social deu à informação um status de extrema importância, fazendo com que ela se tornasse a força motriz da chamada Sociedade da Informação. O processo de globalização e as práticas sociais, econômicas e políticas do mundo atual acontecem fundamentalmente por meio da troca de informação, sendo ela capaz de eleger presidentes, organizar mobilizações sociais, aumentar (ou diminuir) riquezas, entre outros acontecimentos que impactam a vida cotidiana. Com o aumento da importância da informação para a sociedade, a velocidade do trânsito de conteúdos despertou grande atenção. Profissionais de diferentes áreas do conhecimento e pesquisadores passaram a dedicar seus trabalhos em busca de meios capazes de garantir uma circulação de informação (seja ela formada por textos, vídeos, fotos, gráficos ou animações) cada vez mais veloz e com maior qualidade. Neste cenário, a conexão de computadores em rede e a indexação dos conteúdos digitais disponíveis formaram o que conhecemos como internet, algo considerado incrível quando criado, mas que atualmente tornou-se tão presente na vida cotidiana que sua existência parece ter acontecido desde sempre. Essa troca frenética de conteúdos e a busca incessante por novas informações passaram a influenciar o estilo de vida social, fazendo com que estudiosos (sociólogos, antropólogos e filósofos) avançassem suas análises sobre o impacto que toda essa informação, velozmente produzida e divulgada, causa nos indivíduos e na sociedade em geral. Seguindo essa mesma linha de curiosidade e reflexão, porém com a devida modéstia que cabe a um artigo científico, este trabalho pretende investigar como se posiciona o fazer jornalístico no ambiente digital, quais os impactos que a internet trouxe para a produção de notícias e como o jornalismo se relaciona com as notícias em tempo real na internet. A importância do recorte deste artigo se justifica por ser o jornalista o profissional que tem como matéria prima de sua atividade a informação, o componente capaz de caracterizar, e denominar, a sociedade atual.

O AMBIENTE DIGITAL E A PRÁTICA JORNALÍSTICA O universo digital, chamado ciberespaço, possui algumas características que merecem análise quando busca-se verificar o impacto da internet nos variados processos sociais. As redes digitais conectadas permitiram que diferentes tecnologias passassem a compor um mesmo espaço midiático, tornando a internet uma plataforma multimídia e, acima de tudo, um ambiente hipermidiático. Apesar da pluralidade de itens que o compõem (texto, imagem estática, imagem em movimento, som e animação), o produto multimídia, por exemplo o CD-ROM, oferece uma interação limitada entre produtor e consumidor. Quando a internet invadiu os processos comunicacionais esse tipo de plataforma ganhou complexidade, ampliando as

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possibilidades de comunicação oferecidas até o momento. Na hipermídia a conexão dos conteúdos acontece por meio dos hiperlinks e a não linearidade da construção midiática aparece de maneira muito mais efetiva, sendo permitido ao consumidor escolher sua forma de navegação livremente. Hipermídia vai além da multimídia, por trazer ênfase na interatividade e no acesso não linear promovidos pelos links entre os conteúdos. Para a hipermídia configurar-se como linguagem, ela apontou para muitos questionamentos e percorreu um trajeto multifacetado, ou ‘multitrajetos (GOSCIOLA, 2003, p. 34-35). Os hiperlinks permitiram que a construção de sentido dos conteúdos fosse personalizada para cada indivíduo, não ficando restrita às predeterminações dos produtores. Essa maior liberdade de consumo, e a possibilidade de colaborar na construção de conteúdos (permitida pela criação dos softwares livres, pelos blogs, microblogs e diferentes redes sociais) possibilitou a ampliação do conceito de interatividade entre produtores e receptores. Um usuário pode, por exemplo, navegar por todos os links oferecidos num site, enquanto outro pode fazer uma navegação espontânea sem seguir os caminhos oferecidos pelo autor. Os dois terão diferentes ‘textos lidos’ como resultado final de sua navegação, diferentes construções de sentido do mesmo site. Mesmo que o planejamento da navegação leve em conta os interesses do usuário e que as sequências de percursos potenciais sejam antecipadas pelo autor/designer, o sentido final que o leitor constrói não pode ser totalmente previsto pelo autor. (BRESSANE, 2010, p.153)

A possibilidade de navegação diferenciada, a presença de hiperlinks, os avanços tecnológicos que permitiram uma maior rapidez no trânsito dos conteúdos e a participação do internauta impulsionaram o movimento para a determinação de um novo formato de conteúdo comunicacional. Entender os diferenciais do ambiente digital leva gradualmente ao entendimento da necessidade de criação de um conteúdo aderente ao meio, capaz de explorar todas as potencialidades oferecidas, buscando atingir o máximo de eficiência e eficácia objetivados na criação dos processos comunicacionais. Na vida cotidiana atual, a pressa, a frivolidade e a efemeridade influenciam o modo de vida dos indivíduos e no ciberespaço essas características parecem ganhar um peso maior, tornando-se quase uma condição para que os conteúdos (ou a vida) digital possam existir. Quando navegam na internet, as pessoas podem despender muitas horas de seu dia, contudo, são raros os momentos em que executam atividades exclusivas e duradouras. É comum, durante a navegação na internet, o internauta fazer diferentes atividades ao mesmo tempo, como a leitura de notícias, a atualização de seus perfis em redes sociais digitais, o desenvolvimento de trabalhos escolares e profissionais, entre outros. Segundo pesquisa realizada pelo IAB Brasil3 43% da audiência de mídia do país passa, em média, “pelo menos 2 horas por dia navegando na internet através de vários dispositivos, enquanto apenas 27% passam o mesmo tempo assistindo TV”. Lemos (2003) avalia as vastas possibilidades de atividades oferecidas pela internet, confirmando, em sua análise, que o meio é uma grande plataforma em que o internauta 3.  Pesquisa disponível em: . Acesso em 25 fev 2014.

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tem liberdade de escolher o que deseja fazer, não sendo mais formalmente direcionado como nas mídias tradicionais. Podemos dizer que a Internet não é uma mídia no sentido que entendemos as mídias de massa. Não há fluxo um - todos e as práticas dos utilizadores não são vinculadas à uma ação específica. Por exemplo, quando falo que estou lendo um livro, assistindo TV ou ouvindo rádio, todos sabem o que estou fazendo. Mas quando digo que estou na internet, posso estar fazendo todas essas coisas ao mesmo tempo, além de enviar e-mail, escrever em blogs ou conversar em um chat. Aqui não há vínculo entre o instrumento e a prática. A internet é um ambiente, uma incubadora de instrumentos de comunicação e não uma mídia de massa, no sentido corrente do termo. (LEMOS 2003, p.15)

Considerando a riqueza comunicacional oferecida pela internet, a possibilidade de produção dada aos internautas e a velocidade com que tudo se concretiza na rede, é interessante observar como jornalismo se comporta nesse ambiente pois, como afirma Ferrari, o conteúdo jornalístico tem sido o principal chamariz dos portais. “Pela possibilidade de reunir milhões de pessoas conectadas ao mesmo tempo, os sites do gênero assumiram o comportamento de mídia de massa”. (FERRARI, 2003,p.30) Assim, como toda a produção comunicacional, a prática jornalística também teve que se adaptar às características da internet. É possível observar que os textos online priorizam a divulgação de informações imediatas, mesmo que a apuração não esteja completa, o que permite uma leitura rápida e concisa que se adapta ao meio. Nota-se que o conteúdo jornalístico passou a ser construído em pequenos blocos, algumas vezes subdivididos em formatos variados, a fim de oferecer ao internauta “pequenas pílulas” informacionais que podem ser facilmente consumidas enquanto outras atividades são realizadas na rede. A prática do hipertexto também é bastante visível na elaboração do material, já que o internauta pode ser direcionado para outras páginas, ou outros sites, a fim de complementar a informação dada. A produção jornalística para o ciberespaço demanda uma especial atenção para as várias possibilidades que podem ser apresentadas ao seu público. A elaboração de uma matéria deve ir além da produção textual, deve apresentar uma variedade de recursos para que o leitor escolha a maneira que mais lhe agrada e que mais satisfaça a sua necessidade de informação. Uma pauta pode ser tratada em um infográfico, por meio de um álbum de fotos ou por um vídeo e esse tipo de construção está cada vez mais presente no cotidiano do jornalista, que tem variado a forma de apresentar as notícias para seus públicos. Discutindo sobre a não linearidade dos roteiros digitais e do jornalismo digital, Canan (2010) ressalta a importância de serem exploradas todas as possibilidades midiáticas oferecidas pela internet na busca por oferecer um conteúdo atrativo e interessante para o internauta, que será capaz de alcançar um conhecimento profundo de um tema específico de acordo com seus interesses e suas habilidades de navegação. E quando pensamos na não-linearidade de um produto audiovisual, como um filme, ou um website, precisamos usar, sim, nossa facilidade inerente de fazer associações, respeitando a linguagem de cada área. E aqui entra a nossa capacidade – enquanto profissionais de

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comunicação, educadores, cidadãos – de perceber que, a partir do advento da hipermídia, podemos proporcionar uma leitura mais ativa. Há implícito na hipermídia o conceito de complexidade, de labirinto que leva ao conhecimento, enfim, à ampliação das possibilidades. (CANAN, 2010, p.144)

Apesar de todas as possibilidades oferecidas pelo ciberespaço, os fundamentos do jornalismo, como a apuração dos fatos e a objetividade, devem estar presentes no dia a dia do profissional. Além da necessidade de executar as funções básicas da profissão, na internet o jornalista acaba assumindo algumas estratégias persuasivas na elaboração de seu conteúdo, a fim de atrair a atenção de seu leitor, que pode a qualquer momento dispersar-se no amplo ciberespaço. Sobre essa perspectiva da prática jornalística, voltada para um novo público, Torres (2010, online) considera que as possibilidades oferecidas pela internet ocasionam um enorme desafio para o jornalismo e coloca que tão importante quanto conhecer as ferramentas digitais é conhecer o público consumidor, hoje muito mais ativo e informado. Na internet, o leitor/usuário é quem busca a informação desejada, assim, o conteúdo midiático deve atraí-lo para suas páginas e ser interessante o suficiente para que ele não apenas consuma a informação, mas também a compartilhe com sua rede de relacionamentos. A publicação de conteúdos não é feita exclusivamente pelos profissionais da mídia, como avalia Torres (2010, on line) o próprio leitor é também um elemento divulgador, “... todos são emissores e receptores, e a partir de um momento que uma notícia é criada, centenas de milhares de ramificações surgem baseadas nela. A mensagem, agora, passa a ser vista sempre no plural e em proporções praticamente infinitas”. (TORRES, 2010, online) Esse ambiente tão particular da internet faz com que os jornalistas mantenham uma busca frequente pela atualização e inovação na maneira de transmitir as notícias. Nos últimos anos foi possível perceber algumas mudanças na publicação de conteúdos dos grandes portais noticiosos. É cada vez mais frequente o uso de animações, gráficos e fotografias e o texto parece ser trabalhado de maneira cada vez mais objetiva. A participação do internauta (que com seus aparatos tecnológicos ligados à internet móvel tomam o lugar de fontes geradoras de informações) tem ganho mais espaço, fazendo-os não só personagens de entrevistas, mas também pauteiros ou colaboradores. Os blogs de jornalistas, espaço em que o jornalismo opinativo impera, têm colaborado massivamente como conteúdo divulgado pelos portais. E as reportagens em profundidade parecem ter ganho nova característica, a de serem elaboradas durante sua publicação, isto é, conforme uma nova informação é descoberta logo ela é publicada, fazendo com que o conhecimento do assunto como um todo fique sob a responsabilidade do internauta que pode (ou não) se aprofundar nos temas por meio de infinitos hiperlinks. Ao constatar as mudanças acima, é possível ser levantada a hipótese de que a prática jornalística na internet tenha sido reduzida a uma grande produção em massa de pequenas notas ou de notícias superficiais. Contudo, a grande diferenciação que podemos fazer entre o jornalismo tradicional e o de tempo real, em tempos de internet, é a necessidade da velocidade de publicação da notícia, mesmo que isso resulte em atropelos de normas produtivas jornalísticas. E, assim, a credibilidade também é afetada.

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CREDIBILIDADE NO JORNALISMO ON LINE Apesar de o jornalismo on line ter como uma das suas premissas principais a velocidade – assim como todos os dispositivos que podem levar a notícia ao cidadão -a obsessão pela velocidade na difusão das notícias não é novidade. Desde o século 19, com a invenção da rotativa, quando então os jornais passaram a ser produzidos em escala industrial, a velocidade tem sido a tônica do jornalismo. Mas em tempos de webjornalismo a velocidade é algo mais do que uma aspiração de entregar a notícia em primeira mão: tornou-se uma obsessão e um fim. O que vale é divulgar em tempo real todos os fatos quando estes forem acontecendo. O valor da notícia, nesse momento, reside mais em sua instantaneidade do que em sua credibilidade. Informar-se significa tratar uma informação para depois divulgá-la. A informação deve ser exata e seu tratamento adequado (CORNU, 1998). Se isso não for seguido à risca, a informação deixa de ser uma informação confiável. Sabe-se, entretanto, que nem sempre este preceito é levado em conta pelos meios de comunicação. A credibilidade da mídia está diretamente ligada à veracidade das notícias e a exatidão de seus conteúdos. É importante para esta reflexão, portanto, que esses dois aspectos – credibilidade e exatidão – sejam abordados e discutidos a partir dos conceitos de valores-notícia estabelecendo uma interface entre as rotinas produtivas e o webjornalismo. Temos uma realidade diferente daquela da formatação dos conceitos de valores-notícia: hoje, há produção e distribuição de notícias em rede possibilitada pela Internet, seja ela difundida em plataformas fixas (redações tradicionais de jornais ou portais) ou plataformas móveis (dispositivos móveis como o smartphone). É evidente que, para se ter uma análise mais conclusiva sobre como essa relação credibilidadde-exatidão-rapidez e valores-notícias se entrelaçam – talvez formando até novas possibilidade teóricas de conceituação – seriam necessárias pesquisas aprofundadas sobre o tema. Mas, nesta discussão, o objetivo é trazer a tona essas possibilidades para servir como parâmetro para uma pesquisa propriamente dita. É possível atualmente falar de credibilidade no contexto da ultra-velocidade do jornalismo em tempo real. Essa necessidade de velocidade e de informação instantânea leva os jornalistas a uma corrida quase invencível contra o tempo. E, claro, isso traz consequências graves. A informação jornalística só tem valor se for credível. Se não há credibilidade, não há jornalismo. O primeiro valor que precisou ser interligado com o fator tempo foi a credibilidade, qualidade na qual a imprensa sempre se apoiou na sua história. A credibilidade de um veículo remete aos conceitos de verdade e realidade, sobre os quais se construiu o imaginário da imprensa e, à questão de ética, sua pedra de toque. (BRANDÃO, 1991) Para ter credibilidade a informação jornalística deve ser reconhecida como verdadeira e como portadora da verdade. Para Brandão, a verdade na imprensa é sempre a verdade do relato dos fatos, que pode se referir a uma ocorrência, a uma declaração ou opinião, a dados e informações de modo geral. Os critérios considerados como parâmetro de verdade dão credibilidade ao veículo. É claro que o conceito de verdade e de realidade são relativos no jornalismo. Mas se um veículo não preza pela credibilidade da informação, mesmo que isso possa resultar na “derrubada” de uma pauta ou uma perda de informação para o concorrente, é possível aferir que a necessidade de dar a

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informação foi mais relevante que as próprias regras existentes, tacitamente ou não, no jornalismo canônico.

ACELERAR E ATROPELAR Antes de seguir adiante, é preciso uma breve discussão entre a verdade, o acontecimento e o fato no jornalismo. Alsina (2009) lembra que vivemos em uma “sociedade da mídia” e esta poderia ser definida como uma sociedade que “faz acontecer”. Ocorreu uma multiplicação de acontecimentos ou fatos tanto na quantidade quanto no tipo. Tudesq (1973) afirma que essa multiplicação se manifesta em alguns aspectos. Um deles é de que a rapidez da informação acelera o processo morfológico do acontecimento e, segundo ele, isso faz com que a opinião da informação aja sobre o próprio acontecimento. A segunda é de que a rapidez da informação também tem um efeito espacial, pois abrange o nível mundial – mais ainda em tempos de webjornalismo. Com o surgimento da internet, é impeditivo dizer que a metáfora de aldeia global de McLuhan se faz ainda mais presente nesse tipo de debate. Há que se destacar também a complexidade e a diversificação de acontecimento e fatos o que torna indispensáveis padrões de escolha, valores e decisões nos processos de produção no jornalismo. Dito isto, pode-se afirmar que verdade factual é a matéria-prima do jornalismo. A sequência de fatos ocorridos é que geram matéria, que fazem a materialidade dos acontecimentos. A verdade é percebida através do ordenamento lógico e técnico da notícia (títulos, declarações, fotos, etc). Não importa se as declarações das fontes sejam falsas ou imprecisas. A verdade está em ser fiel ao fato e não à sua interpretação. A importância da notícia e do acontecimento confere valores e determina a quantidade e qualidade da cobertura e sua prioridade. Mesmo que na seleção das notícias a liberdade de ação seja menor, esse viés pode ser apreciado mais claramente na hierarquização e na tematização (ALSINA, 2002). Se o conceito de noticiabilidade é o conjunto de elementos através dos quais um veículo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos entre os quais seleciona as notícias (WOLF,1999), a questão imposta é como, na produção do jornalismo online, pode-se definir os valores-notícias prioritários para preencher os sites noticiosos em tempo real? É possível trazer à tona a pergunta de Wolf já colocada para o jornalismo convencional: quais os acontecimentos que são considerados suficientemente interessantes e relevantes para serem transformados em notícias? Os fatos relevantes para a mídia são fatos excepcionais, isto é, os fatos que saem da normalidade, da continuidade. São os fatos-ruptura. Como exceção, há outra categoria de fatos: os fatos-notícia. Há também as tipificações ou classificação das notícias, ou as chamadas “receitas”, segundo Tuchman (1983). Uma notícia leve é um relato de interesse humano que não perde sua atualidade, mesmo que seja publicado depois. Pode ficar muitos dias na “gaveta” que não perderá sua importância. Uma notícia dura é uma informação cujo grau de obsolescência é alto, e se não for publicada imediatamente, perderá sua validade. Uma notícia de última hora, que seria notícia dura no grau de obsolescência, tem como característica a de ser imprevista. Uma notícia em desenvolvimento é uma notícia na qual vão se produzindo acontecimentos novos ou que gera ramificações que também se tornam notícia.

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A seleção de notícias é um processo de decisão e de escolha realizado rapidamente e os critérios, na medida do possível, devem ser fácil e rapidamente aplicáveis de forma que as escolhas possam ser feitas sem demasiada reflexão – embora essa definição seja bastante criticada por levar a um “jornalismo superficial”. Então, sim, refletir parece ser o verbo menos conjugado nas esferas do webjornalismo, mais especificamente no jornalismo de tempo real. Os chefes preferem que os repórteres se apliquem no verbo produzir e não do verbo refletir. Schlesinger (in Traquina, 1999) defende que a estrutura de competição que define a notícia como uma mercadoria perecível exige uma estrutura de produção baseada no valor do imediatismo e nos horizontes temporais de um ciclo diário. Breed (in Traquina, 1999) afirma que os jornalistas definem o seu emprego como produtor de uma certa quantidade daquilo a que se chama notícia cada 24 horas. As notícias são um desafio constante e é função do jornalista ir ao encontro deste desafio. Acrescente-se a isso fatores como pressões para o fechamento, controle social da redação, edição do texto, revisão do texto, entre outros mecanismos produtivos do jornalismo. Muitos deles, obviamente, devidamente extirpados no jornalismo de tempo real. Nas rotinas produtivas do jornalismo online a roda do tempo encolheu. O ciclo diário se transformou em ciclo horário. Pesquisas contemporâneas sobre o jornalismo têm colocado ênfase no papel do newsmaking e Traquina (1993) enfatiza que as decisões tomadas pelos jornalistas no processo de produção da notícia só podem ser entendidas inserindo o jornalista no contexto da organização para o qual trabalha. No jornalismo de tempo real, que Traquina nem chegou a estudar, nos valores-notícias impera o valor do imediatismo sobre os demais critérios. Do ponto de vista temporal a notícia é definida pela sua qualidade efêmera e transitória e é altamente deteriorável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O universo digital apresenta características impactantes para o processo de produção dos conteúdos que transitam por meio de suas redes conectadas. As possibilidades oferecidas pela hipermídia permitem que as informações sejam produzidas e disponibilizadas em formatos variados como texto, fotos, animações, vídeos, gráficos, games, ente outros. Essa pluralidade é o que faz da internet um meio complexo, capaz de agregar e fazer convergir diferentes mídias em um único espaço, o ciberespaço. Apesar de toda a necessidade de aderência ao meio e de exploração das potencialidades oferecidas pela web, nota-se que na produção de conteúdos, sejam eles com os mais diferentes objetivos, o fator velocidade é o maior influenciador nos processos de produção, elaboração e veiculação. A reflexão desenvolvida neste artigo buscou percorrer os caminhos referentes à influência dessa velocidade, inerente à vida da atual sociedade, na prática jornalística realizada no âmbito digital. O webjornalismo, ou jornalismo online, apresenta-se, em muitas oportunidades, refém da necessidade do furo “minuto a minuto”, impulsionado pela possibilidade de publicação de notícias em tempo real, o que coloca em cheque questões relacionadas às técnicas de apuração e elaboração do conteúdo jornalístico. As facilidades de produção e publicação oferecidas pelos aparelhos digitais (qualquer pessoa, hoje, é capaz de produzir um vídeo, um texto ou uma foto e postar em

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qualquer rede social, gerando um grande impacto em sua rede de relacionamentos) impulsionaram a disponibilização do grande volume de conteúdo disponível na web. Esse volume, aparentemente infinito, criou a sensação de que quanto maior o acesso à informação, melhor informada a sociedade será, criando uma falsa relação de proximidade entre os conceitos de informação e conhecimento – sendo o segundo o resultado de estudos aprofundados a respeito de um tema e não o contato superficial com um assunto. Essa corrida frenética pelo grande volume de informação, influenciada diretamente pelo imperativo da velocidade, aparece no webjornalismo de maneira determinante, fazendo com que os grandes portais publiquem mais e mais notícias sem que o ciclo natural da prática profissional seja respeitado. A facilidade de correção, permitida pelos programas digitais, também corrobora para que o jornalista fique mais preocupado em publicar primeiro para só depois descobrir a veracidade do fato. Como destacado ao longo do texto, essa disputa pela publicação mais rápida e por publicar o maior volume de conteúdos, impacta em conceitos como o valor-notícia, que parece ter se deslocado do universo da credibilidade para o universo da velocidade. A notícia mais valorosa não é mais aquela com alto valor de credibilidade, mas sim aquela publicada primeiro, capaz de ser pulverizada rapidamente na rede, aumentando o número de visualizações em sua páginas, fazendo com que a roda do negócio digital gire, obviamente, cada vez mais rápido! Esse aspecto é bastante importante quando se analisa o fazer jornalístico no ambiente digital, pois a credibilidade é característica intrínseca do jornalismo. Ao se afastar dela, o profissional pode estar criando uma nova modalidade, que parece desconhecer as regras clássicas da profissão. Além disso, a pressa em contemplar a informação pode trazer prejuízos à própria credibilidade da informação e também na sua exatidão. Muitos autores acreditam que a credibilidade e exatidão são as principais ancoragens do jornalismo. Sabe-se que hoje há uma produção e distribuição de notícias em rede pela Internet. A ânsia pela informação de primeira hora, antes um atributo apenas ao jornalismo impresso – está trazendo uma série de questionamento sobre a eficácia da rapidez no webjornalismo. O próprio conceito de valores-notícia parece se contrapor, em determinados momentos, às premissas desse modelos de jornalismo, que prima pela rapidez na divulgação da informação. De qualquer forma, é plausível falar de credibilidade no contexto da ultra-velocidade do jornalismo em tempo real. Mesmo que essa necessidade de velocidade e de informação instantânea leve os jornalistas a uma corrida quase invencível contra o tempo, o jornalismo de referência pode e deve ser aplicado aos novos modelos de velocidade. Interligando o fator tempo com a credibilidade, qualidade na qual a imprensa sempre se apoiou na sua história, é possível afirmar que o webjornalismo poderá seguir os passos do jornalismo impresso e de referência, sem prejuízo à qualidade de informação. Lembramos que a credibilidade de um veículo remete aos conceitos de verdade e realidade, sobre os quais se construiu o imaginário da imprensa e, à questão de ética, sua pedra de toque. (BRANDÃO, 1991)

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Não vai ter Copa: explorando o agendamento da mídia e do público na web durante a Copa do Mundo de Futebol de 2014 no Brasil There will be no World Cup: exploring the media and public agenda on the web at the 2014 soccer World Cup in Brazil A da lton

dos

A n j o s F o n s e ca 1

Resumo: Este artigo visa investigar o agendamento da mídia e o do público na web tendo como objetos de estudo três portais de notícias, G1, R7 e Uol durante o mês da Copa do Mundo de 2014 e o período subsequente. Foi feita uma comparação entre os destaques dos portais e a lista de notícias mais lidas. A busca da hashtag “Não vai ter Copa” nos portais mostraria o nível de interferência do público online na mídia tradicional. A análise do conteúdo dos títulos apresentou o enquadramento das notícias. Os resultados indicam um alinhamento entre o julgamento dos editores e o interesse dos leitores no mês da Copa, nos três veículos – com 343 notícias que estiveram entre os destaques dos portais e na lista das mais lidas – mas uma grande discordância no mês seguinte; apenas 52 registros. O tom da cobertura foi classificado como neutro. Já o uso da hashtag não foi suficiente para comprovar a ação do público na mídia. A reflexão sobre os dados indica a ineficiência da mídia na internet na agenda-setting da audiência fora de períodos de comoção ou eventos nacionais e a necessidade de revisão dos critérios de noticiabilidade na web. Palavras-Chave: Agenda-Setting, Jornalismo Online, Critérios de Noticiabilidade, Copa do Mundo, Redes Sociais

Abstract: This article aims to investigate the media and public agenda in web having as study object three news websites, G1, R7, Uol, during the 2014 World Cup and the following month. It has been done a comparison between the highlights and the most viewed list. The search for the hashtag “There will be no World Cup” in the websites would show the level of audience interference online in the traditional media. The content analysis of titles has shown the news framing. The results indicate an alignment between the judgment of the editors and the readers’ interest in the month of the World Cup, in the three media – with 343 articles that have been in the websites highlights and in the most viewed list – but a strongly disagree in the following month; only 52 articles. The tone of the coverage was classified as neutral. However, the use of the hashtag was not enought to prove the action of the public in the media. The observation about the dates indicate the inefficiency of the media online with the agenda-setting of the audience in periods when there is not commotion or national events and the necessity to review the newsworthy on the web.

Keywords: Agenda-Setting, Online Journalism, Newsworthy, World Cup, Social Media. 1.  Mestrando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Online (GJOL). Jornalista pela UFBA e Relações Públicas pela UNEB. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO AIOR COMPETIÇÃO internacional de esporte único, a Copa do Mundo do

M

Futebol teve sua 20ª edição sediada no Brasil entre 12 de junho e 13 de julho de 2014. O evento vai além do torneio esportivo e conta com o apoio de uma grande estrutura midiática responsável pela difusão de toda a simbologia que envolve a Copa, sobretudo em países com tradição no futebol como o Brasil. No total, 64 partidas foram realizadas, mais de 3 milhões de ingressos foram disponibilizados e a audiência pela TV em todo o planeta, somente na final, foi de mais de 1 bilhão de telespectadores, segundo dados da Fifa. Os números imponentes da Copa do Mundo dão uma dimensão do interesse do público por informações sobre o evento. Em sua segunda passagem em terras brasileiras – a primeira foi em 1958 – a competição foi assunto em praticamente todos os veículos de comunicação do país, sobretudo nos sites de notícias, além das redes sociais, antes mesmo de o Brasil ser anunciado pela Fifa como sede do torneio, no dia 30 de outubro de 2007. O objetivo deste artigo é discutir a partir do modelo de agenda-setting, cunhado por McCombs e Shaw (1972), e seus desdobramentos, a cobertura da Copa do Mundo no Brasil na web. A análise será feita no mês da competição e no subsequente, nos sites G1, R7 e Uol. Trata-se de uma tentativa de mensurar a interferência do torneio no alinhamento entre os assuntos julgados como importantes pelos jornalistas e as preferências dos leitores. O “Não vai ter Copa”, presente no título do trabalho, faz referência a uma das principais expressões que surgiu nas redes sociais, e chegou a ser usada pela imprensa para caracterizar o movimento dos críticos antes da realização do Mundial no Brasil.

BREVE DISCUSSÃO SOBRE A TEORIA DO AGENDA-SETTING A hipótese inicial do agenda-setting cunhada por McCombs e Shaw (1972) defendia que a mídia de massa configurava uma agenda para cada campanha eleitoral ao dar destaque a algumas questões políticas e sociais e omitir outras. O artigo dos acadêmicos americanos trazia os resultados da pesquisa com 100 eleitores de Chapel Hill, no contexto da campanha presidencial dos EUA em 1968. A partir da associação entre o que os eleitores apontaram como as questões principais da corrida eleitoral com o conteúdo da mídia de massa durante o período, os autores concluíram que a mídia constrói imagens públicas, sugere o que as pessoas pensam, sabem e sentem um determinado candidato. O ponto principal da teoria do agenda-setting diz respeito ao destaque de um conjunto de aspectos pela mídia que repercute entre o público. “A hipótese central nestes estudos é que o grau de ênfase atribuída a uma questão na notícia influencia na prioridade dada a este assunto entre o público2” (MCCOMBS et al. 2000, p.77, tradução minha). A teoria é um retorno à ideia dos efeitos fortes, mas não no sentido da persuasão dos meios de comunicação. As influências seriam em longo prazo e estariam ligadas a fatores presentes na produção e representações transmitidas pelos veículos de comunicação (WOLF, 2005). 2.  The core hypothesis in these studies is that the degree of emphasis placed on issues in the news influences the priority accorded these issues among the public (MCCOMBS et al. 2000, p.77).

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Ao longo dos últimos anos, centenas de estudos questionaram, validaram e desenvolveram novos conceitos relacionados à hipótese do agenda-setting. Entre as principais obras que ajudam a entender a trajetória de evolução da teoria, sintetizadas no trabalho de Formiga (2006), estão artigos como o de Benton e Frazier (1976), que insere as questões econômicas no estudo sobre os níveis de recepção da informação pela audiência nos diferentes meios; McCombs e Shaw (1993) e Iyengar e Simon (1993), que fazem uma revisão teórica sobre a evolução da pesquisa nos últimos 20 anos; Kosicki (1993), que destaca o processo de produção de conteúdo pela mídia como fator que influencia o agendamento; Scheufele (2000), que faz uma reflexão teórica sobre a necessidade de uma distinção mais precisa entre agenda-setting, priming e framing nos estudos de media effects; e McCombs, que publica em 2004 o livro Setting the Agenda, uma compilação de estudos que suportam a teoria e, em 2005, volta a fazer um balanço sobre a agenda-setting, quando ressalta os atributos e os aspectos psicológicos. Além disso, há pesquisas mais recentes como as de Balmas e Sheafer (2010), Meraz (2011), Schafer et. al (2013) e Shehata e Stromback (2013), que se dedicaram respectivamente a analisar a função de priming afetivo dos atributos de candidatos durante a campanha eleitoral; a demonstrar a existência de uma disputa entre mídia tradicional e redes sociais na formação de agendas; e a confirmar que ainda não estamos na era dos efeitos mínimos, mesmo com a diversidade de fontes de informações na atualidade. Vinte anos depois de apresentarem a hipótese do agenda-setting, McCombs e Shaw discutiram a evolução da pesquisa na área. Segundo eles, a pergunta que ouviram logo após a publicação de 1972 – “Quem define a agenda pública e em quais condições?” – mudou para “Quem define a agenda da mídia?” (1993, p.60). Ainda no mesmo artigo, os autores fazem referências a outros estudos que se dedicaram a investigar o processo de gatekeeping e apontaram aspectos sociológicos, a rotina organizacional dos veículos e a ideologia dos jornalistas e das empresas midiáticas, como elementos que influenciam a formação da agenda da mídia. As novas pesquisas também fazem muitas críticas à hipótese de agenda-setting, sobretudo por conta de problemas com a metodologia, confusão com definições conceituais e operacionais e sobre o papel da internet na atualização da teoria (KOSICKI, 1993; TAKESHITA, 2006; FORMIGA, 2006 e MARTINS, 2011). Para Wolf (2005), a homogeneidade da teoria existe mais na “enunciação geral da hipótese do que no conjunto de confrontações e verificações empíricas” (p.144). O conjunto dos artigos acaba sendo uma justaposição de temas parciais com esforços empíricos caracterizados, por exemplo, por estudos sobre diferentes meios de comunicação (impressos, TV ou rádio), temas (política, cultura ou meio ambiente) ou gêneros (novelas, games, publicidade ou jornalismo) tendo como ponto de partida McCombs e Shaw (1972). McCombs et al. (2000) ressaltam que as notícias não nos dizem apenas sobre o que pensar, mas em como pensar a partir dos atributos destacados pelo jornalista do personagem ou objeto. Eles se referem às determinadas características ou traços que são enfatizados ou omitidos na apresentação de um assunto pela mídia. “Assim como há uma agenda de assuntos do público, dos candidatos políticos ou de algum conjunto de objetos, existe também uma agenda de atributos de cada objeto” (p. 78, tradução minha3). 3.  “Just as there is an agenda of public issues, political candidates or some other set of objects, there also

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Em nosso caso de estudo, a inserção do evento na agenda da mídia gerou controvérsias em torno do assunto, que resultaram em vários enquadramentos nos conteúdos noticiosos. Sheufele (2000) aponta que a escolha de um enquadramento influencia opiniões e destaca valores e fatos. Antes e durante a Copa do Mundo no Brasil, houve manifestações de pessoas contrárias aos gastos públicos4 e, ao mesmo tempo, declarações de personagens da classe política, esportistas e da Fifa que defendiam o evento como uma oportunidade para o crescimento do país5. De acordo com a nossa análise, a imprensa ora destacou atributos favoráveis aos protestos, ora contra; e, no curso da Copa, diferentes enquadramentos dividiram espaço com as repercussões sobre os jogos, os famosos e autoridades presentes, os turistas inusitados e a mudança de rotina nas cidades. Nas redes sociais, postagens com esta diversidade de formas de tratar o evento também foram notadas. A falta de unidade em torno de um enquadramento na repercussão sobre um tema, como o exemplo da Copa do Mundo, não é um problema para o campo jornalístico, uma vez que diversifica e aprofunda a pauta. No entanto, nos dias de jogos, a tendência observada foi justamente a contrária; o espetáculo passou a ser o framing dominante na cobertura noticiosa e veremos que o público também buscou esta abordagem. A convergência entre a escolha de jornalistas e de leitores no mês seguinte, no entanto, foi bastante reduzida.

CRITÉRIOS DE NOTICIABILIDADE NO JORNALISMO DIGITAL Estudos recentes mostram que há uma tendência da audiência em dar mais atenção às notícias de entretenimento preterindo o conteúdo político, segundo Boczkowski e Mitchelstein (2013). Prior (2005) defende que a fragmentação dos públicos, que têm uma maior gama de escolha do conteúdo que irá consumir, seja na TV a Cabo ou na internet, tornou a discrepância entre as escolhas de jornalistas e as preferências dos seus leitores maior e resultou em uma redução do interesse das pessoas por política, mesmo em um contexto de maior difusão de notícias deste tipo. Ele ainda defende que talvez tenha havido um equívoco ao interpretar o interesse político do público pelos índices de audiência dos telejornais e, desta forma, o interesse jamais tenha existido. A ação consequente a partir destas descobertas seria rever os critérios que definem a hierarquia de notícias nos portais. Mas, entram em jogo outras questões simbólicas como o fato de os veículos de comunicação ter uma marca e uma reputação construída ao longo do tempo para zelar. Portanto, usar como critério único para definir suas manchetes online o tema que “dá mais clique”, no jargão das redações, poderia trazer prejuízos à imagem de grandes jornais. Outra questão diretamente ligada a este pensamento e que também seria atingida é o papel de vigilante da sociedade acolhido pelo campo (SOARES, 2009). A difusão de conteúdos através da internet é um tema de pesquisa sensível, que requer uma revisão de conceitos e inclusão de novas interpretações quando se trata is an agenda of attibutes for each object”. (McCombs et al 2000, p.78) 4.  Na Agência Brasil, no dia 12 de junho de 2014, “Manifestação contra gastos da Copa em Brasília termina com duas pessoas presas” (Nascimento, 2014) 5.  No Estadão, no dia 25 de abril de 2014, “Ronaldo defende Copa no Brasil e ataca políticos”. (Ramos, 2014).

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da teoria de agenda-setting. A web promove há algum tempo mudanças nas rotinas e processos da cultura jornalística como os critérios que definem o que é ou não é notícia. Os valores-notícias clássicos listados por Walter Lippman, na obra Opinião Pública (1992), além de Traquina (2005) ou Wolf (2005), como o impacto, a novidade, a proximidade geográfica, a proeminência, o número de pessoas envolvidas, a polêmica, entre outros comuns aos veículos de massa, continuam sendo importantes na operacionalização que transforma um acontecimento em notícia. Para o webjornalismo, além da hierarquização das homepages, a definição de regras para a publicação em redes sociais e a cobertura em tempo real reforça a necessidade de entender os novos valores notícias. Rojo (2009) faz uma compilação a partir da taxonomia de vários autores que ajudam a entender este novo momento. A classificação dele inclui valores como a continuidade, a curiosidade, as celebridades, o drama pessoal, o entretenimento, a magnitude, o poder, a polêmica, a utilidade, entre outros. Boczkowski e Mitchelstein (2013) indicam que em períodos de intensa atividade política (campanhas eleitorais), grandes catástrofes, tragédias e eventos de mobilização nacional, a discrepância entre jornalistas e o público no ambiente online tende a diminuir – ou seja, os temas de interesse do público e aqueles avaliados como importantes pelos jornalistas convergem. Com o jornalismo digital, portanto, o gatekeeper passa a contar com novas ferramentas que podem auxiliar o seu trabalho de definir as preferências do público, além dos critérios de noticiabilidade. Uma delas é o ranking das notícias mais lidas, enviadas e comentadas do dia. Outra espécie de termômetro da audiência é o engajamento do público com determinados temas nas mídias sociais. Este é um importante recurso de verificação da eficiência do agendamento midiático junto aos seus públicos e de como os leitores estão repercutindo determinada cobertura. Cardoso e Santos (2008) destacam que uma verdadeira revolução semiótica vem acontecendo a partir das novas tecnologias de comunicação, que permitem que qualquer pessoa produza conteúdos e introduza novos vocabulários, crenças, comportamentos, linguagens e estímulos, que muitas vezes são remediados, segundo o conceito de Bolter e Grusin (2000), para veículos de comunicação analógicos e impressos. O nível de divergências entre os temas que os editores definem como de interesse público e os assuntos que chamam a atenção dos consumidores, de acordo com Boczkowski e Mitchelstein (2013), variam com relação a uma conjuntura momentânea. Tendo como ponto de partida esta ideia, nossa primeira hipótese sugere que o contexto é um elemento essencial para a eficácia dos critérios de noticiabilidade na web, desta forma haverá uma convergência maior entre os interesses da audiência e as decisões dos jornalistas sobre os acontecimentos importantes do dia durante o mês da Copa do Mundo de Futebol do que no mês subsequente. A segunda hipótese está relacionada à ideia dos atributos da cobertura sobre a Copa do Mundo nos sites analisados. O tom da cobertura predominante provavelmente não destacará os aspectos negativos do torneio e fugirá um pouco de uma das funções principais do jornalismo que é de vigilância. A última hipótese sugere que a hashtag criada pelo público no Twitter #nãovaitercopa estará presente nas narrativas da mídia online na produção de conteúdo durante a Copa. Isto comprovará que o contexto influenciado pelas novas tecnologias da comunicação

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permitiu a abertura de um canal de comunicação entre consumidores de informação e jornalistas que faz com que a agenda-setting aconteça não apenas com a mídia determinando a pauta da opinião pública e sim a operação inversa, com a audiência interferindo nas decisões dos editores e muitas vezes sugerindo pautas para os veículos.

MÉTODO Os dados que farão parte dos resultados deste estudo foram coletados entre os dias 12 de junho de 2014 e 12 de agosto. As homepages analisadas foram as dos três maiores portais de notícias em visita do país – G1, R7 e Uol – e que divulgam as listas das matérias mais lidas do dia. A coleta aconteceu quatro vezes ao dia, por volta das 8h, 13h, 18h e 23h para que fosse possível ter informações mais precisas sobre a convergência (ou não) entre os destaques e os textos que mais chamaram a atenção da audiência. As notícias que permaneciam na lista de mais lidas em mais de um dos quatro momentos de coleta do dia não eram contabilizadas duplamente, bem como as manchetes. Na análise, as notícias consideradas destaque são aquelas publicadas na manchete ou na parte superior da homepage. São as matérias visualizadas imediatamente pelo leitor, sem que seja necessário usar a barra de rolagem, se estiver com o zoom do monitor em 100%. Também são considerados destaques o flip de fotos que aponta para notícias (Uol e R7) e o flip de vídeos (G1) localizados nesta zona da homepage nos sites referidos. É preciso levar em consideração alguns dados sobre a origem dos visitantes nos sites por conta das redes sociais. Entre 2011 e 2013, número de leitores oriundos destes espaços nos sites dos três principais jornais do país cresceu de 6% para 22% da audiência total, segundo dados do Ibope Netview (FOLHA DE S. PAULO, 2013). No site do O Globo, a Copa do Mundo motivou um novo recorde de visitas a partir das redes sociais em junho de 2014: 14,7% das 50 milhões de visitas do período não partiram da homepage (O GLOBO, 2014). Apesar disso, nossa proposta metodológica não abordará a origem do visitante nos sites. Acreditamos que este aspecto, que merece um esforço à parte, ainda não interfere em nossos resultados. Um levantamento mostrou por quantos dias durante a Copa do Mundo o assunto esteve na lista de notícias mais lidas nas últimas 24h e nas manchetes. Além disso, a observação do tom das manchetes deu uma noção da cobertura em torno do evento futebolístico na imprensa. A análise verificará se o tom foi negativo6, quando apontou os problemas envolvendo o Mundial, ou neutro, com notícias sobre a competição, assuntos relacionados aos jogadores e celebridades que não promovam avaliação sobre a Copa. Por fim, a busca automática identificará a frequência do uso da hashtag “Não vai ter Copa”, que surgiu nas redes sociais e chegou a ser usada em textos jornalísticos.

EXPLORAÇÃO DOS DADOS SOBRE A COBERTURA DA COPA Principal tema na agenda da mídia ao longo de 32 dias, a Copa do Mundo resultou em notícias sobre a competição e reportagens sobre os seus impactos e irregularidades. O Uol, por exemplo, destinou o topo do portal apenas para notícias sobre o torneio do 6.  Notícias que criticavam o desempenho da Seleção Brasileira, sobretudo após as duas últimas derrotas na competição, não foram classificadas como negativas por fazerem parte do torneio.

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período da tarde do dia 12 de junho até a tarde do dia 14 de julho. O G1 usava seus espaços de maior visibilidade para publicar o link da transmissão ao vivo em vídeo das partidas e, ao longo do mês, ampliava ou diminuía a quantidade de matérias nesta parte superior da homepage. O R7 não investiu em mudanças de layout, mas também cobriu o evento da Fifa. Os números totais da apuração dão a dimensão da diferença que a Copa do Mundo faz na convergência das agendas do público e da mídia, reafirmando a proposta de Boczkowski e Mitchelstein (2013). Durante o mês da Copa, 343 notícias que foram escolhidas como destaques dos portais de notícias apurados também foram avaliados com interesse pela audiência, ou seja, apareceram na lista das mais lidas ao longo das últimas 24h7. Em contraposição, no mês seguinte o valor foi seis vezes menor – 52 vezes – nos três sites.

Fonte: Elaboração própria

O gráfico 1 mostra que Uol e R7 tiveram grande sucesso ao despertar o interesse dos seus leitores ao longo da Copa do Mundo em comparação com o portal de notícias G1. No caso do Uol, que apresentou o maior número de concordâncias – 170 vezes – a vantagem pode ser explicada pelo fato de o portal ter destinado seu espaço mais nobre, o topo da página, onde ficam as notícias mais importantes do momento, somente para a cobertura sobre o torneio. O R7 manteve uma estratégia de explorar a cobertura da Copa não apenas com os resultados e matérias prévias dos jogos; as postagens com listas sobre o evento8, em um formato Buzzfeed, foram as que mais chamaram a atenção do público. O caso G1 foi o mais curioso. O portal de notícias da Rede Globo foi o único que transmitiu ao vivo todas as partidas da Copa do Mundo, além de ter a estrutura do veículo de comunicação mais assistido do país, a TV Globo, para explorar na cobertura do evento. Entretanto, não apresentou números consistentes na pesquisa em comparação com os concorrentes – por 69 vezes uma notícia que foi destaque na página esteve na lista de mais lidas. Entre as razões que podem explicar estes valores inferiores em 7.  No caso do R7, como as matérias permaneciam por mais tempo entre os destaques, eram maiores também o período em que ficaram na lista das mais lidas. 8.  No último dia da Copa do Mundo, entre as sete notícias presentes na lista das mais lidas, quatro seguiam este formato. “Confira os memes da vitória da Alemanha”, “Conheça os estádios da próxima Copa”, “Veja as melhores imagens do encerramento” e “Veja os salários dos convocados por Felipão”.

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comparação aos concorrentes está o fato de os links para assistir as partidas ao vivo permanecerem por pouco tempo na homepage, cerca de 2 horas, e serem modificados por até três vezes ao longo de uma tarde nos dias em que três jogos foram realizados. Não foi divulgada a audiência que acompanhou as transmissões online.

Fonte: Elaboração própria

No mês que sucedeu a Copa do Mundo, os números ficaram mais equilibrados entre os concorrentes, mas, de modo geral, sofreu uma forte redução. O gráfico 2, que apresenta a média diária do número de notícias que estiveram nos destaques dos sites investigados e na lista das mais lidas do dia, mostra que em um mês comum por mais de um dia não houve coincidência entre textos de interesse dos leitores e a hierarquização feita pelos editores. Um fator que pode ter sido importante para uma mudança tão radical na eficiência dos jornalistas despertarem o interesse do público a partir das notícias colocadas em destaque está na efemeridade de temas tratados por dia. Em 30 de julho, o G1 destacou dez notícias diversas na parte superior da homepage ao longo do período, o R7 publicou cerca de 30 matérias diferentes entre as áreas mais valorizadas e o Uol, registrou 25 temas. Em todos os dias da Copa do Mundo, foi registrada ao menos uma postagem por dia na manchete de cada portal investigado sobre o evento e pelo menos uma notícia por dia esteve na lista de mais lidas, segundo a média diária. A exceção foi o R7, no dia 2 de julho, quando nenhuma das quatro manchetes registradas ao longo do dia pela nossa pesquisa tinha como tema o torneio ou repercussões. Quanto ao tom da cobertura, a predominância da agenda da mídia e dos enquadramentos foi classificada como neutra. Isto quer dizer que assuntos negativos sobre a Copa foram deixados de lado durante os dias de evento, confirmando a segunda hipótese. O G1, o R7 e o Uol apresentaram, respectivamente em 7, 9 e 8 dias, ao menos uma manchete cujo tema estava ligado a um problema, fraudes ou crimes na Copa do Mundo. O G1 chegou a apresentar duas pautas com enquadramentos positivos sobre o torneio; a primeira delas, no dia de abertura do evento em que ressaltava entre outros fatos, a entrega da Arena Corinthians em São Paulo, realizada às vésperas do torneio, e

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o funcionamento da linha de metrô nas proximidades da praça esportiva. E a segunda pauta positiva, faltando dois dias para o final do Mundial, destacava um reforço na segurança no Maracanã, estádio que sediou a última partida no dia 13 de julho. O tom neutro, que anula os problemas e crimes da cobertura do evento, foi o mais registrado em todo o período conforme a tabela a seguir. Tabela 1. Dados sobre o tom da cobertura durante a Copa do Mundo Tom da cobertura/ Portais

G1

R7

Uol

Número de dias que registrou ao menos uma manchete não relacionada à Copa do Mundo

12

4

0

Número de dias que registrou ao menos uma manchete com pauta negativa sobre a Copa do Mundo

7

9

8

Número de dias que registrou ao menos uma manchete com pauta positiva sobre a Copa do Mundo

2

0

0

Número de dias em que todas as manchetes sobre a Copa do Mundo eram neutras

13

20

23

Fonte: Elaboração própria

Durante o mês da Copa do Mundo, os portais analisados apresentaram poucas matérias utilizando os termos “Não vai ter Copa”, que marcou o processo de preparação do país para realização do Mundial. O G1 publicou 12 postagens com a expressão, o R7, uma, e o Uol, nove. Somente o site de notícias da Rede Globo utilizou os termos durante o torneio para se referir a pautas com um tom negativo sobre o evento, em três oportunidades. Todavia, outra informação que pode ajudar a comprovar o agendamento da mídia tradicional pelo público foi a invasão dos memes na cobertura da Copa. O termo que, segundo Recueiro (2007), está ligado à replicação, imitação e propagação de uma expressão cultural através de um período de tempo, não é novo. O neologismo foi criado por Richard Dawkins, em 1976, em seu livro O Gene Egoísta. Mas, com o suporte da internet e a liberação do polo de emissão, os recursos para disseminação deste tipo de conteúdo foram potencializados. As mídias sociais tornaram-se um ambiente que estimulou a fecundidade dos memes, quase sempre com um tom humorístico. A investigação deste tipo de material não foi prevista na pesquisa, mas, após a análise dos dados, percebemos a presença deste conteúdo nos portais. Quando a busca pelos termos “memes da Copa” foi feita na seção de notícias do Google, os resultados alcançam a marca dos 66,4 mil postagens. Portanto, outra forma de expressão produzida por usuários de redes sociais foi incorporada à narrativa jornalística na Copa e demonstrou como o público percebia os acontecimentos cobertos pela imprensa.

CONCLUSÃO O fato de a Copa do Mundo de 2014 ter tido uma grande presença na imprensa seguiu um roteiro que estava previsto antes mesmo da realização do evento por conta da experiência com outras coberturas semelhantes e da expectativa com o fato de o torneio acontecer no Brasil. Desta forma, importantes critérios de noticiabilidade, destacados por autores como Walter Lippmann e Mauro Wolf, fomentaram uma cobertura intensa do Mundial; entre eles está a proximidade geográfica; a quantidade de pessoas envolvidas

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– cerca de 1 milhão de turistas de mais de 200 países desembarcaram no Brasil; e o próprio interesse da audiência pelo esporte, além de fatores econômicos. Nosso artigo tinha como objetivo mensurar o impacto do evento nos veículos de comunicação online e entre a audiência. Nos portais de notícias, a cobertura foi bastante intensa e praticamente ocupou todas as manchetes e destaques dos portais durante o mês – somente no dia 2 de julho de 2014, no R7, nenhuma das quatro manchetes registradas foi sobre a Copa. Os resultados apresentados, no entanto, dão uma noção do quão ineficiente tem sido o poder da mídia na web em despertar o interesse da audiência pelos assuntos que julga prioritários em períodos em que não há coberturas sobre um assunto de comoção nacional, comprovando a primeira hipótese. É preciso ponderar algumas lacunas da pesquisa, já que as manchetes em dias comuns podem sofrer mais variações provocadas pela oferta maior de temas e, além disso, a forma em que estas matérias são acessadas (via redes sociais, homepage ou feed de notícias) descaracteriza a hierarquia da primeira página. Franciscato (2004) discorre sobre cinco novas categorias para ajudar a entender a dinâmica das notícias na web. Fatores como a instantaneidade, a simultaneidade, a periodicidade, a novidade e a revelação pública passam a integrar o conjunto dos requisitos que definem o que é ou não notícia. Mas outros elementos, como a capacidade espalhamento e a reapropriação dos conteúdos, além dos aspectos socioculturais podem explicar porque no dia 12 de junho, às 13h, entre as mais lidas do Uol estava uma nota sobre o fim do casamento do cantor sertanejo Marrone. Quanto ao tom da cobertura, o enquadramento mais frequente nas manchetes estava relacionado à competição. Problemas de segurança, trânsito, protestos e o escândalo das vendas de ingressos para os jogos foram atributos que caracterizaram o tom negativo da cobertura do Mundial, mas que quase passaram despercebidos. A publicação dos memes da Copa como notícias nos três portais analisados expõe a interferência do público em conteúdos jornalísticos, algo não previsto nos primórdios da hipótese do agenda-setting. É importante ainda não perder de vista que a tréplica da imprensa aos conteúdos gerados nas mídias sociais também é uma estratégia de manter o assunto em destaque, estimular o engajamento do público e somar número de visitantes.

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Métodos digitais e a memória acessada por APIs: desenvolvimento de ferramenta para extração de dados de portais jornalísticos a partir da WayBack Machine Márcio Carneiro

dos

Santos 1

Resumo: Explora-se a possibilidade de automação da coleta de dados em sites, a partir da aplicação de código construído em linguagem de programação Python, utilizando a sintaxe específica do HTML (HiperText Markup Language) para localizar e extrair elementos de interesse como links, texto e imagens. A coleta automatizada de dados, também conhecida como raspagem (scraping) é um recurso cada vez mais comum no jornalismo. A partir do acesso ao repositório digital do site www.web.archive.org, também conhecido como WayBackMachine, desenvolvemos a prova de conceito de um algoritmo capaz de recuperar, listar e oferecer ferramentas básicas de análise sobre dados coletados a partir das diversas versões de portais jornalísticos ao longo do tempo.

Palavras-Chave: Raspagem de dados. Python. Jornalismo Digital. HTML. Memória.

Abstract: We explore the possibility of automation of data collection from web pages, using the application of customized code built in Python programming language, with specific HTML syntax (Hypertext Markup Language) to locate and extract elements of interest as links, text and images. The automated data collection, also known as scraping is an increasingly common feature in journalism. From the access to the digital repository site www.web.archive.org, also known as WayBackMachine, we develop a proof of concept of an algorithm able to recover, list and offer basic tools of analysis of data collected from the various versions of newspaper portals in time series.

Keywords: Scraping. Python. Digital Journalism. HTML. Memory.

INTRODUÇÃO UITOS ESTUDOS do ciberjornalismo dependem da coleta de dados a partir

M

dos sites e portais objetos de pesquisa. A aplicação de métodos, ferramentas e processos que considerem a ontologia dos objetos digitais, descritos de forma numérica, e as estruturas de rede por onde circulam, utilizando-se de recursos computacionais para sua aplicação, pode em tais casos agregar efetividade e expansão das estratégias de amostragem entre outros benefícios.Tal abordagem tem sua fundamentação teórica no trabalho de Manovich (2001) a partir da discussão que faz sobre as características dos objetos digitais, especificamente na que denomina de transcodificação. 1.  Doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. Professor adjunto da Universidade Federal do Maranhão na área de Jornalismo em Redes Digitais. Coordenador do Laboratório de Convergência de Mídias- LABCOM/UFMA. Email: [email protected] .

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Para Manovich (2001), os objetos digitais apresentam cinco traços ou características que podem ou não estar presentes simultaneamente em sua existência, a saber: descrição numérica, modularidade, automação, variabilidade e transcodificação. A descrição numérica indica, como já citamos, que os objetos digitais constituemse no final das contas de sequencias de números, podendo, por isso, sofrer muitas das transformações que se aplicam a essa categoria, entre elas a possibilidade de replicação idêntica, desde que a nova sequencia mantenha a estrutura e a ordem original da primeira. A modularidade nos termos de Manovich (2001) descreve os objetos digitais como compostos de partes que podem ser arranjadas de diversas formas, sem que cada um desses módulos perca sua identidade original. Ao visitarmos a página de um site na internet não estamos vendo a imagem de um único elemento completo, mas sim o resultado da construção feita pelo browser2 a partir de diversas partículas de informação; os pequenos arquivos enviados pelo servidor onde o site está hospedado. Esses são agrupados e estruturados pela ordem descrita no código da programação HTML (HiperText Markup Language) que define onde e de que jeito cada texto, foto, título, vídeo, ou o que mais a página possua, vão estar. A partir dessas duas primeiras características, as duas seguintes estabelecem-se como consequências. Se posso aplicar operações ou transformações matemáticas sobre esses objetos e recombiná-los em diversas configurações, porque são compostos de forma modular, posso também programar essas ações e automatizar parte delas, para que sejam realizadas de forma transparente, sem que o usuário sequer perceba o que está acontecendo. A automação permite que, ao apertar a tecla ENTER do computador, uma grande quantidade de linhas de código de programação seja executada e algo novo aconteça na tela, sem a necessidade de sermos programadores ou entendermos que processos estão por trás dessa ação. Para Manovich (2001) as diversas possibilidades de combinação entre esses elementos faz com que eles também reajam de forma diferente a partir de contextos ou situações distintas. A ideia de interatividade seria para o autor uma forma de expressão da variabilidade dos objetos digitais, adaptáveis, programáveis e recombináveis oferecendo aos usuários novas formas de contato e fruição. A não linearidade das narrativas construídas a partir de hiperlinks ou a imersão que um game oferece são bons exemplos do que o autor entende como variabilidade. Por fim, através do que ele denomina de transcodificação, cada objeto digital é constituído de duas camadas ou layers, uma utilizada para carregar o sentido a ser interpretado e processado pelos humanos, a camada da representação ou cultural, que nos oferece o material para que possamos lidar com tal objeto. Entretanto, pela transcodificação, existe ainda uma segunda camada (FIG. 1), que também descreve ou traz informações sobre esse objeto só que para o processamento maquínico, automatizado, o layer dos dados estruturados que os computadores entendem e que é usado para fazer esse objeto trafegar pelas redes digitais. 2.  Browser é uma categoria de software que age como um cliente de internet solicitando conteúdo aos servidores da rede e organizando os elementos recebidos nas páginas que visitamos em nossa navegação pela web.

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Figura 1. Tela do site do evento IBERCOM2015 com a parte do código HTML explicitada demonstrando os dois layers da transcodificação. Fonte: do autor.

A ideia de métodos do meio (ROGERS, 2013), ou seja, métodos que exploram a lógica interna inerente aos objetos digitais, ou nos termos que estamos propondo, que consideram sua ontologia específica, permitem novas abordagens e formas mais eficientes de enfrentar dificuldades implícitas em algumas temáticas contemporâneas. Por exemplo, varredura e extração de dados, inteligência coletiva e classificações baseadas em redes sociais, ainda que de diferentes gêneros e espécies, são todas técnicas baseadas na internet para coleta e organização de dados. Page Rank e algoritmos similares são meios de ordenação e classificação. Nuvens de palavras e outras formas comuns de visualização explicitam relevância e ressonância. Como poderíamos aprender com eles e outros métodos online para reaplica-los? O propósito não seria tanto contribuir para o refinamento e construção de um motor de buscas melhor, uma tarefa que deve ser deixada para a Ciência da Computação e áreas afins. Ao invés disso o propósito seria utiliza-los e entender como eles tratam hiperlinks, hits, likes, tags, datestamps e outros objetos nativamente digitais. Pensando nesses mecanismos e nos objetos com os quais eles conseguem lidar, os métodos digitais, como uma prática de pesquisa, contribuem para o desenvolvimento de uma metodologia do próprio meio (ROGERS, 2013).3

A necessidade de iniciativas nessa linha pode ser justificada também por algumas condições verificáveis relacionadas à produção de informação a partir das redes: volume, variedade, velocidade. Não à toa esses termos estão associados a outro conceito contemporâneo, o de big data, que de forma simplificada poderia ser definido como o conjunto de métodos, ferramentas e processos destinados a lidar com a verdadeira enxurrada informacional com a qual nos deparamos hoje; tema que Gleick (2013) descreve numa perspectiva histórica e técnica. São situações assim que exigem a incorporação de métodos que considerem as características inerentes aos objetos digitais, entre elas a transcodificação nos termos de Manovich. Como veremos a seguir, uma alternativa viável para casos onde os dados são gerados e armazenados em plataformas na internet, como o Twitter ou a WayBackMachine 3.  Tradução do autor.

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(que utilizaremos nesse trabalho), é o contato direto com os servidores que as sustentam ou, em termos técnicos, a utilização da sua API (Application Programming Interface)4 para realizar consultas e extração de informação a partir do layer da máquina.

EXPLORANDO A MEMÓRIA DIGITAL Pensar nos sites da internet como representantes contemporâneos dos arquivos que antes apenas podíamos encontrar nas bibliotecas ou locais de memória tradicional é um fato que deve ser considerado como caminho possível para os pesquisadores das Ciências Sociais incluindo os da Comunicação e do Jornalismo. Muitas pesquisas partem da necessidade de coletar dados sobre objetos que hoje tem suas versões digitais à disposição do acesso via internet. Apesar da aparente facilidade para acessar sites é preciso considerar três problemas que se apresentam. Em primeiro lugar a constatação de que a memória digital, apesar de extensa e em constante crescimento, não é eterna e pode ser apagada, a qualquer hora, por decisão do administrador que gerencia o servidor de web onde está hospedada. A segunda diz respeito justamente ao fato de que mesmo tendo acesso a esse site, talvez não estejamos coletando toda a informação disponível, olhando apenas para a camada cultural ou da representação e, por isso, tendo uma visão parcial de um todo maior. Por fim a própria coleta pode tornar-se difícil considerando a quantidade de informação disponível e as frequentes mudanças às quais os sites, principalmente os jornalísticos, estão sujeitos. Nesse cenário a possibilidade de automatização parcial ou completa da fase de coleta de dados em pesquisas da nossa área pode tornar-se um caminho oportuno e que poderá impactar principalmente as decisões sobre as estratégias de amostragem, oferecendo uma relação otimizada entre universo pesquisado e quantidade de elementos considerados na análise (BONACICH; LU, 2012). A coleta automatizada de dados, também conhecida como raspagem (scraping) ou mineração é um recurso cada vez mais comum no jornalismo digital e investigativo (BRADSHAW, 2014) podendo, no caso do trabalho acadêmico, ser utilizada tanto para a execução de rotinas repetitivas, permitindo ao pesquisador mais tempo para as tarefas de maior complexidade, como para identificar padrões e tendências em grandes volumes de informação que, em algumas situações, podem passar despercebidos no processo exclusivamente manual, como em Moretti (2007). Nosso experimento inicial acessa o projeto da internet WayBackMachine - WBM (FIG. 2) também conhecido como Internet Archive, que constitui-se de uma biblioteca digital de sites de internet com mais de 430 bilhões de páginas arquivadas. A iniciativa da WBM, que oficialmente não tem fins lucrativos, deu início aos trabalhos em 1996 tendo, a partir de 1999, incluído novos formatos em seu acervo tais como vídeos, arquivos de som e de texto, software e outros se constituindo numa base de dados útil para certas pesquisas. Para acessar esse repositório, desenvolvemos a prova de conceito de um código capaz de recuperar, listar e oferecer ferramentas básicas de análise sobre dados coletados a partir das diversas versões de portais jornalísticos ao longo do tempo. 4.  Uma API – Application Programming Interface (Interface de Programação de Aplicações) é o conjunto de rotinas, padrões e instruções de programação que permite que os desenvolvedores criem aplicações que possam acessar e interagir com determinado serviço na internet, inclusive extraindo dados dele.

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Utilizando o conteúdo arquivado das séries disponibilizadas é possível avaliar métricas como o número de versões ou atualizações anuais, palavras mais frequentes ao longo do tempo, alterações na organização de conteúdo e design entre outras.

Figura 2. Tela da Home do site Internet Archive . Fonte: Internet Archive (2014)

WAYBACKMACHINE E A MÉMÓRIA DOS SITES JORNALÍSTICOS A WBM, na sua área de sites, a partir da indicação de determinado domínio, permite visualizar todas as versões arquivadas do mesmo, incluindo sua página inicial (home page) e links principais, numa interface que mostra em formato de timeline (Fig. 3) e calendários as datas onde uma nova versão daquele site foi arquivada. Na imagem abaixo é possível ver o resultado de um teste feito a partir do endereço da Universidade Federal do Maranhão (www.ufma.br) que indica o número de versões disponíveis, as datas da primeira e da última versão em destaque e todos as outras marcadas nos calendários mensais com pontos azuis que a WBM chama de “spots”. A plataforma mantém uma API que responde a consultas com uma sintaxe própria. Segundo dados do projeto as coletas são feitas diariamente de forma a documentar novas versões que ao serem registradas podem ser acessadas pelos usuários a qualquer tempo através das ferramentas oferecidas.

Figura 3. Tela do Internet Archive com a marcação das versões arquivadas (399 entre 1997 e 2014) do site da UFMA em suas respectivas datas no ano de 2007 que podem ser extraídas via código. Fonte: Internet Archive (2014)

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O objetivo desse experimento constituiu-se no desenvolvimento de um código escrito utilizando a linguagem de programação Python, capaz de realizar as seguintes funções: a) A partir da indicação de um endereço na internet pelo usuário, buscar no repositório da WBM informações básicas sobre o número de versões, datas da primeira e última coletas e links para as páginas de todas os registros documentados. b) Extrair o número de atualizações por ano de forma a identificar padrões relativos à intensidade da atualização do conteúdo do mesmo. Como focamos nosso estudo em sites dos grandes portais jornalísticos é possível associar essa métrica à característica da atualização constante, que nos livros teóricos é comumente descrita como traço distintivo do jornalismo digital, apesar de poucos tratarem o assunto com dados empíricos. c) Extrair elementos de interesse para pesquisa como links e textos das versões coletadas. Tal material presta-se portanto a estudos onde, por exemplo, as transformações associadas a temáticas específicas são alvo de investigação. d) Gerar visualizações das métricas avaliadas como demonstraremos abaixo em relação às atualizações por ano. Uma das vantagens da linguagem Python é a grande quantidade de módulos disponíveis para a execução das mais diversas funções, fato que facilita muito o programador inexperiente ou oriundo de outras áreas de conhecimento. Neste experimento além das funções internas básicas da linguagem utilizamos os módulos Mathplotlib, Numpy e NLTK (BIRD; EDWARD; KLEIN, 2009) como ferramentas para gerar as visualizações e analisar as métricas relacionadas aos textos extraídos. O fato de utilizarmos em nosso experimento os sites de caráter jornalístico não impede a utilização da ferramenta em outros cenários de pesquisa onde a série histórica de versões de sites tenha algum interesse. Para atingir nosso objetivo trabalhamos com a metodologia descrita a seguir. Inicialmente fizemos um estudo da própria plataforma avaliando a estruturação do código HTML que a suporta e identificando os padrões de resposta da API para as requisições das versões de um endereço específico. A partir do conhecimento de como a WBM trabalha internamente, de início implementamos no algoritmo as funções de consulta, registro de informações básicas, listagem dos endereços da páginas arquivas, estruturação da quantidade de versões por ano e geração de gráfico com a evolução das atualizações ao longo do tempo. O que nosso algoritmo permite é fazer uma consulta idêntica à que é feita diretamente no site da WBM, entretanto, permitindo que de forma automática todos os endereços das páginas registradas sejam listados para posterior acesso e análise. Inicialmente o código recupera as informações básicas oferecidas pela plataforma que são o número de versões registradas e as datas do primeiro e do último registro (FIG. 4) que serão utilizados também como parâmetros para a coleta de todas as outras atualizações arquivadas. Depois dessa etapa o programa vai processar e salvar numa lista e em um arquivo de texto todos os endereços das páginas (URLs) onde estão as versões registradas na plataforma. O exemplo abaixo (FIG. 5) contém todas as versões arquivadas do site da UFMA. Essa lista posteriormente pode ser lida por outra função do software que vai extrair de cada uma os links e textos associados, constituindo assim um corpus empírico

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bem mais amplo para o pesquisador que terá ainda a possiblidade de aplicar outras ferramentas específicas em sua análise.

Figura 4. Print da tela do código com as informações iniciais básicas (item a da lista de objetivos) do site jornalístico www.ig.com.br . Fonte: Elaborado pelo autor.

Figura 5. Print do arquivo com a lista de links extraídos automaticamente que levam às páginas arquivadas do site www.ufma.br (item a da lista de objetivos). FONTE: Elaborado pelo autor.

Depois de processar todas as versões coletadas, o código as conta e classifica por ano a fim de que seja possível identificar o número de atualizações por cada período (FIG. 6). Tal métrica nos permitirá identificar a velocidade com que os sites estudados tem se modificado ao longo do tempo, um fator que, no caso dos sites jornalísticos pode ser associado à característica da atualização constante, frequentemente atribuída ao jornalismo de internet. É importante ressaltar que o número de versões identificadas pela plataforma WBM não representa o universo total de mudanças. Segundo dados da própria WBM, os resultados são conseguidos através de um crawler5 próprio e de dados do portal Alexa 5.  Crawlers, também conhecidos como robôs, são programas que varrem a internet registrando endereços de páginas e arquivando-os. Motores de busca como Google, plataformas de análise como Alexa (www. alexa.com) e bibliotecas digitais como a WBM usam algoritmos assim para executar suas funções.

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Métodos digitais e a memória acessada por APIs: desenvolvimento de ferramenta para extração de dados de portais jornalísticos a partir da WayBack Machine Márcio Carneiro dos Santos

que também varre a internet diariamente. De qualquer forma, pela quantidade de registros, é possível perceber que a amostra oferecida pela WBM é bastante significativa e, considerando que usa a mesma metodologia para a coleta dos diferentes sites que arquiva, tal amostra pode ser utilizada em estudos comparativos de métricas específicas, como nesse estudo.

Figura 6. Print com destaque para a parte do código que conta por ano o número de atualizações registradas (item b da lista de objetivos). Fonte: Elaborado pelo autor.

Com o número de versões contabilizadas é possível então gerar uma primeira visualização que representa a série temporal de atualizações extraídas do registro da WBM. O gráfico abaixo (FIG.7) traz essa métrica plotada a partir dos dados do site www.ig.com.br. Para efeito desse estudo, apesar de coletados, os dados relativos ao ano de 2015 foram excluídos dos gráficos já que se referem a apenas alguns meses, configurando uma unidade temporal diferente do restante.

Figura 7. Gráfico plotado com as atualizações registradas entre os anos de 2000 e 2014 do site www.ig.com.br (item d da lista de objetivos). Fonte: Elaborado pelo autor.

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Para seleção dos sites jornalísticos do nosso estudo utilizamos a classificação da plataforma Alexa6 que, entre outras ferramentas, ranqueia sites e portais da internet em função do número de acessos. Entre os 50 sites com os maiores números no Brasil, selecionamos os que pertencem à categoria jornalismo. Por esse critério foram escolhidos os sites estadão.com.br; uol.com.br; globo.com; ig.com.br; terra.com.br e abril.com.br . As visualizações abaixo (FIG. 8) foram conseguidas seguindo as etapas já descritas e demonstram como a característica da atualização constante passou a ter uma relevância entre os anos de 2010 (estadão) e 2011 (uol, globo, ig e terra) impactando de forma maior ou menor, de acordo com cada caso, a quantidade de atualizações registradas. Apenas o site abril.com.br parece ter aumentado o número de atualizações tardiamente com um incremente significativo apenas em 2013. Tal fato talvez se justifique pela periodicidade semanal e não diária da produção jornalística original gerada pelos veículos administrados pela empresa que, em 2013, passaria a ter uma integração mais forte à internet como canal de distribuição desse conteúdo.

Figura 8. Gráficos mostrando o crescimento dos números de atualizações a partir dos anos 2010 e 2011 nos principais sites jornalísticos brasileiros. Fonte: Elaborado pelo autor.

Verificando o site abril.com em suas versões anteriores observamos também que durante um bom período de tempo a página inicial apenas era usada para divulgar as diversas publicações semanais da editora e não para divulgação direta de notícias, procedimento que só foi implementado nos últimos anos e ainda de forma parcial. Tal situação explica as diferenças encontradas nos gráficos acima e nos permite também explorar outro aspecto dos arquivos que é a sua estrutura gráfica ou visual. 6.  www.alexa.com

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Uma função ainda em fase de teste permite que também salvemos prints, ou seja, visualizações das versões arquivadas (FIG. 9), facilitando a compreensão das mudanças estéticas ou funcionais que os administradores do site foram definindo ao longo da série histórica analisada.

Figura 9. Recorte de print salvo a partir do site www.abril.com.br demonstrando que, nesse caso a utilização da home é mais utilizada para divulgação das revistas do que das notícias. Fonte: Elaborado pelo autor.

Por fim, a partir dos endereços que contém as páginas arquivadas é possível coletar os textos utilizados nos links da página principal que indicam os temas de interesse e, no caso de sites jornalísticos, em grande parte, as chamadas para as matérias que foram publicadas. Apenas como teste utilizamos a ferramenta no site do LABCOM (www.labcomufma. com) que tem poucas versões arquivadas na WB para extrair os testos dos links e verificar a frequência de utilização de cada termo (FIG. 10).

Figura 10. Gráfico que mostra as 50 palavras ou expressões mais usadas nas versões arquivadas do site www.labcomufma.com . Fonte: Elaborado pelo autor.

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Pelo gráfico é possível identificar que o projeto Semente Digital, que trabalha a preservação do patrimônio histórico da cidade de São Luís utilizando tecnologia, teve mais atenção nas publicações do site, perdendo apenas para a palavra “confira” muito utilizada para indicar links e chamadas de matérias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A vertente aplicada do presente trabalho é um recorte de uma iniciativa mais ampla voltada ao desenvolvimento de métodos específicos e de uma epistemologia especializada para os estudos da Comunicação Digital. A automatização de processos repetitivos e a análise de grandes volumes de dados têm demonstrado um potencial de oportunidades em termos de pesquisa na área de Comunicação e o acesso à memória digital como no experimento aqui apresentado é um exemplo desse caminho. A escala de aplicação de tais ferramentas, que implica num gradiente de possibilidades de utilização, não obriga nenhum pesquisador a aprender a programar, mas aponta para um caminho onde a formação de equipes multidisciplinares e a compreensão técnica das características dos meios de comunicação, principalmente a internet, pode trazer fundamental diferença nos horizontes a serem vislumbrados. Tal fato se reflete principalmente na estratégia de amostragem permitida que, com o software e a coleta automatizada passa a oferecer mais abrangência e, consequentemente, potencial de inferência maior. No atual estádio de desenvolvimento, o código já consegue cumprir os objetivos básicos inicialmente propostos oferecendo um caminho simplificado para a extração dos endereços de todas as versões arquivadas na WBM e posterior utilização dos mesmos para análise da frequência de mudanças ao longo do tempo, arquivamento de imagens das páginas principais e coleta e análise das palavras e expressões mais utilizadas na série histórica em estudo. Este e outras soluções de código, tais como as também desenvolvidas em Santos (2013 e 2014), que constituem a parte aplicada da proposta dos métodos digitais em pesquisas da área de Comunicação serão em breve oferecidas à comunidade científica através de um site específico ainda em construção que utilizará o domínio www.labcomdados.com.br .

REFERÊNCIAS BIRD, Steven; LOPER, Edward; KLEIN, Ewan. Natural Language Processing with Python: analyzing text with the Natural Language Toolkit. New York: O’Reilly Media Inc., 2009. BONACICH, Phillip; LU, Phillip. Introduction to mathematical sociology. New Jersey: Princeton University Press, 2012. BRADSHAW, Paul. Scraping for Journalists. Leanpub, 2014, [E-book]. GLEICK, James. A Informação. Uma história, uma teoria, uma enxurrada. São Paulo, Companhia das Letras, 013. MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambrige: Mit Press, 2001. MORETTI, Franco. Graphs, maps, trees. Abstract models for literary history. New York, Verso, 2007. ROGERS, Richard. Digital Methods. Cambridge: Mit Press, 2013. E-book.

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Métodos digitais e a memória acessada por APIs: desenvolvimento de ferramenta para extração de dados de portais jornalísticos a partir da WayBack Machine Márcio Carneiro dos Santos

SANTOS, Márcio. Conversando com uma API: um estudo exploratório sobre TV social a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão. Revista Geminis, ano 4 n. 1, p. 89-107, São Carlos. 2013. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2013. SANTOS, Márcio. Textos gerados por software. Surge um novo gênero jornalístico. Anais XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Foz do Iguaçu, 2014. Disponível em: . Acesso em 26 jan. 2014.

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Dinâmicas ciberjornalísticas na produção do jornal impresso: o desafio da Redação integrada em Zero Hora Cyberjournalism dynamics in the newspaper’s production: the challenge of the newsroom convergence at Zero Hora Ta í s S e i b t 1

Resumo: O processo de integração das redações do jornal impresso e do site de Zero Hora (RS), iniciado em 2012, acarretou em uma série de mudanças nos processos de produção da Redação. O desdobramento desse processo foi o objeto de estudo da dissertação de mestrado defendida por esta autora em 2014. Neste artigo, será apresentado o último recorte analítico da pesquisa, que tratou mais especificamente da interferência das dinâmicas ciberjornalísticas nos processos de produção da Redação.

Palavras-chave: ciberjornalismo; redação integrada; jornalismo multimídia. Abstract: The newsroom’s convergence process at Zero Hora (RS) started in 2012. It resulted in a series of changes in the production processes of the newspaper. The development of this process was the subject matter of the master study defended by this author in 2014. In this article, the last analytical approach of the research will be presented. In that analysis was dealt more specifically the interference of cyberjournalism dynamics in the newsroom production processes.

Keywords: cyberjournalism; newsroom convergence; multimedia journalism.

INTRODUÇÃO INTEGRAÇÃO MULTIMÍDIA na Redação do jornal Zero Hora2, de Porto Alegre (RS),

A

revelou tensões em torno da exigência de novas habilidades profissionais para lidar com os diferentes modos de produção que as mídias digitais impõem e a necessidade de se conceber um produto jornalístico mais bem resolvido nesse ambiente. Trata-se de um movimento condizente com a crise do jornalismo tradicional, amplamente problematizada por diversos autores na última década. Até hoje, no entanto, empresas consagradas na mídia consolidada, como é o caso de Zero Hora, ainda procuram um modelo de atuação multiplataforma. 1.  Doutoranda em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS. E-mail: [email protected]. 2.  Fundado em 1964, Zero Hora é um dos jornais diários brasileiros de maior circulação, ocupando a sexta colocação no ranking do Instituto Verificador de Circulação (IVC), com 183 mil exemplares. Pertencente ao Grupo RBS, grupo de comunicação com atuação no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, com emissoras de rádio e televisão, jornais e sites, além de um núcleo de atuação em negócios digitais em São Paulo, Zero Hora é o jornal de maior circulação no Rio Grande do Sul.

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O estudo de caso3 que instrumenta a redação deste artigo foi realizado entre março de 2012 e outubro de 2013, contemplando diferentes movimentos metodológicos (observações de rotina, entrevistas em profundidade, acesso a documentos internos da empresa e análise de conteúdos produzidos pelo jornal) para abarcar as quatro dimensões da convergência jornalística (SALAVERRÍA; NEGREDO, 2008): empresarial, tecnológica, profissional e editorial. Neste texto, será apresentado o último recorte analítico da pesquisa, que tratou mais especificamente da interferência das dinâmicas ciberjornalísticas nos processos de produção da Redação. Essas dinâmicas foram extraídas dos estudos de SCHWINGEL (2012), MIELNICZUK (2003) e MACHADO e PALACIOS (1997), e funcionaram, metodologicamente, como categorias de análise (CARAZO, 2006). As reflexões aqui apresentadas ajudam a iluminar a discussão acerca das transformações pelas quais o jornalismo tradicional passa na contemporaneidade, a partir de uma visão mais próxima da realidade concreta de uma Redação.

CIBERJORNALISMO E CONVERGÊNCIA JORNALÍSTICA A emergência das ferramentas digitais, especialmente por seu alcance na sociedade desde o fim da década de 1990 e início dos anos 2000, tem abalado a mídia impressa de forma particular. Conforme recupera Schwingel (2012, p. 27), em todo o mundo e mais especificamente na América Latina, os jornais impressos foram os primeiros da indústria de mídia a investir na internet, contratando ou alocando profissionais para a edição online. Em tempo, tratemos aqui de diferenciar o que na Redação de Zero Hora denomina-se por “online” e “offline” da nomenclatura usada na literatura acadêmica para delimitar o jornalismo no ciberespaço. Em Zero Hora, o termo “online” é usado de forma genérica para se referir ao site, enquanto “offline” faz referência ao jornal em papel. Em torno dessa terminologia, no entanto, estão inúmeras apreensões conceituais problematizadas por dezenas de autores não havendo ainda consenso sobre o termo mais adequado. Em Schwingel (2012), encontra-se um apanhado das diferentes denominações já utilizadas – jornalismo online, jornalismo eletrônico, jornalismo em rede, webjornalismo, jornalismo digital, jornalismo multimídia, ciberjornalismo4. A conclusão da autora é que “(...) o prefixo ciber delimita e define mais precisamente o campo de produção que se propõe como sendo o da prática jornalística no ciberespaço” (SCHWINGEL, 2012, p. 35), ou, como define Salaverría (2005, p. 21 in SCHWINGEL, 2012, p. 34), “(...) a especialidade do jornalismo que emprega o ciberespaço para investigar, produzir e, sobretudo, difundir conteúdos jornalísticos”. Em busca de uma definição mais precisa para esta modalidade jornalística ainda em formação, a autora propõe que ciberjornalismo é (...) a modalidade jornalística no ciberespaço fundamentada pela utilização de sistemas automatizados de produção de conteúdos que possibilitam a composição de narrativas hipertextuais, multimídias e interativas. Seu processo de produção contempla a atualização 3.  O estudo foi realizado para a dissertação de mestrado Redação integrada: a experiência do jornal Zero Hora no processo de convergência jornalística, defendida por esta autora em 2014, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo (RS). 4.  Em SCHWINGEL (2012, pp. 31-7), estão detalhadas as sistematizações em torno da terminologia feitas por autores como Diaz Noci (2001; 2003), Salaverría (2003; 2005), Mielniczuk (2003); Canavilhas (1999); Machado (2000), entre outros.

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contínua, o armazenamento e recuperação de conteúdos e a liberdade narrativa com a flexibilização dos limites de tempo e espaço, e com a possibilidade de incorporar o usuário nas etapas de produção. Os sistemas de gerenciamento e publicação de conteúdos são vinculados a bancos de dados relacionais e complexos. (SCHWINGEL, 2012, p. 36)

A partir dessa definição, Schwingel (2012) enumera oito princípios básicos do ciberjornalismo: multimidialidade, interatividade, hipertextualidade, customização de conteúdos, memória, atualização contínua, flexibilização dos limites de tempo e espaço como fator de produção e uso de ferramentas automatizadas no processo de produção. Em parte, os princípios elencados pela autora avançam em relação a estudos anteriores, ao mesmo tempo em que recuperam características do ciberjornalismo enumeradas por outros pesquisadores, como Machado e Palácios (1997): interatividade, customização, hipertextualidade, multimidialidade e instantaneidade. Canavilhas (2001) também identificou características similares: interatividade, hipertexto, não linearidade, som e vídeo (que se poderia considerar como multimidialidade). É possível inferir que o aprimoramento do que caracteriza o ciberjornalismo verificado no trabalho de Schwingel (2012) pode estar relacionado ao próprio desenvolvimento da prática jornalística no ciberespaço. Desde seu surgimento, o jornalismo na internet apresenta diferentes fases, as quais pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Online da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA) têm chamado de gerações. O jornalismo de primeira geração continha reproduções de partes dos grandes jornais impressos, apenas transpondo as principais matérias de algumas editorias. Na segunda geração, os jornais digitais começaram a explorar potencialidades como links entre conteúdos e e-mail como possibilidade de comunicação com os leitores. Na terceira geração, a partir da crescente popularização da internet, começam a surgir sites jornalísticos que extrapolam a versão para a web do jornal impresso (MIELNICZUK, 2003, pp. 32, 35 e 36). Só então recursos multimídia, como sons e animações, e de interatividade, como enquetes, chats e fóruns passam a ter presença mais marcante. Pode-se dizer, portanto, que as características do ciberjornalismo gestadas pelos pesquisadores da UFBA já em 1996, quando publicado o Manual de Jornalismo na Internet5, só irão se cristalizar a partir da terceira geração. Naquela obra inicial, Machado e Palacios (1997) já percebiam o potencial de contextualização dos fatos que a internet oferecia, tendo bancos de dados digitais como suporte – a memória –, assim como a emergência do noticiário instantâneo, desvinculado dos horários de fechamento da versão impressa, que no começo ditavam a periodicidade também dos sites. Por outro lado, os autores assinalaram que a interatividade era ainda limitada nos primeiros jornais digitais, ficando resumida às sugestões de usuários enviadas por correio eletrônico. O recurso do hipertexto, por sua vez, era subaproveitado de duas maneiras: havia um número reduzido de retrancas interligadas, abusando de textos longos, e a lógica das editorias era muito atrelada ao jornalismo tradicional, restringindo vinculações de publicações com o mesmo tema, mas com enfoques diferentes. 5.  Editado por Elias Machado e Marcos Palacios, o Manual de Jornalismo na Internet é considerado um livro inaugural para o estudo do ciberjornalismo no Brasil. Uma versão digital revisada foi disponibilizada pelos autores em 1997, no site da UFBA. É esta a versão usada como referência neste trabalho.

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Mais recentemente, a proposição dos pesquisadores da UFBA passou a considerar uma quarta geração do ciberjornalismo, tendo em vista a utilização de bancos de dados inteligentes e dinâmicos na elaboração de produtos jornalísticos. Assim, Schwingel (2012, p. 46) sistematiza o desenvolvimento do ciberjornalismo em cinco etapas: experiências pioneiras, com a informatização das redações nos anos 1960; experiências de primeira geração, a partir de 1992, quando surgem as primeiras páginas de notícias na web, basicamente transpondo integralmente o que se publicava nos impressos; experiências de segunda geração, a partir de 1995, quando começam a se apresentar as características específicas da web; experiências de terceira geração, já sem uma vinculação direta com o modelo do impresso, com os diferenciais do ciberespaço, valorização de recursos audiovisuais e de interatividade; e experiências ciberjornalísticas, a partir de 2002, com o uso de bancos de dados integrados e a incorporação do usuário no processo de produção. Nessa última etapa é que o jornalismo no ciberespaço poderia se diferenciar completamente das práticas anteriores. Diante do desafio de operacionalizar práticas jornalísticas adequadas às dinâmicas do ciberespaço, a convergência se tornou palavra de ordem em recentes experiências de mídia impressa pelo mundo, modificando a estrutura de trabalho nas redações de grandes jornais. Em 2006, o estadunidense The New York Times inaugurou o movimento de integração multimídia espalhando pela Redação entusiastas das mídias digitais (SILVA; SANDONATO, 2012, online). O Globo se apresentou como o primeiro grande jornal do Brasil a integrar as redações de impresso e internet, em 2009 (AMADO; CASTRO; OLIVEIRA, 2009, online), embora a Gazeta do Povo, no Paraná, já estivesse experimentando um processo de integração desde 2004, conforme Claudia Quadros e Itanel Quadros (2011), mas somente a partir de 2006, as redações dos jornais impresso e digital passaram a dividir o mesmo espaço. Esse movimento está em conformidade com a concepção de convergência jornalística, proposta pelo grupo de pesquisadores espanhóis Infotendencias a partir de uma revisão da literatura acadêmica sobre estudos de convergência. A definição de convergência jornalística está alicerçada em quatro dimensões essenciais. Em síntese: La convergencia periodística es un proceso multidimensional que, facilitado por la implantación generalizada de las tecnologías digitales de telecomunicación, afecta al ámbito tecnológico, empresarial, profesional y editorial de los medios de comunicación, propiciando una integración de herramientas, espacios, métodos de trabajo y lenguajes anteriormente disregrados, de forma que los periodistas elaboran contenidos que se distribuyen a través de múltiples plataformas, mediante los lenguajes propios de cada una. (SALAVERRÍA; AVILÉS; MASIP, 2010, p. 59)

A dimensão tecnológica da convergência jornalística refere-se à capacidade de adquirir, processar, transportar e apresentar simultaneamente voz, dados e vídeo sobre uma mesma rede; a empresarial diz respeito à possibilidade de criação de alianças, fusões e absorções de empresas; a profissional alude à formação de um perfil profissional polivalente, capaz de produzir conteúdos para vários suportes; e a editorial tem a ver com o produto jornalístico em si, versando sobre a mudança das características tradicionais do conteúdo produzido pela mídia. Todas essas dimensões estão implicadas na Redação integrada.

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A REDAÇÃO INTEGRADA EM ZERO HORA Por conta da vinculação da pesquisadora com a organização jornalística pesquisada, portanto, parte ativa do processo em estudo, mesmo nas observações de rotina e nas entrevistas em profundidade, sempre esteve de fundo a experiência pessoal no cotidiano da Redação. Todos os procedimentos metodológicos realizados interagiram com as impressões cotidianas, já que eu era repórter na mesma Redação desde 2010. Muitos elementos descritivos brotam da vivência diária no ambiente integrado e da convivência com colegas envolvidos em determinadas coberturas ou treinamentos, bem como do acesso a informações internas acerca da adoção de novas tecnologias ou ferramentas de trabalho. Se, por um lado, parece haver certa limitação epistemológica para a realização da pesquisa nesses moldes, devido ao distanciamento quase inexistente entre a pesquisadora e o objeto de pesquisa, por outro, o acesso irrestrito às tensões cotidianas impostas pelo processo de convergência pesquisado permitiram uma interpretação privilegiada das reconfigurações impostas por esse novo modelo de Redação. Igualmente, o acesso a documentos internos da Redação, principalmente comunicados da chefia de reportagem, ajudaram a elucidar os rumos da convergência jornalística desejada pela empresa. A utilização desses documentos na pesquisa teve o aval da diretora de Redação, Marta Gleich. Em contrapartida, a pesquisa ofereceu contribuições para melhorar as práticas propriamente ditas na Redação na medida em que avançavam as reflexões sobre o processo de convergência no decorrer do estudo. O vínculo funcional, por fim, pareceu favorecer o estudo do caso específico de Zero Hora em profundidade, de modo a chegar mais perto das decisões, rotinas e estrutura da Redação. Especialmente na última etapa da pesquisa de campo, objeto deste artigo, a experiência pessoal no cotidiano da Redação esteve mais evidente, enquanto as aproximações anteriores buscaram suprir, em alguma medida, a suposta falta de distanciamento da pesquisadora com o objeto empírico da pesquisa6. Sobremaneira, mesmo com a preocupação de formatar esse tipo de incursão nas rotinas produtivas, seria impossível dissociar tais reflexões da experiência prática, como se revelou no diário de campo. Na última etapa de aproximação com o campo empírico da pesquisa foi realizado um diário descritivo de rotinas da Redação no período de duas semanas consecutivas, entre 23 de setembro e 4 de outubro de 2013. A interpretação dos registros foi guiada por categorias de análise previamente delimitadas, visando um maior rigor analítico para que este estudo possa ser não apenas descritivo, mas também exploratório. Respecto a su propósito, las investigaciones realizadas a través del método de estudio de caso pueden ser: descriptivas, si lo que se pretende es identificar y describir los distintos factores que ejercen influencia en el fenômeno estudiado, y exploratorias, si a través de las mismas se pretende conseguir un acercamiento entre las teorías inscritas en el marco teórico y la realidad del objeto de estudio. (CARAZO, 2006, p. 171) 6.  Nas etapas anteriores, foi realizada uma entrevista estruturada com perguntas abertas com o editor digital de Zero Hora, Pedro Dias Lopes, que liderou o processo de integração da Redação no momento inicial de sua implantação. A primeira observação de rotina foi feita em 28 de maio de 2012, na editoria de Esportes do jornal Zero Hora, que serviu como piloto para a integração total da Redação. O segundo acompanhamento de rotina foi realizado entre os dias 3 e 7 de dezembro de 2012, por meio da assistência reuniões de pauta, principalmente no âmbito da coordenação de produção do jornal.

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Yin (1989, pp. 29-36 in CARAZO, 2006, p. 179) propõe um desenho de estudo de caso que leva em conta cinco componentes essenciais em sua construção: as perguntas de investigação; as proposições teóricas; as unidades de análise; a vinculação lógica dos dados às proposições e os critérios para a interpretação dos dados. Levando em conta que a questão central da pesquisa é o modo como as dinâmicas do ciberjornalismo incidem nos processos de produção da Redação de Zero Hora e as proposições teóricas de fundo para este estudo de caso partem da caracterização das práticas ciberjornalísticas, foram estabelecidas como categorias de análise das anotações do diário descritivo as oito características do ciberjornalismo, conforme Schwingel (2012): multimidialidade, interatividade, hipertextualidade, customização, memória, atualização contínua, flexibilização dos limites de tempo e espaço, uso de ferramentas automatizadas. No período em que foi realizado o diário descritivo – entre 23 de setembro e 4 de outubro de 2013 – o processo de convergência em Zero Hora completava um ano e meio. Assim, algumas rotinas estabelecidas no começo da integração já estavam consolidadas, enquanto outros fluxos seguiam problemáticos, levando a uma reflexão interna sobre os rumos que o processo de convergência deveria tomar em Zero Hora7. A necessidade de repensar a estrutura unificada ficou evidente na observação das práticas da Redação, onde se verificou que havia diferentes níveis de integração multimídia na equipe, o que acabava prejudicando a efetividade e a qualidade de ambas as plataformas. Havia uma percepção de que os dois produtos – o impresso e o site – saíram perdendo com a integração. Duas são as questões que, aparentemente, levaram a essa perda: a vinculação de apostas multimídia aos temas do dia para a edição impressa e a baixa afinidade de boa parcela dos repórteres e editores originários do papel com as ferramentas digitais. As páginas 4 e 5 da edição impressa de Zero Hora eram sempre dedicadas a uma reportagem especial, sendo esta a grande aposta do jornal para o dia. Em geral, o tema da reportagem especial acabava recebendo também maior investimento multimídia. No primeiro dia de observação, 23 de setembro de 2013, o tema da reportagem especial para a edição do dia seguinte era a participação da presidente Dilma Rousseff na abertura da Assembleia-geral da Organização das Nações Unidas, onde provavelmente ela falaria dos casos de espionagem internacional revelados dias antes. Por volta das 15h30min, o repórter, o editor-chefe, o editor de Arte, o editor de Tecnologia e o editor de Mundo se reuniram para discutir como fazer um mapa da espionagem norte-americana para o papel e o site. É um exemplo de articulação em equipe para a produção multimídia que impacta na rotina de diversos atores da equipe – especialmente do repórter, já que é ele mesmo quem tem de fazer a apuração para redigir a reportagem e ainda disponibilizar os dados necessários para a infografia da forma mais adequada ao formato. Enquanto essa discussão acontecia, já estava publicado no site um primeiro fragmento da apuração, dando conta da chegada de Dilma Rousseff a

7.  Após a conclusão da dissertação, em maio de 2014, para marcar os 50 anos de Zero Hora, houve uma reformulação do design e, inclusive, das editorias que compõem a edição impressa do jornal, bem como o site zerohora.com. Também foi novamente reformulada a estrutura da Redação, recompondo uma equipe dedicada especificamente ao site.

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Nova York para a referida reunião8. A notícia, publicada às 13h28min, continha algum nível de hipertextualidade, com foco na contextualização do assunto que deveria pautar o discurso da presidenta brasileira no dia seguinte, ou seja, a revelação sobre a espionagem estadunidense ao Brasil. O recurso da hipertextualidade, no mesmo dia, foi completamente ignorado em uma matéria publicada às 16h47min, sobre a primeira médica estrangeira do programa Mais Médicos a receber registro para trabalhar em Porto Alegre9. A polêmica em torno da medida do governo federal para ampliar o atendimento médico vinha sendo amplamente coberta desde o anúncio do programa, dois meses antes. Ficou claro que o repórter apenas publicou no site o texto que havia redigido para o papel. Essa situação demonstra que apenas aprender a usar o publicador de notícias do site não é fazer ciberjornalismo. Ainda que a dinâmica da internet seja mais horizontal e dê mais autonomia ao repórter, que acaba sendo seu próprio editor, a falta de um profissional preocupado em editar para o site contribuiu para que ocorresse esse tipo de situação. A exigência era que cada repórter se responsabilizasse pelo conteúdo que produzia para todas as plataformas, mas nem todos dominavam suficientemente o conceito do ciberjornalismo e atuavam ainda muito atrelados às práticas da mídia impressa. Outra questão é que, dado o envolvimento exigido do repórter na produção de conteúdos para o site e para o papel, tendo no horizonte o fechamento do jornal impresso, não raro, a última coisa que o repórter fazia antes de sair da Redação era publicar a matéria no site, já exausto e provavelmente fazendo horas extras. É o problema da vinculação das apostas do impresso com o investimento multimídia, que gera uma sobrecarga ao profissional e acaba prejudicando as duas plataformas. No dia 27 de setembro de 2013, uma notícia publicada pela editoria de Política aproveitou a popularidade de um tema que estava em destaque nas mídias sociais: o retorno da presidenta Dilma Rousseff ao Twitter10. Numa estratégia da assessoria da presidenta, o perfil oficial de Dilma retornou à rede interagindo com um perfil falso muito popular entre os usuários. Se a sacada de aproveitar o tema que já estava em evidência demonstra que o jornal está afinado com os processos da internet, a maneira como a notícia foi publicada no site mostra o oposto. Ao invés de usar os recursos oferecidos pelo Twitter e pelo sistema de publicação de notícias do jornal para embedar os tuítes originais na matéria, a opção da reportagem foi transcrever, textualmente, as postagens. Poderiam ter sido mais bem aproveitadas, nessa matéria, as ferramentas automatizadas de publicação de conteúdo. Em outra material do mesmo dia, na editoria de Economia, o repórter optou por uma ferramenta gratuita, disponível na internet, para apresentar graficamente os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o grau de escolaridade da população11. A comparação entre as publicações permite inferir que o uso de ferramentas automatizadas não se dá de maneira homogênea, havendo níveis diferentes 8.  “Dilma chega a Nova York para Assembleia Geral da ONU”. Disponível em: http://migre.me/gJnsw 9.  “Primeira médica estrangeira recebe registro para trabalhar em Porto Alegre”. Disponível em: http:// migre.me/gJnzC 10.  “Dilma Rousseff volta ao Twitter e brinca com fake famoso”. Disponível em: http://migre.me/gJppp 11.  “Percentual da população do Rio Grande do Sul com maior escolaridade fica abaixo da média brasileira”. Disponível em: http://migre.me/gJprT

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de polivalência entre um repórter e outro, o que revela, consequentemente, diferentes níveis de integração multimídia entre uma editoria e outra. A ausência de um treinamento formal para o uso de ferramentas digitais pode ser um dos fatores para que haja esse desnivelamento. A opção de Zero Hora foi de “intercâmbio”: um colega repassaria ao outro seus conhecimentos no cotidiano. À primeira vista, a alternativa seria mais flexível e tenderia a impor menos restrições ao treinamento. Contudo, esse modelo de troca interfere significativamente na rotina de quem precisa aprender e de quem pode ensinar, pois exige tempo de dedicação – e tempo, numa Redação que exige atualização contínua das informações, é artigo cada vez menos disponível. A administração do tempo era alvo de tensão também para a produção multimídia. Era comum a produção de videodocumentários para ZH TV vinculados às reportagens especiais da semana. Uma das razões era gerar convergência entre o papel e o site, criando uma complementaridade de conteúdos próxima do que se poderia conceber como transmídia. Outra razão dizia respeito às condições de produção: da maneira como as equipes das editorias estavam constituídas, era improvável que um editor conseguisse destacar um repórter para fazer uma produção estritamente multimídia, consagrando-se a prática de aquele repórter destacado para uma pauta especial produzir também o vídeo. Como o diário descritivo foi feito enquanto eu ainda estava na ativa, tomo como exemplo uma reportagem que eu estava produzindo no período de observação sobre o dia do professor. A ideia era traçar o perfil de quatro professores, um de cada rede de ensino: estadual, municipal, federal e privada. Comecei a buscar os personagens numa segunda-feira e deveria redigir a matéria até a sexta-feira da mesma semana. A proposta inicial era retratar a rotina de sala de aula de cada um dos personagens. Quando já havia sido feita a primeira entrevista – sem gravação de vídeo – a pauta foi rediscutida e só então surgiu a demanda multimídia: o texto no jornal teria foco na sala de aula e os vídeos no site apostariam no professor “por trás da lousa”, buscando alguma referência no lazer de cada um deles. Essa mudança de abordagem com a pauta já em andamento gerou dupla tensão. Primeiro, o retrabalho, já que seria necessário retornar a um dos entrevistados e refazer a entrevista para obter a captação do vídeo. Segundo, o tempo de produção, pois ao invés de quatro, seriam necessárias, no mínimo, oito externas, uma vez que cada professor exigiria captação de imagens em dois momentos de sua rotina. A solução, para não derrubar a proposta da pauta, era ampliar o prazo de produção da reportagem de uma para duas semanas. O prazo de produção foi ampliado nesse caso, penalizando a escala da editoria, do ponto de vista do editor, uma vez que destacar um repórter para um projeto em período estendido prejudica o dia a dia da reportagem. Como repórter, porém, percebi que ter mais prazo para a produção foi essencial para o resultado do trabalho, pois possibilitou um melhor planejamento de todas as partes envolvidas, desde a captação até a edição do material. Muitas vezes, por não ter a pauta multimídia bem definida, ocorre de a equipe voltar para a Redação com material que acaba sendo desperdiçado pela falta de condições de edição. Logo, há uma flexibilização de tempo e espaço na produção ciberjornalística, mas ela é relativa. Há limitações de processamento de material, como na edição de vídeos, no caso acima mencionado, e também de tempo de produção.

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Um bom exemplo de exploração das potencialidades do ciberjornalismo durante o período de observação foi a cobertura da editoria de Esportes no dia 4 de outubro de 2013, quando Dunga deixou de ser técnico do Internacional. Às 12h12min foi publicada a primeira notícia, informando que o treinador colorado havia sido demitido12. Menos de 30 minutos depois, outra notícia foi publicada recordando outros ídolos da torcida do Internacional quando jogadores que depois fracassaram como técnicos13, atendendo a pelo menos duas dinâmicas do ciberjornalismo: atualização contínua e memória. Às 13h02, menos de uma hora após a primeira notícia, uma entrevista com o treinador recém deposto14 estava publicada no site, mantendo o assunto em constante atualização. Pouco depois, às 13h44min, um vídeo acrescentou a dimensão de multimidialidade à cobertura, com os comentaristas de Zero Hora falando sobre a demissão15. Na sequência, um infográfico retomando 10 momentos do treinador à frente do Internacional16 mesclaram memória e multimidialidade na cobertura do assunto, que contou ainda com recursos de interatividade via mídias sociais e hipertextualidade nas publicações, direcionando o leitor a matérias relacionadas e conteúdos multimídia. Contando com o esforço da equipe, que produzia fragmentadamente, ao estilo de atualização contínua do ciberjornalismo, o assunto continuou em alta em zerohora.com durante o dia todo. Contudo, no fechamento da edição impressa, o processo foi de mero reempacotamento das informações, levando para o papel o resumo dos acontecimentos do dia. Revela-se aí, mais uma vez, o prejuízo do envolvimento da equipe na cobertura online, que funcionou de forma exemplar, ao produto final do jornal impresso, que ficou limitado a “requentar” informação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo demonstrado neste trabalho, grosso modo, a exigência de produção para todas as plataformas levou a uma inversão do caminho trilhado pelos primeiros jornais digitais, nos anos 1990, que simplesmente disponibilizavam no site a edição impressa. No modelo de atuação multiplataforma vigorante em Zero Hora no período analisado, o que se fazia, em boa parte dos casos, era uma cópia do site no jornal impresso. A edição do dia seguinte reproduzia uma síntese do que foi noticiado ao longo do dia anterior na internet, aprofundava ou contextualizava alguns temas. Ainda assim, esse mesmo conteúdo era publicado no site, antes ou depois de a edição impressa circular. O reaproveitamento do material não é um problema, até porque evitar o retrabalho era uma das intenções do processo de integração. Além disso, o jornalismo na internet não precisa – nem deve – se resumir ao instantâneo, exige também contextualização e aprofundamento. Mas o simples reempacotamento desses conteúdos, produzidos por um mesmo jornalista, passa a ser um problema quando não há uma preocupação com as 12.  “Inter demite técnico Dunga após sequência de derrotas no Brasileirão”. Disponível em: http://migre. me/gJtrZ 13.  “Dunga é mais um ídolo colorado que fracassa como técnico do Inter”. Disponível em: http://migre. me/gJtuW 14.  “Dunga fala sobre a demissão do Inter: ‘Tem de aguentar no osso do peito’” Disponível em: http:// migre.me/gJtyX 15.  “Por que Dunga caiu?”. Disponível em: http://migre.me/gJtBf 16.  “Dez momentos de Dunga”. Disponível em: http://migre.me/gJtEM

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potencialidades de cada suporte. Aprofundamento e contextualização em ciberjornalismo envolve apropriação de dinâmicas como hipertextualidade, multimidialidade, customização, uso de ferramentas automatizadas, interatividade. Do contrário, o que se está fazendo é jornalismo impresso publicado na internet. Há espaço, no meio digital, para explorar linguagens que expandam e qualifiquem o conteúdo jornalístico, principalmente, com recursos multimídia. A “negligência” com esses recursos ao publicar os conteúdos na internet parece estar relacionada às condições de trabalho dos profissionais, muitas vezes sobrecarregados, como relatado nesta análise. Mesmo a prática do reempacotamento tem ligação com o déficit de equipe, já que houve aumento de demanda, mas o número de profissionais permaneceu igual. Contribui ainda a falta de treinamento, desconsiderando que a prática do ciberjornalismo subentende uma capacidade de escrita jornalística distinta da tradicional. A necessidade que Zero Hora sentiu de repensar outra vez o layout da Redação, portanto, demonstra que ser multimídia é diferente de ser multitarefa. No modelo totalmente integrado, ficou perceptível que, embora se dissesse que o mais importante é o profissional dominar o conceito de atuação multimídia, na prática, ele era cobrado pela execução de múltiplas tarefas. Uma última inferência possível, enfim, é que não necessariamente a convergência jornalística prescinde de uma Redação totalmente integrada. É importante que haja um nível elevado de integração para que se tenha o mínimo de unidade entre os produtos impresso e digital, mas esta integração precisa permitir uma operação equilibrada para o profissional e a preservação das particularidades de cada plataforma.

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Uma reflexão sobre os mecanismos didáticos na construção da realidade: a função pedagógica do telejornalismo A reflection on the learning mechanisms in the construction of reality: the pedagogical function of TV News Laerte Cerqueira 1

Resumo: O homem conhece o mundo pelos outros homens, pelos livros, observação, pelos meios de comunicação. Ao se apropriar das ideias que o circundam, promove a resignificam. Acreditamos que o telejornalismo tem a sua contribuição nesse processo. Organizando, condensando, enquadrando, reproduzindo e buscando ser entendido facilmente, para ser consumido e repassado. Neste trabalho, fazemos uma reflexão sobre a função pedagógica do telejornalismo, em sua forma de construção noticiosa, caracterizada no que chamamos de mecanismos/operadores didáticos. Por meio da observação, buscamos encontrar esses instrumentos comuns à construção das notícias políticas e econômicas no Jornal Nacional, o mais popular do país, de forma a reconhecê-los e fortalecer as discussões teóricas sobre as práticas telejornalísticas, agentes de transformação social e produção do conhecimento.

Palavras-Chave: Telejornalismo; Conhecimento; Função Pedagógica Abstract: The man knows the world by men, for books, observation, by the media. By appropriating the ideas that surround it, promotes reframe. We believe that television journalism has its contribution to this process. Organizing, condensing, framing, playing and looking to be easily understood, to be consumed and passed. This work presents a reflection on the educational function of television news, in form of news construction, characterized in what we call mechanisms / didactic operators. By observing these instruments seek to find common to the construction of political and economic news in the National Journal, the most popular of the country, in order to recognize them and strengthen the theoretical discussions about the TV news practices, social change agents and knowledge production.

Keywords: Television journalism; Knowledge; pedagogical function

EM ON UAL É o mundo que o telejornalismo representa a cada edição? Nos fragmen-

Q

tos da vida cotidiana, dos fatos políticos, econômicos, científicos ou amenidades quais mecanismos demarcam e o que resultaram a produção desse tipo de conhecimento (MEDITCH,1992)? O mundo possível, como definiu Alsina (2009, p. 303).

1.  Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Repórter/Apresentador de TV. Pesquisador do Núcleo de Jornalismo e Contemporaneidade da UFPE. Email: [email protected]

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Uma reflexão sobre os mecanismos didáticos na construção da realidade: a função pedagógica do telejornalismo Laerte Cerqueira

Aquele que cabe em alguns segundos, minutos, arrancado e destacado em meio aos vários momentos da realidade, o mundo real. Mas que parte de um mundo referenciado, colocado sob a lógica cognoscitiva, única maneira de apresentá-lo como presente e fazê-lo ser entendido. Nenhum procedimento no telejornalismo parece divergir com o caminho que o leva ao seu entendimento e consumo. Aliás, parece-me ser ele o mérito de uma boa explicação, uma boa história, cobertura de um fato. As escolhas, os recortes, os formatos, a busca pela melhor fonte e efeitos da apresentação. Nada é pensado sem que nessa reunião de ideias se discuta, individualmente ou em grupo, quais serão as operações para que a mensagem seja recebida da maneira mais compreensível: linguagem, imagem, recursos gráficos, tom, interpretação. Operação/construção que, segundo Vizeu (2009, p. 80), “é resultado de uma série de enquadramentos culturais, das práticas sociais, da cultura profissional, dos constrangimentos organizacionais e do campo da linguagem que os jornalistas mobilizam para produzir notícias”. O texto conversado, com a simplificação da linguagem, o diálogo do verbal com o não- verbal, a utilização de artes gráficas, o tom testemunhal são alguns desses processos presentes no momento de fazer do jornalismo um enunciador. A observação e análise das reportagens nos permitem, num primeiro momento, perceber o ar professoral da cobertura, trazendo elementos de localização, relato simples, objetivação da realidade. Bem como apostas na contextualização, percepção de vozes destoantes, interpretações. Numa outra fase, caracterização dos personagens e seu papel dentro do mundo referencial, prestes a se tornar mundo possível. É esse mundo que queremos adentrar. Nossa proposta está em desenvolvimento embrionário, mas com um caminho bem definido, contribuir teoricamente para a consolidação do campo do jornalismo, com análise que deixa a parte as questões ideológicas e críticas na produção e nos efeitos discursivos, mas que se concentra no método de produção pedagógica. A partir do conceito de um mundo possível materializado pelo telejornalismo, entendido como lugar de referência (Vizeu, 2008) na sociedade brasileira, nossa pretensão discorrer sobre a sua função pedagógica. Ou melhor, a maneira pedagógica que o telejornalismo trata a informação para chegar ao maior número de pessoas possível. Aqui não está, apenas, o papel da atividade como produtora de conhecimento, informação, consagrada por vários estudos (TRAVANCAS, 2007). Buscaremos colocar uma lupa na operacionalização da construção do produto jornalístico feito não para ensinar sobre “isso ou aquilo”, mas para fornecer ao telespectador conteúdo para sua atuação e compartilhamento de informação no mundo que o cerca. Nosso olhar sobre o pedagógico está nos métodos e, consequentemente, no que chamamos de mecanismos/operadores didáticos do processo de produção de uma nova informação, de um novo mundo, após o sujeito enunciador se apropriar dos vários discursos, falas, referências e interpretações para produção de um novo pacote informativo. Nesse artigo, em especial, vamos observar com o Jornal Nacional, o telejornal mais popular do país, operou na construção de algumas reportagens veiculadas, no fim ano passado, e no início deste ano, sobre as reforma ministerial e mudanças econômicas do governo federal.

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Uma reflexão sobre os mecanismos didáticos na construção da realidade: a função pedagógica do telejornalismo Laerte Cerqueira

Visto que os assuntos estão no hall dos que são considerados, por especialistas, de pouco interesse de boa parte da população. Porém, a partir de uma “audiência presumida” (VIZEU, 2007), um público diverso e heterogêneo é imaginado como consumidor desta informação. Entendemos que uma análise interpretativa dos vídeos disponíveis na internet, nos permite, nesse momento, identificarmos os resultados das operações de produção telejornalística. Isto porque acreditamos que elas se materializam na repetição das formas textuais, na relação com o imagético e com os grafismos. Bem como, com a maneira de interpretação. Num estudo mais aprofundado teremos que recorrer a etnometodologia, com observação participante e entrevistas em profundidade (DUARTE E BARROS, 2006), com os envolvidos diretamente no processo.

CONEXÃO COM O MUNDO Ao longo dos últimos anos, o telejornalismo estabeleceu um embate com a internet, meio dinâmico, amplo e rápido de propagar as notícias. Sua pluralidade e possibilidades de contar uma história, unindo texto, vídeo, áudio, levantaram, de certa forma, um debate sobre o futuro do telejornalismo tradicional, com hora marcada, tempo específico, cobertura compacta e intervalo comercial. Os mais pessimistas esperam o declínio dessa maneira de construir a realidade dos fatos cotidianos. Mas a espera continua e o jornalismo feito na televisão se mantém como lugar de referência (VIZEU, 2008, p.25). No Brasil, deficiências na área da educação, ensino e aprendizagem, delegaram à produção noticiosa da televisão, a tarefa de contribuir com o fornecimento de um conhecimento sobre a realidade, gerado sob as regras e procedimentos próprios de produção, impelido pelas rotinas, moldado pelas pressões profissionais e organizacionais e amarrado pela natureza das formas midiáticas. O telejornalismo se apropria de informações brotadas na realidade cotidiana, nas práticas sociais, formuladas por intuição, com objetivos ou necessidade específicos; nascidas, inevitavelmente, de uma catástrofe natural, ou de uma tragédia humana e social; apropria-se de dados referenciados em documentos, declarações e reproduções geradas na observação e no testemunho. Ao se unir a estes produtos da realidade social, cria forma de conhecer a vida que nos cerca, que de alguma forma nos identifica, nos emociona, nos revolta e nos transforma. Para Gomis, os meios de comunicação, entre eles a televisão nos oferecem um presente social abrangente, aquele que nos é oferecido no meio da jornada, nos fazendo comunicar não apenas com a vizinhança, com a familiares. Observa Gomis (1991, p.14): Gracias a los medios, vivimos em el mundo y sabemos lo que está pasando un poco em todas partes. Más aún, gracias a los medios percibimos la realidad no com la fugacidad de un instante aquí mismo, sino como un período consistente y objetivado, como algo possible percibir y comentar, como un referencia general. Son los medios los mantienen la permanencia de uma constelación de hechos que no se desvanecen al difundirlos, sino que impresionan a la audiencia, dan qué pensar, suscitan comentarios y siguem presentes em la conversasión.

O fato é que o telejornalismo consegue esse feito de mexer com as pessoas, completando espaços vazios de suas consciências de mundo, reformando conceitos experimentados e ouvidos, desconstruindo e remexendo o baú de nossas lembranças de

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vida, porque coloca diante de nós questionamentos sobre nossas crenças e verdades naturalizadas, ou seja, nos coloca diante de um conhecimento. Acostado na conclusão de Ekström (2002), o jornalismo, em suas várias formas são, claramente, a mais influente instituição produtora de conhecimento do nosso tempo. Renderings of reality are produced and published day in and day out, whit unparalled penetration. People obtain knoledge of the world outside their immediate experience largely from mass media, where journalistic content predominates. Journalistc ways of depicting reality, jornalists’ moldels and modus operandi also influence other social institutions. (EKSTRÖM, 2002, p. 2)

Ao ser submetido às regras de captação, produção e transferência, esse conhecimento difere do que faria qualquer cidadão. O sujeito treinado para produzir conhecimento de forma rápida, com métodos considerados apenas técnicos e não “científicos” faz diferente de uma pessoa normal. Compartilhamos com a ideia que atribuí entres às várias, funções do telejornalismo, a pedagógica (VIZEU, 2009). Não estamos falando de uma TV que é escola, instituição educacional, ou com programação voltada para a educação formal. Referimos-nos a sua necessidade de se fazer entender, por sua vez utilizar de mecanismos para em meio ao processo de apuração, seleção e nomeação, o discurso orgânico, gerado pela sociedade, pelo acontecimento seja desapropriado, apropriado e redistribuído de uma maneira que atinja seu principal objetivo, o de se comunicar. O conhecimento está ligado ao homem e à sua realidade. Pretende idealizar o bem estar do ser humano, logo o conhecimento nasce das relações do homem com o ambiente, que parte dos pressupostos de interação dele com os objetivos. É uma forma de explicar os fenômenos das relações, seja, entre sujeito/objeto, homem/razão, homem/desejo ou homem/realidade. O que o jornalismo e, especificamente, o telejornalismo fazem é contribuir com essas relações, mas com mecanismos próprios de apuração, seleção e nomeação. Mas, diferente do conhecimento científico, com mais tempo de análise, investigação, provas, com tempo do dia, o tempo dos acontecimentos que preenchem as 24 horas do homem e das suas atividades. Ao propor diálogos de conceitos de autores, como Adelmo Genro Filho, Eduardo Meditsch, Líriam Sponholz e Paulo Freire, que entendem o jornalismo como conhecimento circundante entre a ciência e o senso comum, híbrido, construtor de uma realidade social, Vizeu (2014) nos apresenta o jornalismo produtor de um conhecimento do desvelamento. Aquele que, segundo ele, busca ser mais comum e mais acessível, não se tratando de um conhecimento acabado, sempre um conhecimento aproximado. “O ato de conhecer nunca é pleno. Sempre trabalhamos com aproximações. É de certa forma, o que ocorre no jornalismo, procuramos nos aproximar dos fatos em busca da verdade do acontecimento. E, isso só é possível com um método, com a investigação jornalística” (VIZEU, 2014, p. 08). Como meio de difusão de informação organizada, moldada, manipulada e enquadrada por meio de rituais, regras e pressões organizacionais, com seus “óculos” especiais (BOURDIEU, 1997, p.25) para ver certas coisas e não outras, o telejornalismo produz um conhecimento diferenciado, por isso não poder ser pensada apenas como fonte informação. Esse conhecimento produzido por jornalistas, de maneira objetiva, que não é

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uma negação a subjetividade da comunidade interpretativa (TRAQUINA, 2005, p.139), encontra na televisão ambiente para o seu armazenamento e consequente distribuição. A imagem por sua vez não é só fortalece a crença e a verdade necessárias a existência do conhecimento, como é um atrativo para a obtenção do conhecimento produzido. Reforça Tuchman (1983, p.15): Al buscar diseminar la información que la gente quiere, que la gente necessita y que la gente debaría conocer, las organizaciones informativas hacen circular y, al mismo tiempo, dan forma al conocimiento (...) Además los medios de información tiene el poder de dar forma a las opiniones de los consumidores de noticias sobre aquellos tópicos acerca de los cuales son ignorantes.

A CONSTRUÇÃO NA TELA O telejornalismo ainda tem um papel central na difusão da informação e do conhecimento do cotidiano. E se são fortes todas as críticas sobre o seu ordenamento do mundo complexo, o seu mergulho na realidade produz a sensação de segurança (VIZEU, 2005), de quem deseja ter, ao menos, uma percepção dos atos e fatos que estouram perto ou longe dos pontos de referência. O acontecimento global, geograficamente distante, é entregue dentro mesmo pacote que chega o acontecimento local, numa rede noticiosa (TUCHMAN, 1979) dividida e concebida em divisões temáticas. A informação jornalística produzida e difundida pela televisão brasileira é, certamente, a principal fonte de conhecimento de milhares de pessoas. É onde elas “molham-se” para entender em que mundo vivem, quais os comportamentos existentes, as formas de agir, a cultura de um local onde nunca estiveram ou um episódio da “vida do outro” que nunca chegaria seus ouvidos se não fosse parte interessada no que se produz na nova arena pública. Para Tuchman (1983, p. 16), “los periódicos hacen posible a individuos geograficamente dispersos saber algo unos de otros, saber acerca de os grupos étnicos y de vida del grupo”. Ao imaginar que essa amplitude provoca resultados, a de se registrar reflexão de Temer (2012, p. 50) quando afirma que o “telejornal ocupa um importante espaço na construção, aplicação, divulgação e partilha de significados simbólicos”. Por isso, segundo ela é necessário entender como ele é organizado. No nosso caso, como a mensagem é organizada para ser compreendida no tempo da sua aparição. E para caber no momento que lhe é determinada, a instantânea realidade televisiva é construída. Não é nem espelho, nem janela (TUCHMAN, 1983) da vida que nos envolve. É pura produção de real, é construção social (BERGER E LUCKMANN, 2005). Ao lado de outras instituições, o telejornalismo, a partir da sua natureza discursiva, gerada pela interpretação de fatos, aquisição de fontes, seleção de informações constrói uma nova realidade a ser compartilhada; contribuindo com a objetivação de significados sociais, constituídos de interações sociais. Por isso, não estamos diante de um reflexo, nem de uma transmissão direta de significado através de uma linguagem pura e neutra, nem da formatação perfeita do acontecimento, mas de uma realidade construída que tem uma validade interna própria (TUCHMAN, 1983). Mais do que isso, em convergência com o pensamento Berger e Luckmanm, percebe-se os meios de comunicação de massa, incluindo a televisão, é uma

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instituição intermediária que desempenha um papel central na orientação moderna do sentido. Intermedeiam a experiência coletiva e a individual, oferecendo interpretações típicas. “Tudo o que as outras instituições produzem de matéria de interpretações da realidade e de valores, os meios de comunicação selecionam, organizam (empacotam), transformam, na maioria das vezes no curso do processo, e decidem sobre a formação de sua difusão” (BERGER E LUCKMANM, 2004, p. 50). Ao produzir sentido, um conhecimento singular, o telejornalismo vai unir, questionar e produzir movimentos nas relações que tem com o ambiente. Instrumento de construção de realidades, numa realidade construída historicamente, seu produto é pensado para fazer-se importante no diálogo do sujeito enunciador e sujeito receptor, deixando rastro por onde passar. Sob a perspectiva da teoria construtivista, na qual os fenômenos descritos pelo jornalismo não são apenas reflexo, mas, uma nova configuração do fato mais próximo da sua verdade recai questões éticas e preocupações com a verdade de conhecimento construído. Para Tambosi (2005), para que haja conhecimento é necessário crença (em algo que existe), verdade e justificação (se existe, pode ser justificado). O jornalismo, para o autor, enquadra-se no que ele chama de conhecimento proposicional, possuidor dos três elementos, por isso, “humano por excelência, desenvolvido por um ser capaz de linguagem e reflexões sobre si próprio e sobre a realidade” (2005, p.33). Ou seja, a base de construção do conhecimento jornalístico é a informação correta, verdadeira, justificada, que se crê e quando ela não o é, por motivos diversos, como interesses escusos de fontes de informação, por exemplo, toda construção é colocada em xeque. O conhecimento autônomo é colocado na berlinda. Tambosi aproxima a verdade jornalística da teoria da correspondência. “Pressupõe a teoria da correspondência que a verdade de uma proposição consiste em sua relação com o mundo, isto é, em sua correspondência com fatos ou estados de coisa” (2005, p.36). A questão é que essa relação, dependente apenas da declaração de outrem, pode não nos fornecer os elementos com total comprovação. Afinal, segundo Tabosi, “quanto mais depender exclusivamente de fontes, mas difícil será sustentar que seja uma forma de conhecimento autônoma” (TAMBOSI, 2005, p. 37).

OS MECANISMOS DIDÁTICOS NO TELEJORNAL De qualquer forma, partimos do pressuposto que a natureza do jornalismo é a busca dessa verdade e a práxis profissional vai além de construir a realidade, apenas por meio de uma ou duas declarações. Em meio ao processo há, sem dúvida, o compromisso de muitos profissionais de se aproximar ao máximo do que se chama de real, de fato. E, ao ser detentor dessas informações que resultarão na produção da realidade, o enunciador precisa encontrar os melhores mecanismos para que a interpretação e nova composição do “mundo possível”, buscando, incessantemente, não se distanciar do mundo real (ALSINA, 2009), para que esse mundo possível seja o mais compreensível, de mais fácil entendimento. Ao registrar o papel de “lugar de referência” do telejornalismo na vida do brasileiro, Vizeu aponta que entre as funções do jornalismo está a pedagógica, que se materializa por meio da operação/construção didática, ou seja, “operando de forma didática, a notícia faz uma mediação entre diversos campos de conhecimento e o público” (VIZEU, 2009, p.80). Nos manuais que ensinam como construir o texto

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jornalístico para televisão, dois apontamentos são feitos como essenciais na construção da realidade: a atenção à simplicidade/coloquialidade (PATERNOSTRO, 2006) do texto escrito para ser falado e a relação dialógica desse texto com a imagem. São os primeiros alertas que demonstram a preocupação didática com público. Os manuais, de maneira geral, tentam ordenar as dicas que nascem na redação, são experimentadas, adaptadas e refeitas quando necessário. E, ainda, moldadas a partir de estudos com a audiência, a sua recepção ou até mesmo com a presunção de um perfil de telespectador. A intenção é facilitar a “vida” de quem vai um busca de informação/conhecimento do cotidiano na televisão. Audiência que ouve o que está sendo dito, às vezes vê ao mesmo tempo, de uma única vez e precisa entender, processar e ser capaz de reter a informação. Nossa proposta, ainda em gestação, mais que deve ser consolidado no caminho do nosso doutoramento é revelar como o telejornalismo está cada vez mais pedagógico e para isso faz do processo de construção da notícia/reportagem uma operação didática com mecanismos próprios, naturalizados e, às vezes, usados de maneira inconsciente. Nosso objetivo é começar a identificar, propor descrições e conceitos e refletir sobre dos seus papéis nessa produção contemporânea. Os operadores sugerem que é possível transformar fragmentos do mundo cotidiano em blocos informativos de fácil compreensão para uma audiência antecipada (VIZEU, 2005, p. 13). Eles são mecanismos instituídos e institucionais usados para que o conhecimento possa ser objetivo. Visto que a objetivação pode produzir maneiras formais, rígidas de tratar o mundo (TUCHMAN, 1979, p.71). Para nos ajudar nesse trabalho, nessa identificação, vamos analisar matérias veiculadas entre 20 de dezembro de 2014 e 25 de janeiro de 2015, no Jornal Nacional, que versam sobre decisões em duas áreas, consideradas por muitos, de difícil compreensão: política e economia. As reportagens falam da reforma ministerial feita pelo governo federal, as medidas econômicas tomadas no início do segundo mandato do governo Dilma e suas consequências. Vale lembrar que não percorremos o caminho polêmico da ideologia ou análise discursiva. Nossa proposta é encontrar nos elementos na construção da realidade os mecanismos, que chamamos de didáticos, usados pelo jornalista para que o conteúdo absorvido e entendido pelo telespectador. Em matéria veiculada pelo JN, dia 23/12/2014, a presidente Dilma Rousseff anuncia 13 novos nomes que vão compor os ministérios. Na cabeça, parte da reportagem em que o apresentador chama a material, é dito que ela fez o anúncio, mas, segundo o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, o Ministério Público não poderia fornecer informações, como a presidente queria, para evitar a indicação de políticos investigados na Operação Lava Jato2. O off, parte da reportagem em que o reporter lê texto escrito por ele, coberto por imagens, começa com a seguinte frase: “A presidente abriu o Palácio da Alvorada para uma festa de confraternização com parlamentares governistas e os atuais ministros”. Esta parte do texto se enquadra no que chamamos de mecanismo didático de ambientação. Ou seja, nessa operação a imagem pode ou não ser seguir a risca o que está sendo dito, 2.  Acesso à reportagem e texto em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/12/dilma-rousseffanuncia-os-13-nomes-que-vao-compor-o-novo-ministerio.html

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mas o diálogo entre eles é suficiente para fazer com que o telespectador seja introduzido ao ambiente, entenda o clima do momento que a reportagem tenta descrever. Nesse caso, é uma frase que, se retirada da reportagem não afetará o objetivo da matéria, que é anunciar os nomes dos ministros, mas tê-lo ajuda o telespectador entender que mesmo sendo a despedida de alguns ministros, não é um momento de conflito, revolta e sim de confraternização. Neste caso, uma imagem mostra vários carros oficias chegando à residência da presidente, outra de longe, que identifica um grande salão, com várias pessoas reunidas, em pé, aparentemente numa conversa informal. A reportagem continua dizendo que para muitos foi um dia de despedida, já que não vão seguir nos cargos no segundo mandato de Dilma. Na sequência temos: “A definição está sendo feita mesmo sem contar com a colaboração do procurador-geral da República. Nesta segunda-feira, Dilma Rousseff disse que antes de confirmar quem vai para os ministérios iria consultar Rodrigo Janot sobre políticos com envolvimento no esquema de corrupção”. Nessa parte do texto, temos o que chamamos de mecanismo didático de contextualização. Ao afirmar que a definição dos novos ministros está sendo feita sem ajuda do procurador-geral, o repórter precisa explicar o motivo e, para isso, retoma, por meio do discurso indireto, uma fala dita no dia anterior pela presidente. A imagem, resgatada do dia anterior, ajuda na compreensão porque mostra a presidente no momento que falou a frase resgatada pelo reporter. Sem esse “regate” de texto imagem, o telespectador teria dificuldade de entender porque que Dilma queria contar com a colaboração de Janot. Logo na sequência do texto descrito acima, temos uma fala da presidente Dilma. A sonora, como se chama na televisão o recorte feito na entrevista para composição de uma matéria, diz o seguinte: “Eu vou perguntar o seguinte: ‘Há alguma coisa contra fulano que me impeça de nomeá-lo?’. Só isso que vou perguntar. Não quero saber o resto, porque ele não pode me dizer”. Nesse momento se materializa o que chamamos de mecanismo didático de complementaridade. Ou seja, a fala não só ratifica o que o repórter disse no discurso indireto, mas complementa. Artifício no telejornalismo para ganhar tempo introduzir a fala de alguém para complementar uma afirmação, esse mecanismo também mantém um ritmo interessante na reportagem porque evita quebras, explicações que dispersem o telespectador e amarra de maneira uníssona o texto do repórter e a fala do personagem. Geralmente, esse tipo de mecanismo é operado na ilha de edição, quando na narração do repórter há um ponto de corte que facilite a união, ou quando o texto é feito com a entrevista decupada (fala transcrita). O mesmo mecanismo de complementaridade é usado na sequência, quando com a palavra “mas”, o repórter complementa, dialoga mais uma vez com a sonora. Repórter: “Mas o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, informou que Rodrigo Janot não pode passar nenhuma informação para a presidente”. A palavra, que traz o sentido adversativo, revela a contrariedade, introduz a reposta negativa do ministro da Justiça às inquietações e expectativas de Dilma, registradas na própria fala. Nesse mesmo texto, também identificamos o que chamamos de mecanismo didático de reforço. Vejamos parte off: “A presidente Dilma Rousseff anunciou que o PMDB vai ganhar mais um ministério. Hoje o partido tem cinco e vai passar a ter seis. Para o Ministério de Minas e Energia, irá o senador Eduardo Braga, atual líder do governo no Senado”. Nesse caso, na frase em negrito observamos que é só um reforço do que

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já foi dito. Se o PMDB vai ganhar mais um ministério e tem cinco, é óbvio que terá seis. Por que, então, a nova frase “vai passar a ter seis”. Nesse tipo de situação, para evitar o telespectador precise, na instantaneidade do momento, precise fazer conta, mesmo simples. O resultado é revelado de maneira mais evidente possível, mesmo correndo o risco da repetição de ideia, redundância. Em outra parte do off, com a listas de ministros escolhidos temos: “A presidente Dilma Rousseff ainda anunciou os nomes de outros sete ministros. Para a Controladoria-Geral da União, vai Valdir Simão, de perfil técnico. Ele entra no lugar de Jorge Age...”. Nesse caso, destacamos a palavra “ainda” porque, ela funciona como ferramenta de concretização do que chamamos de mecanismo didático que chamamos de pausa/continuidade. Ele é usado, geralmente, quando é precisa fazer uma lista longa de elementos, nomes, objetos. Talvez pareça uma simples palavra no meio do texto, mas no caso da televisão, veículo caracterizado pela facilidade de dispersão, o mecanismo é um espécie de organizador do relato para manter o receptor atento. Introduz uma rápida pausa na lista anterior e abre espaço para apresentar novos elementos. O objetivo é também tornar a descrição mais pedagógica, professoral e facilitar a absorção daqueles nomes ou em outros casos de uma nova ideia. Ainda na produção do texto observamos outros recursos usados pelos jornalistas para dar um tom professoral quando se apropria do discurso de um outro campo do conhecimento. Em reportagem exibida na edição do dia 30 de dezembro de 2014, sobre as novas regras de benefícios previdenciários e trabalhistas, que vão reduzir gastos em quase R$ 20 bilhões3, foi preciso recorrer ao que chamamos de mecanismo didático de exemplificação. A ferramenta é usada para fazer com que a informação anterior ao aparecimento do mecanismo seja mais detalhada, com um exemplo mais próximo da realidade do telespectador. É uma tentativa de mostrar como as regras, leis, determinações etc.vão ser aplicadas na realidade cotidiana. Em dos trechos da reportagem que elenca quais serão as novas normas, o texto diz: “O Tribunal de Contas da União vem identificando irregularidades e falhas nos cadastros de beneficiários como pagamentos indevidos ou em duplicidade e valores incorretos. O próprio governo aponta distorções na concessão desses benefícios. Como por exemplo, a quantidade de viúvas jovens recebendo pensão por morte até o fim da vida. São concedidas quase 50 mil novas pensões por ano a viúvas com menos de 44 anos”. Observamos que para tornar dar mais clareza sobre os pagamentos indevidos e distorções, o jornalista de maneira didática, inclusive com o uso de conectivos linguísticos, a exemplo de “como por exemplo”, “por exemplo” ou é o “caso de”. Na mesma reportagem, encontramos outro exemplo. Ao dizer que a partir daquela data o cônjuge, companheiro ou companheira com menos de 44 anos de idade terá o benefício por tempo determinado, com variação de três a 15 anos, dependendo da idade, com diminuição do valor da pensão, os jornalistas que construíram o texto foram em busca de exemplos do cotidiano, que podem ser uma “simulação” a partir das informações ou até com o uso de uma personagem real que se enquadre a descrição. O texto diz: “Por exemplo, uma 3.  Acesso à reportagem e texto em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/12/novas-regrade-beneficios-vai-reduzir-gastos-em-quase-r-20-bilhoes.html

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viúva de 30 anos, com dois filhos menores, vai receber 50% do valor da pensão. Ela e cada dependente terão direito a mais 10% do valor do benefício. A pensão será paga a ela por nove anos, de acordo com a faixa etária. Ao fim desse período, ela deixa de receber os 10%. O restante continua a ser pago mas para os filhos”. Nesta reportagem, o texto que exemplifica é reescrito em formato de tópicos sobre um arte, com a marca da Previdência Social. No caso da reportagem veiculada dia 29/12/2014, na qual o governo anunciou o aumento do rigor na concessão de benefícios sociais, foi usado o que chamamos de mecanismo didático de descrição em arte.4 Agora, fora da operação que é feita na linguagem, observamos um recurso é usado com cada vez com mais frequência em reportagens em que é a quantidade de informações técnicas é muito grande, mas é essencial que elas sejam dadas. Com dificuldade de explicar determinados assuntos, com inevitável inserção de números, prazos e regras editores dos telejornais recorrem cada vez mais ao departamento de arte para inserir artes animadas ou não, com parte do texto que está sendo descrito pelo repórter. São resumos de ideias e frases, em tópicos, que entram na tela no mesmo momento da narração do repórter. O mecanismo se assemelha a uma leitura acompanhada feita pelo telespectador, que pode auxiliá-lo mais facilmente na compreensão. Visto que ao mesmo tempo visão e audição estão sendo acionados e pode facilitar o entendimento do telespectador. O recurso é usado em vários trechos da reportagem, entre eles, esse que diz que “O seguro-desemprego só será pago após um ano e meio seguido de trabalho e não mais após seis meses. Na segunda solicitação, a exigência de tempo trabalhado cai para 12 meses e na terceira, seis meses”. Também foi usado o mecanismo, mas com outra arte, ou base, o momento em que a repórter diz como um dependente recebe a pensão por morte. Na mesma linha de operação didática na edição, aparece o mecanismo de transcrição de fala. Foi o que aconteceu na notícia veiculada dia Edição do dia 13/01/2015, quando o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, fez declarações sobre os repasses do Tesouro Nacional não fará às distribuidoras de energia5. As declarações foram dadas em câmeras a um grupo de jornalistas. Mas como a informação era considerada importante pelo telejornal, a falta de imagens em movimento ou entrevista em vídeo, não impediu a transformação do que foi dito conhecimento para o público. A fala do ministro foi transcrita para uma tela com uma foto dele. Ao mesmo tempo que ele falava, o texto era inserido na tela, como se estivesse sendo escrito naquele momento. Se imagens em movimento, toda a atenção se voltou para a informação dita por ele, que, naquele caso era também de conteúdo denso. O ministro disse que o Tesouro Nacional não vai mais fazer repasses às distribuidoras de energia este ano. Ele avaliou que para o equilíbrio das contas públicas é melhor que os custos extras fiquem com o consumidor, sem a necessidade, por exemplo, de aumentar impostos.

4.  Acesso à reportagem e ao texto em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/12/governoanuncia-aumento-do-rigor-na-concessao-de-beneficios-sociais.html 5.  Acesse vídeo e texto em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/01/tesouro-nacional-naofara-repasses-distribuidoras-de-energia-diz-ministro.html

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INDO AO OFF Nas reportagens analisadas acima, vimos, de maneira rápida, como os mecanismos didáticos se materializam no texto das reportagens e, um pouco, da sua formação na relação com imagem e recursos gráficos. Por trás do aparecimento dessas ferramentas de construção da realidade e da produção de conhecimento para o telespectador, supomos que a há um desejo/necessidade dos jornalistas de fazer com que o que é dito seja entendido claramente, sem ruídos e num fluxo continuo. Na observação apresentada, elencamos e iniciamos uma conceituação dos mecanismos didáticos de ambientação, contextualização, complementaridade, pausa/continuidade, exemplificação e descrição em arte. Acreditamos que há bem mais, como o de argumentação, explicação e comparação. Será um caminho e uma busca para os próximos trabalhos. Há muito a fazer para entender, ainda no processo de construção, e não apenas com o produto pronto, como se dá o aparecimento desses mecanismos didáticos, que dão força a nossa hipótese de que o jornalismo está cada vez mais didático na resignificação, buscando se aproximar da linguagem falada, coloquial, com a utilização dos vários tipos recursos gráficos, visuais ou por meio do diálogo de todos esses materializadores das mensagens telejornalísticas. Como lugar de referência e segurança na vida de muitas pessoas, o telejornalismo é procurado para, e dele também se exige, a entrega, de maneira fácil e acessível, o “conteúdo” produzido em várias áreas, campos de conhecimento, em vários mundos. Estudar como o seus agentes, os jornalistas, caminham cada vez mais para o didatismo na construção da mensagem, nos permite entender mais sobre essa prática social, institucionalizada, coletiva e que precisa cada vez mais de bases teóricas para fortalecermos a tese que jornalismo não de faz apenas com intuição e senso comum. Dentro da sua organização prática, por sua vez, há métodos específicos, muitos entranhados e naturalizados, imperceptíveis, mas à espera de um olhar, aguardando um reconhecimento. De fato, esperamos continuar essa batalha para contribuir com o fortalecimento do campo do jornalismo, na prática, nos estudos e no ensino.

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Coleção Imagética: relatos fotográficos da cultura e história paranaenses na perspectiva do ensino e da extensão universitária “Imagética” Collection: photographic reports of the Parana history and culture on the perspective of journalism teaching and academic extension Carlos Alberto

de

Souza1

Resumo: A proposta deste artigo é trazer para o debate o trabalho realizado pelo Grupo de Extensão Fotorreportagem UEPG (Foca Foto) com os alunos do Curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) que alia na sua execução as atividades teóricas e a prática. Um dos trabalhos que realiza e que dá sentido a essa preocupação, é a edição trimestral da Coleção Imagética. Trata-se de uma série de e-books que procura aliar o conhecimento de uma área (fotojornalismo) a produções e práticas editoriais. Nesse projeto, o acadêmico participa de coberturas fotográficas em cidades do Paraná, da produção, seleção e edição de fotos e textos, além de vivenciar a cultura local e contribuir com reflexões teóricas para o campo da fotografia. O trabalho é coordenado por professores, disponibilizado gratuitamente na web, envolve cobertura fotográfica de cidades, pesquisa bibliográfica e produção de depoimentos e ensaios científicos. Até o momento, foram publicados três livros: Lapa, Paranaguá e Ponta Grossa (em fase de conclusão).

Palavras-Chave: Coleção Imagética. Fotojornalismo. Cultura. Grupo Foca Foto. Abstract: The point of this article is bringing up to discussion the work made by the extension group “Fotorreportagem UEPG (Foca Foto)” (UEPG Photorreport) with the students of the Journalism Graduation on Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) (Ponta Grossa State University), that unites on its execution the practical and theory activities. One of the works it produces and brings point to this worry is the trimestral edition of the Imagética Collection. The title refers to a series of e-books that aims to ally the knowledge of a particular field (photojournalism) to editorial productions and actions. On this project, the student takes part on photographic coverage in Paraná cities, on production, selection and edition of pictures and texts, and also experiences the local culture and offers contribution towards the theory discussion of the photojournalism field. The production is closely watched by professors and freely offered online. It’s connected to the photographic coverage of cities, bibliographical research 1.  Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor Adjunto do Curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Coordenador do Grupo de Pesquisa Fotojornalismo, Imagem e Tecnologia. Líder do Grupo Foca Foto. Contato: [email protected]

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and the production of scientific essays and personal testimonials. Up to date, three books were published: Lapa, Paranaguá and Ponta Grossa (the latter going through conclusion phase)

Keywords: Imagética Collection. Photojournalism. Culture. Foca Foto Group.

INTRODUÇÃO ÁRIOS AUTORES da área da comunicação tem chamado a atenção para a impor-

V

tância de aliar nos projetos pedagógicos dos cursos de jornalismo teoria e prática. Uma deve se realimentar da outra para fazer com que o aluno compreenda que elas são indissociáveis. Ou seja, o campo teórico progride a partir da própria ação e fazer jornalístico. Acreditando que isso é possível e saudável ao desenvolvimento do aluno, o projeto de Extensão Grupo Foca Foto, vinculado ao Curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, região sul do Brasil, vem desenvolvendo uma série de reflexões sobre a importância de compreender a teoria a partir da prática e vice-versa. Dos trabalhos relevantes desenvolvidos pelo grupo estão as coleções “Mídias Contemporâneas” e “Imagética”, esta com uma preocupação mais forte na associação teoria-prática. No momento, a equipe já publicou duas obras da “Coleção Imagética - lições de fotografia e fotojornalismo”. O primeiro e-book retratou “Lapa”. Este destaca a importância cultural e histórica dessa cidade do Paraná. A outra, que está sendo lançada neste evento (IBERCOM), é Paranaguá, que também mereceu destaque no projeto por sua importância histórica no cenário paranaense. Além desses dois e-books, a equipe vem ultimando o terceiro volume, retratando a principal cidade dos Campos Gerais, Ponta Grossa. As descobertas dos cenários paranaenses, a partir dos olhares e dos discursos textuais dos alunos e especialistas em comunicação, impactam com vitalidade as expressões e recortes imagéticos, apresentados no presente projeto editorial, que visa a divulgação de conhecimentos teórico e prático sobre a imagem, mostrando a cultura e revelando identidades culturais da região. O reconhecimento de aspectos relevantes e marcantes do cotidiano e história de determinadas cidades paranaenses, narrados nos e-books, permite que o aluno, um dos protagonistas da obra, reflita sobre a cultura regional, vivencie novos espaços de produção, coloque em prática o que aprendeu em sala, nas aulas de fotojornalismo, e, ao mesmo tempo, reflita sobre a prática e as teorias que embasam a prática jornalística. Igualmente, permite que ele busque no momento em que clica o obturador, inovar e criar novas possibilidades de ver e de interpretar a realidade. Um dos autores que tem se debruçado nesta discussão, sobre o papel da prática para o desenvolvimento de teorias no campo do Jornalismo, é Meditsch (2012). Em vários momentos, o autor chama a atenção para a inter-relação que existe entre estes dois campos. Explica que a teoria sozinha não consegue dar conta da realidade. “A teoria que se perde na abstração entra em confronto com a realidade. Ou é rechaçada por ela ou procura violentá-la, violentando no nosso caso o Jornalismo e seu aprendizado.” (MEDITSCH, 2012, p. 95) Ele complementa seu ponto de vista, dizendo que:

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O conhecimento depende da prática, uma vez que é nela que se encontra o seu fundamento, critério de verdade e finalidade última. Da mesma forma, a prática depende do sujeito e da matéria, do homem e da situação, do conhecimento que ele tem dela. Sendo intencionado em relação à prática, o conhecimento não é contemplação, não se o constroi fora dela, espiando do alto da pirâmide. Pelo contrário, precisa partir da prática para retornar a ela – que já não será a mesma – num movimento em espiral, sob pena de perder os fundamentos, os critérios de verdade e o próprio sentido [...]. (MEDITSCH, 2012, p. 94).

Por jornalismo é preciso entender um conjunto de elementos textuais e imagéticos, teóricos técnicos e práticos. E nesse conjunto não da para esquecer o papel da imagem. Ela tem, desde o surgimento da fotografia e, posteriormente, com o desenvolvimento da televisão e outros veículos eletrônicos e digitais, um papel fundamental e muita força na sociedade, no cotidiano. Ela estabelece laços entre as fontes, o produtor e o receptor final da mensagem. Mesmo que o tema seja uma velha Igreja, ele tem relação com uma série de sujeitos e interlocutores, os fiéis, a comunidade, os setores eclesiásticos, os poderes públicos. A imagem estabelece vínculos e o seu produtor deve ter clareza da repercussão que poderá ter no seio social. Por meio de um conjunto de imagens publicadas na rede mundial de computadores, na televisão, jornais e revistas, procura-se compreender o mundo e o que acontece nele. Somos “obrigados” a exercitar cada vez mais a habilidade de “ler” imagens, temas retratados por autores como Debord (2003). Ele chama a atenção para aquilo que denominou como sendo a Sociedade do Espetáculo, onde predominam muitas ‘informações’ provenientes de diversos instituições, tendo como preponderante as advindas dos meios de comunicação de massa. Em função do volume de imagens que circulam pelos MCM, saber ler na essência o que elas têm a dizer, é essencial. Qual a visão de mundo que defendem, quais os interesses e ideologias envolvidos em sua produção. A imagem passou a ganhar respeito. Todos os jornais e revistas do mundo a valorizam e a utilizam como estratégia para atrair a atenção do público e dos telespectadores, no caso da televisão. Sousa (2004, p. 20) explica que a imagem mais recentemente passou, muitas vezes, a ter mais importância que o texto no fotojornalismo moderno: “O fotojornalismo de autor, tornou-se referência obrigatória. Pela primeira vez, privilegiou-se a imagem em detrimento do texto, que surgia como um complemento, por vezes reduzido a pequenas legendas.” A imagem deixou de ser a prima pobre no jornalismo. O autor também explica que em determinadas situações, elas “têm maior impacto do que as palavras. Esta circunstância leva a que se deva enfatizar a importância do debate ético e deontológico do fotojornalismo” (SOUSA, 2004, p. 109). Na verdade, muitos autores tem salientado o destaque que a imagem e a fotografia têm recebido, especialmente com o advento das mídias digitais. Munhoz (2005) observa que hoje os meios impressos e eletrônicos têm utilizado a imagem como importante componente informativo e até mesmo como elemento principal de algumas publicações, sejam elas revistas, jornais e sites. A imagem tem proporcionado ao homem novas experiências e narrativas da realidade. Ela autentica muito do que é escrito na imprensa sobre o mundo, acontecimentos políticos, sociais, econômicos e climáticos. Parte das

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imagens que temos sobre o mundo em nossa mente estão diretamente relacionadas às produzidas por fotógrafos, fotojornalistas ou mesmo pessoas comuns, que postam diariamente seus vídeos e fotografias em meios digitais ou impressos. A fotografia foi redescoberta, principalmente com a passagem do analógico para o sistema digital. O que era uma atividade eminentemente profissional, em função do preço e da complexidade do fazer fotográfico, tornou-se atividade corriqueira, especialmente com o desenvolvimento da telefonia móvel e do surgimento de equipamentos de mão que produzem imagens tão boas como as câmeras profissionais. Embora a prática da fotografia tenha se popularizado e, no mundo de hoje, se produza diariamente milhões de fotos, a arte de fotografia ainda requer conhecimento, técnica e criatividade.

O SENTIDO CONOTATIVO DA IMAGEM Consideram-se as imagens como mobilizadoras de múltiplas interpretações e isto está diretamente ligado aquilo que teorizou Barthes (2003) sobre denotação e conotação de uma imagem. É preciso ver que ela carrega um sentido literal (o que ela realmente mostra) e o conotativo (o que é preciso ver nas “entrelinhas”, a intencionalidade e os interesses do fotógrafo ou cinegrafista). Barthes (2003), explica o processo de truncagem na fotografia e diz que a conotação extrapola o sentido puramente denotativo de uma imagem e pode ter um efeito importante sobre os fatos e as pessoas retratadas em determinadas situações, causando muitas vezes mal estar. Fotografar um político de esquerda, abraçando um de direita, por exemplo, pode gerar muitas interpretações e causar danos aos dois, junto aos eleitores e população. Embora o artigo não tenha por objetivo de aprofundar tal discussão, é importante dizer que ao sair a campo (principalmente os alunos que estão em processo de formação profissional) precisam ter consciência de que é preciso muita ética e responsabilidade na produção de fotografias. Isso, os professores tentam ensinar o tempo todo. Não é só a palavra que fere, que coloca em risco a imagem de uma pessoa ou instituição. A foto tem um efeito muito mais forte e o exercício de atividades de fotografia, especialmente com iniciantes na atividade, precisa levar isso em consideração. No grupo de extensão Foca Foto, no desenvolvimento de reportagens fotográficas, ensaios, coberturas fotográficas e outros trabalhos, procura-se, na produção, dar ênfase a preocupações éticas e, e também estética e técnica. Quando a equipe (Foca Foto) sai a campo, esta preocupação com a prática jornalística é sempre lembrada. É preciso refletir sobre o ato fotográfico e o aluno aprende a respeito do papel do jornalista e a respeito da própria função e responsabilidades do jornalismo. Ver e registrar - por exemplo - uma cidade, seus aspectos históricos e culturais e, ao mesmo tempo, participar da elaboração de textos (depoimentos e ensaios científicos), faz com que o acadêmico aprenda a lidar com situações (inclusive ética, técnica e teórica) e a compreender o processo de produção fotográfica, envolvendo não somente o ato de registrar, mas também de ver, selecionar e editar. Outro aspecto é colocar em confronto, o que a teoria diz sobre composição, enquadramento, perspectivas, ângulos e sentidos e propósitos da imagem e o que suas escolhas representam. Um bom exemplo sobre o que se falou anteriormente é o projeto “Coleção Imagética”.

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Paralelamente ao registro dos aspectos da história e do cotidiano de uma dada cidade, é necessário compreender o ato jornalístico e entender que a prática jamais pode ser dissociada da teoria. O estudante, munido de sua máquina fotográfica, vivencia o cotidiano das pessoas, os valores culturais que prezam e o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural da cidade. Esta experiência é ímpar e deve ser estimulada na universidade. Não se pode ficar restrito a sala de aula. É preciso sair para a rua, produzir notícias, elaborar projetos e participar de todas as etapas do processo jornalístico e mesmo refletir sobre o seu ato. Isso pode contribuir para repensar conceitos e teorias e até mesmo, propor experiências novas e visões teóricas.

O VALOR DOCUMENTAL DAS IMAGENS Ao mesmo tempo, é preciso entender a fotografia por seu potencial documental. O trabalho que fazemos hoje por meio do e-book “Coleção Imagética” terá no futuro – 20 ou 30 anos mais tarde -, valor histórico. As cidades mudam periodicamente, prédios antigos, por falta de manutenção, acabam desaparecendo do cenário urbano, em prejuízo à história. Por meio de fotos, observa Kobré (2011, p. 229), é possível “contar histórias inteiras [...] em questões de minuto”. Este é o outro lado da “Coleção Imagética”. A retratação da cidade, de suas ruas e casarios poderá servir futuramente aos estudiosos da história. Esta é uma das grandes forças da fotografia. Uma foto que hoje pode não significar de forma marcante, poderá se revestir de muito valor mais adiante (as torres gêmeas, já não podem mais ser fotografadas, por exemplo). Sem dúvida, esta é mais uma importante lição que o aluno acaba aprendendo com este trabalho que desenvolve junto ao Grupo Foca Foto, no Jornalismo da UEPG. Ele passa a pensar duas antes de deletar fotos, principalmente se na cena há figuras importantes, prédios antigos, ruas, festas tradicionais. A fotografia impacta o público por que ela é uma forma de memória, como defendem Felizardo e Samain (2007, p. 218): “As pessoas envelhecem e morrem, os objetos e equipamentos se modificam ou se deterioram com o tempo. O que resta é a fotografia, o que nela ficou registrado se materializa e se imortaliza”. Documentação é o que resta do processo fotográfico após o momento factual, é o que ajuda a compreender o mundo, e a compreender até quem somos. “A fotografia [...] acaba por documentar a história da sociedade, desenvolvendo-se em consonância com essa. Isso porque seu uso, além de documento histórico, é fundamental no sentido informativo para o seu meio social” (SOUZA; JASPER; KALIBERDA, 2013, p.2).

O PROJETO COLEÇÃO IMAGÉTICA Ao propor a “Coleção Imagética”, a intenção do Grupo Foca Foto, sob coordenação do professor Carlos Alberto de Souza, é dar visibilidade à produção fotográfica dos alunos do Curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente a equipe trabalha na conclusão do terceiro e-book, que retrata a cidade de Ponta Grossa. O primeiro livro teve como pano de fundo a cidade de Lapa. A produção dessa publicação digital, desenvolvida em parceria com a professora Ofelia Elisa Torres Morales, envolve a produção de textos e a prática fotográfica desenvolvida, neste caso específico, pelos alunos do projeto de extensão Foca Foto e da disciplina Fotojornalismo. Nesse exercício, procura-se retratar aspectos da cultura e do cotidiano da cidade.

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Propõe-se, com as várias atividades desenvolvidas pelo Foca Foto, um espaço de ensino e pesquisa sobre questões da fotografia e do fotojornalismo, tomando como cenário cidades importantes da cultura do Paraná e, futuramente, de outras localidades do país. Com estes trabalhos, oportunizar a prática, a reflexão teórica e o aprimoramento fotográfico. A ênfase da proposta é centrada na valorização do ensino e na experimentação de técnicas fotográficas, bem como desenvolvimento, junto aos alunos de graduação ‘o gosto pela fotografia, a compreensão da linguagem e estética visual’ (MORALES; SOUZA, 2014). Além disso, a obra é uma oportunidade para que as pessoas conheçam melhor determinadas cidades e espaços públicos, contribuindo também para o seu registro, já que há sempre um capítulo, introdutório, que faz uma abordagem histórica da cidade. O trabalho de produção do e-book, como já foi debatido neste artigo, propõe aliar teoria e prática, ensinada em sala, e proporcionar debates a respeito da fotografia e fotojornalismo, a partir de eixos como ética, estética e técnica. O trabalho coloca os alunos em situação de produtores, muito antes de entrarem oficialmente no mercado de trabalho e permite ainda que experimentem a linguagem científica, com a liberdade de participar da produção de textos e ensaios teóricos. Eles têm o apoio de professores, ex-alunos e técnicos para o desenvolvimento desse exercício. A série envolve a divulgação de ensaios, depoimentos, entrevistas, reportagens fotográficas, fotos artísticas e, igualmente, discussões sobre as transformações da fotografia ao longo da história. Acredita-se que se constitua em documento de pesquisa e memória para as gerações atuais e futuras. Paranaguá, segundo volume de “Coleção Imagética”, contem diversos ensaios, retratando a profissão do fotojornalista e questões técnicas e teóricas que envolvem a profissão do fotógrafo. Ao mesmo tempo, enfatiza a importância do fazer fotográfico no espaço acadêmico. Em relação às questões de análise e interpretação, os ensaios pretendem contribuir em relação aos aspectos técnicos e éticos da fotografia e, dessa forma, chama atenção para elementos como composição fotográfica, as características, identidade fotográfica e, especificamente, dicas sobre a área do fotojornalismo. Assim como os ensaios revelam resultados iniciais das pesquisas na área da fotografia desenvolvidas pelo grupo Foca Foto/Foto&Tec, há também textos de pesquisadores da área que valorizam muito a obra. Figura 1. Capa da “Coleção Imagética - lições de fotografia e fotojornalismo: Paranaguá”.

Fonte: “Coleção Imagética – lições de fotografia e fotojornalismo: Paranaguá”, (Volume 02), concluído em dezembro de 2014. Disponível em: http://uepgfocafoto.wordpress.com/

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Procura-se combinar os textos e reflexões teóricas com a diversidade de fotos coloridas, destacando a visualidade e força das imagens, bem como valorizando as cidades focadas pelo projeto. As fotografias revelam as diversidades culturais das regiões, apresentando não somente patrimônios arquitetônicos mas também patrimônios naturais registrando, assim, as belezas da natureza e imagens da essência humana, a partir da sua cultura. Ao mesmo tempo, é uma experiência visual acadêmica relevante para a formação dos futuros jornalistas, já que essa aproximação a realidade regional, através dos seus olhares, numa composição de mosaicos imagéticos, disponibiliza não somente a prática fotográfica mas, sobretudo, a realização autoral, com esmero e profissionalismo das realizações fotográficas realizadas pela equipe de estudantes e professores.

Figura 2. Série de Imagens da “Coleção Imagética - lições de fotografia e fotojornalismo: Paranaguá”.

Fonte: “Coleção Imagética – lições de fotografia e fotojornalismo: Paranaguá”, (Volume 02), concluído em dezembro de 2014. Disponível em: http://uepgfocafoto.wordpress.com/

É importante salientar que os alunos e técnicos do Grupo, participam da obra também com depoimentos. Nesse espaço, eles narram a experiência de participar do trabalho de cobertura fotográfica das cidades selecionadas pela “Coleção Imagética”. A inclusão desses depoimentos reforça o posicionamento de potencializar as atividades de ensino do fotojornalismo e fotografia.

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Figura 3. Seção depoimentos dos alunos na “Coleção Imagética - lições de fotografia e fotojornalismo: Paranaguá”.

Fonte: Seção de ‘Depoimentos’ na “Coleção Imagética – lições de fotografia e fotojornalismo: Paranaguá”, (Volume 02), concluído em dezembro de 2014. Disponível em: http://uepgfocafoto.wordpress.com/

O projeto conta com o apoio da Pró-reitoria de Extensão (PROEX-UEPG) e ao empenho de professores, técnicos e alunos, especialmente os vinculados ao Grupo Foca Foto. Os próximos números da “Coleção Imagética: lições de fotografia e fotojornalismo Paraná” vão revelar produções outras importantes cidades do estado, como por exemplo, Morretes, Prudentópolis, Castro, Carambeí, e Curitiba, capital paranaense, bem como poderá abrir espaços a fotografias e fotorreportagens de outras cidades históricas e peculiares do país. A produção no formato digital deve-se: [...] ao fato das potencialidades que a rede hipermidiática oferece em termos de acesso, múltiplo e plural, atingindo pessoas em todas as partes do mundo. Com isso, os organizadores da obra esperam estar difundindo a importância da prática fotográfica e da cultura brasileira num cenário mais amplo. (Morales; Souza, 2014, p. 10)

Este trabalho, vinculado ao Fotorreportagem UEPG (Foca Foto) e ao Grupo de Pesquisa Fotojornalismo, Imagem e Tecnologia (Foto&Tec) está sendo possível graças ao apoio de professores e pesquisadores que compõem o Conselho Editorial da Coleção e que valorizam essa proposta editorial com seus conhecimentos, experiências e profissionalismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência de desenvolver uma obra que disponibiliza espaço a produção dos alunos, permitindo aliar ensino, extensão e pesquisa, talvez se configure como a marca mais proeminente da iniciativa. Ela oportuniza a visão inovadora do processo ensinoaprendizagem, além de revelar a importância dos projetos de extensão na complementação das atividades de ensino. Relevante também é permitir um intercâmbio e a troca de experiências entre alunos, profissionais, técnicos e pesquisadores da área, não só da UEPG, como também de outras instituições. É uma oportunidade para os acadêmicos experimentar a prática e realizar reflexões e interpretações sobre suas atividades. Desta forma, o Grupo Foca Foto tem privilegiado muitas atividades de extensão, em concordância com a pesquisa e o ensino da fotografia no Curso de Jornalismo da UEPG. A

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“Coleção Imagética” nasceu com a proposta de tornar-se espaço de intercâmbio de ideias, de pesquisas, atividades e projetos em comum. Ela também investe em documentação e na vocação dos alunos interessados pela área da fotografia. Contribui para o resgate da história e com a preservação da cultura de importantes cidades paranaenses. Além desse trabalho, como também foi salientado neste artigo, o grupo desenvolve a “Coleção Mídias Contemporâneas”, um projeto editorial digital eminentemente teórico, que oportuniza a pesquisadores e ex-alunos a publicar suas produções e análises sobre o campo fotográfico.

REFERÊNCIAS Barthes, R. (2003). A mensagem fotográfica. In: Lima, L.C. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.

Debord, G. (2003). Sociedade do Espetáculo. São Paulo, SP: Contracampo. Felizardo, A.; Samain, E. (2007). A fotografia como objeto e recurso de memória. In. Discursos fotográficos, Londrina, PR, v.3, n.3, p. 205-220. Kobré, K. (2011). Fotojornalismo, uma abordagem profissional. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier. Meditsch, E. (2012). Pedagogia e pesquisa para o jornalismo que está por vir. Florianópolis, SC: Insular. Morales, O.E.T.; Souza, C.A. de. (2014). Coleção Imagética: fotografia, ensino, extensão e pesquisa no projeto Foca Foto. XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação INTERCOM. Foz do Iguaçu, PR, 1 a 5 de setembro de 2014. Munhoz, P.C.V. (2005). Fotojornalismo, internet e participação: os usos da fotografia em weblogs e veículos de pauta aberta. Salvador, BA: Dissertação de mestrado. Disponível em: http:// poscom.tempsite.ws/wp-content/uploads/2011/05/Paulo-C%C3%A9sar-Vialle-Munhoz. pdf Acesso em: 20 fev. 2015. Sousa, J.P. (2004). Fotojornalismo: Introdução à história, às técnicas e à linguagem da fotografia na imprensa. Florianópolis, SC: Letras Contemporâneas. Souza, C.A. de; Jasper, A.; Kaliberda, A. (2013). História da fotografia e do fotojornalismo em Ponta Grossa: por um projeto de resgate. 9º Encontro Nacional de História da Mídia. Ouro Preto, MG, 30 maio a 1 de junho de 2013.

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A erosão do jornalismo e o poder ambíguo da comunicação The erosion of journalism and the ambiguous power of communication João Figueir a 1

Resumo: Os processos de comunicação e os meios para a veicular alteraram-se profundamente e, com eles, é o próprio exercício do jornalismo que está em mudança. A informação dilui-se na comunicação e esta precisa do jornalismo para se credibilizar, num contexto em que as empresas mediáticas procuram novos modelos de negócio e os jornalistas não são o seu principal investimento. Com base na literatura de referência e apoiado em dados e pesquisas realizadas nos EUA, Reino Unido e Portugal observamos como o jornalismo entrou num processo de erosão e como a luta pela comunicação é um processo de conquista de poder e de influência.

Palavras-chave: Jornalismo. Comunicação. Informação. Media. Abstract: Communication processes have changed profoundly as well the meanings for transmiting. With them it is the practice of journalism that is changing as well. The Information diluted in communication, which needs of journalism to credibility itself, in a context where the media companies seek new business models and journalists are not its principal investment. Based on the reference literature and supported by data and research in the USA, UK and Portugal, we observe how journalism has entered in a process of erosion and how the struggle for communication is a process of conquest of power and influence.

Keywords: Journalism. Communication. Information. Media.

A

S NOTÍCIAS deixaram de ser um território exclusivo dos jornalistas. Num mundo onde todos podem comunicar e a comunicação é ao mesmo tempo poder e contra-poder (CASTELLS, 2007), o jornalismo deixou de ser o espaço público privilegiado onde toda informação e o debate tinham lugar. À tradicional distinção entre verdade e notícia (LIPPMAN, 1922) sucede hoje uma obsessão pelo poder da comunicação, visível em acontecimentos como a Primavera árabe e as manifestações de São Paulo (Brasil), ou nos movimentos de Los Indignados e Occupy Wall Street (CASTELLS, 2012). How to know what´s true in the age of information overload?, questionam-se na sua obra Kovach & Rosenstiel (2010), perante os novos processos de comunicação e os meios para a veicular, os quais se alteraram profundamente e, com eles, é o próprio exercício do jornalismo que está em mudança. 1.  Professor auxiliar da Universidade de Coimbra (Portugal): [email protected].

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A erosão do jornalismo e o poder ambíguo da comunicação João Figueira

Gradualmente, os velhos órgãos de comunicação estão a transformar-se em plataformas digitais, nas quais as redações se convertem numa rede social – espaço de encontro para clientes e fornecedores, no sentido de potenciar e diversificar as possibilidades de negócio, através do aumento da oferta, uma vez que a produção da informação segundo os moldes tradicionais é manifestamente insuficiente (VARELA, 2011). A ânsia crescente pela oferta de informação a qualquer preço, em especial nos órgãos digitais, está a transformar muitos deles em espaços abertos à proliferação de rumores, boatos e mentiras (SILVERMAN, 2015). No seu estudo sobre jornalismo em rede, o autor conclui que o ritmo apressado e pouco verificador da parte dos jornalistas está a conduzir a profissão para práticas pouco fiáveis, ao acolher com demasiada facilidade rumores e ao promover a desinformação. Entre agosto e dezembro de 2014, Silverman (2015) leu e analisou 1.500 notícias sobre mais de uma centena de rumores que circularam em jornais digitais e a conclusão a que chegou acerca das práticas dominantes nas redações observadas não poderia ser menos entusiasmante. Afirma que os jornais online, hoje, são mais uma parte do problema da desinformação, do que parte da solução, uma vez que o seu trabalho revela, entre outros aspetos, falta de tempo para pensar e refletir sobre as matérias noticiosas, com reflexos negativos para a qualidade da informação que veicula. Tal panorama é fruto de uma combinação de fatores económicos, culturais, temporais, tecnológicos e competitivos que, juntos, fazem uma mistura explosiva que destrói o melhor da informação jornalística. Porém, adverte, nada disso justifica a divulgação de versões duvidosas provenientes exclusivamente de medias sociais, assim como a propagação de boatos ou outras estórias questionáveis, com a única finalidade de ​atingir uma grande circulação. Tais procedimentos, sustenta Silverman (2015, p. 3) “são o oposto do papel que é suposto os jornalistas deverem desempenhar no ecossistema da informação”. No entanto, essa é a norma para muitas redações que lidam com conteúdo viral gerado pelo usuário e com rumores veiculados online (SILVERMAN, 2015). Perdido o monopólio na produção e distribuição de informação a larga escala que deteve durante um século, o sector dos media tradicionais mostra-se contraditório, confuso e enfraquecido a cada dia que passa, como o general no labirinto de Gabriel Garcia Márquez, possuidor de um passado glorioso mas a quem lhe faltam agora as forças. Na visão bondosa e otimista de Pavlik (2014), embora de certa forma já antes avançada por Gillmor (2005), tal transformação é não apenas inevitável como positiva. No fundo, o que muda – e é tudo – é a disputa pelo epicentro dos processos informativos. Neste novo mundo de que Pavlik (2014) é um dos apóstolos, a boa nova por ele anunciada, é a de um jornalismo de ubiquidade feito por todos, partilhado por todos, completado por todos – porque todos estamos em todos os lugares e todos estamos conectados. Tal conectividade ubíqua, segundo o mesmo investigador, “transformará o poder, deslocando a influência do estado e de outras instituições organizadas, como os media tradicionais, em direção aos cidadãos” (PAVLIK, 2014, p. 160). Não foi afinal, isso, que observamos na Primavera árabe ou nos movimentos Los Indignados ou Occupy Wall Street? Isto é, a capacidade de produzir e distribuir informação à escala global, sem depender dos media tradicionais? E o seu acesso a esses media não representa já uma forma de (saber) usar a comunicação como poder? Mais: esse poder

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não assumirá ainda mais força e protagonismo quando, como sucedeu nesses casos e foi ainda mais visível com a afirmação do Media Ninja, no Brasil, eles passam a ser também fonte e matéria noticiosa, por parte dos media tradicionais, fruto das estratégias de comunicação que desenvolvem? O “triunfo da comunicação” a que Wolton (1999, p. 159) se refere quando discorre sobre as relações entre ela e a política e como esta passou a depender da primeira, ganha aqui uma especial e renovada acuidade, dado que o mundo atual das redes sociais, do Skype e do 3D é muito diferente do quotidiano e da tecnologia de há 15 anos. O jornalismo esteve, desde sempre, intimamente ligado às tecnologias do seu tempo. Hoje como ontem, tal ligação mantém-se inalterável. A novidade é que as tecnologias estão a provocar, como nunca, profundas alterações nos processos de comunicação as quais se repercutem no exercício do jornalismo. Daí terem emergido novas abordagens e noções sobre ele e o modo de o praticar, mas também de o limitar e influenciar, ao mesmo tempo que subsistem as posições que o continuam a considerar imprescindível para uma boa saúde das sociedades democráticas, desde que seja capaz de criar valor acrescentado à informação que presta e de se diferenciar nos processos, independência e credibilidade, dos restantes atores que com ele dividem o espaço público mediatizado (SILVERMAN, 2015; NICHOLS & MCCHESNEY, 2013; PICARD, 2010; KOVACH & ROSENSTIEL, 2010, 2004). Encontramo-nos num cenário de mudança, que se estende à própria organização empresarial dos órgãos de comunicação que, por sua vez, já não concorrem apenas entre si. Os quadros de produção e de transmissão da notícia alteraram-se radicalmente, pelo que já não basta falar em velocidade quando queremos comunicar. “Imediaticidade seria uma melhor palavra a ser empregada” (BRADSHAW, 2014, p. 116), no sentido em que ela corresponde a uma qualidade que “se faz sentir em todas as notícias, em que os usuários podem ultrapassar o jornalista e a estória” (BRADSHAW, 2014, p. 116), fruto das vantagens e potencialidades da tecnologia que “vem na nossa direção” (LORENZ, 2014, p. 153) e à qual é impossível escapar. A entrada e participação ativa de novos atores no espaço mediático, agora aberto a todos e por isso mais democrático, trouxe consigo um aumento exponencial de informação. Por outro lado, o ambiente digital em que toda ou grande parte da comunicação passou a efetivar-se transcende os códigos, as rotinas, os princípios e até o tipo de relacionamentos que durante um século marcaram o jornalismo. Este, confrontado com a influência crescente de novas linguagens e formatos que veiculam informação, como os blogues e depois as redes sociais, levou a que os orgãos de comunicação tradicionais tivessem de os adicionar nos seus espaços e aderir a eles (ROST, 2014) para melhor comunicarem e manterem a necessária visibilidade pública. Um órgão de comunicação passou a ser mais do que o seu próprio título e espaço. Ele é agora um conjunto de várias plataformas, através das quais comunica, cria laços e vende produtos, naquilo a que Rost (2014) classifica como “transmedia” (p. 75). Tal entendimento tem implícita a ideia da interatividade seletiva, uma vez que a variedade de suportes e de plataformas disponíveis propiciam a autonomia dos diferentes produtos com a vantagem de fomentarem o nível de participação dos utilizadores.

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A era digital alterou tudo: as nossas vidas, os nossos relacionamentos, encurtou distâncias e introduziu novas práticas profissionais. No campo da comunicação e da informação, as alterações que está a provocar só têm paralelo com a revolução de Gutenberg. Pavlik (2014) considera que, neste contexto, o jornalismo tende a expandir-se. Porém, ele não entende a sua prática circunscrita aos profissionais, porquanto estes já não habitam o mundo antigo onde só eles podiam dirigir-se a todos e em que só eles detinham o poder de informar. Hoje, qualquer cidadão, na perspetiva de Pavlik (2014) ou de Gillmor (2005) é mais do que um mero recetor ou destinatário de notícias – “contribui para o fluxo informacional” (PAVLIK, 2014, p. 181). Nesta linha de pensamento, o valor do jornalismo deve ser alargado para fora das suas atuais fronteiras, uma vez que no mundo permanentemente conectado há que privilegiar a natureza participativa das notícias (PAVLIK, 2014; HERMIDA, 2011). O jornalismo tende, à luz deste novo quadro de referências, a perder o lugar central que há muito ocupava. Está obrigado a repensar o seu papel, posicionamento e função, num processo de mudança em que são já os próprios órgãos de comunicação a encorajar e fomentar a produção de informação junto dos seus públicos.

NOVOS RUMOS, NOVAS ESTRATÉGIAS Do diário francês, Libération, ao norte-americano NYT, passando pela Time ou pelo The Guardian, as transformações estratégicas que protagonizam não cessam de nos questionar sobre o(s) rumo(s) do jornalismo e de nos interpelar até que ponto os espaços dedicados ao content marketing e aos native adds não são já o prenúncio de uma nova era de fazer e publicar informação, embora ainda não assumida como conteúdo jornalístico. Na Time, desde dezembro de 2013 que jornalistas e comerciais partilham a redação, sendo que os primeiros têm de ter em conta recomendações e chamadas de atenção dos segundos. O objetivo, segundo foi explicado por Joseph Ripp, CEO da empresa, é conseguir melhores resultados operacionais2. O New York Times, por seu lado, iniciou em novembro de 2014 a publicação de conteúdos patrocinados – content marketing – tanto na edição em papel como online. O primeiro cliente foi a multinacional Shell, que, de acordo com um relatório da Capital New York, terá pago mais de 200 mil dólares pela criação do conteúdo intitulado cities energized: the urban transition. No final do referido conteúdo informa-se que este foi inteiramente produzido pelo departamento comercial do NYT em colaboração com a Shell e que a redação do jornal não teve qualquer papel na sua preparação. Não obstante esta desejável transparência, é difícil não perceber a semelhança ou, até, a contaminação narrativa existente entre aquilo que é um conteúdo publicitário com estas caraterísticas e uma reportagem. A questão é de tal forma óbvia e pertinente, que David Carr3 (2013), autor da coluna Os media em equação, no NYT, e professor de estudos dos media na universidade de Boston, 2.  “Time Inc. will abandon the traditional separation between its newsroom and business sides, a move that has caused angst among its journalists. Now, the newsroom staffs at Time Inc.’s magazines will report to the business executives. Such a structure, once verboten at journalistic institutions, is seen as necessary to create revenue opportunities and stem the tide of declining subscription and advertising sales”. Para mais detalhes, consultar: http://www.nytimes.com/2013/12/30/business/media/time-inc-is- preparingto-head-out-on-its-own.html?pagewanted=all&_r=0. 3.  Falecido em fevereiro de 2015.

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já antecipava o problema, ao considerar a native advertising – em cujo âmbito se insere o content marketing – o novo perigo do jornalismo, uma vez que a sua forma e modelo de narrativa vestem o mesmo uniforme do jornalismo. O facto de publicações prestigiadas como NYT, New Yorker ou The Guardian terem aderido aos modelos do native advertising, apenas significa que já nem as marcas informativas de referência escapam a essa onda gigante que, no fundo, está intimamente ligada com a diversificação da oferta de produtos, tendo em vista a potencialização do novo modelo de negócio, como refere Varela (2011), que o novo ambiente digital proporciona (ROST, 2014). Em França, a mais visível resistência à mudança ficou-se por uma curta greve seguida da troca de diretor. Referimo-nos ao caso controverso do Libération, cuja primeira página da edição de 7 de fevereiro de 2014 – “nós somos um jornal, não um restaurante ou uma rede social” – era um grito de alerta e de alarme face às transformações em curso que culminaram com a demissão do diretor. Esta tendência para a sobrevalorização da vertente comercial e do negócio, que agora é muito mais visível e assumida, já tinha começado subtilmente uns anos antes, quando os órgãos de comunicação passaram a estar incorporados em grandes grupos e “a responsabilidade financeira entrou na redação e trouxe consigo a linguagem comercial”, sublinham Kovach & Rosenstiel (2004, p. 63), que não deixam de realçar, ainda, a expressão que um dia ouviram ao antigo diretor do San Jose Mercury, Bob Ingle: “os melhores diretores são executivos de marketing” (p. 63). A democraticidade tecnológica que antes referimos e a quase desregulação em que o sector dos media entrou nos anos mais recentes e cujos desenvolvimentos são, ainda, algo nebulosos, estão a conduzir o jornalismo para um caminho e mundo novos, onde a ideia de cidadão está a ser substituída pela de consumidor. Paralelamente, onde antes o antigo profissional da informação era um elemento imprescindível, ele é hoje um ator secundário no contexto da empresa e na cadeia de prioridades de um negócio em profunda transformação.

FIM DO ANTIGO MONOPÓLIO A centralidade que o jornalismo ocupou durante o último século está, assim, posta em causa. Emily Bell4 é uma das vozes que o diz com toda a frontalidade. Na conferência que deu em novembro do ano passado no Instituto Reuters da universidade de Oxford, defendeu que o jornalismo foi desalojado do lugar central e de liderança que durante décadas ocupou na esfera pública, sustentando que se hoje existe uma imprensa livre, os jornalistas “já não são os responsáveis por isso” (BELL, 2014). O seu ponto de partida, que é também em grande medida o cenário em que situa o seu pensamento, são as redes sociais e a importância que elas hoje têm no desenho da atualidade noticiosa. Em seu entender, os grandes responsáveis pela informação a que a maioria das pessoas acede resulta da ação de engenheiros que raramente pensam no jornalismo e no impacto cultural ou na responsabilidade democrática dos media. 4.  Diretora do Tow Center, Centro de Pesquisa de Jornalismo Digital da Universidade de Columbia (EUA) e ex-responsável pelos conteúdos eletrónicos do jornal britânico, The Guardian.

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Mesmo assim, são eles, os engenheiros, que diariamente tomam decisões que modelam a forma como a atualidade é criada e partilhada. No passado – relembra a mesma investigadora – os pioneiros do jornalismo, como Paul Reuter e John Reith, na BBC, foram também os pioneiros nas tecnologias de comunicação. Hoje não é assim. Para Emily Bell (2014) são os engenheiros que desenvolvem plataformas como o Youtube, Facebook, Instagram, entre outras, ao passo que nenhuma empresa de media criou ou desenvolveu qualquer plataforma ou rede social de larga utilização. Tal situação, tem grandes consequências ao nível das receitas com a publicidade, cujos investimentos são ainda largamente direcionados para aquelas plataformas. Colocado, portanto, perante a perda do monopólio que teve durante mais de um século na distribuição de informação a larga escala e no acesso às fontes, o jornalismo vive uma circunstância nova e paradoxal. Se é certo que existem mais meios e mais mercado e que os recursos humanos nunca atingiram o grau de preparação que hoje apresentam, a verdade é que, por outro lado, a atual forma de organização das empresas – reunidas em grandes conglomerados e grupos económicos – leva-as a estarem sujeitas a pressões enormes por parte dos respetivos investidores e acionistas que, por sua vez, condicionam e determinam as condições de exercício do jornalismo e da respetiva informação noticiosa (BAGDIKIAN, 2004; NICHOLS & MCCHESNEY, 2010). Num mundo onde, então, todos comunicam com todos e todos podem produzir informação, como pode o jornalismo diferenciar-se e competir com a ubiquidade informativa que aponta Pavlik (2014) e, ao mesmo tempo, criar valor na informação que presta, para que a sua função se mantenha relevante, na linha do entendimento de Picard (2010), quando se assiste a uma redução constante dos recursos das redações, limitando, no fundo, a sua capacidade de trabalho e qualidade de produção? e como pode o jornalismo, face a tais desinvestimentos, ambicionar ser um negócio rentável? ou é porque deixou de o ser que passou a trabalhar com menos recursos?

OS MEDIA E OS COMUNICADORES PROFISSIONAIS Se o jornalismo perdeu a centralidade que já teve no espaço público mediatizado, isso não significa que existam menos notícias ou menor consumo de informação. Fruto das transmissões por cabo ou via Web, as notícias são transmitidas de forma permanente e interminável, como referem Nichols e McChesney (2013), para quem tais fluxos de informação têm a ver com o incremento dos profissionais de relações públicas nas mais diversas organizações e a sua influência crescente nas decisões jornalísticas. É dentro deste quadro geral de pensamento que interpretamos a resolução aprovada na assembleia geral da Associação de Imprensa Internacional, em 18 de março de 2010, a qual manifestava a sua maior preocupação face à regressão, pela primeira vez em 50 anos, do número de correspondentes junto da Comissão Europeia, em Bruxelas. Não obstante a crescente complexidade das matérias e dos dossiês, a par do aumento do número de países membros, a presença de jornalistas acreditados tinha diminuído de 1006 para 847, ao mesmo tempo que se assistia a uma política mais agressiva por parte dos profissionais de relações públicas. Frans Boogaard (2010)5 membro da direção 5.  Estes números, com pequenas oscilações, continuam a revelar a tendência para uma contenção

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daquela Associação, denunciava esse fosso crescente, ao fazer notar que a uma maior profissionalização das instituições e ao maior controle da informação que estas veiculavam, correspondia uma diminuição do número de jornalistas, num cenário de 40 mil funcionários, oito centenas de deputados e 15 mil lobbystas. Pesquisas realizadas nos EUA e no Reino Unido apontam para a mesma situação de desequilíbrio. Em 1960, nos Estados Unidos, havia mais jornalistas que profissionais de relações públicas; em 1990, essa relação era de um jornalista para dois profissionais de relações públicas. Em 2012 a proporção tinha aumentado para 4-1. As atuais previsões apontam para a existência, a breve prazo, de um jornalista para seis relações públicas (NICHOLS & MCCHESNEY, 2013). Um outro estudo, publicado em 2011 pela comissão federal de comunicação dos EUA e referenciado pelos mesmos investigadores, refere que o jornalismo está em risco, porque o seu exercício, segundo os princípios da independência e da velha função do watchdog já não existem. Em Dollarocracy, Nichols & McChesney (2013) apresentam as mesmas preocupações e chamadas de atenção. Os dois investigadores concluem que a informação jornalística vive sob a influência e domínio dos profissionais de relações públicas e das suas mensagens manufaturadas destinadas aos espaços noticiosos. Por todas essas razões entendem que “pode não haver muito jornalismo, mas há seguramente muitas ‹‹notícias››” (NICHOLS & MCCHESNEY, 2013, p. 194). No Reino Unido, um estudo feito a cinco jornais de grande expansão (The Times, The Guardian, Independent, Daily Telegraph e Daily Mirror), aos serviços informativos da BBC-Radio e ainda às estações televisivas da BBC, ITV News e Sky News revelou ser inegável o peso e influência das fontes profissionais na produção noticiosa (LEWIS, WILLIAMS, FRANKLIM, 2008). Em Portugal, um comunicado do Conselho Deontológico dos Jornalistas divulgado no final de dezembro do ano passado dá consistência aos maiores receios, quando considera que “as condições de exercício do jornalismo no período 2010-2014 agravaram-se com implicações no domínio ético-deontológico”. Segundo o mesmo documento, o exercício do jornalismo tem sido nos últimos anos, impulsionado por uma orientação estratégica dos media centrada em transformar a informação em mercadoria, com o intuito de produzir espetáculo mediático e assegurar audiências e vendas. Esta perspetiva – sustenta ainda o Conselho Deontológico – conduziu gradualmente o jornalismo à situação de refém do interesse de fontes organizadas e à mercê da duvidosa qualidade de uma informação que se pretende vendável (CONSELHO DEONTOLÓGICO DOS JORNALISTAS, 2014)

O Observatório Europeu de Jornalismo, por seu lado, dava conta, também em dezembro de 2014, que Portugal perdera 1218 jornalistas nos últimos sete anos 20072014 (TOMÉ, 2014) do número de jornalistas acreditados junto da UE. Em 2011, segundo um estudo efetuado pelo gabinete de Ligação Bruxelas-Europa publicado a 6 de novembro de 2012, revelava que havia 951 jornalistas acreditados junto da UE. Quanto ao número de lobbystas, o mesmo estudo aponta para a presença de 15 mil a 20 mil. http://www.lacomeuropeenne.fr/2012/11/06/ quel-est-l-impact-chiffre-de-l-ue-a-bruxelles-fonctionnaires-europeens-diplomates-journalistes-lobbyistes/

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DE JORNALISTA A MEDIA-WORKER Observamos, portanto, que as grandes transformações operadas no domínio da organização empresarial, dos modelos de negócio e, em especial, nos avanços tecnológicos, estão a enfraquecer o antigo domínio e soberania do jornalismo. Nos atuais contextos organizacionais em que os jornalistas operam, constata-se que a intensificação produtiva que é comum à generalidade dos sectores industriais inclui também os media noticiosos, visto que em todos eles um escasso número de jornalistas tem de tratar cada vez mais informação, num ciclo de notícias que hoje é de 24 horas em contínuo. Acresce, ainda, que uma das facetas da intensificação é a polivalência de funções, a qual é agora mais facilitada pela tecnologia digital (ALDRIDGE & EVETTS, 2003). Porém, todas essas transformações são menos significativas que a mudança registada ao nível dos conceitos de valores profissionais e de auto-identidade por parte dos empregadores na busca dos objetivos empresariais, que “não serão, necessariamente, partilhados pelos seus empregados” (ALDRIDGE & EVETTS, 2003, p. 561). Os casos que referimos antes sobre a Time e o NYT e as experiências que ambos protagonizam reforçam, aliás, a complexidade desta matéria, embora sejam reveladoras de um certo enfraquecimento do campo jornalístico. Tal significa que se o jornalismo enfrenta problemas novos em contextos igualmente novos, as soluções, sejam quais forem, terão de ser igualmente novas. No que respeita ao exercício do jornalismo, o pensamento dominante – ou o “contexto atual”, na expressão de Rémi Riefiel (2003, p. 147) – “é o da influência crescente de uma conceção de informação assente na ideia de que esta é uma mercadoria como qualquer outra” (RIEFEL, 2003, p. 147). A expressão jornalismo de mercado consagrada desde meados dos anos 90 do século passado (MCMANUS, 1994) e cujo alcance abrange já uma redefinição da prática jornalística, antecipa de certa forma a escalada comercial que se irá mais tarde impor, assim como a influência que a tecnologia vai trazer na transformação dos media e nos comportamentos dos públicos. O destino desse jornalismo dependente das regras de mercado e em que os critérios comerciais e de marketing se sobrepõem às decisões editoriais, “é a dissolução da profissão de jornalista num continuum de ofícios da comunicação, ilustrado no neologismo americano media-worker” (NEVEU, 2005, p. 119). A partir do pensamento de Charon & Bonville (1996), que propõem, à luz deste quadro de transformações, o aparecimento de um novo conceito de jornalismo, Neveu (2005) retoma e apropria-se dessa linha de raciocínio para nos sugerir o triunfo de um jornalismo de comunicação, “proveniente de uma hiperconcorrência entre publicações, meios de comunicação social e mensagens”, como, anteriormente, o jornalismo “objetivo da penny press tinha, no século XIX, suplantado o jornalismo de opinião” (p. 119). Um novo cenário, assim entendido, “refletiria um deslocamento da atenção de um público desinteressado da política e mais orientado para a procura do bem estar pessoal” (NEVEU, 2005, p. 120), através da valorização das chamadas soft news. Tendência que é, de resto corroborada por Picard (2010), quando discorre acerca das fronteiras entre o que são as necessidades e os desejos de informação dos públicos, na linha, aliás, do que antes Patterson (2003) já tinha concluído, ao sustentar que a informação noticiosa é predominantemente construída segundo os interesses das audiências e dos públicos, em vez de estar orientada para aquilo que esses mesmos destinatários precisam saber.

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Neveu (2005) introduz, todavia, uma nuance nesta argumentação, ao considerar que as soft news estão ligadas à ideia de informação-serviço, no sentido de anteciparem e irem ao encontro dos gostos e necessidades dos públicos, em áreas como a saúde, o lazer e os consumos, de que os atuais suplementos e rubricas da imprensa, televisão e do online constituem bons exemplos. Nesta linha de pensamento, o jornalismo de comunicação “age como vulgarizador, conselheiro, leia-se como um amigo que mantém uma relação familiar com o seu público, divertindo-o. Abandona, pois, a sua postura de árbitro e de ator de uma relação cívica” (NEVEU, 2005, p. 120). Por outro lado, as empresas, associações e instituições, outrora apenas fontes de informação do jornalismo e dependentes deste para veicular as suas posições e comunicar com os seus públicos, possuem agora canais próprios para o fazer e, nessa medida, comportam-se como placas giratórias na ligação a centenas de media, naquilo a que Neveu (2005) classifica como uma espécie de “ciber-bazar informacional” (p. 123) e cuja presença nas redes sociais tem vindo a aumentar de forma exponencial. Confrontado com esta realidade e problema, Deuze (2008) entende que qualquer reflexão sobre o exercício do jornalismo deve ter em conta as condições e circunstâncias em que a profissão é praticada. Em sua opinião, ela não pode ser vista, interpretada e, nem sequer, perspetivada, isoladamente, o mesmo é dizer fora das múltiplas dinâmicas sociais e económicas em que se insere, sob pena de que um pensamento que não contemple tais enquadramentos ser irrelevante. Deuze (2008) convoca, assim, para o seu raciocínio, as pressões enormes que muitos profissionais enfrentam em vários pontos do globo, com despedimentos em massa e a aquisição de novas empresas, cujo objetivo é dominar a agenda do sector, a que acresce uma retração dos públicos face a novos produtos informativos. Nesta perspetiva, sustenta que “qualquer estudo sobre jornalismo tem de ter em conta o contexto precário do seu objeto de estudo. E esse contexto deve ser visto segundo os termos de um jornalismo líquido monitorizado pela cidadania” (DEUZE, 2008, p. 861). É, portanto, num quadro de grande incerteza que o jornalismo joga o seu papel e o seu futuro, com a novidade de que agora não está sozinho no espaço mediático e muito menos é o seu principal soberano. E se a precariedade, mesmo no sentido da transitoriedade, constitui um sinal desta sociedade líquida que habitamos (BAUMAN, 2000) e na qual Deuze (2008) procura alguma inspiração, mais uma razão para admitirmos que pisamos terrenos movediços nessa incerteza fabricada de que fala Giddens (1994).

CONCLUSÕES Os avanços tecnológicos, as mudanças organizacionais das empresas mediáticas e a busca por novos modelos de negócio e de financiamento estão na origem do processo de erosão que o jornalismo enfrenta e de que fomos dando conta ao longo do texto. Paralelamente, a emergência e afirmação de outros atores no espaço público, cuja ação é potenciada pela comunicação em rede – ou pela comunicação individual de massas capaz de proporcionar a constituição de movimentos de revolta e de contra-poder (CASTELLS, 2007) – retira o monopólio antigo da produção e difusão de informação aos media tradicionais.

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A luta pela comunicação, portanto, é hoje mais ampla e competitiva. Dominar os seus processos e respetivos conteúdos constitui, assim, uma ambição de todos quantos a utilizam e que vêm nela uma forma de poder. Tal poder é, todavia, ainda ambíguo, porquanto se é certo que ele influencia a informação noticiosa – e pode até substituí-la – também é verdade que ele precisa ainda do jornalismo, como os exemplos sobre as fontes profissionais e de relações públicas bem demonstram, para ver legitimadas e mais credibilizadas as suas posições e ideias. Vivemos, em suma, uma nova ecologia mediática (DEUZE, 2008) que proporciona um poder e capacidade de comunicação novos com repercussões claras no jornalismo, cuja prática, por seu lado, enfrenta um processo de erosão que inevitavelmente vai exigir que se repensem os contornos do seu exercício.

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O jornalismo em meio à crise sistêmica: uma proposta de observação a partir da Teoria Ator-Rede Journalism in the midst of systemic crisis: a proposal for observation from the Actor-Network Theory Moreno Cruz Osório1

Resumo: Este artigo busca discutir possibilidades teórico-metodológicas para a observação do jornalismo em meio à crise sistêmica apontada por Oliveira e Henn (2014). Para isso, faz dois movimentos. Primeiro, delimita a reflexão a um cenário de produção de acontecimentos notáveis em ambiente de rede e em tempo real, momento em que o jornalismo convive com outros sistemas de significação e enfrenta dificuldades para conseguir manter a legitimidade como mediador da esfera pública. Depois, explora o potencial da Teoria Ator-Rede e das cartografias das Controvérsias e Sentimental para sugerir uma forma de mapear o comportamento do jornalismo, bem como as formas encontradas por ele para se adaptar ao contexto de crise a partir de um exemplo de caráter ilustrativo, o veículo de cobertura global reported.ly.

Palavras-Chave: Acontecimento. Teoria Ator-Rede. Jornalismo. Abstract: This paper aims discuss theoretical and methodological possibilities for observating journalism amidst the systemic crisis pointed out by Oliveira and Henn (2014). To do so, it make two moves. First, limits the reflection to a production scenario of notable events in a network environment and in real time, when journalism coexists with other systems of meaning and struggling to maintain legitimacy as a mediator of the public sphere. Then explores the potential of Actor-Network Theory and cartographies of Controversies and Sentimental to suggest a way to map journalism behavior, as well as ways found by it to adapt itself to the context of crisis from one illustrative example, the global coverage outlet reported.ly.

Keywords: event, Actor-Network Theory, journalism

1. INTRODUÇÃO ARA OLIVEIRA e Henn (2014), o jornalismo vive uma crise sistêmica pela emer-

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gência de outros “pontos de propulsão” de informação e sentido – as redes sociais digitais. A trajetória do jornalismo como “sistema aberto, dinâmico, complexo e não linear” que atua como “espaço institucional de mediação social” através da “transformação do acontecimento em narrativas inscritas em códigos historicamente constituídos” (p. 8) o colocou em um patamar privilegiado no que se refere à produção de 1.  Doutorando em Comunicação pela Unisinos. Email: [email protected]

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sentidos compartilhados socialmente. Hoje, esse lugar é desestabilizado pelos “pontos de propulsão”, que se converteram em “um espaço de disputa de sentidos entre os diferente sistemas que se dedicam a interpretar o mundo conforme seus repertórios e interesses” (p. 10). O jornalismo se vê atravessado por lógicas que interferem em suas práticas deontológicas historicamente constituídas. Diante disso, os autores apontam a necessidade de que o jornalismo “precisaria superar o ‘modelo’ calcado em preceitos como objetividade, imparcialidade, instantaneidade, etc. para manter a legitimidade social que lhe imputa a prerrogativa de mediar a esfera pública” (p. 10). A busca por sua “simbólica formal”, ou seja, sua afirmação como o sistema incumbido de produzir signos de maneira a contribuir para a construção social da realidade, dizem os autores, precisará ser feita abertamente, e não de forma velada. Em outras palavras, o sistema jornalístico precisa se abrir para seguir sendo socialmente relevante. A reflexão de Oliveira e Henn é capaz de ilustrar um contexto, ganhando fôlego para explicar o momento do jornalismo à medida que casos específicos sejam analisados a partir de suas lentes. Mesmo que os autores tenham fornecido exemplos, uma abordagem mais específica, iluminada por outros pressupostos teóricos e distintas aproximações empíricas, pode contribuir para fortalecer a hipótese proposta. Gostaríamos de propor uma dessas abordagens. Trata-se de uma reflexão a respeito do jornalismo feito em rede e em tempo real2 a partir de uma aproximação às teorias do acontecimento propostas por Alsina (2009), Rodrigues (1993) e Nora (1974) e das ideias de Zelizer (2000) e Darton (2010) a respeito das práticas jornalísticas profissionais vinculadas à deontologia historicamente constituída. A ideia é buscar instrumentos para perceber como se dá a relação do jornalismo com outros sistemas em um momento crítico: a emergência e a construção de um acontecimento em rede, quando vários sistemas de significação buscam relevância ao construir socialmente a realidade de maneira quase simultânea ao acontecimento em si. Por ser uma situação dinâmica e efêmera, em que o social emerge das relações entre os atores envolvidos no processo – sendo eles não necessariamente humanos – buscamos essa instrumentalização na Teoria Ator-Rede (TAR), ou Sociologia das Associações, de 2.  Há um tensionamento necessário à expressão “jornalismo em tempo real” para que ela ilumine o texto com o sentido desejado, se afastando do senso comum. Aqui, ela foi feita à luz do raciocínio sobre instantaneidade de Carlos Franciscato (2005). Ele diz que “no jornalismo o caráter de instantâneo pode não ser real (pode haver um intervalo mínimo de tempo decorrido), mas esta duração ínfima pode não ser significativa para interferir negativamente na construção que o jornalismo faz de conteúdos baseados e voltados para experiências no presente” (p. 114) e que a instantaneidade no jornalismo “é composta tanto por fatores materiais estruturais com base nos quais o jornalismo opera quanto de elementos culturais simbólicos que fundamentam e dão sentido à atividade” (p. 121). O que podemos inferir dois trechos é (1) que a instantaneidade no jornalismo está vinculada ao avanço técnico das possibilidades de produção e transmissão das notícias, e (2) que a diminuição do intervalo de tempo entre o evento e a sua recepção é o resultado da “constituição histórica de uma instituição denominada jornalismo” (p. 123). A partir daí, entendo que duas questões se impõem. Primeiro, o quanto essa “duração ínfima” não só não é significativa a ponto de descolar a produção jornalística do presente, como o caráter mínimo desse intervalo de tempo talvez comece a atrapalhar a produção realizada pelo sistema jornalismo – ainda mais quando ele se vê sob pressão e em disputa com outros sistemas durante à construção de discursos sobre acontecimentos. Segundo, diante do avanço das redes sociais digitais e a consequente ascensão de outros sistemas geradores de sentido, o quanto a perda da exclusividade em diminuir o intervalo de tempo entre o evento e sua recepção não aumenta a supracitada pressão sobre o sistema jornalismo.

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Bruno Latour. À TAR somam-se as cartografias das Controvérsias (VENTURINI, 2010) e Sentimental (ROLNIK, 2014). Enquanto aquela coloca em prática as ideias de Latour, esta busca na psicologia ferramentas para analisar as relações entre os atores e suas construções discursivas. Ambas podem auxiliar, a visualizar o comportamento do sistema jornalismo no contexto introduzido. Trata-se de uma discussão de caráter metodológico que busca desenvolver bases teóricas para observar as mudanças pelas quais passa o jornalismo diante da referida crise sistêmica – ao menos em um contexto específico. Sublinha-se, no entanto, o caráter cuidadoso e inicial de uma reflexão sobre o jornalismo à luz da TAR, ainda mais em um ambiente de rede que não necessariamente tem a ver como o conceito de rede proposto por Latour, tal como chama a atenção Bastos et al (2014). Ao fim, e para ilustrar a reflexão, um exemplo empírico mostra os desafios enfrentados pelo jornalismo em ambiente de rede, bem como soluções por ele encontradas para se adaptar.

2. UMA ABORDAGEM AO ACONTECIMENTO JORNALÍSTICO Partiremos do observado por Rodrigues (1993) de que “é acontecimento tudo aquilo que irrompe na superfície lisa da história de entre uma multiplicidade aleatória de factos virtuais” (p. 27). Mas não nos filiaremos a esta constatação pela possibilidade de interpretá-la prioritariamente como oposição do virtual ao atual. Por essa lógica, todos os fatos são notícias em potencial, basta que, a partir de certos critérios, sejam atualizados em forma de notícias. Isso acarretaria considerar que todas as notícias são acontecimentos. E de fato o são. Mas não queremos usar essa definição, digamos, generalista. A ideia é delimitar a abordagem. O objetivo é abordar o acontecimento a partir do que a frase de Rodrigues é capaz de expressar quando anuncia o “irromper na superfície lisa da história”. A expressividade do trecho vai além, no nosso entender, de dizer que uma superfície lisa é alterada, é irrompida, a cada vez que um fato virtual é atualizado em forma de notícia. O alto número de notícias publicadas atualmente, ainda que se origine de uma pequena parcela da multiplicidade de fatos virtuais disponíveis, permite que pensemos no tecido por elas formado também como superfície lisa – o que poderíamos chamar de superfície noticiosa. Ou seja, se temos uma superfície lisa de fatos virtuais, temos também uma superfície de fatos atualizados em forma de notícia. Uma superfície que se mantém relativamente lisa até o irromper de um acontecimento notável. Entendemos que o trecho é capaz de denotar uma gravidade maior sobre a natureza do acontecimento notável irrompido do que a em geral apresentada pela composição de um noticiário. Ele está ligado, acreditamos, à sequência do texto, quando Rodrigues aborda a “escala das probabilidades de ocorrência” de um acontecimento: quanto menos previsível ele for, “mais probabilidades tem de se tornar notícia e de integrar assim o discurso jornalístico” (p. 27). Sabemos que um acontecimento pode virar notícia não só pelo seu grau de imprevisibilidade. Mas são as notícias imprevisíveis, as que irrompem com força da superfície lisa da cobertura noticiosa, as que gostaríamos de ter como horizonte. Especialmente as reverberações causadas ao sistema jornalismo pelo acontecimento notável que está em sua origem.

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3. CONTROLAR O ACONTECIMENTO O discurso sobre o acontecimento é uma tentativa de ordenação do mundo, com a notícia tomando o lugar do que na Antiguidade era tarefa da premonição. Daí o seu caráter de “enquadramento e regulação” (RODRIGUES, 1993, p. 29) de uma realidade no entanto suscetível ao imponderável. Nem sempre, portanto, essa tentativa de racionalizar o devir consegue obter a ordem e a regularidade desejadas. Mesmo que o jornalismo enquadre os acontecimentos, o controle total é impossível – sempre irromperá um acontecimento que transcende suas capacidades. O que não impede de relatá-lo. Muito pelo contrário. E ao fazê-lo, “é o próprio discurso do acontecimento que emerge como acontecimento notável” (p. 29). Nasce o meta-acontecimento. O meta-acontecimento devolve ao mundo no qual o acontecimento se deu um acontecimento discursivo capaz de produzir outros efeitos através do que Rodrigues chama de atos ilocutório e perlocutório. Que são, respectivamente, os critérios nos quais estão baseados o relato do acontecimento e a capacidade desse relato produzir algo – influenciado pelas suas regras enunciativas – simplesmente pelo fato de ter sido relatado. Ou seja, a forma como um acontecimento é narrado e transformado em meta-acontecimento é diretamente responsável pelos sentidos que o meta-acontecimento resultante produzirá. Disso, entendemos que o jornalismo oferece certos sentidos se apropriando do acontecimento de maneira particular. O raciocínio de Rodrigues sobre a ordenação do mundo através da narrativa encontra eco em Nora (1974) quando ele diz que as sociedades modernas, pensadas como sistemas, buscam a estabilização através da negação da novidade de diferentes formas. No sistema social das sociedades capitalistas ocidentalizadas, o nosso caso, através da redundância narrativa dos meios de comunicação. O jornalismo banaliza a novidade, fazendo dela regra, e não exceção. Só que, paradoxalmente, a “redundância intrínseca ao sistema tende a produzir o sensacional, fabrica permanentemente a novidade, alimenta uma fome de acontecimentos”, criando “acontecimentos monstros que se repetem e se repetirão com cada vez mais frequência” (NORA, 1974, p. 249). Tratam-se de meta-acontecimentos monstros que fabricam a novidade incessantemente ao mesmo tempo que a esvaziam. Tal construção se dá por meio de um fazer historicamente constituído por normas deontológicas e por práticas cristalizadas no dia a dia profissional. Em resumo, o jornalismo tenta controlar o caráter imponderável da realidade oferecendo um discurso que tende ao espetacular. Esse discurso é fruto de uma crescente sede por narrativas, o que acaba fabricando mais novidades, que, embora espetaculares, acabam banalizadas pela redundância. Esse círculo vicioso fragiliza o discurso do jornalismo na sua instância operacional, enfraquece seu ato ilocutório, suas regras enunciativas, em um momento de perda da exclusividade e – consequentemente – de disputa sobre a produção e a circulação de sentidos compartilhados socialmente. Ainda mais quando essa disputa se dá durante a emergência de um acontecimento notável, aquele que irrompe da superfície lisa de notícias, fazendo as atenções convergirem para um fato capaz de se transformar na origem de muitos meta-acontecimentos e em tempo real.

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Para entender esse enfraquecimento e essa disputa, precisamos tangenciar ato ilocutório do discurso jornalístico. Entender que maneira ele se apropria de um acontecimento para buscar sua própria estabilidade e manutenção como sistema.

4. O ACONTECIMENTO E A COMUNIDADE INTERPRETATIVA O entendimento sobre jornalismo noticioso vem das formulações teóricas sobre jornalismo impresso desenvolvidas no século XX (TRAQUINA, 2004) , sendo o lide – e as perguntas que ele procura responder – seu maior paradigma. Este exercício do jornalismo evoluiu simultaneamente com uma cultura profissional em que é dada “prioridade à prática sobre a reflexão” (TRAQUINA, 2005), principalmente pela relação jornalista versus tempo. Na redação, os jornalistas criaram formas para “domar” o fazer profissional, tornar uma profissão marcada pelo ritmo atroz dos acontecimentos em uma atividade de narração de eventos cíclicos. Darton (2010) conta como se dá (ou se dava), na prática, a produção do ato ilocutório na redação de um jornal, onde a pretensa cientificidade do lide disputa lugar com conflitos, boicotes, ambição, hierarquia – presentes em todas as profissões. O resultado é uma “redação fortemente influenciada por estereótipos e concepções prévias sobre o que deve ser a ‘matéria’” (DARTON, 2010, p. 103), o que afeta diretamente o que esse discurso jornalístico é capaz de fazer (ato perlocutório). Darton mostra, através da influência das relações humanas no fazer jornalístico, uma forma de controlar os acontecimentos. Colocá-los em um molde conhecido para que jornalistas sejam capazes de responder a eles de maneira e em tempo adequados, mantendo a autoridade e o monopólio construídos historicamente a respeito do que é uma notícia e qual é a melhor forma de contá-la. Para Zelizer (2000), os jornalistas se apegam a uma “aura de autoridade” e de profissionalismo para afastar o perigo da subjetividade, negando que a realidade é construída socialmente, tal como afirmam Berger e Luckmann (2009). Esse comportamento pode ser explicado pela ideia de “comunidade interpretativa”. Ao estabelecerem “convenções que são predominantemente tácitas e negociáveis” (ZELIZER, 2000, p. 38) sobre a construção e a interpretação de suas narrativas, os jornalistas determinam como seus textos são lidos. Essas convenções constituem um discurso compartilhado e ditam a forma como esses profissionais veem a si próprios. “Os jornalistas estão unidos, enquanto comunidade interpretativa, pelas interpretações coletivas de determinados acontecimentos-chave” (ZELIZER, 2000, p. 39). Esse comportamento fica mais compreensível quando pensamos na “interpretação coletiva de acontecimentos-chave” a partir do que diz Alsina sobre o acontecimento em um ponto de vista sistêmico: “o acontecimento é um fenômeno de percepção do sistema, enquanto que a notícia é um fenômeno de geração desse sistema” (2009, p. 133). O sistema jornalismo3 é capaz de perceber (inputs) acontecimentos e gerar notícias (outputs), que, por sua vez, serão percebidas por outros sistemas (inputs), o público, por exemplo. Para Alsina, a definição de acontecimento ou notícia passa pelo relacionamento entre os sistemas envolvidos nessa transação. Considerando jornalismo um sistema 3.  Alsina usa “sistema mídia”, mas optamos por continuar usando “sistema jornalismo” por uma questão de coerência com o restante do texto, estabelecendo um padrão a partir do artigo de Oliveira e Henn citado no início desta reflexão.

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aberto, sua estabilidade está vinculada à relação com o entorno (ecossistema) e com outros sistemas. Quanto mais previsíveis e estáveis forem essas relações, maior será a sua estabilidade. Por isso há uma necessidade de controlar seu principal fator de desestabilização, o acontecimento. “Como controla o acontecimento o sistema mídia? A resposta é simples: o sistema impõe seu determinismo sobre o acontecimento do ecossistema na construção da notícia” (ALSINA, 2009, p. 135). Sabendo-se que, como diz Alsina, o acontecimento não existe longe do sujeito que o observa, e que esse sujeito, ao narrar esse acontecimento, automaticamente o constrói (gera um meta-acontecimento), pois nele insere seu conhecimento, sua visão de mundo, sua subjetividade, não só um discurso sobre um acontecimento pode determinar a identidade de uma sociedade, como parte considerável dessa identidade é constituída pelo sistema jornalismo. E se levarmos em conta os apontamentos de Darton e Zelizer, chegaremos à conclusão de que o jornalismo como sistema, ou como “ponto de propulsão” de sentidos, possui uma forma particular de se apropriar e narrar os acontecimentos.

5. JORNALISMO EM MEIO À CRISE SISTÊMICA Temos, portanto, o seguinte cenário. Em uma sociedade que busca a ordenação do mundo negando a novidade por meio da redundância narrativa, o jornalismo, ao adotar essa lógica, produz incessantemente relatos sobre novidades, fabricando meta-acontecimentos monstros. Esses acontecimentos discursivos são produzidos de uma maneira “confortável” para o sistema jornalismo, pois ele busca a manutenção de sua estabilidade ao determinar como seus textos devem ser lidos. No entanto, suas práticas deontológicas estão, em geral, baseadas em um contexto em que inexistia o jornalismo em tempo real, cujas características aumentam o ritmo de produção de meta-acontecimentos. Nesse contexto há uma dificuldade maior de lançar mão da notícia como forma de controlar o acontecimento e, consequentemente, manter a sua estabilidade como sistema. Um dos motivos é porque há menos tempo para produzi-la – pelo menos da maneira enraizada nas práticas profissionais. Antes de o jornalismo poder apontar os sentidos de um acontecimento, é possível que outros sistemas de produção de sentido, outros “pontos de propulsão”, já o tenham feito, utilizando outros códigos deontológicos, outro tipo de fazer, outros atos ilocutórios – que geram atos perlocutórios capazes de competir, em rede, com os atos perlocutórios do jornalismo. Diante desse cenário, levando em conta a atual velocidade e abrangência das inovações tecnológicas e sabendo-se que a relação do jornalismo com o desenvolvimento de tecnologias de transmissão de informação sempre foi estreita, é natural haver uma hibridização, no processo de construção de sentidos pelo jornalismo, entre práticas profissionais historicamente constituídas e dispositivos não-humanos. É o que demonstram as pesquisas de Barbosa (2013), sobre o Paradigma Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD), e de Bertocchi (2014), sobre design do sistema narrativo jornalístico digital, citando só dois relevantes e recentes exemplos4.

4.  Poderíamos ainda citar o trabalho de Mielniczuk sobre o formato da notícia na escrita hipertextual (2003).

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De acordo com Barbosa, bases de dados são “definidoras da estrutura e da organização, bem como da composição e da apresentação dos conteúdos de natureza jornalística” (BARBOSA, 2013, p. 40). Já Bertocchi constrói a ideia de que a narrativa jornalística em ambiente digital é um sistema em que o produto final é apenas a ponta do iceberg. Na superfície estão técnicas tipicamente jornalísticas (texto, vídeo, gráfico). Embaixo está escondido (para o usuário) um mundo de dados, metadados, códigos, algoritmos, robôs, etc. historicamente pouco familiar aos jornalistas – a quem a pesquisadora classifica atualmente como “designer de experiência” (BERTOCCHI, 2014, p. 13). Os dois exemplos mostram que a produção do discurso jornalístico, ao menos em sua instância operacional, e especialmente em ambiente de rede, está mudando. Inserido em um contexto em que o desenvolvimento tecnológico é onipresente e pressionado por outros “pontos de propulsão” de sentidos, o sistema jornalismo se vê obrigado a abraçar a hibridização em seus processos. A questão que se impõe é como pensar o comportamento do sistema jornalismo nesse cenário. Acreditamos que a Teoria Ator-Rede (TAR) adquire relevância por ter a hibridização nas suas premissas.

6. A TEORIA ATOR-REDE E O SISTEMA JORNALISMO A TAR quer pensar o social em um contexto após a Modernidade, período em que tentamos separar natureza e cultura, mas o máximo que conseguimos foi esconder a proliferação de híbridos (LATOUR, 2013). Essa relação paradoxal define a Sociologia do Social. Para essa sociologia, o social “não passa de uma qualidade para representar artificialmente fenômenos marcados por grande estabilidade” (PRIMO, 2012, p. 627). Enquadra-se um fenômeno cuja visibilidade demonstra estabilidade e procura-se verificar o que há de social nele. “A Sociologia do Social confunde o que se quer explicar com a própria explicação. Circularmente, aquilo que se diz social é explicado justamente por ser social” (PRIMO, 2012, p. 626). Com o eclipse da Modernidade, Latour entende que a sociologia precisa incorporar a hibridização que tanto negou, propondo “que todos os elementos, naturais, técnicos, políticos precisam ser descritos e analisados em um único nível” (HOLANDA E LEMOS, 2013, p. 3) e que “a sociedade não pode ser definida como o contexto no qual tudo deve ser enquadrado” (LATOUR, 2005, página 4 de 301, posição 163 de 7516), um quadro social estável, estanque: a sociologia precisa se focar no movimento. Porque o social está na ligação entre elementos. Assim, a sociologia é vista, para Latour, como a Sociologia das Associações: o “social não é designado uma coisa entre outras coisas, como uma ovelha negra entre outras brancas, mas um tipo de conexão entre coisas que não são elas próprias o social” (LATOUR, 2005, página 5 de 301, posição 175 de 7516). “Ao negar o social como uma força comandante ou um domínio da realidade, a TAR busca observar as interações em sua curta vida enquanto as associações momentâneas estão ocorrendo” (PRIMO, 2012, p. 627). Cabe ao sociólogo acompanhar comportamentos, mapear controvérsias e observar formação e implosão do que Latour chama de caixas-pretas – estabilizações temporárias de dispositivos decorrentes de um consenso. “O slogan deste novo sociólogo passa a ser “Siga os atores’” (PRIMO, 2012, p. 630).

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E o que são os atores? Atores são os elementos, humanos e não-humanos, que, por meio das ligações entre si, compõe o social. Não se busca separar natureza e cultura, o que é humano e o que não é, pois “raras serão as situações, explica Latour, puramente humano-humano ou objeto-objeto” (PRIMO, 2012, p. 632). A TAR afasta a utopia de uma sociologia humanista. Embora não se trate de definir uma simetria entre humano e não-humano (p. 114), o não-humano não pode mais ser considerado apenas contexto: trata-se de não impor uma assimetria a priori. As interações entre esses elementos criam redes híbridas mais ou menos estáveis, definindo o social durante um período de tempo, até que os atores formem outras redes. “O social não é o que abriga as associações, mas o que é gerado por elas. Ele é uma rede que se refaz a todo o momento” (HOLANDA e LEMOS, 2013, p. 2). Isso faz com que o social deixe de ser algo seguro e livre de problemas, e sim um movimento que pode falhar ao tentar fazer uma nova conexão, pode falhar ao tentar redesenhar outra formação estável e desenvolvida (LATOUR, 2005, página 7 de 301, pos. 224 de 7516). Porque “diferentemente desta aposta inercial em interações que se repetiriam no tempo e espaço [a Sociologia do Social], a TAR compreende que o social, na verdade, precisa ser constantemente renegociado” (PRIMO, 2012, p. 630). Essa negociação constante cabe aos próprios atores. São eles que definem o que é o social, e não o analista/sociólogo. A este cabe rastrear conexões ao invés de se deter a algo imóvel, o que aprofunda a abstração e exige cuidado por não haver método específico. Para este trabalho, atravessar fronteiras é obrigatório: pensa-se sociologia superando a separação entre natureza e cultura, humano e não-humano. Assim, a Teoria Ator-Rede leva vantagem em situações onde a inovação se prolifera, “onde as fronteiras dos grupos são incertas”, porosas (LATOUR, 2005, página 11 de 301, posição 296 de 7516), momentos em que a Sociologia do Social se mostra incapaz de rastrear novas conexões realizadas pelos atores. Nesse sentido, a comunicação tem papel importante. Holanda e Lemos acreditam que a TAR pode ajudar a compreendê-la. “A comunicação é constituída por tensões entre humanos e não-humanos, entre pragmática e tecnologias da comunicação” (p. 3), dizem os autores. Essa observação pode ser complementada com a de Primo, quando ele diz que meios digitais não podem mais ser considerados apenas transmissores de informações, ou meros “intermediários”, para utilizar uma expressão do próprio Latour, eles precisam ser interpretados “como um ‘mediador’ ao fazer diferença nas associações” (PRIMO, 2012, p. 633). Ao listar contribuições da TAR para a pesquisa em comunicação, Holanda e Lemos enxergam o discurso jornalístico da mesma maneira que Latour vê as caixas-pretas formadas temporariamente pela estabilização de redes de atores. Ou seja, a credibilidade do discurso midiático é produzida pela composição da matéria jornalística como uma rede de proposições, construída de modo a resistir às críticas (provas de resistência), a partir da constituição de uma rede de referências que confirmam, e explicam uma única proposição de verdade. (HOLANDA, LEMOS, 2013, p. 11)

O jornalismo, com sua estabilidade sistêmica historicamente constituída, é capaz de, a partir de suas técnicas e códigos, propor discursos como dispositivos estáveis

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porque sustentados por atores ligados por associações. Quando uma reportagem oferece um discurso sobre a realidade fruto de uma mediação entre as partes envolvidas, se o resultado final não for refutado e confrontado por outro capaz de derrubá-lo, ele se cristaliza como uma instituição que, por meio dessa associação, será capaz de se manter estável por um tempo – até ser questionado por uma reportagem concorrente ou por uma revisão histórica anos após a publicação, por exemplo. Para Latour, portanto, o social se daria na construção desse discurso, quando os atores estão em mediação para o estabelecimento de uma matéria, por exemplo. A reportagem como texto jornalístico seria uma cristalização temporária dessa ligação. As coisas não são tão simples, no entanto. Uma leitura apressada da TAR pode levar a leituras equivocadas dos seus pressupostos. O próprio Latour faz essa ponderação (1996). Talvez o maior exemplo desse cuidado seja a definição dos termos que dão nome à teoria. Nem teoria, nem ator e nem rede possuem, para a TAR, o significado que comumente é associado a esses substantivos. Como o objetivo aqui não é discorrer sobre essas diferenças, por ora basta anunciá-las de maneira a ilustrar a complexidade das ideias que sustentam a TAR. Mas cremos ser interessante fazer uma rápida ressalva em relação ao termo rede, já que o objetivo deste texto é justamente pensar um aspecto do jornalismo em rede. Tratam-se de duas ideias diferentes de rede. Quando Latour fala em rede, ele não faz referência às redes sociotécnicas, como é o caso da internet, ou redes de esgoto ou de telefone, para citarmos exemplos menos complexos. Rede, para Latour, “é conceito, não coisa. É uma ferramenta que nos ajuda a descrever algo, não algo que esteja sendo descrito” (LATOUR, 2012, p. 192). Ou seja, rede, para a TAR, traz consigo a ideia de um relato que dê conta das associações que esta teoria pretende apreender. Essa diferença essencial pode causar confusão ao se analisar comportamentos sociais nas redes sociotécnicas à luz da TAR. Em artigo recente, Bastos et al (2014) chamam a atenção para a fragilidade metodológica de um diálogo entre TAR e Análise de Redes Sociais (ARS) em uma mesma pesquisa. Os autores apontam, por exemplo, o fato de que, para a TAR, as redes possuem caráter virtual e sem localização no espaço e no tempo (se aproximando do conceito de rizoma, de Deleuze e Guatari, que propõe uma cartografia em que o desenho do mapa não corresponde ao território mapeado), enquanto que os métodos da ARS utilizam “redes delimitadas no espaço e no tempo, quer como matrizes de interação, quer como redes definidas a partir de um Ego ou ator central” (BASTOS et al, 2014, p. 586). “Essa incompatibilidade entre TAR e ARS acarreta problemas teóricos e metodológicos para a pesquisa em comunicação que procura unificar as duas vertentes de pesquisa” (BASTOS et al, 2014, p. 586). Ademais, o próprio Latour já escreveu sobre essas diferenças: “Nada é mais intensamente conectado, mais distante, mais compulsório e mais estrategicamente organizado que uma rede de computadores. Só que isso não é a metáfora básica do ator-rede” (1996, p. 1). Feita essa ressalva, acreditamos ser possível pensar o comportamento do jornalismo em ambiente de rede à luz dos preceitos da Teoria Ator-Rede. É preciso, para isso, diferenciar a rede sociotécnica na qual se dá a comunicação da rede traçada pelas associações dos diversos atores que compõem uma proposição de verdade.

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A questão é quando o jornalismo, como sistema, encontra dificuldades para estabelecer essas proposições de verdade apenas utilizando as técnicas e códigos deontológicos historicamente constituídos, e vê sua lógica ser atravessada por proposições oriundas de outros sistemas de significação, como sugerem Oliveira e Henn. Isso fica evidente quando essa convivência entre sistemas se dá em ambiente de rede e em tempo real, quando o jornalismo precisa demonstrar rapidamente sua relevância social ao agir diante do irromper de um acontecimento notável, construindo meta-acontecimentos jornalísticos a partir de seus códigos. Porque nesse momento ele enfrenta as proposições de verdade oferecidas por outros sistemas de significação, em geral não presos a seus códigos, técnicas e éticas. É a partir da observação do cenário descrito acima que Oliveira e Henn veem o jornalismo passando por uma crise sistêmica – uma crise catalizadora de mudanças, mas não necessariamente ruins. Acreditamos que se trata de um lugar interessante para observá-las, já que é onde o jornalismo vem sendo mais tensionado, onde vem encontrando dificuldades para construir proposições de verdade que se mantenham estáveis, por ser confrontado por outros sistemas de significação ao tentar colocar em prática seus códigos de produção de sentidos. Como fazer isso? Latour diria: apenas observe as controvérsias. A simplicidade da sugestão esconde uma tarefa complexa. Observar requer cuidado e método, embora não haja regras pré-estabelecidas. Ciente da dificuldade, Venturini escreveu dois artigos (2010, 2012) sobre a Cartografia das Controvérsias, técnica para colocar em ação os pressupostos da TAR. Não por acaso, a Cartografia das Controvérsias dialoga com a Cartografia Sentimental, de Suely Rolnik (2014). Juntas, ambas podem ajudar a analisar a atuação do jornalismo no cenário descrito acima.

7. CARTOGRAFIAS: DAS CONTROVÉRSIAS À SENTIMENTAL Para Venturini (2010), controvérsias acontecem quando dois atores concordam em discordar. Têm consciência de que não podem se ignorar e discutem até que haja um consenso, ou no mínimo uma pré-disposição de coexistência. Esse embate envolve todos os tipos de atores e acontecem em relações heterogêneas, o que ele chama de fórum híbrido. A controvérsia, diz ele, “mostra o social em sua forma mais dinâmica” (VENTURINI, 2010, p. 4). Cartografa-se uma controvérsia através da observação da dinâmica dos atores e da formação e término das redes, sendo que, durante este movimento, podem se formar estabilizações. Não há procedimentos específicos para colocar em prática a Cartografia das Controvérsias, e sugere usar as ferramentas disponíveis para conseguir obter múltiplos pontos de observação (p. 3). A ideia é enxergar a rede em funcionamento, com atenção às “configurações fugazes onde os atores estão negociando os laços de antigas redes e a emergência de novas redes redefinem a identidade dos atores” (p. 7). No segundo artigo dedicado ao tema, Venturini (2012) apresenta possibilidades de aplicação da TAR. Deixemos isso para outra reflexão, pois gostaríamos de desenvolver o raciocínio que guia a observação. Para isso, vamos nos apoiar na Cartografia Sentimental, de Suely Rolnik (2014), que explora a instalação e a viabilização de formas de subjetivação no cotidiano a partir da análise do contexto brasileiro dos anos 1980, início

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do regime do “capitalismo cognitivo” e sua força perversa que tirou proveito das feridas abertas pela ditadura (ROLNIK, 2014, p. 19). O que nos interessa da obra de Rolnik é o esforço para mapear a produção de “universos psicossociais” (p. 31) por meio da observação dos movimentos realizados pela subjetividade. Uma descrição cuidadosa dessa movimentação faz com que consigamos perceber o fluxo de sensações conquistando territórios até o ponto de se tornar inteligível, formando desenhos no espírito e no corpo das pessoas (p. 33) – um mapa de afetos, um plano de consistência, como ela define ao explicar o resultado do encontro de dois personagens: “[...] o que permitiu a formação dessa cena foi o fato de que as intensidades experimentadas pelos dois em seu encontro compuseram um plano de consistência. Um plano em que seus afetos tomaram corpo, literalmente, delineando um território [...]” (ROLNIK, 2014, p. 32). Nesse encontro (na verdade, são vários) que ela promove entre seus personagens para descrever a formação de territórios de subjetividade, Rolnik utiliza uma metáfora de máscara para explicar como os afetos se cristalizam. “É que, você sabe, intensidades buscam formar máscaras para se apresentarem, se ‘simularem’; sua exteriorização depende de elas tomarem corpo em matérias de expressão. Afetos só ganham espessura de real quando se efetuam” (ROLNIK, 2014, p. 31). Quando ela fala que “afetos só ganham espessura de real quando se efetuam”, podemos encontrar semelhanças ao entender que um acontecimento só aparece como realidade quando transformado em discurso, no caso, em meta-acontecimento jornalístico. Assim como os afetos encontram nas máscaras (rosto, corpo) uma maneira de deixar a virtualidade e ganhar espessura de real, o acontecimento traça caminho semelhante ao se transformar em um acontecimento discursivo. Vejamos: Quando um acontecimento irrompe na superfície lisa da história, é preciso, para que ele de fato exista, a ação de um observador. É ele quem confere sentido ao acontecimento, utilizando, para isso, seu repertório – constituído a partir do conhecimento obtido socialmente (ALSINA, 2009). Sendo o jornalismo esse sujeito observador, o resultado da observação seria um meta-acontecimento, um acontecimento discursivo que não só representa o acontecimento como produz um meta-acontecimento a partir da maneira como o acontecimento foi narrado (ato ilocutório) e do que essa narração é capaz de fazer (ato perlocutório). Podemos, como exercício, tomar um acontecimento como uma “intensidade”. Esse acontecimento-intensidade precisa de uma máscara, ou seja, um discurso, para que ele possa “ganhar espessura de real”. Dessa forma, ele conquista uma inteligibilidade através da cartografia de um território – o acontecimento como texto. Da formação desse território, nós conseguimos ver o seu resultado mais perceptível: o discurso jornalístico sobre o meta-acontecimento, a espessura de real, a fabricação de um mundo. Mas por trás desse resultado cristalizado, há a formação de um “território existencial” (ROLNIK, 2015, p. 32) que atua nos “bastidores”, ou seja, uma movimentação – imperceptível ao olho destreinado – em que o jornalismo, através de seus valores (códigos deontológicos), realiza uma mediação com os atores envolvidos no acontecimento para conseguir realizar o agenciamento do acontecimento-intensidade (meta-acontecimento) em um discurso-máscara. Mais ou menos da mesma forma que acontece com os personagens

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de Rolnik. O fato de os afetos sentidos por seus personagens ganharem espessura de real, conquistando um território – os rostos e os corpos dos personagens –, é resultado de uma composição que “é efeito de uma série imperceptíveis processos de simulação” (ROLNIK, 2015, p. 32). O movimento que gera esse agenciamento pode ter ou não sucesso. Os afetos que circulam nos personagens podem ou não vingar. De maneira semelhante, o metaacontecimento, ou acontecimento discursivo, resultante da cristalização do acontecimentointensidade pode ou não se firmar como uma proposição de verdade aceita socialmente, durante maior ou menor período de tempo. Da mesma maneira que ele foi construído (através de uma mediação), ou seja, conquistou um território, cristalizando-se por meio de um discurso-máscara, ele pode ser implodido, desconstruído, desterritorializado, caso a mediação fracasse e a proposição de verdade não consiga se manter como uma “espessura de real”. Exatamente como pode não acontecer a química entre personagens de Rolnik, a relação pode não vingar.

8. JORNALISMO BUSCA SE ADAPTAR A questão é que, quando se pensa em jornalismo feito em tempo real, cujo sistema é atravessado por outros sistemas geradores de significação, que possuem códigos diferentes dos do jornalismo, não só o território conquistado fica visível, ou seja, não apenas o discurso-máscara é perceptível facilmente por quem não domina os códigos de funcionamento do sistema jornalístico. Agora, com a concorrência de outros sistemas e com a pressão exercida pelo tempo acarretada por essa concorrência, parece haver a necessidade de exposição da formação do “território existencial”, aquele formado por “imperceptíveis processos de simulação”. Também se torna visível a mediação cujo resultado final é o discurso-máscara. Isso parece acontecer por uma necessidade do sistema jornalismo em justificar os processos de construção dos seus discursos-máscaras e, assim, continuar sendo um ator relevante na mediação de sentidos socialmente compartilhados. Em outras palavras, o jornalismo se propõe a expor seu âmago para seguir vivo. Oliveira e Henn falam na necessidade da superação do modelo jornalístico historicamente construído para seguir sendo relevante socialmente. Muitas dessas tentativas de renovação vêm sendo experimentadas na web. A que gostaríamos de introduzir é o reported.ly5, veículo de cobertura jornalística global que funciona de maneira distinta da imprensa tradicional ao incorporar práticas e rotinas que vão ao encontro da necessidade de superação do modelo jornalístico clássico. Primeiro, não há redação: os jornalistas estão em vários países para cobrir todos os fusos horários. Assim, a comunicação entre eles é remota, feita por hangout. Segundo, não há site, blog ou sistema de publicação próprio. Todo o conteúdo é publicado no Twitter, Storify e Medium, plataformas disponíveis a outros usuários, jornalistas ou não. O Twitter serve como termômetro. É a partir dele que os jornalistas acompanham acontecimentos ao redor do mundo, em especial os que tem potencial para se transformarem em meta-acontecimentos notáveis. Também no Twitter eles convivem e interagem com o público, diminuindo a diferença entre produtores e receptores. O Storify reúne 5.  Conteúdos disponíveis em http://reported.ly.

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o conteúdo apurado através de verificação digital6. Por fim, o Medium funciona como diário de bordo. Lá, os integrantes revelam bastidores e detalham rotinas, expondo processos historicamente internos para escrutínio público. Essas características – citadas superficialmente – retiram a dependência do jornalismo de um suporte exclusivo, o que o aproxima, no nosso entender, da proposta de imaterialidade do objeto do jornalismo defendida por Silva (2009). Ao mesmo tempo, fazem o sistema jornalismo assumir a simbiose com outros sistemas e com o ecossistema. Abre-se mão da notícia como construção discursiva que busca controlar o acontecimento, incorpora-se um ato ilocutório mais flexível, capaz de se metamorfosear de acordo com as trocas feitas com o entorno e de lidar com a produção crescente e cada vez mais veloz de meta-acontecimentos, condição típica das nossas sociedades, como vimos. A tendência é que o sistema jornalismo gere atos perlocutórios capazes de dialogar com outros sentidos que também buscam, em ambiente de rede, legitimidade. Essas relações sugerem a diminuição das diferenças entre sistemas, facilitando, talvez, a estabilidade do sistema jornalismo embora mudando os processos midiáticos.

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6.  Técnicas que transferem para o ambiente digital os métodos de apuração jornalísticos. Para mais informações sobre verificação digital, ver Verification Handbook, disponível em http://verificationhandbook. com.

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O jornalismo em meio à crise sistêmica: uma proposta de observação a partir da Teoria Ator-Rede Moreno Cruz Osório

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Memórias e agenda das mulheres jornalistas: uma visão crítico/afetiva sobre o jornalismo Memories and agenda of women journalists: one critic/affective insight into journalism A n a C a r o l i n a R o c h a P e s s ô a Te m e r

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Resumo: O registro do cotidiano é a base da atividade jornalística. Com a multiplicação da mídia e, em certos aspectos, sua democratização, os registros que documentam a história se multiplicaram. No entanto, se os jornalistas são os historiadores da atualidade, pouco se fala sobre a memória dos próprios jornalistas, suas recordações enquanto trabalhadores que se definem a partir da triangulação da produção de documentos (textos, fotos, filmes, etc.), que passarão a ocupar um lugar de história; a apresentação da memória no presente; e a formatação da “agenda da memória”, o que será socialmente recordado como fato importante. Soma-se a esse aspecto o fato de que a profissão vem passando por numerosas mudanças, que incluem a convivência com a tecnologia e um processo de feminilização. Para entender melhor como se forma a relação memória e atividade jornalística foram realizadas entrevistas com jornalistas de Goiânia, com mais de 35 anos de idade, visando entender como elas constroem suas memórias profissionais, experiências de trabalho e a inter-relação de sua condição feminina com o trabalho.

Palavras-Chave: Jornalismo. Mulheres Jornalistas. História. Abstract: The daily record is the basis of journalism. With the multiplication of the media and, in some respects, its democratization, records documenting the history multiplied. However, if journalists are today’s historians, little is said about the memory of the journalists themselves, their memories while workers are defined from the triangulation of the production of documents (texts, photos, movies, etc.), which will to occupy a place of history; the presentation of the memory in the present; and the formatting of the “Memory agenda”, which will be remembered as socially important fact. Added to this aspect the fact that the profession has undergone numerous changes, including living with technology and feminization process. To better understand how it forms the relationship memory and journalism were held interviews with journalists from Goiânia, aged over 35, in order to understand how they build their professional memories, work experience and the interrelationship of their female condition with work.

Keywords: Journalism. Women Journalists. History.

1.  Pós-Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás. E-Mail: [email protected]

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Memórias e agenda das mulheres jornalistas: uma visão crítico/afetiva sobre o jornalismo Ana Carolina Rocha Pessôa Temer

INTRODUÇÃO REGISTRO DO que convencionamos chamar de fatos relevantes da atualidade

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– os fatos diários ou acontecimentos que interferem e transformam a rotina do dia-a-dia, é a tarefa que define o jornalismo. Esse registro, que oscila entre as anotações sobre os fatos banais – o trânsito, o preço dos produtos, o fim das férias, e muitos outros – é também pontuado pelo registro dos eventos exepcionais. Em qualquer das duas situações – e certamente poderíamos citar outras – não é raro que o jornalismo se torne o único registro ou pelo menos um registro mais completo, dos fatos que acontecem em uma comunidade: as informações contidas nos textos, fotos, cenas ou bites de um jornal formam o fio recorrente de uma memória social ao mesmo tempo construída e vivida pelos jornalistas. Neste sentido, nos estudos midiáticos de uma maneira geral, é comum a afirmação de que as mídias são também “espaços para a memória”, mas é importante também entender que a memória midiática, ainda mais do que a memória humana, é um espaço “construído” a partir de numerosas intervenções, sendo necessário compreendê-las como espaço de disputas (SILVERSTONE, 2002). Assim, esse trabalho busca compreender de forma mais ampla as tensões entre memória, trabalho e esquecimento, conforme essa relação é construída no trabalho das mulheres jornalistas que atuam na cidade de Goiânia, e que por meio do seu trabalho, não apenas produzem o registro da história, mas também sentem a influência deste registro nas suas vidas e como elemento de valoração de si mesmas enquanto profissionais. Buscase compreender, portanto, à luz das noções de memória e esquecimento, as contradições presentes na atividade jornalística.

A ATUALIDADE NÃO É UM MOMENTO, POIS PERDURA NA NARRATIVA O homem faz sua história e cria sua existência pelo trabalho, que é uma atividade transformadora não só da natureza, mas do próprio homem. A compreensão desse ponto é particularmente importante, uma vez que a proposta deste texto é a reconstrução da memória das jornalistas que trabalham em Goiânia, capital do Estado de Goiás, buscando entender como ele afeta (ou é obliterado) na percepção da dinâmica atual da cidade. Trata-se, de um estudo que tem como base a percepção de que as atividades jornalísticas, embora se definam pela atividade de “contar o mundo”, é também uma atividade de construção individual do sujeito jornalista, profissional cujo ritmo de vida e lembranças ficam marcadas pelo registro histórico que ele próprio ajudou a construir. Importante destacar que uma vez que a proposta deste texto é trabalhar com sujeitos históricos – no caso específico, as mulheres jornalistas goianienses – a análise não pode ser separada de uma crítica-reflexão sobre os múltiplos aspectos sociais, culturais, profissionais e econômicos, que afetam esses sujeitos. O quadro de observação se situa na articulação de elementos que envolvem sociedade, educação, cultura e história; elementos que serão compreendidos a partir da teoria das ideologias, do Materialismo histórico de Karl Marx e das releituras realizadas pelos teóricos do que se convencionou chamar Escola de Frankfourt. A relação entre jornalistas e memória pode ser dividida em três ângulos: a) a produção material de documentos que passarão a ocupar um lugar de história em

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arquivos e bibliotecas, formando uma memória documental; b) a atualização, com base no presente de fatos que tiveram impacto no passado, como ocorre em datas comemorativas; c) a necessidade dos jornalistas de trabalhar a partir da “memória” ou de relatos de pessoas que participaram dos fatos a serem narrados/reconfigurados pelos jornalismo. É justamente a partir dessa triangulação que esperamos compreender como as jornalistas goianienses redefinem a relação memória/história, imputando-lhe novas percepções. Ao levar em consideração a triangulação destes elementos, buscou-se também construir uma fundamentação teórica-metodológica que articule a análise dos dados obtidos com um conjunto maior de observações, que vem sendo anotadas nos trabalhos desenvolvidos dentro do Laboratório de Leitura Crítica da Mídia – UFG, e que buscam compreender o “...presente histórico, de duração variável, contextualizável sincronicamente com o que está acontecendo em outros lugares, e diacronicamente com passados e futuros diferentes, de curta, média ou longa duração (BORRAT, 2006, p. 280, destaques do autor).2 Trabalha-se, com a noção do jornalismo como espaço ritualístico que marca a dimensão histórica de determinados acontecimentos, revisando-os e reapresentandoos, e dos jornalistas como construtores, envoltos em tensões sociais e pessoais, que controem essa história no qual também se insere a sua dimensão contrária, o abuso do esquecimento condicionado pelas constradições evidenciadas pela memória da atividade profissional – memória do trabalho – das mulheres jornalistas.

UMA VISÃO DE HISTÓRIA E OS CAMINHOS PERCORRIDOS A consciência humana é condicionada pela relação dialética entre o indivíduo e os objetos do seu mundo: os sujeitos constroem/formatam o mundo (o seu mundo), mas, também são construídos/formatados pelas condições materiais deste mesmo mundo. Uma vez que a visão de história utilizada neste trabalho parte do princípio de que a percepção do mundo material é condicionada pela sociedade, e que “...a história é um processo de criação, satisfação e recriação contínuas das necessidades humanas”. (GIDDENS, 1990, p. 52 – comentando Marx), o trabalho se define a partir dos conceitos de Karl Marx e Friederich Engels, que entendem a história através de uma visão dialética (MARX, K. & ENGELS, 1984, p. 43). Para Marx e Engels é por meio do trabalho que os indivíduos produzem socialmente a sua vida. Desta forma, busca-se entender como as percepções da história das mulheres que trabalham como jornalistas, por meio de sua percepção cotidiana dessa história, brota aos seus olhos ou se desenvolve num presente vivido em um passado que pode ser descrito de forma dinâmica (FERNANDES, 1983, p. 47). Assim, o trabalho envolve uma leitura crítica do discurso das entrevistas semiestruturadas cedidas por mulheres jornalistas na segunda metade do ano de 2014, mas também a leitura/análise de 16 entrevistas em profundidade realizada ao longo dos últimos dois anos (2014 e 2013), com jornalistas do sexo feminino, que atuam na Cidade de Goiânia, Goiás, com idade superior a 35 anos. A partir destes dados, o trabalho está ancorado na 2. La actualidad no es puro instante efímero. Dura. Es presente histórico, de variable duración, contextualizable sincrónicamente com lo que está ocurriendo en otros lugares, y diacrónicamente com pasados y futuros diversos, de corta, media o longa duración.

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percepção do jornalismo como um processo de mediação: Consequentemente, buscou-se destacar como as coberturas jornalísticas realizadas pelas entrevistadas interferiram na percepção do jornalismo e na própria percepção da história local em cada uma.

Segundo Sousa (2008) uma das grandes vantagens da entrevista em profundidade é a possibilidade de serem obtidas informações detalhadas sobre valores, experiências, sentimentos, motivações, ideias, posições e comportamentos, entre várias características possíveis de serem exploradas dos entrevistados. A leitura crítica do discurso das entrevistas justifica-se em Bakhtin (1997, 2003) que afirma que toda linguagem é dialógica e o jornalismo é um lugar de sentido, composto por discursos dialógicos. Para Hohlfeldt e Strelow (2008, p. 387), “a discursividade implica no movimento do receptor para compreender a mensagem que lhe é enviada pelo emissor [...] a tradição francesa valoriza o emissor [...] e a inglesa o receptor, quem dá sentido último ao discurso, pois toda fala é um ato simbólico.” Para Sousa (2008, 2013), o discurso pode ser caracterizado como uma palavra- chave do jornalismo, pois o jornalismo é uma prática discursiva que resulta das interações sociais e depende do contexto histórico-cultural, por isso se firma em signos e significados de onde foi produzido e que gera efeitos sociais, culturais e históricos. Neste trabalho, o papel do receptor pode ser identificado em dois momentos, quais sejam, no discurso das jornalistas ao ressignificarem a fala dos atores participantes da construção da história narrada na produção jornalística e no discurso proveniente das jornalistas, analisado aqui pelas pesquisadoras. Trata-se, portanto de uma representação dos analistas dos discursos em duas fases.

AS JORNALISTAS E OS SEUS OLHARES Travancas (1993, p. 54), afirma que “…os jornalistas, em função das características específicas da profissão, possuem uma visão de mundo diferenciada”. Segundo a autora: “Há profissões que determinam uma postura muito particular diante delas e da vida, e acredito que o jornalismo seja uma dessas profissões. Ele é mais do que simplesmente uma fonte de sustento de seus membros” (TRAVACAS, 1993, p. 98-99). A citação acima não é fortuita. Embora algumas discussões sobre essa abordagem já tenham sido realizadas pelos professores da Réseaux d’etudes sur Le Journalisme (REJ), um grupo internacional de pesquisa, composto por brasileiros, franceses, canadenses e mexicanos, do qual resultaram publicações coletivas, constata-se uma carência de estudos nesta área no Brasil. Assim, optou-se em trabalhar com os conceitos dessa autora, aos quais somamos e adaptamos alguns pressupostos de Becker (1982), também citado por Travancas (1993). Segundo estes autores, “mundos” são diferentes de instituições e/ou organizações, porque suas dinâmicas internas não se baseiam obrigatoriamente em relações de autoridade ou poder, pois envolvem aspectos ideológicos que extrapolam a noção de pertencimento institucional. No caso específico do jornalismo, esse pertencimento envolve critérios ligados a ética profissional, mas também a formas convencionais de “agir”, ou de realizar a atividade profissional. De fato, pertencer ao “mundo dos jornalistas” envolve um engajamento específico e facilmente perceptíveis por outros jornalistas: é como fazer parte de uma confraria, algo maior do que um clube ou um

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grupo, pois envolve a adoção de determinados comportamentos e até uma “forma de olhar” (o mundo e a sociedade) que os próprios jornalistas acreditam que os diferenciam dos outros sujeitos. Essa relação torna-se mais relevante na medida em que os jornalistas tendem a perceber-se “...como elementos essenciais e de muita responsabilidade dentro de uma sociedade”. (Travancas, 1993, p. 83), e valorizam a profissão a partir de um (pretenso?) poder de “[...] transformação da sociedade, de denúncia, de crítica” (TRAVANCAS, 1993, p. 108). Confrontado com as condições diárias da produção jornalísticas – que via de regra estão longe de atender ao ideal da profissão – o jornalista tende a trabalhar entre duas concepções contraditórias: uma que lhe dá poder em excesso e outra que lhe retira as condições de gerir de forma clara sua própria vida. Neste sentido, torna-se ainda mais importante compreender como se constrói a memória dos jornalistas: como qualquer ser humano, ele está sujeito a interpretar suas lembranças, uma vez que a lembrança diz respeito ao passado mas atualiza-se a partir do ponto presente: “O passado é descrito muitas vezes em termos românticos, como se os indivíduos vivessem num tempo áureo no qual tudo era permitido (ORTIZ, 1995, p. 78).

MEMÓRIA DE JORNALISTAS Os resumos historiográficos feitos pelos povos antigos acerca dos fatos notáveis da sua vida quotidiana e das façanhas dos seus reis são um dispositivo pré-jornalístico. O jornalismo terá apenas substituído o historiador-cronista na tarefa de elaborar a historiografia do quotidiano. [...] Por fazerem história, jornalista e historiador cultivam idênticas qualidades e valores profissionais, como a preocupação pela fidelidade aos fatos, a intenção da verdade, etc. (SOUSA, 2008, p. 17). Na sociedade contemporânea a informação é mercadoria volátil, pois perde valor quando não circula com rapidez. Mais do que nunca, o jornalismo é uma atividade marcada pela urgência do tempo de apuração e de divulgação. Dessa forma, falar com jornalistas sobre o passado é uma incongruência, e só se justifica quando se apoia em outro elemento determinante da atividade: seu vínculo com a verdade, com a veracidade dos fatos: é a partir deste compromisso (ou do cumprimento desse compromisso) que o jornalismo constrói o seu capital social, ou elemento que define o seu valor na sociedade: a credibilidade3. No entanto, é por meio da memória social que o jornalista constrói sua identidade social. Incorporo no relato histórico, a produção jornalística deixa de ser provisória verdade, passa a ser uma verdade histórica, que vai durar até a próxima apropriação, até a próxima interpretação (PALACIOS, 2010, p. 45); mas passa também a ser referência para os próprios profissionais de imprensa que se apoiam como material de pesquisa e referência. De fato, uma das condições pouco discutidas sobre o jornalismo é que a atividade está intrinsicamente ligada à questão da memória. Uma vez que é impossível para o jornalista presenciar e/ou vivenciar no tempo real todas as notícias, via de regra, o jornalista recorre (tão rapidamente quanto possível) à memória das pessoas que viveram 3.  Segundo Sodré (2009, p.42), a credibilidade - qualidade atribuída aos veículos jornalísticos a partir do compromisso com a realidade/verdade – é o capital simbólico do jornalismo.

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ou foram agentes dessa notícia, e sempre que possível, a “pesquisas” de referências anteriores em veículos informativos. A informação jornalística, portanto, é um relato feito por jornalista a partir de outros relatos – memórias somadas de indivíduos que contam suas experiências, que relembram fatos e ações, pesquisas em veículos jornalísticos antigos e atuais, e da pressão social que remodela seu olhar sobre os fatos, novos e antigos, e consequentemente altera seu relato destes fatos. Para Bergson e Halbwalch “O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora a consciência na forma de imagens-lembranças” (BOSI, 1994, p. 53), uma memória evocativa, que se refere a uma situação definida, individualizada, que se busca de forma consciente. (BOSI, 1994, p. 49). A essa somatória de percepções se resume a consciência de que “...toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva...” (THOMPSON, 1988, p. 197) e, ao traçar sua própria história, as jornalistas também estão envoltas em subjetividades.

O AGENDAMENTO DA MEMÓRIA A preocupação com a influência do jornalismo na tomada de decisões – nas escolhas individuais e coletivas motivou os estudos sistemáticos dos efeitos dos meios de comunicação a partir dos anos 1930, quando as ciências sociais aplicadas se consolidaram nos Estados Unidos. Mas foi somente a partir da década de 1950 que essa preocupação se ampliou para a questão dos efeitos em longo prazo. McCombs e Shaw (1972, p. 177) desenvolveram a hipótese de que as mídias delimitam a agenda das campanhas políticas, reafirmando a teoria de Bernad Cohen de que a imprensa é mais eficiente ao dizer ao seu público sobre que pensar do que ao dizer o quê pensar. O paradigma do agendamento abriu espaço para pesquisas importantes, e foi sendo refinado ao longo destas pesquisas, sendo complementado pelo paradigma do enquadramento (PORTO, 2002), que busca entender o chamado “segundo nível de efeitos”, examinando não apenas sobre o quê a mídia influencia o público, mas também de que forma o público percebe os temas da agenda; e pela análise do cultivo de Gerbner (GERBNER et AL, 1977), que busca entender como a exposição generalizada do público a conteúdos conduzem a percepções semelhantes / compartilhadas da realidade. Embora a questão do segundo nível dos efeitos e a teoria do cultivo tenham gerado críticas entre os teóricos de que trata-se de uma percepção equivocada de que o conteúdo das mídias é excessivamente homogêneo, é inegável que nos momentos de cobertura de fatos traumáticos – notícias de grande impacto/interesse social – o jornalismo tende a homogeneizar suas ações, fornecendo informações que, mesmo não sendo totalmente iguais, apresentam grandes similaridades. Da mesma forma, as teorias dos efeitos a longo prazo não se fixam na perspectiva de um entendimento complexo sobre os processos interpretativos dos conteúdos das mídias e na questão da construção dos significados. No entanto, ainda que se baseiem principalmente no impacto e no tempo de exposição dos receptores aos conteúdos, a importância dos meios de comunicação na sociedade contemporânea, torna importante buscar compreender os aspectos centrais desta influência.

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Neste sentido, buscamos aqui entender como as mulheres que atuam no jornalismo goianiense processam coberturas jornalísticas de fatos de grande importância – e sobretudo como o impacto direto ou indireto destas coberturas afetam as suas percepções não apenas dos fatos em si, mas sobretudo de sua própria atividade profissional. A perspectiva é que os jornalistas em si mesmo constituem um público específico das notícias ou, como nos diz Bourdieu: “Ninguém lê tantos jornais quanto os jornalistas que, de restos, tendem a pensar que todo mundo lê jornais” (In GIRARDI, 2007, p. 150). O texto se coloca, portanto, na interseção de dois fatores: a memória dos jornalistas – no caso, das mulheres jornalistas – e como essa memória interfere no agendamento social da história local.

MULHERES JORNALISTAS: UM REGISTRO A presença da mulher no mercado jornalístico envolve mais do que uma mudança quantitativa, mas também uma mudança qualitativa. Até como uma resposta a questões biológicas, a mulher tende a se preocupar mais com temas como educação e saúde, valorizando aspectos do cotidiano que normalmente são secundarizados pelos profissionais do sexo masculino. Muraro e Boff (2010), mencionam um olhar mais altruísta e solidário da mulher no universo do trabalho, e lembram que a democracia consiste em aceitar as diferenças como naturais, com espaço para diferentes percepções e narrativas da realidade. De fato, continuar a trabalhar como se mulheres não existissem ou fossem “iguais” aos homens nas atividades práticas da profissão, é negar o aspecto cidadão desta trabalhadora. Evidentemente as mulheres são iguais aos homens na capacidade de trabalho, mas diferem deles em suas práticas cotidianas. No jornalismo, profissão centrada no cotidiano, é possível inferir que presença de mais mulheres nas redações interfira também na construção das narrativas sobre o cotidiano. Pesquisas sobre gênero apontam que as jornalistas, como mulheres em outros campos profissionais, sofrem com relações tensas no trabalho e violências de gênero (RAIS - Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho do Brasil). Porém, de acordo com Koshiyama (2001), há uma mudança na perspectiva da cobertura jornalística da mulher que vai além das demandas e do universo feminino. Em entrevistas sobre a atuação das jornalistas nas redações observou-se que as profissionais possuem uma visão mais contextualizada do fato, que estão mais atentas aos limites éticos da profissão, além de estarem mais atentas às questões que envolvem a família e a violência à mulher.

A MULHER JORNALISTA: UM PASSADO PRESENTE Ao pensarmos no tema deste trabalho, a questão da memória da mulher jornalista e sua visão como profissional deste passado determinando o que chamamos de agendamento da memória, consideramos também a visão da mulher jornalista como fator determinante para mudanças na sensibilidade no jornalismo, em uma perspectiva de que essa visão interfere na própria construção do conteúdo do jornalismo. Os elementos analisados fazem a necessidade de rever as entrevistas com as mulheres jornalistas.

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Nas entrevistas realizadas fica claro que o aspecto sensível é determinante nas memórias das jornalistas, embora não seja possível inferir se essa sensibilidade está ligada à condição feminina. As mulheres reclamam também que sofrem com relações tensas no trabalho e violências de gênero, mas revestem as reclamações com um certo bom humor e a perspectiva de que “as coisas estão mudando”. Nesse sentido, elas repetem a situação das mulheres em outros campos profissionais, (RAIS - Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho do Brasil). Mas as mudanças ocorrem também fora das redações, nas pautas dos veículos jornalísticos. As entrevistadas citam que alguns temas entraram em cena, ou pelo menos se tornaram mais frequentes, nos últimos anos. É o caso, da questão da violência contra a mulher. Neste assunto específico, tudo indica que o “ponto de virada” (expressão utilizada por uma das entrevistadas) foi o crime da mala em Goiânia. A partir deste marco – citado diretamente por algumas entrevistadas, mas relembrado de forma indireta quase que pela totalidade - “várias lembranças ainda são muito vivas”4. Segundo as entrevistadas, as lembranças mais marcantes estão ligadas a mortes e a situações que envolvem preconceito e ações violentas. (...lembro principalmente das mortes, do sofrimento de quem ficou...5; tem coisa muito triste, como violência contra criança...), mas instadas a citar essas lembranças fica claro que predomina as situações que envolvem o bizarro e o grotesco: o marido que furou os olhos da esposa, a filha adotiva torturada pela mãe de classe média, etc. As entrevistadas assumem que essa pauta não só está mais presente, como a repercussão obtida nas coberturas passadas leva a novas coberturas. Neste sentido, o ponto em comum é a resposta dos receptores, se há resposta, o assunto cresce; se não, fica esquecido. Sobre a mudança das agendas jornalísticas, foi propositalmente citada a questão das “grandes coberturas” – desastres naturais, acidentes etc., que tiveram grande repercussão na cidade. De uma forma geral, as entrevistadas assumem que o clima (e seus desastres) virou “assunto”, está mais importante na última década. Da mesma forma, assuntos/coberturas de grande impacto igualmente são lembrados, e neste caso o acidente do Césio em Goiânia é uma citação recorrente, mas, normalmente, são entremeados por detalhes pessoais: ...naquela época eu estava grávida/...nesse tempo eu morava no interior..., etc. Aliás, não raro a trajetória profissional é atravessada por dados pessoais, e mais do que fatos de grande impacto, as profissionais relembram com prazer seus trabalhos/coberturas mais significativos; trabalhos que envolveram jornalismo de imersão ou jornalismo investigativo. São citações pontuadas por expressões de prazer, orgulho profissional e gratificação pessoal: “A gente é envolvida no assunto”. Também é presença marcante nas memórias das jornalistas os aspectos que ferem a ética profissional, a manipulação da informação, a baixa presença de um jornalismo investigativo e a constância de uma imprensa “repetidora do que diz a fonte”. Igualmente está presente no discurso aspectos que envolvem elementos característicos da contemporaneidade: a pobreza, a ignorância, a carência de afeto. Nestes assuntos, as narrativas que se caracterizam pelos questionamentos sobre o jornalismo e por eventuais citações de que os envolvidos (vítimas 4.  Os trechos destacados dizem respeito a frases ou trechos de autoria das entrevistadas. 5.  Neste caso, se referindo as vítimas do acidente nuclear em Goiânia.

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e receptores das informações) mal conseguiam compreender o que estava acontecendo. Também são recorrentes as lembranças de atitudes dos colegas e eventuais chefes que: …agiram de forma irresponsável colocando Goiás em situação difícil não passando as informações corretamente. As profissionais possuem uma visão mais contextualizada do fato, que estão mais atentas aos limites éticos da profissão e às questões que envolvem a família e a violência à mulher. Essa relação confirma a observação de Koshiyama (2001), de que há uma mudança na perspectiva da cobertura jornalística da mulher que vai além das demandas e do universo feminino. Analisadas em conjunto, as entrevistas deixam claro que as mulheres que atuam no jornalismo goianiense processam coberturas jornalísticas a partir de um olhar pessoal, mas, sobretudo, a partir de relações intrínsecas com a ética profissional. É a quebra desta ética que atua como uma quebra de expectativas, de confiança na própria profissão. Neste sentido é curioso que, apesar do desgosto confesso, das numerosas queixas sobre o dia a dia profissioanal, ainda valorizem a imprensa de forma genérica, atribuindo às suas ações (de forma individual eventualmente, mas em geral de forma coletiva) grandes mudanças sociais. Essa contradição, que propositalmente não foi assinalada pelas pesquisadoras durante as entrevistas, marca o conjunto das opiniões verbalizadas e aponta como as mulheres jornalistas atribuem à imprensa a capacidade de construir agendas: ...Se não fosse pela imprensa, ninguém ficava sabendo.... Agora está todo mundo indignado, reclamando, mas se não fosse o que saiu no jornal, ninguém falava nada. Da mesma forma, as mulheres também reconhecem positivamente a qualidade do seu trabalho: “...ser mulher é bom na hora de fazer cobertura de temas como saúde, educação,

família. Os homens só querem saber dos grandes fatos, ou de economia ou de política. Não se preocupam com outras coisas que são importantes. A gente não tem preconceito.” Mas a reclamação quanto ao preconceito também permanece, com muitas críticas à distribuição das pautas: Segundo as entrevistadas, quem tem mais visibilidade, ou quem é homem, pega as melhores pautas, as coberturas mais perigosas. É um tal de mulher não pode fazer isso, não pode fazer aquilo. Fica claro também que o impacto direto ou indireto da memória atual interfere na construção de novas pautas: poucos assuntos são relembrados para uma revisão ou uma matéria que busque rever soluções ou até a ausência de soluções (crimes não resolvidos, situação de vítimas de desastres, etc). Neste aspecto predomina na visão das jornalistas (e que elas estendem ao conjunto dos jornalistas) que o receptor “não sabe e não quer saber”, ou simplesmente “não gosta de coisas velhas”. É importante registrar uma percepção clara, a valorização pelas mulheres jornalistas de um jornalismo “do passado”, mais pessoal e menos sensacionalista: …naquela época a gente tinha mais tempo.../ antigamente a gente tinha que ir ver, não ficava sabendo pelo face.../ agora só interessa escândalo, desgraça pessoal... A memória das mulheres jornalistas, portanto, não está predominantemente no fato em si (ou nas lembranças dos grandes fatos jornalísticos), mas nas memórias selecionadas pela lembrança (em geral prazerosas) da atividade profissional.

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NO TEMPO ACELERADO DO JORNALISMO A MEMÓRIA É FUGAZ Rose Marie Muraro e Leonardo Boff (2010) desenvolveram trabalhos que explicam o valor da reentrada da mulher no mercado de trabalho com a segunda revolução industrial no século XX. O homem que antes ocupava sozinho esse espaço se tornou frio e competitivo, enquanto a mulher na reclusão do lar e nos cuidados familiares permaneceu solidária e altruísta. Agora ela traz de volta para o sistema produtivo e para o Estado esses valores. Para Muraro e Boff (2010) essa talvez seja a solução para voltarmos a ser uma sociedade igualitária.

Essas mudanças, no entanto, ainda não são claramente visíveis nas entrevistas realizadas com as jornalistas goianienses. De uma forma geral, os valores citados acima não estão presentes nas falas das jornalistas, mas são percebidas como elementos complementares nos trechos em que a valorização dos aspectos éticos da profissão se destacam. Fica claro também que a jornalista goianiense não valoriza sua própria memória, e mesmo quando tem que buscar dados, recorre a fontes oficiais ou aos arquivos jornalísticos. Neste sentido, a prática diária do jornalismo, também os estudos sobre comunicação – e por extensão, sobre o jornalismo – desvaloriza o próprio profissional do jornalismo, seja no que diz respeito à memória do fato em si, de como ele se consolidou no imaginário das jornalistas, que é desvalorizado pela própria jornalista como algo que passou e que eventualmente deixou marcas na vida pessoal, mas não é redimensionado no pessoal, nas também pela desvalorização da memória humana em si mesma, que não é vista pelas jornalistas como base fundamental a partir da qual se constroem percepções e escolhas. Presas no presente, as jornalistas têm dificuldade de construir sua própria agenda de memórias e somente conseguem fazê-lo quando a entrelaçam com a vida pessoal. Essa relação reforça a importância (ou o diferencial) da profissão, que, como já foi apontado, se entrelaça com a vida social de forma diferenciada. Mas mostra também que a profissão presa em uma corrente de atividades e urgências do presente, oblitera seu próprio passado, a atuação e a memória dos seus profissionais. Ou, como disse uma entrevistada, “se você puder esperar, eu vejo no arquivo tudo que teve de interessante. É rápido, tudo está digitalizado”.

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de

A n d r a d e Va s c o n c e l o s 1

Resumo: este artigo tem como objetivo analisar o telejornal que é exibido nas primeiras horas da manhã todos os dias da semana na televisão aberta brasileira, inserido recentemente na grade de programação, Jornal Hora Um. O estudo busca fazer uma análise sobre a repetição de conteúdo gerado no telejornal e a prática de diálogos informais utilizados entre a apresentadora e os comentaristas do programa. O recorte feito durante uma semana, cinco edições do telejornal no período de 29 de dezembro a 02 de janeiro de 2015, busca analisar qual é a formatação proposta pelo telejornal que vem com o intuito de se mostrar inovador.

Palavras-Chave: Jornal Hora Um. Telejornalismo. Repetição. Diálogo. Jornalismo contemporâneo.

Abstract: This article aims to analyze the television news that appears early in the morning every day of the week in the Brazilian broadcast television, recently inserted in the schedule, Jornal Hora Um. The study seeks to make an analysis of the repeat-generated content in television news and the practice of informal dialogue used between the host and the commentators of the program. The cut made during a week, five editions of the television news in the period from December 29 to January 2, 2015, seeks to analyze what the format is proposed by the television news that comes with the intention of showing innovative.

Keywords: Jornal Hora Um. Telejornaulism. Repetition. Dialogue. Contemporary Journalism.

BEM-VINDOS À ERA DA INOVAÇÃO Vem aí um novo jornalismo UEM LIGA a televisão ou conecta-se a internet percebe que vivemos cada vez

Q

mais um processo de potencialização da midiatização da sociedade, e que esta ação modifica o modus operandi de produzir televisão, o que consequentemente muda o telejornalismo. Segundo o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), em pesquisa realizada em 2013, 43% dos usuários brasileiros que navegam na web assistem à televisão ao mesmo tempo. Esta circunstância que os números delatam oferece ao produtor oficial de conteúdo a noção de como atuar adequadamente. Mas será que este novo momento no qual estamos vivendo é uma revolução como o Novo Jornalismo americano de Tom Wolfe e de tantos outros nome: Jimmy Breslin, 1.  Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte nas habilitações de Jornalismo e Rádio e TV. Mestranda no Programa de Pós Graduação Estudos da Mídia. annapauladeandrade@ gmail.com.

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Gay Talese, Hunter S. Thompson, Joan Didion, John Sack e Michael Herr? Será o mais novo jornalismo? E que jornalismo é esse que busca compreender a mudança dos públicos e a migração para os conteúdos e plataformas transmídiáticas? O telejornalismo brasileiro tornou-se realmente 3.0 e passou a participar efetivamente da Era Digital como relata Scolari (2013)? Ou é apenas mais uma versão do jornalismo cívico citado por Sousa (2011)? O fato é que estamos vivenciando um momento de modificações do modelo tradicional. Acredita-se que como todo e qualquer processo de mudança, a nova formatação de diálogo das emissoras de televisão, com os seus usuários acontece de forma gradativa, porém a velocidade dos acontecimentos de modo geral tornou-se mais célere como afirma a Teoria do Crescimento Exponencial do cientista e inventor Ray Kurzweil2. Percebendo esta realidade observamos o quanto avançamos em menos de uma década em relação às experiências transmidiáticas, levando em consideração que o lançamento de smartphones aconteceu por meados de 2007 (com o surgimento do primeiro iphone) e dos tablets em 2009, e as tecnologias ainda levam alguns anos para se popularizar, o mundo progredia mais lentamente do que na atualidade. O que impulsiona a televisão a se modificar mais rápido para acompanhar esta realidade tecnológica. Em pesquisa realizada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (2014), sobre hábitos e consumo da mídia pela população brasileira, notou-se que ao recortarmos para este estudo destacando especificamente o item televisão, no qual foram disponibilizadas informações sobre frequência3 e intensidade4 de uso, notamos que a maior parte dos brasileiros assiste televisão todos os dias da semana (65%), com uma intensidade diária de 3 horas e 29 minutos, de segunda a sexta-feira e de 3 horas e 32 minutos no final de semana. Com relação ao telejornal, a pesquisa mostrou que os mesmos têm 80% das citações, seguidos pelas telenovelas com 48%, de segunda a sexta. Nos finais de semana os programas de auditório assumem o primeiro lugar com 79% das citações, seguido por programas considerados de cunho jornalístico/diversidade e esportivos com 35% e 27% respectivamente. Apesar da redução dos números, a partir dos dados quantitativos destas pesquisas é possível inferir que o telejornal ainda ajuda na construção da realidade de boa parte da população brasileira. De tempos em tempos os períodos no qual vivemos mudam, o que estamos vivendo Martha Gabriel (2012) caracteriza que como a transformação da Era da Informação, em que a informação era escassa e o ritmo de mudanças era lento, e passamos a fazer parte da Era da Inovação pertencente à Economia Digital, na qual a velocidade dos processos muda, ou seja, o ritmo torna-se acelerado e a informação é abrangente e mais acessível. Por estarmos justamente vivenciando esse período de mudança que os processos tendem a se tornar mais relevantes para a pesquisa. Para este mesmo período Castilho (2010) conceitualiza como o fim da Era da Concentração da Mídia, com resistência ao fim dos grandes conglomerados midiáticos contemporâneos. Essa Era da Digitalização rompe com o paradigma do inacessível, se antes era preciso investimentos milionários, a mídia viveu um longo período de centralização, hierarquia e burocratização passam 2.  Para Kurzweil no crescimento normal quando se dá 30 passos anda-se 30 casas, no Crescimento Exponencial quando se avança 30 passos pode-se chegar a um milhão de casas. 3. É a medida em dias de uso. 4.  É a medida em horas.

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a surgir tecnologias baratas e acessíveis que facilitam a criação, produção, edição e distribuição de conteúdos. Apesar desse momento de palpável de transformações os hábitos do jornalismo tradicional ainda persistem e será a partir dessa extensão do modo de fazer jornalismo que iremos compreender o jornalismo contemporâneo, qual seria a resposta do maior conglomerado de mídias do país a esse novo momento. Logo a pesquisa lançou mão dos instrumentos metodológicos descrito por Yin (2001) para analisar profundamente o telejornal inserido recentemente e compreender quais as inovações impostas por esse novo modelo de fazer jornalismo. A pesquisa contou como descreve Duarte (2006) com observação, transcrição e análise do conteúdo, caracterizando um estudo de caso. Com esta pesquisa busca-se responder a seguinte questão: Qual o modelo empregado pelo Jornal Hora Um para responder os anseios da era transmídia?

Mas o que está acontecendo com telejornalismo atual? Por muito tempo o telejornal foi alheio à crise da imprensa que assolou os jornais impressos e rádios, com a multiplicação das plataformas online de acesso gratuito ou pago aos vídeos, o telejornal passa a sofrer com essa problematização também. Para Jenkins (2009), historicamente o advento de nenhum novo meio de comunicação exclui o outro, o que ocorre é a substituição das ferramentas que usamos para acessar o conteúdo. Isto é, o conteúdo, o status social, o público, as ferramentas podem até modificar, mas os meios de comunicação não serão extintos. McLuhan (1969) revela que cada novo meio de comunicação é a extensão do antigo, como se o rádio agisse como a extensão do jornal impresso, a televisão do rádio e, por seguinte a internet passa a ser a extensão da televisão. Neste novo contexto midiático surge à narrativa transmídia, de acordo com Jenkins “a narrativa transmídia refere-se a uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias – uma estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa de comunidades de conhecimento” (2008, p. 49). Isto ocorre graças à Internet, que democratizou os processos de comunicação e de difusão de informação, ou parafraseando Ramonet “saímos de Mídia de Massa para a Massa de Mídias, a lógica ‘vertical’ que caracterizava a relação mídia-leitor torna-se, de agora em diante, cada vez mais ‘horizontal’ ou ‘circular” (2012, p. 19). Além da participação, a narrativa transmídia tem a questão da multiplicação da informação, que segundo Jenkins pode ser: “uma história transmídia se desenrola através de múltiplos suportes midiáticos, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo” (2008, p.138). Num recorte específico para o jornalismo surge a proposta de Porto e Flores para um jornalismo transmidiático no qual há diferentes formatos e formas de transmissão de informações: O jornalismo transmídia é uma forma de linguagem jornalística que contempla ao mesmo tempo, distintos meios, com várias linguagens e narrativas a partir de numerosos medios e para uma infinidade de usuários. Por tanto, são adaptações de recursos audiovisuais, de comunicação móvel e de interatividade na difusão de conteúdo, mesmo a partir da blogosfera e das redes sociais digitais, que ampliam de forma considerável a circulação de conteúdo. (PORTO; FLORES, 2012, p. 82, tradução nossa)

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Em larga escala as pesquisas que se conhecem sobre a Narrativa Transmídia são todas voltadas para o gênero ficção, mas será que o jornalismo tornou-se transmitia com a popularização dos recursos digitais ou sempre obteve essa característica e se adequa apenas ao aparato tecnológico momentâneo? Para Scolari (2013) o caráter narrativo do jornalismo é indiscutível e perpassa por esta caraterística a sobrevivência de uma “crise” (grifo da autora) vivenciada. O autor também deixa claro que não é nenhuma novidade o jornalismo ter se tornado transmídia: Enquanto o jornalismo sempre se mostrou em certa forma como transmídia, nunca havia sido tão evidente a necessidade de mostrar narrativas informáticas que se implantem através dos meios e plataformas. Por outro lado, os jornalistas pouco a pouco, vão compreendendo que não estão sozinhos: outros sujeitos – semiprofissionais da informação incluindo amadores que nunca haviam pisado em uma redação – se associaram a rede e também participam nos fluídos informativos que cruzam o ciberespaço. (SCOLARI, 2013, p. 189, tradução nossa)

Para Scolari (2013) o conceito de transmídia trata-se da narração das histórias que são contadas por meio de várias plataformas e diferentes canais, é a partir da participação dos consumidores que a narrativa se constrói, ganhando na participação, mas perdendo grande parte do “efeito surpresa” (grifo da autora) quando a mídia de massa vai noticiar o acontecimento. O efeito surpresa é o que naturalmente se espera diante desses grandes grande acontecimentos, como por exemplo: a derrubada do World Trade Center, a morte de Osama Bin Laden, a queda do avião de Eduardo Campos etc. Notícias que mudam as projeções para o futuro e que a humanidade passou a ficar sabendo primeiro através das mídias sociais digitais. Compreender que esta vertente do jornalismo pode ser uma das possíveis soluções para que os jornais consigam, enquanto modelos de negócio, sobreviver à crise oriunda das revoluções tecnológicas. Para o autor as organizações deveriam centrar-se em contar histórias e não em plataformas de distribuição, e provoca: “A pergunta que os fazia sempre era a mesma: Qual o seu negócio? Imprimir papel ou informar os cidadãos?” (SCOLARI, 2013, p. 182, tradução nossa). Segundo Chaparro (2014) o momento que estamos vivendo de crise nos modelos de jornalismo tradicionais chegou para socializar a comunicação. A revolução da tecnologia de difusão e comunicação gerou novas rotinas produtivas, novas facetas e uma nova produção de informação. A ação passa a ser discursiva, e só se caracteriza notícia aquilo que transforma o cotidiano das pessoas. O jornalismo cidadão ou 3.0 como relata Scolari (2013) trouxe profunda transformação em âmbitos profissionais, tecnológicos, sociais e econômicos. No século XX o jornalismo era feito predominantemente por jornalistas e profissionais da comunicação, os fatos e notícias eram a expostos a uma massa, em contraponto na sociedade pós século XX produtores e consumidores se confundem e as notícias são conversadas e não expostas. Outra mudança significativa é relatada por Chaparro (2014) o desaparecimento do intervalo entre o acontecimento e a notícia. Quando ocorre algo relevante as pessoas não tomam mais conhecimento pelos jornais e sim pelas pessoas que estavam no local, sejam meros expectadores do ocorrido ou até mesmo as fontes que sofreram o episódio. A comunicação deixa de ser mediada somente por jornalistas e passa a ser fruto de quase todos, pelo menos os

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possuem dispositivos móveis passam a ter esse “poder” (grifo da autora), não há mais fronteiras, agora passam a existir linguagens para se comunicar algo. Com a revolução aumenta-se o poder da notícia, que se torna a forma mais eficaz de interagir no mundo, uma forma de existir. Historicamente, temos a primeira revolução das comunicações com a criação do telegrafo no século XIX, no século seguinte a revolução da reportagem, as pessoas clamavam por mais informações, e na atualidade temos a revolução das fontes. No qual a internet e a popularização dos dispositivos móveis estão tirando o alicerce do quarto poder. Antes as notícias se consolidavam notícias dentro das redações, quando através das fontes ou do conhecimento de causa, os jornalistas decidiam quem, quando, como, onde e o quê iriam noticiar. Para Chaparro (2014) a crise está em uma lógica simples: mais notícias, o volume do que está sendo noticiado agora é maior, e menos investigação, o repórter está se acomodando com a versão da fonte oficial é o resultado de uma crise que denota profundas transformações ao jornalismo. Ao invés de agendar, o jornalismo da atualidade passa a ser agendado. “O jornalismo deixou de produzir os conteúdos que divulga. O discurso jornalístico perdeu autonomia.” (2014, p. 53). O que o autor contextualiza de modo histórico: As coisas mudaram ao longo dos anos 70, principalmente depois deles. Democracia, mercado e tecnologia formaram a mistura que criou a lógica da competição sustentada em informação, com mais ou menos exageros neoliberais. Institucionalizaram-se os interesses, as ações, as próprias pessoas. Globalizaram-se os processos, as emoções, principalmente os fluxos e os circuitos de informação. E o desaparecimento do intervalo de tempo e a distancia da difusão das notícias subverteu os conceitos de atualidade, proximidade, universalidade e periodicidade, características básicas e constantes do jornalismo. (CHAPARRO, 2014, p. 60 - 61)

A problemática é transformar esse fluxo intenso e extenso de informações em modelo de negócios, uma das maiores desafios do jornal (entende-se aqui como meio, empresa geradora e difusora de conteúdo, seja ele de modo televisivo, impresso, ou radiofônico) é manter-se como modelo de negócio. “O jornalismo só sobreviverá se também for negócio, fonte de lucro” (CHAPARRO, 2014, p. 17). Se todo mundo pode ser um jornalista em potencial e noticiar, reportar fatos e transmitir informações o que me faz ser destaque nessa área? Conceitos tradicionais são defendidos pelo autor: credibilidade e veracidade, esses fazem parte da alma do jornalismo. “Para uma nova compreensão do jornalismo, que a meu ver terá de assumir, como predominante, a vocação de ambiente confiável e de linguagem narradora, eficaz para expressão e viabilização dos confrontos discursivos das ações humanas, na dinâmica da atualidade.” (CHAPARRO, 2014, p. 17). Compreendendo que precisamos diferenciar os conceitos de jornalismo e jornal para que assim possamos definir melhor do que estamos falando, o autor identifica: Jornal é negócio, cada vez mais negócio, e como negócio é pensado e gerido. Trata-se de objeto concreto, mensurável, comercializado, produto industrial que dá lucro, e pela lógica do lucro é controlado. Jornalismo pertence ao lado dos valores. Integra o universo da cultura, como espaço público dos discursos sociais conflitantes. É objeto abstrato, inserido no cenário humano da complexa construção do presente. (CHAPARRO, 2014, p. 25- 26)

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No entanto nem todo conteúdo jornalístico precisa necessariamente ser transmídia, é preciso que haja planejamento para perceber o que se adequa melhor a situação: fotos, vídeos, áudios, jogos, escritos e etc. Para isso Scolari (2013) elencou nove pontos para nortear os produtores de conteúdo, profissionais de comunicação e jornalistas. São eles: expansão, de que forma deve-se agir para que o público se envolva e compartilhe as notícias, e essas cheguem até o telespectador mais tradicional; exploração, de que forma a curiosidade do público pode ser ativada? Se existir mais conteúdos disponíveis as extensões tradicionais a participação do público será mais profunda; continuidade e seriedade, como sustentar um público atento por tantas plataformas, à medida na qual a história vai se expandindo é preciso manter a continuidade; diversidade e pontos de vista, se a informação vem de vários pontos de vista, vários públicos irão segui-la, o que se ganha ao incluir o público no processo de produção jornalística; imersão, como fazer para que seu público compreenda determinado impacto da história? Já que o objetivo é submergir a maneiras mais profundas como fazer para que compreendam determinado impacto; extrabilidade, termo criado para traduzir um enfoque de como o público poderá utilizar o trabalho jornalístico em sua vida? Quanto mais você penetre em seu mundo, mais comprometido o público se sentirá; mundo real, todas as estórias jornalísticas precisam ser produtos do mundo real, completo e multifacetado. O que fazer para captar toda essa complexidade e mostrar seus refinamentos ao invés de sempre simplificar; inspiração para a ação como o objetivo de fazer com que o personagem que está do outro lado da tela assistindo, lendo ou interagindo saia do papel de telespectador passivo e consiga revolucionar o problema. A diferença do veneno e da cura é apenas a dose, para Chaparro (2014), a essência do jornalismo é o conflito, sem conflitos não há jornalismo. Logo o momento pode ser visto como oportunidade para se criar um modelo de negócio que sobreviva e transpasse a situação atual. Utilizar a dita revolução das fontes em benefício da causa e esses geradores de conteúdo em adição ao jornal, que deverá ser símbolo de confiança e credibilidade. Acredita-se que a substituição do Globo Rural pelo telejornal Hora Um foi uma resposta ao novo momento do jornalismo, aqui descrito como jornalismo transmídia ou contemporâneo, que tem como principal objetivo aproximar a televisão, no caso específico o telejornal Hora Um, as rotinas do público. Com prerrogativa de que as pessoas nas metrópoles estão acordando cada vez mais cedo para se deslocarem ao seu local de trabalho e não conseguem acompanhar os telejornais noturnos, o modelo de telejornal nas primeiras horas da manhã já era presente nas emissoras Band, Record e SBT, o que traz mais ponto a ser observado. Entende-se que Rede Globo foi resistente durante os últimos anos a investir no telejornalismo de proximidade e preferiu manter-se com o “padrão Globo”, e somente com o declínio de audiência que migrava para as outras emissoras resolveu dar uma reposta e produzir um telejornal mais coloquial, destinado ao horário das 5h até às 6h.

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CONTEÚDO REPETITIVO E INFORMAL Estudo de caso do mais recente telejornal da rede aberta de televisão O mais recente telejornal inserido na grade da televisão aberta brasileira, o jornal Hora Um entrou no ar em 1º de dezembro de 2014, apresentado ao vivo por Monalisa Perrone dos estúdios da Rede Globo de Televisão em São Paulo - SP, o jornal busca como público alvo o trabalhador das grandes metrópoles que está acordando para se deslocar para o trabalho. O telejornal encontra-se no horário das cinco horas da manhã, anteriormente ocupado por um programa de temática rural, e possui 55 minutos de duração com apenas dois intervalos comerciais de períodos muito curtos. Em sua distribuição de conteúdo a cada 15 minutos se faz um giro de notícias do que foi televisionado no próprio jornal, o que torna o conteúdo bastante repetitivo, em um único programa acontecem quatro giros e as notícias são mostradas novamente de forma reduzida, porém com as mesmas imagens das matérias que foram pouco tempo antes exibidas, no último giro a apresentadora aparece no vídeo e apenas faz uma pequena retrospectiva do que foi noticiado no programa inteiro, todos os dias o jornal é encerrado desta forma. O telejornal utiliza links ao vivo nas principais cidades do país, no entanto o clima nesse horário é de bastante tranquilidade, durante os cinco episódios analisados para este artigo, de 29 de dezembro de 2014 a 02 de janeiro de 2015, os cenários de links ao vivo apareceram calmos e com baixa luminosidade. O que nos leva acreditar que o uso desses links são apenas para preencher o tempo do telejornal. Com o intuito de trazer mais dinamicidade a própria apresentadora e os comentaristas que designam quais os vídeos que irão para o ar através de uma tela multimídia e interativa, que possui doze editorias são elas: vídeo; utilizado para chamar todas as matérias; aeroportos, que é utilizada pela garota do tempo para informar a situação dos aeroportos no Brasil; tempo para descrever as condições climáticas; trânsito que é frequentemente usado para mostrar como estão as vias de acesso e o trânsito em várias cidades do país; frase utilizada para destacar alguma citação; esporte quando há destaque em modalidades esportivas; info+ para obter mais informações sobre determinado assunto já noticiado; mercado para informações relacionadas à economia; manchetes trazendo as principais manchetes dos portais de notícias e jornais impressos do Brasil e do mundo; extra para alguma informação que precisa ser citada e não cabe nas demais editorias; cotação utilizada para informar os valores de cotação de moedas, produtos e exportações e de olho secção usada para lembrar ao telespectador serviços, datas e prazos. Nem todas as editorias são utilizadas ao longo de todo o telejornal, as que possuem mais reforço são as relacionadas com o jornalismo de serviço: informar as temperaturas climáticas, o que não se deve esquecer na sessão De olho e as condições do trânsito. Mas é notório que essa preocupação excessiva com o serviço é um sinal de um telejornal com ausência de conteúdo inédito, como pode se ver nas tabelas abaixo com o espelho de cada edição do telejornal analisada. O jornal possui em média 12 matérias jornalísticas ao longo dos seus três blocos, se analisarmos o conteúdo todas são repercussões de material dos telejornais noturnos das praças afiliadas Globo, quando se analisa o conteúdo percebe-se que o conteúdo exibido é “reciclado” (grifo da autora), somente os quadros e os comentários são inéditos.

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Tabela 1. O espelho do telejornal Hora Um edição de segunda-feira, 29 de dezembro de 2014.

Tabela 2. O espelho do telejornal Hora Um edição de terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Tabela 3. O espelho do telejornal Hora Um edição de segunda-feira, 31 de dezembro de 2014.

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Tabela 4. Não houve edição de quinta-feira, 01 de janeiro de 2015, por causa do feriado.

Outra característica que merece destaque é a coloquialidade da apresentadora e seus comentaristas, o jornal Hora Um é leve e solto. Como se pode notar através da análise de conteúdo das edições destacadas. Na edição de 29 de dezembro de 2014 a garota do tempo, Maria Julia Coutinho, fala: “lembrei de você está noite, a eletricidade aqui em casa na zona sul variou bastante”, Monalisa Perrone com o comentarista de economia na mesma edição do telejornal chega a cumprimentá-lo unindo as mãos com um murro e diz: “Juntos firmes e fortes na madrugada”, (como pode se ver na figura 1), ao ancorar uma matéria que falava sobre a possível entrada de turistas no Palácio da Alvorada em Brasília, Monalisa diz: “Se vacilar entram mesmo.” E nesta mesma edição do telejornal Monalisa comenta com a colega Maria Julia que aproveitou o calor que fez em São Paulo na piscina: “Eu aproveitei o calorão de São Paulo no ‘tchibum”, disse a apresentadora.

Figura 1. A apresentadora, Monalisa Perrone, cumprimenta o comentarista de economia, Samy Dana, e diz: “Juntos firmes e fortes na madrugada”.

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Tabela 5. O espelho do telejornal Hora Um edição de sexta-feira, 02 de janeiro de 2015.

A comentarista meteorológica, Maria Julia, compartilhou um fato de seu cotidiano na edição de 31 de dezembro de 2014: “Ontem quando eu saí com meu cachorro pra passear e vi aquele solzão, eu tinha falado sobre chuva”, ao finalizar as explicações e previsões meteorológicas a apresentadora Perrone abraça a colega e deseja um bom ano novo (como pode ser ver na imagem 2). Em conversa com Maria Julia a apresentadora Monalisa para alertar sobre os possíveis acidentes com raios na capital paulista afirma: “A dica de hoje é começou chover, não dar sopa”. Na edição do dia 02 de janeiro de 2015 a apresentadora do telejornal improvisou um sotaque português para responder um questionamento feito pelo correspondente em Portugal sobre os nomes mais usados para registrar crianças no país, e completou dando uma “informação de bastidores”, como ela mesma destacou: “Se não chamasse Monalisa, iria me chamar Margaret”. Com base na observação e transcrição do conteúdo nota-se uma visita ao passado, a linguagem do telejornal Hora Um se parece como a do radiojornalismo, tem características de texto radiofônico, tais como: repetição de conteúdo programada, tom informal, descontraído e descerimonioso, porém sem perder as características primordiais dos telejornais da emissora de televisão que sempre são conservadores e polidos. Apesar de ainda manter a qualidade técnica e uma formatação tradicional aos telejornais do modelo de jornalismo tradicional, o telejornal consegue inovar na linguagem e traz mais coloquialidade as telas, mesmo ainda fazendo uso do teleprompter (aparelho acoplado nas câmeras que indica o texto a ser lido). Um ponto relevante a destacar são as entradas ao vivo dos correspondentes internacionais em Londres, Portugal e Tóquio. Apesar dos problemas com delay (a transmissão de sinal ocorre de forma lenta e cerca de cinco segundos são perdidos a cada contato com o correspondente em Tóquio no Japão) a iniciativa traz um conteúdo enriquecedor, inédito e horário torna-se ideal para os fuso-horários dos demais continentes.

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Figura 2. A apresentadora, Monalisa Perrone, dá um abraço de feliz ano novo na garota do tempo, Maria Julia Coutinho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar da pesquisa ainda está em fase de desenvolvimento necessitando aprimorar e analisar os resultados considera-se que o telejornal representa um passo a mais para emissora e para o jornalismo contemporâneo. Conseguir essa aproximação e perceber a avidez do público por mais informações, notícias e interação representa um avanço. Por fim, considera-se que o novo telejornal do ponto de vista das estratégias atingiu o objetivo, pois trouxe de volta a liderança de audiência a emissora. Mas conta com lacunas importantes como a ausência de notícias inéditas e de fazer uso de estratégias de transmidiação, além da melhor atualização e comunicação com as mídias sociais digitais. Em sua linguagem, o telejornal que procura conversar mais com o telespectador apresenta características positivas que lembram o rádio, o tom de coloquialidade deixou as notícias mais leves e o telejornal mais prazeroso de ver. Mesmo com o padrão nada inovador e fazendo a repetição de conteúdo, o telejornal conseguiu em seu primeiro mês de exibição bons pontos de audiência. Segundo pesquisa do Ibope (2014) o jornal Hora Um marcou 3,7 pontos na Grande São Paulo e recuperou a liderança para a emissora, segundo dados preliminares, a audiência da Rede Globo na faixa das 5h às 6h da manhã cresceu em 85% no horário, foi sintonizado por 36% dos televisores ligados, o SBT teve 2,8 com o telejornal Notícias da Manhã e a Record, 0,4 pontos com o Balanço Geral. Embasado nas técnicas de observação e análise de conteúdo, acredita-se que Rede Globo de Televisão precisou readequar sua programação e linguagem para seguir liderando em pontos de audiência, observa-se também que havia lacunas informativas nas manhãs da televisão brasileira e que o publico vem se modificando de tempos em tempos. A Rede Globo passa a partir da criação do telejornal Hora Um passa a ter quatro horas interruptas de jornalismo ao vivo, as primeiras horas matinas, das cinco horas às nove da manhã, o que pode-se considerar uma nova leitura ao jornalismo contemporâneo.

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Questão de qualidade: uma análise da crítica ao telejornalismo no Jornal do Brasil nos anos 1970 Quality issue: an analysis of television journalism criticism in the Jornal do Brazil in the 1970s Fer na n da M au r icio

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Resumo: Na década de 1970, o jornalismo televisivo iniciou um forte processo de consolidação e diferenciação com relação a outras mídias informativas. O avanço tecnológico e os incentivos do governo à formação de uma indústria cultural possibilitaram a implementação de novos formatos jornalísticos na televisão, o que atraiu a atenção dos críticos de TV. Ora assumindo o telejornalismo como um espaço noticioso empobrecido pelo entretenimento, ora defendendo o potencial que a combinação imagem/som agregava à transmissão de notícias, a crítica televisiva oferecia diferentes quadros valorativos para a avaliação do jornalismo televisivo e o estabelecimento de um padrão de qualidade. O Jornal do Brasil destacou-se na crítica televisiva dos anos 1970 com o trabalho de Valério de Andrade, Paulo Maia e Maria Helena Dutra. Para além dos aspectos estilísticos, interessa a este artigo o modo como os críticos definem “telejornalismo de qualidade” e os critérios empregados para isso. Deste modo, recorremos à noção de estrutura de sentimento, formulada por Raymond Williams (1979) como caminho teórico-metodológico para identificar os valores dominantes, residuais e emergentes que configuraram o que se avaliou como “bom/mau telejornalismo”. Pretende-se refletir sobre os parâmetros que de alguma forma legitimaram o telejornalismo socialmente e se perpetuaram por anos futuros.

Palavras-chave: telejornalismo; crítica televisiva; história cultural. Abstract: In the 1970s, the television journalism began a strong process of consolidation and differentiation from other informative media. Technological advances and government incentives to the formation of a cultural industry enabled the implementation of new journalistic formats on television, which attracted the attention of TV critics. Now assuming the television news as a news space impoverished by entertainment, now advocating the potential that the combination image / sound aggregated the transmission of news, television criticism offered different evaluative frameworks for the assessment of television journalism and the establishment of a quality standard. The Journal of Brazil stood out in television criticism of the 1970s with the work of Valerio Andrade, Paulo Maia and Maria Helena Dutra. In addition to the stylistic aspects, this article argues how the critics define “quality of television journalism” and the criteria used for this. Thus, we use the concept of a structure of feeling, formulated by Raymond

1.  Doutora em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia. Docente do Programa de Pós-gradação em Comunicação e Cultura Midiática da Universidade Paulista (UNIP).

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Williams (1979) as a theoretical-methodological approach to identify dominant, residual and emergent values that shaped what was evaluated as “good / bad television journalism.” The aim is to reflect on the parameters that somehow legitimized telejournalism socially and perpetuated by future years.

Key-words: television journalism; television criticism; cultural history.

INTRODUÇÃO DÉCADA DE 1970 pode ser considerada o início de um processo de consolidação

A

da linguagem televisiva, que já superava o improviso e os limites técnicos dos primeiros anos e buscava criar a identidade de uma gramática própria. Diversos historiadores da TV já demonstraram que o cenário da ditadura militar contribuiu para a criação dessa gramática, efetuando fortes investimentos nas emissoras de televisão. Deste modo, o progresso do Brasil almejado pelo governo se expressaria, também, no progresso da indústria, das artes, da mídia. Em meio a esse anseio por uma televisão de alto nível vieram as primeiras discussões acerca da qualidade de seus produtos, discussão esta que se iniciou desde os anos 1950 e que, ora se balizava por questões técnicas, ora pelo conteúdo. Para os críticos de TV do período, o jornalismo televisivo representava uma esperança em meio a uma programação voltada para telenovelas, programas de auditório e variedades. No entanto, o que se observa a partir da crítica é que os critérios empregados para o julgamento dos produtos mostram-se bastante difuso, oscilando entre um forte otimismo com o potencial que a TV poderia oferecer à cobertura noticiosa e os deslizes das emissoras no tratamento dos acontecimentos. Por conta disso, é possível questionar o que é “telejornalismo de qualidade” na opinião dos críticos de TV do período. Esta é a questão que permeia este artigo, cuja proposta é discutir a partir de que critérios os críticos de televisão da década de 1970 qualificavam o bom ou mau jornalismo. Nosso recorte analítico restringe-se às críticas publicadas no Jornal do Brasil (JB) entre 1970 e 1979. Ao longo desse período, diversos críticos passaram pelo jornal, entre eles Valério de Andrade, Maria Helena Dutra e Paulo Maia. Para além das questões de estilo de cada autor, interessa-nos saber de que forma cada um deles concebia a qualidade no telejornalismo. A partir da análise dos textos publicados2, seguimos nossa discussão problematizando a qualidade no telejornalismo como uma noção que mais diz sobre o contexto sócio-histórico, do que sobre os produtos em si. A crítica do JB demonstrou que ao longo dos anos a noção de qualidade dos jornalistas foi se transformando de acordo com as expectativas provocadas pelo cenário em que se inseria, deslocando-se de uma preocupação com a forma para o conteúdo e a democracia. É apenas nesse segundo momento que os valores que identificam o jornalismo enquanto instituição social – tais quais atualidade, objetividade, interesse púbico – são mais diretamente questionados pelos críticos. Para entender essas transformações na noção de qualidade do telejornalismo, recorremos à análise cultural tal qual postulada pelos Estudos Culturais ingleses, especialmente

2.  Inicialmente, coletamos, através do site http://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/ um total de 70 artigos publicados no Jornal do Brasil direcionados à crítica ao telejornalismo. Destes selecionamos 15 para servir de subsídio para as considerações aqui efetuadas.

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no conceito de estrutura de sentimento formulado por Raymond Williams (1979). Com Williams, compreendemos que a crítica põe em disputa noções de telejornalismo na defesa de um modelo hegemônico, destituindo outros. Assim, os critérios apontados pelos críticos sinalizam para valores dominantes do campo, estabelecendo-se como modelo hegemônico.

DA FORMA AO CONTEÚDO: A CRÍTICA NO JB “Quando acionada com precisão, a TV é invencível, batendo a imprensa escrita na instantaneidade e o rádio na cobertura visual”. Essa frase de Valério de Andrade, publicada no Jornal do Brasil de 15 de dezembro de 1971 resume as expectativas dos críticos de TV para a televisão naquele período. Entusiasmado com os avanços tecnológicos da década de 1970, Valério de Andrade encontrava no telejornalismo um terreno fértil para a produção de notícias, validando valores como instantaneidade, objetividade e serviço ao interesse público. Mas, claro, o crítico do Jornal do Brasil encontrava desvios que precisariam ser reparados em nome do progresso do telejornalismo e da televisão brasileira. Deste modo, as críticas tratavam das falhas e dos acertos das emissoras brasileira, em especial das duas principais concorrentes do período, a Tupi e a Globo. Maria Helena Dutra e Paulo Maia, escrevendo na segunda metade dos anos 1970, traziam outras preocupações e uma posição bem menos positiva com relação ao papel do telejornalismo na sociedade. Por isso, nesta análise, trataremos da crítica ao telejornalismo como se houvesse duas fases: na primeira, de Valério de Andrade, prevaleciam os critérios relacionados à forma dos programas jornalísticos para atribuição de qualidade; na segunda, os aspectos relacionados ao conteúdo ganhavam relevo. Valério de Andrade é crítico de cinema, mas durante boa parte de sua carreira, escreveu também sobre televisão. Audaz com o entretenimento televisivo, Andrade encontrava no telejornalismo um espaço em que a televisão poderia exercer um significativo papel social de representar a realidade de forma precisa. Por isso, constantemente suas críticas apontavam o telejornalismo como um lugar em que o telespectador poderia respirar das atrações de auditório como os programas de Sílvio Santos, Chacrinha e Hebe, alvos de seus comentários mais ácidos. Boa parte dos textos de Valério de Andrade tratava sobre a concorrência entre as duas principais emissoras de TV do país: a Globo, com seu forte poderio técnico, e a Tupi, já entrando num período de decadência. Sem tentar estabelecer algo como “o melhor programa da TV”, Andrade preferia uma análise específica de cada programa, considerando a edição daquele dia ou semana. Como o aspecto técnico se destacava dos demais, a Globo, frequentemente, era apontada como a emissora com as melhores produções, mas muitas vezes, as críticas de Andrade assumiam um tom nostálgico com relação à Tupi do passado e seu carro chefe, o Repórter Esso. Era desse modo que ele posicionava as tentativas da Tupi em se reposicionar no telejornalismo do horário nobre, com o Correspondentes Brasileiros Associados (CBA), ao qual denominou como uma tentativa frustrada de substituir o Repórter Esso. O CBA pecava nos elementos que, para Andrade, conferiam a qualidade do telejornalismo: a performance dos apresentadores, a mobilidade geográfica e o ritmo do programa.

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Sobre a performance, Andrade deixava evidente a necessidade de a televisão renovar as formas de leitura das notícias de modo a diferenciar-se do estilo radiofônico. Para ele, já não havia espaço para uma leitura de textos que se mostrasse ao telespectador demasiadamente lenta ou roteirizada. Era fundamental, para Andrade, que o locutor transmitisse emoção ao ler as notícias, o que não ocorria no CBA. Segundo ele, a apresentadora parecia estar fazendo um favor ao telespectador ao apresentar as matérias. A mobilidade é o critério encontrado pelo crítico para efetuar uma relação direta entre a tecnologia e a linguagem televisiva. Tratando do telejornalismo da TV Tupi, Andrade afirma que o progresso tecnológico a que se chegou a sociedade deveria ser visto pela televisão por meio de uma ampla cobertura noticiosa que integrasse o Brasil, o que deixava a Globo com imensa vantagem com o Jornal Nacional. Por outro lado, quando o programa se aventura a desbravar lugares diferentes, oferecendo ao telespectador imagens inusitadas da realidade brasileira, isso é tratado pelo crítico como um critério de qualidade, como foi o caso do programa Dia D, apresentado por Cidinha Campos na TV Record. Poucas vezes Valério de Andrade assume um tom normativo, indicando que fórmula o programa deveria adotar para alcançar o sucesso. Seus textos, antes, buscavam apontar as falhas e os efeitos provocados no telespectador, em especial, quando o programa imprime um ritmo lento e enfadonho. Assim, Andrade opunha o dinamismo que a televisão deveria buscar à lentidão com que certos programas eram feitos. As palavras “tédio” e “monotonia” eram frequentemente usadas pelo autor para caracterizar a repetição dos depoimentos capturados nas ruas (01 fev. 1973), a postura de um narrador mecanizado (13 abr. 1973), o “esquema [narrativo] da velha Agência Nacional” (07 ago. 1973), ou ainda apenas como um adjetivo para caracterizar o documentário Do Sertão ao Beco da Lapa: “Pretensioso, monótono, o documentário dirigido por Maurício Capovilla e Rudá de Andrade ignora solenemente o público e o nível de informação da gigantesca plateia que tinha à disposição” (04 dez. 1973). Embora Valério de Andrade faça uma associação mais evidente entre a qualidade e os recursos técnicos que compõem a narrativa televisiva, ele tinha uma preocupação com os valores do jornalismo e, em especial, com o papel do jornalista, a figura que levava as informações ao público. Jornalismo, para o autor, era quase um adjetivo utilizado por ele para qualificar positivamente os programas que analisava. Em certos casos, ele mencionava valores do jornalismo como parâmetro para atribuição de qualidade. É o caso da série de reportagens que seria exibida pela Globo em 1971 com temas como Transamazônica, alimentação, saúde, educação, habitação, turismo, Projeto Rondon, arquitetura e urbanismo, comunicação, cinema e música popular. Em parceria com a emissora norte-americana CBS, a série de reportagens tinha como objetivo oferecer “uma real contribuição aos problemas comunitários” (18 ago. 1971). Sobre a ponte Rio-Niterói (19 jun. 1973), Andrade afirmou que o recorte dado ao tema, sem voltar-se apenas para os dados oficiais e contando com enquadramentos diferenciados (que ele pouco descreve), a reportagem de Amaral Neto se construiu em torno de um “real interesse público”. No entanto, não há por parte do crítico uma reflexão sobre esses valores. Eles aparecem nos textos ancorados em exemplos de reportagens e contam com o senso comum para estabelecer o sentido que pretende. A crítica ganha mais quando busca mostrar, a partir dos recursos audiovisuais, como um programa constrói um sentido

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de interesse púbico, ou objetividade, ou revelação pública, como em outra reportagem de Amaral Neto (19 jun. 1973) sobre a Perimetral Norte. Valério de Andrade salientava que o enfoque dado à reportagem destaca elementos curiosos que o telespectador não conhece: Para o público que sabia apenas que a Perimetral Norte era uma estrada, mais uma estrada, a última parte da reportagem constituiu uma revelação, ao reunir completo detalhado trabalho de pesquisa sobre o que existe além das margens da Perimetral Norte e abaixo do solo desbravado pelos homens e suas maravilhosas máquinas de fazer progresso. Depois do programa, dos dados revelados em primeira mão, ficamos sabendo que - às vezes - uma estrada não é apenas uma estrada. (ANDRADE, 19 jun. 1973).

Assim, para Valério de Andrade era relevante ao jornalismo buscar um enfoque diferenciado sobre os temas que cobria. Talvez por isso Andrade deixa transparecer uma preferência por programas de grande reportagem, como era o Amaral Neto Repórter, frequentemente citado como referência de qualidade em relação ao telejornal diário por contar com mais tempo para a cobertura. Se para Valério de Andrade o telejornalismo assumia sua melhor forma nos programas de grandes reportagens, para Maria Helena Dutra, colunista do Jornal do Brasil na segunda metade da década de 1970, era nos programas de debate e entrevistas duras que o jornalismo era desempenhado em sua plenitude. Nos dois casos, grandes reportagens e programas de entrevistas e debates, o que se busca é o mesmo valor: o aprofundamento das informações. Valério de Andrade, preocupado com as formas técnicas e visuais dos programas, trouxe de sua experiência como crítico de cinema, a valorização dos assuntos através da própria linguagem da televisão. Assim, os enquadramentos, as performances, o investimento em mobilidade geográfica e uma narrativa constantemente dinâmica permitiriam o aprofundamento das informações de maneira lúdica e, ao mesmo tempo, noticiosa. Para Maria Helena Dutra e Paulo Maia, a linguagem audiovisual perdia prioridade em relação ao assunto tratado nos programas jornalísticos. Percebe-se a partir de suas críticas, um forte combate à censura aos veículos noticiosos, o que, segundo eles, empobreciam as informações e criava uma barreira a caminho da democracia. Tal disputa tornou-se flagrante quando o então Ministro das Comunicações, Euclídes Qandt, deu uma entrevista afirmando que a censura não interferia na qualidade dos telejornais. Para o Ministro, a qualidade estava associada à questão do formato, e não do conteúdo. Foi contra isso que os críticos se posicionaram. Para eles, a omissão das passeatas do movimento estudantil, raptos e crimes na pauta dos telejornais os desqualificava na relação entre informação e interesse púbico. Nesse momento, a crítica ao telejornalismo torna-se mais voltada aos valores que o estabelecem como instituição social e a promoção do debate público. Assim, os programas de debates e entrevistas ganham maior notoriedade no aprofundamento das temáticas. Paulo Maia, por exemplo, ressalta que o programa Painel, da Globo, representa um alívio numa programação jornalística voltada a notícias amenas do Jornal Nacional, mas principalmente, do Fantástico (04 nov. 1977). Maria Helena Dutra faz um apelo à maior presença de programas de debate na televisão, como foi a reestréia do programa

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Pinga Fogo, da Tupi. Segundo a autora, embora o programa tenha feito muito sucesso anteriormente por assumir uma postura combativa, em sua nova versão, ele assumia um tom cortês e solene em relação a seus entrevistados. Por isso, segundo ela, o estilo do programa estava “bem mais para relações públicas do que para jornalismo” (DUTRA, 23 set. 1978). Sobre o mesmo programa, Paulo Maia afirma também opõe a agressividade das versões anteriores à tom polido de sua edição3: Era um programa combativo e dentro da tradição jornalística de uma boa entrevista. As perguntas eram provocativas e o clima nunca era ameno e morno. Hoje, as entrevistas são tão monótonas que chegam a dar sono. Os entrevistadores procuram, na medida do possível, agradar ao entrevistado, fazendo-lhe as perguntas mais convenientes, e uma boa entrevista depende justamente do índice de provocações que leva o entrevistador a obter boas declarações. (MAIA, 06 out. 1978)

Comparando-o com outros programas do mesmo gênero, como Encontro com a Imprensa, Voz Populli e Painel, o programa da Tupi perdia em qualidade. O que o caso do Pinga Fogo deixa claro é que o parâmetro para avaliação do telejornalismo estava se transformando em função das demandas da sociedade naquele momento. O destaque dos críticos à agressividade das perguntas como um aspecto de valor positivo em programas de entrevistas deixa transparecer a necessidade de um telejornalismo mais combativo e que enfrentaria a censura e os limites impostos pelo governo. Essa era a expectativa dos críticos, ao menos, como relação ao papel do jornalismo na busca pela redemocratização, o que encontrou amparo no enfraquecimento da ditadura. Para além das questões contextuais, interessa-nos perceber que os valores do telejornalismo, agora, eram questionados e discutidos nas críticas de TV, inclusive repensando seus significados. A questão da objetividade é um exemplo. Tomada como valor central do campo jornalístico a partir dos anos 1950 e defendida pelos críticos de TV como uma marca do telejornalismo, nesse novo momento, a objetividade começava a ser questionada em nome do interesse público. Vale a pena, neste momento, fazermos uma oposição. Para Valério de Andrade, a objetividade podia se definir como o oposto à complexidade narrativa. Era um sinônimo de simplicidade, o que, segundo ele, autenticava as narrativas jornalísticas. Para Paulo Maia, por sua vez, a objetividade poderia ser negociada se o que estava em questão era a representação de uma realidade que estava sendo suprimida da televisão. Afirma Maia: Num momento em que as opções democráticas são debatidas no sério da sociedade civil e a Nação se levanta para garantir que não é um gigante adormecido em berço esplêndido, não teria sentido, nem do ponto-de-vista mercadológico, manter uma distancia fria dos fatos que simplesmente atropelam a vida do cidadão comum. (MAIA, 06 nov. 1977).

Isso nos faz pensar que naquele momento histórico o que efetivamente qualificava o telejornalismo eram menos as questões formais da linguagem televisiva do que o cumprimento de um papel social que apontava para a construção de um país democrático, 3.  O programa de entrevistas Pinga Fogo foi ao ar pela primeira vez na década de 1960 fazendo grande sucesso junto à audiência. Saiu do ar em função d censura e retornou em 1978, período dos quais os críticos aqui analisados tratam. Sobre o Pinga Fogo, ver SILVA, 2012.

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Questão de qualidade: uma análise da crítica ao telejornalismo no Jornal do Brasil nos anos 1970 Fernanda Mauricio da Silva

ainda que, para isso, valores centrais do telejornalismo fossem reconfigurados.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A CRÍTICA NA ANÁLISE CULTURAL Enquanto prática cultural, o telejornalismo tem suas configurações traçadas em torno de uma relação direta com a sociedade e a cultura. As estratégias de apresentação das notícias, as narrativas das reportagens, a construção cênica dos programas, a pauta, enfim, as marcas que caracterizam o telejornalismo e estabelecem uma vinculação com a audiência resultam de dimensões do contexto sócio-histórico. Daí a importância da noção de estrutura de sentimento, formulada por Raymond Williams (1979), para compreendermos o telejornalismo. Estrutura de sentimento, para o autor, é uma hipótese cultural que busca dar conta das dimensões processuais que envolvem as práticas culturais. Deste modo, Williams considera que valores, significados e características da cultura não estão fixos e perenes no tempo, ao contrário, estão em permanente mutação. Este artigo nos permitiu ter uma pequena amostra de como as transformações sociais incidem nas definições do telejornalismo pela crítica do Jornal do Brasil, revelando que aquilo que se considera um “bom telejornalismo” não está estabelecido no tempo, mas obedece às transformações do período histórico. Embora Williams, não trate especificamente sobre a crítica midiática, ao abordar a arte como objeto da análise cultural, ele fornece algumas pistas do papel da crítica. Defendendo que não sejam estabelecidos critérios a priori para a análise da arte, Williams afirma que: A tentativa de distinguir entre obras boas, ruins e indiferentes dentro de cada uma das práticas, quando feita com plena seriedade e sem a presunção de classes e hábitos privilegiados, é um elemento indispensável do processo social fundamental da produção humana consciente. (WILLIAMS, 2011, p. 126)

Se considerarmos, juntamente com Raymond Williams (2011), que os aspectos dominantes da cultura são “um sistema central de práticas, significados e valores” (2011, p. 53), os residuais se referem aos elementos formados no passado que permanecem em uso no presente, e que o emergente nos diz das condições futuras, é possível encontrar, na crítica dos anos 1970 publicada pelo Jornal do Brasil, a oscilação entre duas matrizes: uma que privilegia a técnica formal e outra que valoriza o conteúdo e papel social. No caso dos elementos formais, nota-se uma tentativa da crítica em estabelecer a herança radiofônica como “algo do passado”. A locução monótona de um apresentador, por exemplo, remeteria à ausência do vídeo, termo que Valério de Andrade utiliza frequentemente em suas críticas, o que reforça sua predileção pelas marcas visuais dos programas em consonância com um bom texto narrativo. Assim, os elementos provenientes do rádio, na crítica do Jornal do Brasil, podem ser apontados como residuais e ganham uma conotação pejorativa, uma vez que impedem o progresso das narrativas televisuais. Em busca de sua linguagem, o jornalismo na televisão deveria, segundo Andrade, criar suas próprias marcas audiovisuais, desligando-se do passado e caminhando, ainda segundo ele, ao progresso. A noção de progresso, que tanto permeava o imaginário nacional no campo econômico, científico e político, migrava para a televisão como se fosse uma extensão dos discursos elaborados fora do telejornalismo.

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No caso de Maria Helena Dutra e Paulo Maia percebe-se outra lógica que, ao invés de buscar diferenciar-se do passado, demanda do telejornalismo uma postura diferenciada para o futuro. O objetivo dos críticos é incitar a formação de uma nova cultura jornalística televisiva recorrendo, para isso, a práticas menos visíveis e mais simbólicas, como é o caso da agressividade das entrevistas. Para os críticos era inaceitável que uma televisão de qualidade se submetesse constantemente à censura e/ou se desviasse dos assuntos oposicionais. Se a noção de qualidade dominante se expressava pelo apuro técnico – como pregava a Rede Globo – o que Duttra e Maia defendiam é que para além das dimensões técnicas, o conteúdo do telejornalismo precisava mostrar-se atualizado com as demandas do país.

REFERÊNCIAS: ANDRADE, V. (01 abr. 1971). CBA. Jornal do Brasil. Disponível em http://www.tv-pesquisa. com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=161&PageNo=1, acesso 18 nov. 2014. ANDRADE, V. (15 dez. 1971). Cobertura Global. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www. tv-pesquisa.com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=42596&PageNo=2, acesso 12 mar. 2015 ANDRADE, V. (17 fev. 1971). Cidinha aprovada. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www. tv-pesquisa.com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=143&PageNo=1, acesso 18 nov. 2014 ANDRADE, V. (01 fev. 1973). Mulher. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www.tv-pesquisa. com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=738&PageNo=3, acesso 12 mar. 2015. ANDRADE, V. (07 ago. 1973). Registrando o progresso. Jornal do Brasil. Disponível em: http:// www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=878&PageNo=3, acesso 12 mar. 2015. ANDRADE, V. (04 dez. 1973). O Bonde Paulista. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www. tv-pesquisa.com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=907&PageNo=4, acesso 12 mar. 2015. ANDRADE, V. (19 jun. 1973). Panorama visto da ponte. Jornal do Brasil. Disponível em: http:// www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=854&PageNo=3, acesso 12 mar. 2015. ANDRADE, V. (18 ago. 1971). Série especial. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www. tv-pesquisa.com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=40315&PageNo=1, acesso 12 mar. 2015. DUTRA, M.H. (23 set. 1978). Miolo de pote. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=135487&PageNo=1, acesso 19 ago 2011. JORNAL DO BRASIL, 08 jul. 1977. Disponível em: http://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/ mostraregistro.asp?CodRegistro=1629&PageNo=7, acesso 19 mar. 2015. JORNAL DO BRASIL, 09 jul. 1977. Disponível em: http://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/ mostraregistro.asp?CodRegistro=133827&PageNo=7, acesso 19 mar. 2015. JORNAL DO BRASIL, 07 jul. 1977. Disponível em: http://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/ mostraregistro.asp?CodRegistro=1632&PageNo=7 , acesso 19 mar. 2015.

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Questão de qualidade: uma análise da crítica ao telejornalismo no Jornal do Brasil nos anos 1970 Fernanda Mauricio da Silva

JORNAL DO BRASIL, 15 jul. 1977. Disponível em: http://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/ mostraregistro.asp?CodRegistro=1636&PageNo=7, acesso 19 mar. 2015 MAIA, P. (06 out. 1978). Gato que não arranha. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www. tv-pesquisa.com.puc-rio.br/mostraregistro.asp?CodRegistro=2227&PageNo=1, acesso em 19 ago. 2011. MAIA, P. (04 nov. 1977). Um novo telejornalismo e os limites da censura. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/mostraregistro. asp?CodRegistro=61413&PageNo=7, acesso 19 mar. 2015. SILVA, F. (2014). Em busca de um telejornalismo legítimo: critérios de qualidade nas críticas de Artur da Távola nos anos 1970. Revista Significação, n. 41, vol, 41, pp. 58-78. SILVA, F. (2012). Marcas do passado tecendo o presente: a formação histórica dos programas de entrevistas no Brasil. In: GOMES, Itania (org.). Análise do telejornalismo: desafios teórico-metodológicos. Salvador, EDUFBA, pp. 167-186. WILLIAMS, R. (2011). Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra. WILLIAMS, R. (1979). Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

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Telejornalismo, serviço e debate públicos: as dimensões da crítica e do enfrentamento na cobertura das eleições gregas pela RTP e pela TV Brasil Television news, public service and discussion: the criticism dimension in greek election coverage for RTP and TV Brazil Ilusk a Coutinho1

Resumo: Forma importante de acesso à informação em países como Brasil e Portugal, o jornalismo televisivo assume uma função pública, mesmo em emissoras de exploração comercial. Nos canais de serviço público suas responsabilidades seriam ampliadas, na medida em que os contratos de concessão e documentos normativos impõem critérios como estímulo ao conhecimento e cidadania, como distinções para a televisão pública, e seu telejornalismo. Financiada com recursos provenientes de uma taxa paga pelos cidadãos, a RTP1 esteve no centro de um debate desencadeado por críticas sobre a produção do enviado especial na cobertura das eleições gregas. Difundidas inicialmente nas redes sociais, as queixas alcançaram outros espaços de debate e circulação midiática: audiovisual, matérias publicadas na mídia impressa e reclamações junto ao ouvidor do espectador. É possível perceber, por meio dos discursos veiculados em diferentes mídias, os tensionamentos quanto ao lugar e função do correspondente televisivo; ao papel do jornalismo internacional; às promessas e financiamento da televisão de serviço público. A proposta do texto é refletir sobre as dimensões da crítica e do enfrentamento do Jornalismo, televisivo e de caráter público, presentes nessa re-circulação midiática, potencializada pela inserção de vídeos e de seu debate em espaços virtuais. Em termos comparativos, o trabalho ainda analisa peças audiovisuais veiculadas pela RTP e pela TV Brasil sobre as eleições de 2015 na Grécia, tendo como referência teórico-metodológica a dramaturgia do telejornalismo. O escopo teórico do artigo inclui parâmetros como pluralidade, diversidade e o binômio cidadania-autonomia que seriam os desafios diferenciais do telejornalismo público segundo autores como Felisbela Lopes, Francisco Rui Cádima, Jacinto Godinho, Eugênio Bucci e Iluska Coutinho.

Palavras-Chave: TV Pública. Jornalismo. Crítica. Cidadania. Correspondente.

“D

O ALTO do morro, a Acrópole vigia Atenas como uma sentinela. Esse é o

mais importante monumento da Grécia antiga...”. A narrativa audiovisual que iniciava-se com a locução do jornalista José Rodrigues dos Santos, enviado especial da RTP à Grécia, desencadeou o que poderíamos considerar um novo tipo de vigilância, a dos cidadãos com o seu (tele)jornalismo público. Veiculada no 1.  UFJF (Brasil).

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Telejornalismo, serviço e debate públicos: as dimensões da crítica e do enfrentamento na cobertura das eleições gregas pela RTP e pela TV Brasil Iluska Coutinho

Telejornal, noticiário noturno da principal emissora de serviço público portuguesa, a RTP1, a reportagem foi objeto de um debate entre diferentes mídias e personagens, incluindo parlamentares, jornalistas, professores, telespectadores e o seu ouvidor. Realizada em janeiro de 2015, a cobertura das eleições gregas pelos enviados José Rodrigues dos Santos e Sergio Ramos atuou como marco para discussões sobre o lugar do Jornalismo na contemporaneidade, especialmente no que refere-se ao telejornalismo público, ou melhor, à produção jornalística em emissoras públicas de televisão, ou ainda concessionárias de serviço público. A própria nomenclatura adotada em dois países de ibero-americanos de língua portuguesa, Brasil e Portugal, suscita reflexões acerca do lugar ocupado pelos canais de televisão de exploração não comercial nos processos de produção e circulação de informações jornalísticas audiovisuais, e de seu debate na e pela sociedade. Enquanto em Portugal, a televisão de serviço público foi pioneira na paisagem audiovisual daquele país, e a RTP a única emissora aberta em funcionamento até o início dos anos 1990, no Brasil a experiência televisiva é marcada pela exploração por emissores privados, sendo o chamado campo público de televisão um projeto em construção, com fronteiras conceituais e de exercício ainda carentes de consolidação. Francisco Rui Cádima, ao abordar a história da televisão em Portugal, e mais recentemente a crise no sistema de mídia, tendo como foco aquele país, avalia a centralidade assumida pelo governo no panorama audiovisual português. Se nos primeiros momentos a televisão portuguesa poderia ser diretamente associada à Salazar e Caetano (CÁDIMA, 1996), por meio de suas ausências ou presenças na tela/ ecrã dos televisores, mesmo após a quebra do monopólio da RTP, a paisagem mostrada pela televisão permaneceria pouco inclusiva. (...) antes do licenciamento dos novos operadores, em 1990 e 1991, é o que domina a informação televisiva diária do Canal 1 da RTP. Verifica-se não apenas uma presença esmagadora do sistema político-partidário na informação diária do nacional (...) após a liberalização da lei, já com o novo operador privado em funcionamento (SIC), a televisão pública não altera sua prática anterior (...) (CÁDIMA, 2009, pp.44-45)

É a partir da perspectiva, e do cenário europeu de televisão de serviço público, que podemos compreender as promessas, e experiências televisivas de exploração não comercial. Felisbela Lopes descreve a existência de dois modelos de serviço público, o americano e o europeu, ainda que neste último a evolução não tenha ocorrido de forma simultânea em todos os países do continente. Segundo a autora é no seio da concepção de estado providência, que residiria a força do serviço público em terreno europeu, com o compromisso de garantir o bem estar dos cidadãos, e o exercício dos direitos à informação e expressão. “A televisão de serviço público é considerada um dos meios de concretização desse direito constitucional (...)O serviço público tem aqui responsabilidades acrescidas, embora nem sempre as cumpra” (LOPES, 1999, p.30, p. 43). Na realidade portuguesa, a televisão de serviço público é tornada realidade, financiada, por meio do pagamento de uma taxa de audiovisual pelos cidadãos. O caráter público, além do financiamento, teria como um dos elementos centrais a perspectiva

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de escrutínio da emissora, tanto em relação aos produtos audiovisuais quanto à sua gestão. O primeiro aspecto seria atribuição sobretudo da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), responsável pela avaliação do pluralismo político partidário e da diversidade, entre outros itens, mas também do Conselho de Opinião da RTP. Já o acompanhamento da gestão caberia ao Conselho Geral Independente (CGi). No caso brasileiro, o chamado campo público de televisão inclui emissoras com distintas formas de financiamento, gestão e mesmo acesso. Com uma legislação ultrapassada, na medida em que as atividades de televisão tem ainda como referência o Código Brasileiro de Telecomunicações (1962), o cenário audiovisual brasileiro é marcado pela hegemonia dos operadores privados, e pela desregulamentação da mídia. Nessa perspectiva o chamado campo público agregaria diferentes experiências de prática de televisão, cujas bases buscariam se distanciar desse modelo de exploração comercial, e oferecer espaços para o exercício do direito à comunicação, em sentido amplo. Assim, no campo público estariam emissoras de televisão educativas, culturais, legislativas, universitárias, estatais, públicas. Mas imprecisão conceitual, ao contrário de potencializar distintas formas de apropriação do espaço televisivo, na prática constitui-se em um entrave para a concretização de políticas públicas voltadas para a TV pública e um problema adicional para o seu reconhecimento pelos cidadãos. Soma-se à isso o fato de que as matérias sobre esse tipo de veículo nos órgão de mídia hegemônicos questionam a utilização de recursos públicos em emissoras com baixos índices de audiência. Assim, considerando as distinções entre os conceitos e a experiência da televisão pública em Brasil e Portugal, propõe-se no âmbito desse artigo refletir acerca do lugar do telejornalismo público tomando como pre-texto a cobertura das eleições 2015 na Grécia pela TV Brasil e pela RTP, e os debates públicos suscitados no caso dessa última. Para isso, inicialmente os produtos audiovisuais veiculados serão descritos tomando como base o modelo teórico-metodológico da dramaturgia do telejornalismo (COUTINHO, 2012), que evidencia a estrutura narrativa audiovisual a partir das tramas tecidas, e seus personagens.

ENTRE ESPECIALISTAS E O SENSO COMUM: DOIS PANORAMAS IMPRESSIONISTAS Produzida pela dupla de correspondentes José Rodrigues dos Santos e Sérgio Ramos, a cobertura televisiva das eleições gregas pela RTP, veiculada sobretudo entre os dias 24 e 25 de janeiro de 2015, associou a veiculação de matérias editadas e inserções do jornalista ao vivo, ou em direto. Nesse texto, o enquadramento tomado refere-se à peça ou unidade informativa veiculada no Telejornal de 24/01, cujas primeiras palavras, utilizadas na abertura desse texto, poderiam sugerir uma construção narrativa diferenciada, que tomasse como referência marcas de uma Grécia conhecida como berço da democracia, das discussões políticas. Ao invés disso, porém, foram outros os percursos narrativos utilizados, tomando como fio condutor a questão da corrupção, em contraposição à imagem da acrópole, como centro político da pólis, e de sua vigilância. Às imagens das ruínas da acrópole seguiram-se outras, do cotidiano da capital da Grécia, e uma narrativa em off que atuava a partir da quebra de expectativa “Mas cá de

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baixo, no sopé do mesmo monte, está um monumento emblemática da Grécia moderna, a casa do ex-ministro da defesa, comprada com o dinheiro dos subornos, do negócio dos submarinos”(SANTOS, 2015). Na sequência do texto o repórter, que foi diretor de informação da RTP entre 2002 e 2004, acrescenta que a marca visível da grande corrupção na Grécia não se converteu em mudanças ou justiça efetiva. Tomando como fonte o responsável por uma organização não governamental comprometida com a busca por transparência, o repórter traduz a fala do entrevistado que questiona o fato de que os escândalos de corrupção tem sido divulgados fora do país, na Alemanha, no caso dos submarinos, ainda segundo a locução em off. A tese central da reportagem tomada como objeto de análise, e do foco da cobertura como um todo, é enunciado em seguida, sob imagens de cidadãos andando nas ruas de Atenas: A grande corrupção anda de mãos dadas com a pequena corrupção, generalizada na Grécia. Por exemplo, muitos dos gregos que passam a pé diante da casa do ministro da defesa são paralíticos...ou melhor, subornaram um médico para obterem uma certidão fraudulenta de deficiência que lhes permite receberem mais um subsídiozinho. (SANTOS, 2005).

As imagens seguintes, de cenários paradisíacos, casadas com uma trilha sonora de músicas também típicas e/ou turísticas, realiza outra quebra, ou ruptura narrativa, o que acaba por reforçar o conflito anteriormente enunciado no texto do correspondente. O clima e cenário de sonhos seria potencializado, segundo acrescenta a narração, por um programa oferecido pelo governo grego (Férias para os pobres), que assumiria os custos de diárias de uma semana em hotéis de três ou quatro estrelas. “A questão é saber quem paga isso tudo...”, questiona o repórter, em off, para em seguida responder, com uma negativa: “se pensa que são os gregos, resposta errada!”. A matéria prossegue anunciando os altos índices de evasão fiscal, explicitado pela informação de que dois em cada três gregos não pagariam os impostos que devem. “Como a maioria dos gregos faz declarações fraudulentas, o fisco decidiu tributar as casas com piscina”; mas o desenrolar da matéria aponta outras estratégias de burla que seriam utilizadas pelos cidadãos gregos (apenas 300 de 17 mil proprietários de casas com piscina teriam declarado possuir uma). Duas entrevistas, também enunciadas por meio da tradução/ locução do repórter buscam interpretar a situação: um tratador de piscinas, que considera a tentativa de enganar o governo como traço cultural dos gregos, e uma fonte que representa os proprietários de imóveis, que em princípio discorda do número de sonegações antes suposto, mas assume que seria da natureza humana buscar pagar menos impostos. Para evidenciar que os gregos seriam o povo da zona euro que mais foge aos impostos, o repórter grava uma passagem em que aparece ao lado de uma piscina coberta, opção utilizada para ocultar os bens do fisco, e sonegar. Os gregos inventam mil e uma estrategemas para não pagar os impostos. E assim a pergunta é: se não são os contribuintes quem paga o ambicioso Estado social, e também a pequena e grande corrupção, quem é que paga? A resposta é...os empréstimos. Foi assim que a Grécia acabou com uma dívida de mais de 400 mil milhões de euros, mais do que o dobro da dívida portuguesa.

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Em seguida o repórter faz sua assinatura no vídeo e termina a matéria. O apresentador ou pivô, em estúdio, enuncia como em uma síntese, que esse seria o retrato da Grécia atual, para em seguida chamar José Rodrigues dos Santos em uma entrada ao vivo, em direto. À luz da dramaturgia do telejornalismo, é interessante observar a atuação do repórter2 como detetive, modelo proposto por Campbell (1991) ao analisar as fórmulas de narração no programa 60 minutes, da emissora americana CBS. Formulando perguntas e enunciando as respostas, que tem como base a austeridade como pressuposto para o sucesso europeu, o correspondente da RTP apresenta a Grécia pré-eleições a partir de parâmetros estereotipados. Os gregos, e o governo são enunciados como vilões quase inconsequentes, mas sem rosto definido, ocultado pelas generalizações e pela impossibilidade de enunciar sua voz. Mesmo as fontes entrevistadas, tem sua narrativa inserida apenas como som de fundo, já que o primeiro plano é ocupado pela síntese da entrevista na locução do repórter. Sobre a locução, merece ainda registro os tons e expressões irônicas que o áudio adquire em diferentes momentos. À luz do pluralismo político, um dos aspectos objeto de avaliação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a peça já reuniria uma série de questões a serem problematizadas. Porém, nos limites da reflexão proposta nesse artigo, interessa destacar as marcas do discurso de senso comum e da estereotipia na narrativa audiovisual, um retrato bastante impressionista da Grécia. Outro aspecto que merece o registro, foi a capacidade de articulação de posições, de circulação de discursos a partir de sua veiculação. Por meio de comentários na web, de posicionamentos políticos em programa de debates transmitido pela RTP2, de vídeos (re)editados e inseridos nas redes sociais, e mesmo da cobertura da mídia impressa, a recirculação midiática gerada por essa cobertura suscita reflexões sobre o lugar e função do telejornalismo público, sobretudo no que refere-se à cobertura internacional. E, se na emissora portuguesa o conflito narrado pareceu ser entre o correto e o desviante, escalação assumida pelos 2/3 dos gregos que sonegariam impostos, na cobertura da TV Brasil a reportagem da correspondente Giselle Garcia apresenta as promessas do novo primeiro ministro grego, de acabar com a austeridade. A repórter informa que é a primeira vez que o partido de esquerda Syriza vence as eleições; a maioria absoluta nas votações seria obtida com uma parceria anunciada com uma legenda de direita, mas que também combateria a austeridade. A narração em off apresenta a visão do primeiro ministro eleito, que anuncia o final do que seria um período de humilhação para os gregos. À essa avaliação a repórter associa dados relativos ao aumento do desemprego na Grécia, e a perda dos direitos sociais, esta exigência da Troika. “A eleição de Tsipras deu esperança ao povo grego, e gerou apreensão no mercado financeiro. Há temor de que a falta de acordo provoque a saída da Grécia da zona do euro” (GARCIA, 2015). Diferente do correspondente da RTP, a enviada pela TV Brasil faz sua reportagem a partir de Copenhague, onde foi realizada uma reunião com responsáveis financeiros da zona euro. Em uma passagem, gravada na capital dinamarquesa, a repórter da TV 2.  José Rodrigues dos Santos é um dos escritores que mais livros vendem em Portugal e está à beira de alcançar a impressionante marca dos dois milhões de exemplares, segundo sua editora, a Gradiva. Suas obras de ficção associam narrativa de investigação, com referências a pesquisas e documentos, e a lógica da descoberta, do desvelamento.

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Brasil acrescenta que haveria a possibilidade da vitória de um partido de esquerda ter impacto nas eleições de países que vivem os mesmos problemas de crise financeira, de crise do estado de bem-estar. Entre eles a repórter aponta o caso espanhol, no qual o partido Podemos, desponta como favorito nas futuras eleições. A matéria é encerrada com o responsável por esse partido de oposição, dizendo que é hora da mudança acontecer também na Espanha. Para problematizar o resultado das eleições na Grécia o Repórter Brasil convoca dois comentaristas, que participam a partir do lugar, papel, de especialistas: Emir Sader e Luís Nassif. O cientista político Emir Sader é o primeiro a falar e contextualiza o projeto de construção da União Européia como um projeto entre os partidos conservadores e a social democracia, deixando excluídos os demais partidos, que criticariam o modelo de austeridade. Em seguida Luís Nassif é questionado sobre os impactos econômicos da eleição da Grécia. Em sua resposta o comentarista anuncia a possibilidade de ruptura com um modelo que já teria falido, em sua avaliação. Na sua análise Nassif ainda faz referência ao Financial Times que teria buscado as referências de Evo Morales e Lula para tentar mapear o comportamento do novo primeiro ministro grego, comportamento de ruptura ou de negociação segundo a tradução do comentarista da TV Brasil, que sentencia: “A Grécia não tem mais o que perder; o que ela perdeu nos últimos cinco anos foi um estupro” (TV BRASIL, 2015). Ainda por meio do diálogo com os especialistas, os apresentadores do Repórter Brasil, tentam avaliar o impacto do resultado das eleições gregas nos demais países da Europa, e de Portugal em particular. Na avaliação de Emir Sader, uma possível flexibilização beneficiaria países que hoje sofrem com os ajustes, citando nominalmente Itália, França, e Portugal. Outra possibilidade de que as eleições gregas se alastrassem seria por ruptura mais direta com o modelo, caso que poderia ocorrer na Espanha, segundo o comentarista, para quem todos esses países mencionados seriam “vítimas dessa política de austeridade”. A síntese cabe a Luís Nassif que vê perspectivas positivas para a Grécia, na medida em que a flexibilização seria necessária para manter o projeto da União Européia.

DAS TELAS PARA DISCUSSÕES PÚBLICAS: RECIRCULAÇÃO MIDIÁTICA DE UMA COBERTURA Da televisão aberta para os canais por assinatura, ou de televisão fechada, caso da RTP Informação, para as redes sociais, via comentários de texto ou mesmo re-edições em formato de parodia da cobertura da emissora pública portuguesa. A matéria veiculada na edição de 24 de janeiro do Telejornal gerou uma intensa recirculação midiática no final de janeiro de 2015. Em outro canal, também gerido pela empresa de serviço público de rádio e TV, um depoimento de um parlamentar do bloco de esquerda, e o posterior tensionamento com a jornalista responsável pelo programa da RTP Informação acenava com a possibilidade de debate da televisão também via telinha, ainda que de um canal por assinatura. Veiculado logo após o discurso do primeiro-ministro eleito, em 25 de janeiro de 2015, o programa de debate Eleições na Grécia evidenciou críticas à cobertura da RTP1, enunciadas pelo professor de Política Internacional da Universidade de Coimbra, José Manuel Pureza.

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Telejornalismo, serviço e debate públicos: as dimensões da crítica e do enfrentamento na cobertura das eleições gregas pela RTP e pela TV Brasil Iluska Coutinho

Nós estamos aqui a cumprir uma missão de serviço público (...) infelizmente na cobertura da campanha eleitoral da Grécia isso não aconteceu. E eu quero dizer isso com toda a clareza, aqui na RTP (...) Creio que houve uma cobertura que passou por momentos de grande infelicidade, para utilizar as palavras mais brandas que eu consigo (PUREZA, 2015).

A avaliação crítica no comentarista, parlamentar filiado ao BE (Bloco de Esquerda), foi debatida pela jornalista responsável pelo programa, evidenciando um tensionamento entre a crítica formulada, e veiculada na RTP Informação, e uma posição que agora parecia ser editorial da emissora pública e, não mais, exclusiva do correspondente José Rodrigues dos Santos. A partir desse debate, seja por meio da republicação do vídeo, em canais pessoais no rede de compartilhamentos de vídeos you-tube, ou de postagens de textos em outras redes sociais, a cobertura televisiva da RTP passou a ser colocada em questão, e a partir dela a própria concepção sobre o papel do (tele)Jornalismo e do serviço público de televisão. Uma das primeiras republicações, a partir da qual o material em vídeo foi acessado em nosso recorte, foi realizada já na noite da emissão do comentário crítico à cobertura de José Rodrigues dos Santos, com a seguinte descrição: “E eis senão quando, sem pré-aviso algum, José Manuel Pureza refere o que estava no pensamento de muitos telespectadores da RTP1 e da RTP Informação relativamente à cobertura das eleições na Grécia de 25 de janeiro de 2015”. A partir da inserção do vídeo em um canal pessoal, vários comentários foram acrescidos, quer apoiando o parlamentar ou o jornalista. As postagens de maneira geral eram realizadas por um público interessado; mais que isso demonstravam claramente a tomada de partido, seja em relação à eleição grega, à sua cobertura pela RTP e especialmente quanto ao papel do jornalismo, e do serviço público. Entre as manifestações merecem especial registro, no escopo das análise aqui empreendida, aquelas que permitiam refletir de forma mais direta sobre a percepção dos cidadãos acerca do telejornalismo público. Algumas delas anunciavam a estratégia de republicação, em uma lógica própria das (re)circulações em ambientes de compartilhamento, como forma de evidenciar a crítica ou recusa ao jornalismo da RTP: acho que partilhar este video poderá servir para que o maior numero de Pessoas veja o que se está a passar... e adira ao repudio por jornalismo e jornalistas deste calibre...”. Também no facebook o debate sobre a temática envolveu atores envolvidos com o tema, com destaque para estudantes, professores e pesquisadores do Jornalismo. Entre as postagens recortamos uma realizada por um professor e pesquisador do serviço público, vinculado a Universidade do Minho, Luís António Santos: Ficou muito famoso em Portugal, há anos, um brilhante comediante brasileiro, Agildo Ribeiro, com um segmento em que fazia de professor de Mitologia, sendo acompanhado por um assistente a quem chamava ‘múmia paralítica’. O homem do guarda-chuva3 e das piscinas ganhou, por mérito próprio, o direito a usar esse ‘selo’. (SANTOSb, 2015).

3.  Em uma das entradas ao vivo, ou em direto, o repórter José Rodrigues dos Santos segurava um guardachuva para proteger-se do sol, o que explica o comentário irônico.

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Considerando que nessa rede social os contatos são estabelecidos pelas afinidades pessoais ou de interesse profissional ou acadêmico, o que ocorreu com mais frequencia a partir dessa postagem foi a problematização sobre a prática do Jornalismo e/ou de sua experiência no serviço público de televisão. Um desses comentários relacionava a subjetividade nas matérias a uma estratégia de captação de audiência, o que afetaria a qualidade do jornalismo português. A coloquialidade utilizada pelo José Rodrigues dos Santos coloca em causa princípios éticos, que não devem ser extravasados. Na verdade, tratam-se de sarcasmos, humor negro e, inclusive, insultos diretos, o que não deveria ser considerado aceitável”. A postura crítica à cobertura jornalística da RTP foi majoritária nas postagens que integraram o recorte empírico desse estudo, selecionadas a partir de busca pelas seguintes palavras-chave: RTP, Eleições Grécia, José Rodrigues. Apesar disso, esse posicionamento também tinha contrapontos, com internautas que defendiam o trabalho do correspondente da emissora portuguesa de serviço público. “Ando a ler por aí umas reações exacerbadas a umas verdades que o José Rodrigues dos Santos, que pelos vistos foi enviado pela RTP à Grécia, terá dito sobre a corrupção grega, reconhecidamente uma prática transversal na sociedade helénica... Continua, José Rodrigues dos Santos!”, anunciava uma das postagens. Das redes de compartilhamentos de comentários e vídeos4, incluindo postagens na própria página da RTP, a polêmica sobre a cobertura das eleições gregas pela emissora do serviço público de televisão chegou aos periódicos impressos. Convertida em fonte, a direção da RTP afirmou apoiar o trabalho do jornalista José Rodrigues dos Santos, que também teve direito à voz sobre sua atuação no caso. A posição do correspondente é explicitada em matéria publicada no jornal impresso Diário de Notícias. “Foi dito alguma coisa que é falsa? Ou só se podem dizer coisas com que os políticos concordem?(...)Há quem não goste que se fale do ex-ministro da Defesa preso por corrupção no negócios dos submarinos. Azar, porque eu falo” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS). O portal Sapo, por sua vez, deu espaço ao diretor de informação da RTP: Contactada, a direcção de informação da RTP defende o trabalho que considera ter sido “profissional e de qualidade”. O director de informação da televisão pública, José Manuel Portugal, afirma “absoluta confiança nos enviados especiais da RTP”. “Quando um enviado especial está uma semana no terreno, a avaliação tem de ser feita em conjunto. Foi um retrato bastante interessante”, argumenta o director de informação. Questionado, José Manuel Portugal subscreve o jornalista contra os críticos: “Se conhecessem a Grécia, percebiam que não inventou nada. É uma escolha feita por um repórter experimentadíssimo”. (SAPO.PT, 2015).

Da recirculação midiática ao espaço do público, cidadão, na própria RTP, o caso também foi objeto de matéria veiculada no programa do Provedor do Telespectador, 4.  Entre essas postagens em vídeo, com recriação ou crítica, em geral pelo viés do humor, duas merecem destaque. No canal Guilhotina.info temos uma inserção intitulada “José Rodrigues dos Santos na Grécia e os paralíticos do subsídio”, postada em 31 de janeiro, com 3.973 visualizações e 53 curtidas. Outra postagem, essa do canal TV em directo, “Os 10 Mandamentos do Jornalismo segundo José Rodrigues dos Santos”, anuncia-se como uma Sátira à cobertura televisiva das eleições legislativas gregas de 2015 realizada pelo jornalista José Rodrigues dos Santos para a RTP, teve 14.435 visualizações até a finalização desse texto, em 21/03/2015.

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veiculado aos sábados na RTP1. Com a edição de alguns trechos polêmicos da reportagem de José Rodrigues dos Santos, o material veiculado no programa “A Voz do Cidadão” insere ainda depoimentos de telespectadores, que acionaram seu provedor por discordarem do enfoque editorial assumido. Há ainda espaço para o correspondente José Rodrigues dos Santos. Os depoimentos são alternados e a síntese final cabe ao provedor José Manuel Paquete de Oliveira, que acaba por endossar a posição da emissora, em defesa da equipe de reportagem enviada à Grécia. Assim, naquele espaço televisivo, a voz do telespectador acaba editada, e a fala da emissora ganha status de verdade, na medida em que o programa do provedor aproxima-se de uma narrativa institucional da RTP, e distancia-se do cidadão, reclamante.

PARA PENSAR O SERVIÇO PÚBLICO: EM BUSCA DE CONCLUSÕES PROVISÓRIAS A prática do jornalismo em emissoras de televisão é alvo constante de críticas, quanto à sua superficialidade, excessiva simplificação ou dependência de modelos nos quais haveria um predomínio da dimensão narrativa ou sensorial em detrimento da exposição de argumentos racionais. Essas críticas em geral são relacionadas aos limites para a prática do jornalismo em um veículo que seria ordenado pelo imperativo do tempo, da demanda por audiência. Nesse sentido as emissoras públicas de televisão seriam o espaço para a prática de um jornalismo audiovisual que tivesse como diferencial o aprofundamento, o investimento nos elementos contextuais da notícia, o privilégio a pluralidade. Das promessas para as práticas, à despeito ao lugar ocupado pelas produções telejornalísticas da BBC no imaginário social, a realidade do telejornalismo público em países como Brasil e Portugal é marcada por desafios, entre eles o de conquista de legitimidade junto ao cidadão. No Brasil, onde a rede de televisão pública ainda não possui uma década de existência, a prática do telejornalismo público ainda é muito marcada pela dimensão educativa, na qual a voz dos especialistas assume protagonismo. Já em Portugal, país em que a televisão de serviço público teve o monopólio do mercado audiovisual por quase 30 anos, os tensionamentos são diversos, mas também envolvem a necessidade de (re)conhecimento por parte do público acerca de seu papel. Assim, ainda que em princípio os debates suscitados acerca da cobertura realizada pelo enviado especial José Rodrigues dos Santos coloquem em cheque a qualidade do jornalismo oferecido pela RTP, eles também sinalizam uma efetiva apropriação deste pelo público telespectador. Não por acaso estudos realizados pelo Obercom já registraram a preferência dos portugueses pelo serviço público de televisão, como também indicam os índices de audiência da programação jornalística. E isso ocorre, também, quando os telespectadores se convertem em debatedores da televisão pública em diferentes suportes, como as redes sociais, propondo diferentes enfoques e recirculações midiáticas. Por meio do contraste com realidades internacionais, que podem aproximar ou distanciar o outro, abrindo espaço para o exercício da diferença, da cidadania, as emissoras públicas poderiam assim constituir-se como instância de debate, e estímulo a autonomia do cidadão, em busca de uma televisão que possa efetivamente ser sua.

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A qualidade em emissoras públicas e comerciais The quality in public and comercial broadcasters J o s é Ta r c í s i o

da

S i lva O l i v e i r a F i l h o 1

Resumo: É unânime entre os teóricos de telejornalismo que critérios e indicadores de qualidade devem guiar a programação das emissoras. Nesta perspectiva vários trabalhos buscam definir a qualidade que deveria servir de referência para os veículos de comunicação do Brasil, não só na mídia comercial, mas também na pública. Este artigo tem o objeto de discutir quatro contribuições elaboradas por acadêmicos para área. São abordados os estudos de Becker (2005) que indicam a necessidade da promoção da diversidade nas emissoras, Gomes (2006) que faz referência à relação de gêneros e modos de endereçamento, Bucci, Fiorini e Chiaretti (2012) com a formulação de 188 indicadores para a radiofusão pública que incluem critérios relacionados a gestão, independência e conteúdo e Coutinho (2013), também com foco no telejornalismo em emissoras públicas, e que apresenta conceitos voltados para a pluralidade. A discussão é realizada através de um levantamento bibliográfica e os resultados mostram que os autores relacionam o conceito de qualidade às questões ligadas a promoção da democracia, diversidade e pluralidade de vozes. Palavras-Chave: Qualidade. Telejornalismo. Indicadores. TV Pública. Academia

Abstract: It is unanimous among theorists television news that the parameters and quality indicators should guide the programming of television stations. In this perspective, several studies seek to define the quality that should serve as a reference for Brazil’s communication vehicles, not only in the commercial media, but also in public. This article aims to discuss four contributions prepared by academics to area. Becker (2005) studies show that need diversity in the broadcast, Gomes (2006) refers to the relationship of genres and addressing mode, Bucci, Fiorini and Chiaretti (2012) formulate 188 indicators to public broadcasting with include criteria related to management, independence and content and Coutinho (2013), also focusing on TV journalism in public television, and presents concepts for plurality. The discussion is conducted through a literature survey and the results show that the authors relate the concept of quality issues arising from the promotion of democracy, diversity and plurality of voices. Keywords: Quality. TV Journalism. Indicators. Public TV. Academy.

INTRODUÇÃO DISCUSSÃO SOBRE a qualidade possui várias vertentes. Da gestão da emissora ao

A

conteúdo, repassando por questões técnicas e empregatícias, o conceito se torna abrangente e objeto de estudo de muitos pesquisadores – que através de linhas

1.  Mestrando em Comunicação pelo Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]

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A qualidade em emissoras públicas e comerciais José Tarcísio da Silva Oliveira Filho

teóricas e práticas, consolidam suas percepções do que seria o ideal na programação televisiva. Apesar da dificuldade de consolidar um pensamento único sobre a qualidade, este trabalho busca realizar uma discussão acerca de trabalhos considerados referências para a abordagem da qualidade em telejornais produzidos no Brasil. Apesar da difícil seleção dos autores, consideramos um ponto de partida para este processo a proposta de Borges (2014) que, além de assumir a complexidade da qualidade, também afirma que “o discurso sobre a qualidade da organização do sistema televisivo está particularmente relacionado com o conjunto de leis, regulamentos, diretrizes, tipos de serviços oferecidos, práticas de programação e de produção, entre outros, de um determinado país” (Borges, 2014, p.26). Neste contexto, consideramos pesquisas que envolvam aspectos sociais e perspectivas construtivistas da notícia na elaboração da qualidade telejornalística. Outro ponto importante é que o conceito muitas vezes é vinculado as práticas de emissoras comerciais - devido até mesmo a origem do telejornalismo no Brasil. Entre elas, podemos ressaltar a valorização de índices de audiência. Essa constatação pode ser vista cotidianamente nas propostas e conteúdo de alguns canais “líderes em audiência” no país, a maioria com influência histórica do modelo comercial norte-americano de se fazer TV. Portanto, pensar a qualidade também deve considerar a comunicação em suas diversas vertentes, incluindo neste cenário, as emissoras públicas, que no caso do Brasil, ganharam força em 2007 com a implantação da TV Brasil, gerida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Alguns estudos, como os realizados por Aguiar (2012), demonstram a importância deste marco para uma TV mais democrática, orientada por critérios de qualidade diferenciados. Considerando estes preceitos, propõe-se uma discussão acerca de quatro trabalhos dedicados a análise da qualidade: os estudos de Becker (2005) que indicam a necessidade da promoção da diversidade nas emissoras; Gomes (2006) que faz referência à relação de gêneros e modos de endereçamento; Bucci, Fiorini e Chiaretti (2012) com a formulação de 188 indicadores para a radiofusão pública e Coutinho (2013), também com foco no telejornalismo em emissoras públicas. Assim, buscamos apresentar as aproximações e distanciamentos entre as pesquisas, de forma que se possa observar quais os parâmetros considerados essenciais para a promoção da qualidade na televisão brasileira.

A QUALIDADE EM SUAS VÁRIAS FORMAS Gomes (2006) em seu trabalho “Telejornalismo de qualidade – Pressupostos teórico-metodológicos para análise” levanta critérios para avaliação da qualidade no telejornalismo em consideração aos aspectos sociais, ideológicos e culturais. A pesquisadora faz um panorama acerca dos estudos sobre o conceito no Brasil, afirmado que quatro pilares fazem parte deste processo: a “desregulamentação e concentração da propriedade dos canais de TV por fortes grupos político/econômicos e/ou familiares; a função social do jornalismo; a popularização da audiência; e a qualidade técnica, em especial qualidade de imagem e som” (GOMES, 2006, p.3). Ainda na formulação de parâmetros para a criação dos pressupostos de avaliação da qualidade, Gomes (2006) articula três macro-categorias: o jornalismo, a televisão e a recepção televisiva. Na perspectiva dos “cultural studies”, a professora da Universidade

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Federal da Bahia define o telejornalismo como uma construção social. Assim, seu desenvolvimento acontece “numa formação econômica, social, cultural particular e cumpre funções fundamentais nessa formação” (GOMES, 2006, p.4). Neste contexto, considera-se que o jornalismo televisivo brasileiro é oriundo do modelo ocidental, com influência no modelo de jornalismo independente norte americano. E pensá-lo como instituição social, representa: [...] trazer em causa a relação entre jornalismo e a noção habermasiana de esfera pública, com suas implicações sobre a noção de debate público e vigilância pública; a perspectiva liberal sobre o papel democrático da mídia; a noção de quarto poder, em que está implícita a autonomia da impressa em relação ao governo, o direito à liberdade de expressão e o compromisso com o interesse público; o caráter público ou privado da empresa jornalística; e se relaciona com um dos eixos de discussão sobre qualidade no telejornalismo inicialmente indicado, a questão da desregulamentação e concentração da propriedade dos canais de TV. (GOMES, 2006, p.5)

Entretanto, há de se ressaltar que essas considerações devem ser analisadas de acordo com o “contexto profissional e cultural em que a prática jornalística acontece” (GOMES, 2006, p.5). Apesar dessa cautela, podemos considerar que vários tópicos abordados por Gomes (2006) fazem parte do debate atual sobre a qualidade do telejornalismo brasileiro. A questão da regulamentação midiática, que se tornou uma das principais propostas da esquerda e do governo durante as eleições de 2014, o discurso sobre a liberdade de expressão, frequentemente utilizado pela grande mídia comercial, e a permanente reflexão acerca do caráter público e privado, principalmente em relação as atividades dos veículos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que ainda vive um processo de legitimação de seu modelo público. Nesta perspectiva, também se formam conceitos largamente utilizados pela prática jornalística, e presentes como orientadores dos profissionais nos manuais e princípios editoriais de grandes empresas jornalísticas, como é o caso da imparcialidade e objetividade (Gomes, 2006, p.5). Assim, a autora deixa claro que sua concepção sobre a notícia é contrária à que descreve a teoria do espelho – em sua clássica definição de espelho fiel dos fatos -, mas sim, como uma construção. Numa discussão sobre o fazer jornalístico, utilizando como parâmetro os trabalhos desenvolvidos pelo professor da Universidade Federal do Sergipe, Josenildo Guerra (2003), Gomes (2006), demonstra através da análise dos conceitos de circunstâncias do fazer2 e de como fazer3, que o fazer possível do jornalismo “é o modo como o jornalismo se configura como instituição social de certo tipo, numa dada sociedade, que regula o julgamento sobre a sua qualidade” (GOMES, 2006, p.6). Assim, demonstra-se também que as técnicas cognitivas do jornalista também fazem parte de seu relacionamento com o conhecimento que será utilizado para compor a notícia. Portanto, conceitua-se os valores notícia como a expectativa da sociedade e a responsabilidade social do jornalismo.

2.  Circunstâncias do fazer é entendido como as “condições empíricas nas quais o jornalismo se realiza e diz respeito aos constrangimentos econômicos, políticos, técnicos, sociais” (Gomes, 2006, p.22) 3.  Como fazer é relacionada a apuração, a todo o processo para que a notícia seja produzida.

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Entre os primeiros conceitos de qualidade citados, ainda orientados pelo estudo de Guerra (2003), Gomes (2006) cita as noções de verdade e relevância. O primeiro se refere a correspondência da informação com a realidade, e o segundo, a sua importância na editoria coberta. A ligação destes dois conceitos ao de qualidade é justificada pela sustentação da confiança da sociedade com o jornalismo – e que será discutido posteriormente pela autora através de um outro conceito, chamado de “modo de endereçamento”. A linha construtivista também é utilizada na discussão sobre os valores notícias, considerados “socialmente construídos e devem ser analisados em referência à específica formação econômica, social, cultural em que ocorrem” (GOMES, 2006, p.8). Através de um relacionamento com as propostas de Raymond Williams (1997), numa percepção da notícia como gênero discursivo, mostra-se que os apresentadores, a organização das editorias/notícias (geralmente linear nos veículos norte-americanos e até mesmo nos que derivam deste modelo, como os brasileiros) e a imagem, são características importantes da apresentação das notícias na TV. Em relação a forma de análise da estrutura da notícia, uma das grandes problemáticas em relação a análise da qualidade, recorre-se aos estudos de Klaus Bruhn Jensen (1986), que considera que deve ser feita em três níveis: a sequência total dos textos (no telejornal, no nosso caso), no texto individual (como exemplo, a configuração clássica do lead e pirâmide invertida) e nos elementos sub-textuais (como a objetividade, imparcialidade e clareza). Cada um desses níveis caracterizaria como sendo o gênero. Ainda neste contexto, uma outra contribuição de Gomes (2006) é acerca da concepção de gênero televisivo ou midiático, focado numa estratégia de interação. O principal objetivo da autora é ir além da dicotomia entre análise do produto de TV e dos contextos sociais de sua produção/recepção (Gomes, 2006, p.14). Colocar a atenção nos gêneros televisivos implica reconhecer que o repórter orienta sua interação com o programa e com o meio de comunicação de acordo com as expectativas geradas pelo próprio reconhecimento do gênero [...] Os gêneros são formas reconhecidas socialmente a partir das quais se classifica um produto midiático. Em geral, os programas individualmente pertencem a um gênero particular, como a ficção seriada ou o programa jornalístico, na TV, e é a partir desse gênero que ele é socialmente reconhecido (GOMES, 2006, p.14-15).

Nesta conceituação, os telejornais são considerados subgêneros do gênero programa jornalístico televisivo e sua abordagem deve considerar a forma como constrói e representa a cultura. Assim, insere-se o conceito de modo de endereçamento, como sendo a forma “como um determinado programa se relaciona com sua audiência a partir da construção de um estilo, que o identifica e que o diferencia dos demais” (GOMES, 2006, p. 16). Alguns autores citam que essa construção levaria em conta aspectos sociais, ideológicos e textuais. Aqui, portanto, adotamos o conceito de modo de endereçamento naquilo que ele nos diz, duplamente, da orientação de um programa para o seu receptor e de um modo de dizer específico; da relação de interdependência entre emissores e receptores na construção do sentido de um produto televisivo e do seu estilo. Nessa perspectiva, o conceito de modo

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de endereçamento se refere ao modo como um determinado programa se relaciona com sua audiência a partir da construção de um estilo, que o identifica e que o diferencia dos demais. (GOMES, 2006, p.17)

Portanto, como parte da discussão, exemplifica-se que a produção da notícia não deve considerar apenas o acontecimento, mas também o público para quem se constrói a notícia. Gomes (2006) conclui que para avaliar a qualidade no telejornalismo o modo de endereçamento deve ser explorado através de “como o endereçamento de um determinado programa é construído, a partir de quais elementos, de quais estratégias” (GOMES, 2006, p.18). A articulação deste conceito com o de gênero televisivo seria uma das formas de analisar a qualidade de programas jornalísticos de TV, já que permite a aproximação texto/contexto, contribuindo assim, para vincular os programas ao contexto social. Esta perspectiva, que possui uma justificava semelhante a de outros autores que trabalham com a qualidade, evita o julgamento do gosto popular sem que haja em consideração “as estruturas dos sistemas econômicos e culturais e sem considerar as consequências das desigualdades históricas, econômicas e culturais de cada sociedade” (GOMES, 2006, p.19). Apesar da relação de gênero e modo de endereçamento ser apontado como principal ferramenta de análise da qualidade, também há operadores desenvolvidos no âmbito do Grupo de Pesquisa de Análise de Telejornalismo (UFBA) que podem auxiliar na avaliação de telejornais. Entre eles, destacamos o pacto sobre o papel do jornalismo, contexto comunicativo, mediadores, recursos da linguagem televisiva, formatos de apresentação da notícia, texto verbal e recursos técnicos a serviço do jornalismo. Em sua abordagem sobre a qualidade, Beatriz Becker (2005) apresenta pontos convergentes ao trabalho de Gomes (2006). O estudo apresentado em “Telejornalismo de qualidade: um conceito em construção” foi realizado a partir das mudanças editoriais no Jornal Nacional – telejornal com maior audiência e mais antigo ainda em veiculação no Brasil. Uma primeira discussão é realizada através do valor das informações jornalísticas televisuais. Mudanças históricas, relacionadas a política e tecnologia são evidenciadas como responsáveis pela mudança também na forma de fazer a comunicação. Ressaltamos ainda que esses critérios foram intensificados desde a publicação do artigo em 2005, até os dias atuais. Becker (2005, p. 52), diz que nem sempre a velocidade de desenvolvimento da tecnologia está em sincronia com os avanços dos valores institucionais e dos sistemas políticos e econômicos. Entretanto, a implantação de políticas de proteção de dados, ocasionaria limites à diversidade da informação televisiva audiovisual. Assim, “os discursos são redundantes e previsíveis; os repertórios de imagens e textos eletrônicos os quais temos acesso são bastante homogêneos, em função do controle de distribuição de mensagens e produtos audiovisuais, do poder das agências de notícias [...]” (BECKER, 2005, p.52). Entre outros entraves, são citados que o aumento da quantidade de canais e da veiculação de notícias não garante, necessariamente, conteúdos de maior qualidade e que o compromisso ético dos profissionais envolvidos na produção de informação esbarra nos interesses dos empresários da mídia. Para a autora, “nos discursos midiáticos e também na programação das redes, os telejornais vendem credibilidade e atraem investimentos” (BECKER, 2005, p.54), afirmando ainda que:

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Os serviços da indústria da comunicação, a regulação da mídia e as novas tecnologias de informação, deveriam atender prioritariamente ao interesse público, privilegiando o conhecimento e não apenas o mercado. Se os cidadãos não têm acesso à diversidade de opiniões e interpretações, o dilema da democracia não tem solução. (BECKER, 2005, p.54)

Apesar de citar o interesse público, a autora não explica qual a sua definição sobre o conceito – que é abrangente e possui múltiplas interpretações de acordo com diversas correntes teóricas. Entretanto, percebe-se o desvinculo dele com os interesses mercadológicos e a aproximação com a diversidade de opiniões e interpretações. É notável que a linha de condução de Becker (2005) é paralela a de Gomes (2006) no sentindo que ambas consideram o modelo de telejornalismo de uma emissora/país como uma construção social. Becker (2005, p.55) afirma que cada edição é uma versão da realidade social cotidiana e que não deveríamos acreditar em tudo que os noticiários nos contam, até porque criam um mundo, e não mundo. Por isso é interessante, neste campo de investigação, perceber como estes discursos se constroem, se estruturam, produzem significações, até mesmo para denunciar ou relativizar seus poderes; e não exatamente discutir se são verdadeiros ou falsos. (BECKER, 2005, p.55)

Através dos estudos de Omar Rincón (2004), a professora da UFRJ ressalta que “a televisão de qualidade é aquela que se torna parte da conversação pública cotidiana”. (BECKER, 2005, p.56). Portanto, para que atingisse esse compromisso de interligar as pessoas, deveria estar contextualizada na vida cotidiana e produzir programas inovadores, universais e ousados. A diversidade é colocada como parte de um eixo importante para a promoção da qualidade, sendo que [...] uma produção televisiva de qualidade quebra determinadas regras discursivas e temáticas, transformando e misturando gêneros, inserindo novos pontos de vista nos fatos noticiados e ampliando a quantidade de e os diferentes tipos de personagens na construção de um drama ou de uma série (BECKER, 2005, p.57)

Diante da necessidade de se aprofundar melhor em relação não só a diversidade, mas também na forma de avaliar a produção jornalística, BECKER (2005, p.58) resgata o estudo que traz dez categorias4 para análise. Como forma de aperfeiçoar a verificação, a autora acrescenta alguns recortes para aplicar a metodologia. O primeiro é a definição de um tema que permita a construção discursiva sobre a realidade; o segundo é representado pelo material bibliográfico e audiovisual a ser trabalhado. Esses dois procedimentos, aliados a categorização citada anteriormente, forneceria uma orientação para a análise do conteúdo jornalístico audiovisual, permitindo identificar a diversidade e a qualidade das notícias transmitidas. Em suas conclusões, BECKER (2005, p.63) traz algumas lições que foram extraídas através da análise do Jornal Nacional, da Rede Globo e que contribuiriam para a formulação do conceito de telejornalismo de qualidade. Elas consideram que na pauta, deve-se priorizar o interesse público em relação a agenda oficial, evitando a dependência 4.  As categorias são: 1) A estrutura; 2) Os blocos: construção e distribuição; 3) O ritmo; 4) Os apresentadores; 5) Os repórteres; 6) As matérias; 7) As entrevistas e os depoimentos; 8) Campos temáticos: as editorias; 9) A credibilidade; 10) Recursos gráficos e cenários.

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política e multiplicando as fontes. A reinvenção da forma de contar os fatos faz parte das mudanças propostas para a apuração e a construção das notícias. A polifonia de vozes é citada e há também presença da necessidade de imagens diferenciadas através de “movimentos de câmera e planos singulares e inusitados, na captação de imagens” (BECKER, 2005, p.63). É interessante notar que, apesar de citar este último critério, tanto Gomes (2006) quanto Becker (2006) não concedem grande ênfase em seus estudos sobre a questão técnica no fazer jornalístico. Em relação a edição, Becker (2005, p.63) cita a necessidade de explorar melhor a relação texto-imagem, de forma que produza olhares diferenciados sobre a realidade social. “A imagem nos telejornais tem maior poder de descrição dos acontecimentos, mas a qualificação sempre cabe ao texto verbal” (BECKER, 2005, p.63). Assim, a edição deveria também ousar, através da criatividade e do experimentalismo, de forma que gere conduções criativas.

A qualidade em emissoras públicas Com a criação da TV Brasil em 2007, considerada um passo importante para a consolidação de uma TV Pública nacional, intensificaram os estudos voltados para este modelo de radiofusão. Um dos trabalhos que é referência na área é o desenvolvido por Bucci, Chiaretti e Fiorini (2012) como parte da série Debates CI da Organização das Nações Unidas para a educação, a Ciência e a Cultura. O texto consiste numa discussão acerca dos critérios de qualidade para emissoras públicas e a proposta de 188 indicadores para verificação do conceito em várias áreas. Numa perspectiva além das discutidas por Gomes (2006) e Becker (2005), os autores estendem a análise da qualidade a partir da gestão. A justificativa é dada pela necessidade de prestar a sociedade a clareza de missão pública e “para que essa missão seja realmente clara, e realmente pública, ela deve ser gerida por meio de procedimentos legítimos, legais e transparentes para que possam ser fiscalizados pela cidadania” (Bucci, Chiaretti e Fiorini, 2012, p.20). A justificativa utilizada é que a qualidade de conteúdo provém da qualidade de gestão e da garantia de independência. Uma aproximação com o trabalho de Gomes (2006) acontece quando se considera as relações existentes além da emissora, incluindo, portanto, a configuração social. Portanto, coloca-se como condição para aqueles que se debruçam no estudo da qualidade considerar as especificidades locais, históricas, momentâneas ou permanentes, conjunturais ou estruturais (Bucci, Chiaretti e Fiorini, 2012, p. 11). A citação é vista como uma ressalva acerca de que não existem critérios universais de qualidades e a formulação de qualquer indicador deve ser adaptada para as particularidades sociais e empresariais. A independência é discutida em diversas formas. Afirma-se que “quanto mais independente uma emissora, mais preparada para a qualidade ela está” (Bucci, Chiaretti e Fiorini, 2012, p.13). Dois fatores são citados como essenciais. O primeiro é a independência em relação ao governo, que não deve interferir em seu conteúdo. O segundo, sobre os princípios mercadológicos, que também são enfatizados. A dependência deste poderia comprometer o papel de mediar os debates entre os cidadãos – de onde, segundo os autores, poderia surgir soluções democráticas. Neste aspecto, emerge a importância da criação de órgãos reguladores para evitar a presença excessiva da comunicação

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vinculada unicamente ao lucro. “A radiofusão deve levar informação e cultura à sociedade, ajudando-a no acesso à informação independente, no livre trânsito de ideias e na formação crítica dos cidadãos” (Bucci, Chiaretti e Fiorini, 2012, p.13). A discussão dobre a conceituação da qualidade é realizada a partir da visão de que a “emissora pública existe para garantir um direito que tem a sociedade à informação, à cultura, à expressão de suas diferenças, à tematização de suas carências e potencialidades e à livre comunicação das ideias” (Ibidem, p.13). Percebe-se, portanto, uma forte ligação acerca da qualidade com o cumprimento de premissas democráticas e a TV Pública, por ser diretamente custeada pelos próprios cidadãos, deveria atuar de forma estratégica para a promoção deste ideal. Assim, caracteriza-se o conceito de emissora pública através de três requisitos. O primeiro se refere a natureza pública da propriedade da emissora, que não pode ser propriedade direta de grupos privados (Ibidem, p. 14). Em segundo é a criação de regras que garanta o financiamento da emissora, sem que haja dependência do governo. Por fim, repete-se a independência do mercado, através da afirmação de que “qualquer meio ou produto de radiofusão que precise se adequar a determinações mercadológicas acaba carregando consigo necessidades e estilos que são próprios dessas determinações e que, afinal, impõe cortes, escolhas que vêm de fora da emissora” (Ibidem, p.14). Também há referência acerca do distanciamento do que é produzido por emissoras comerciais. Os pesquisadores afirmam que “a emissora pública é aquela que estimula inovações de linguagens em relação às linguagens empregadas pela comunicação comercial” (Ibidem, p.15). A conceituação de interesse público é definida através do referencial adotado por agências reguladoras europeias e norte americanas. Assim, a independência, garantia de financiamento e transparência seriam condições obrigatórias para a promoção do interesse público. A percepção é complementada através dos estudos de Eric Barandt no livro “Broadcasting Law: a comparative study” que cita seis características que deveriam compor a base de emissoras públicas: abrangência geográfica (acesso universal ao conteúdo); preocupação com a identidade e cultura nacional (e consequente geração do sentimento de pertencimento por parte da população); a independência do estado e de interesses comerciais; a imparcialidade na programação; a diversidade de programação; e o financiamento substancial proveniente de uma taxa paga pelos usuários (Bucci, Chiaretti e Fiorini, 2012, p.16). Em relação a última característica, em alguns países, como na Inglaterra e Portugal os moradores pagam uma taxa periódica para custear a TV Pública nacional. Bucci, Chiaretti e Fiorini (2012, p.17) destacam a dificuldade de instaurar essa cobrança em países onde não há esta prática, como é o caso do Brasil. Entretanto, entre as formas disponíveis para o repasse contínuo sugeridas, está a criação de projetos que contemplem a regularidade da transferência dos recursos a longo prazo por parte do Estado, de forma que eles não sejam modificados por questões políticas. Na elaboração do roteiro para a criação dos indicadores, foram definidos 188 deles, que são representados por perguntas que permitem “medir” se uma emissora se adequa ou não aos indicadores de qualidade elencados. As questões atendem a dez eixos5 e se 5.  Os dez eixos apresentados são: transparência na gestão; diversidade cultural; cobertura geográfica e

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agrupam em dois tipos, os que podem ser respondidos de formas objetivas e os que só podem ser mensurados com precisão através de uma análise de especialistas e críticos independentes. Diante dessas condições, podemos afirmar que o modelo elaborado por Bucci, Chiaretti e Fiorini (2012) é quali-quantitativo, já que os autores sugerem que nas questões enquadradas numa tipologia objetiva, a avaliação seja feita concedendo uma nota de 1 a 5 de acordo com o cumprimento da premissa em questão. De forma a exemplificar os indicadores, expomos alguns que constam na lista: - Há missões específicas por programa? - Os salários dos quadros de dirigentes são de conhecimento público? - A grade reflete a diversidade de identidades – étnicas, religiosas, populares, etárias, de orientação sexual, de preferências estéticas, etc. – que estão presentes na sociedade? - A emissora tem independência na produção de seus programas? - A linguagem dos programas é original ou repete padrões conhecidos? (Bucci, Fiorini e Chiaretti., 2012, p. 26-32)

Ainda no contexto da televisão pública também destaca-se as contribuições de Coutinho (2013) para a qualidade através da análise de diversos programas jornalísticos da TV Brasil, realizada no âmbito no grupo de pesquisa Jornalismo, Imagem e Representação entre 2010 e 2011. A discussão faz um resgate das medidas políticas que conceituaram a TV Pública e seus objetivos. Muitas delas, vão de encontro com as propostas de Bucci, Chiaretti e Fiorini (2012), como a transcrição dos princípios citados pelo então ministro das Comunicações, Franklin Martins, que disse que o modelo deveria ter uma “gestão descentralizada, garantindo a autonomia em relação ao Palácio do Planalto; pelo financiamento que deveria garantir a independência da emissora, com a possibilidade de prestação de serviços, patrocínios e doações” (COUTINHO, 2013, p.24). O direito à comunicação é abordado utilizando como referência a definição do coletivo Intervozes, de forma que os cidadãos consigam expressar suas vozes na mídia. Neste preceito, também se inclui acesso aos meios de produção e veiculação de informações. Portanto, um conceito defendido pela professora da Universidade Federal de Juiz de Fora é o da polifonia, que se entrelaça com a diversidade citada por Becker (2005). [...] a TV Brasil, como emissora de televisão pública deveria possibilitar a difusão de diferentes vozes, imagens e sons, produzidos segundo uma diversidade de princípios editoriais de tal modo que a pluralidade de opiniões e perspectivas fosse construída a partir da experimentação do direito de comunicar em um canal público (COUTINHO, 2013, p.27)

O direito à informação em comunicação em conjunto com o interesse público é considerado por Coutinho (2013, p.28) uma importante diretriz para avaliação da qualidade – e utilizado como parâmetro durante pesquisa realizada pela autora nos programas da TV Brasil. Assim, considera-se que os telejornais devem ter como proposta a promoção de uma melhor compreensão da realidade e contribuir com oferta de conhecimento cotidiano para que incentive a autonomia dos espectadores (Ibidem, p.28). oferta de plataformas; padrão público do jornalismo; independência; pressupostos de independência; a independência na operação da linha da emissora; interação com o público; caráter público do financiamento; grau de satisfação da audiência; experimentação e inovação de linguagem; e padrões técnicos.

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Assim, o Telejornalismo Público também deverá possibilitar o exercício do direito à comunicação pelos espectadores e/ou grupos sociais aos quais estes se vinculam. Isso envolveria a necessidade de maior pluralidade na seleção das fontes, no tempo de fala/argumentação dedicado a elas nas edições dos programas, e ainda em uma maior abertura quanto à forma de sua inserção na narrativa audiovisual (COUTINHO, 2013, p.32)

Também há a defesa de que o telejornalismo público ofereça conteúdo aprofundado, busque o contraditório na construção das narrativas, valorize a pluralidade de vozes e incentive a participação do espectador. A incorporação de temáticas e agendas que não se encontram na mídia comercial deveria ser um norteador nas definições das pautas da emissora pública em conjunto com a presença do debate público nos noticiários (Ibidem, p.31). Outro aspecto evidenciado pela pesquisadora é a necessidade de “preservação da identidade, o cuidado/atenção na representação das diferenças, a recusa à perpetuação de estereótipos, o respeito ao cidadão e à dignidade do ser humanos em diferentes gêneros, sotaques, graus de escolaridade, nível socioeconômico e/ou orientação sexual” (Ibidem, p.32). A representação do brasileiro também deve ser considerada para que se garanta a representação das diversas identidades presentes no país – com atenção as minorias, que devem ser incluídas nas coberturas cotidianas. Assim, percebe-se que na mesma linha de Bucci, Chiaretti e Fiorini (2012), Coutinho (2013) também adota uma linha voltada para os valores democráticos, com ênfase na promoção da pluralidade.

CONCLUSÃO Diante das percepções discutidas neste levantamento acerca da qualidade, percebese que o conceito pode ser interpretado de várias formas, que juntas, contribuem para um jornalismo mais democrático e dentro do que os autores consideram como de interesse público. Bucci, Chiaretti e Fiorini (2012) e Gomes (2006) citam a necessidade de meios reguladores que possam descentralizar a propriedade dos canais de TV por grupos privados e políticos. Esta percepção, também defendida por parte da sociedade, já faz parte dos meios de comunicação de vários países e, inclusive, da américa latina. Entretanto, é perceptível que na sociedade brasileira ainda há resistência para a implantação da regulação, vista por muitos jornalistas e empresários da comunicação comercial como sendo um “atentado” à liberdade de expressão. Uma convergência entre todos os autores pesquisados se refere a necessidade da televisão de qualidade promover a diversidade, através da representação das identidades, regionalismos, concessão de voz a grupos sociais e ouvir todos os lados envolvidos numa cobertura. Essa defesa pode ser vista como uma forma da radiofusão brasileira não excluir parcela dos cidadãos por se tratarem de minorias e que poderiam não contribuir para resultados relativos a audiência. Também é visível que muitos dos conceitos apresentados estão relacionados com práticas básicas do jornalismo, que fazem parte do conteúdo das Faculdades de Comunicação e dos manuais de jornalismo das empresas, como a necessidade de uma apuração aprofundada – o que contribuiria para a busca da verdade. É importante destacar que todos os autores citados neste trabalho consideram que a formulação de critérios e

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indicadores para avaliação da qualidade de uma emissora depende do contexto cultural em que ela está inserida e também de seu modelo de atuação. As particularidades sociais e econômicas do país, por exemplo, devem ser consideradas. Em relação a TV Pública, Bucci, Chiaretti e Fiorini (2012) afirmam que a TV Pública deve exercer o papel previsto em lei, de complementariedade aos demais sistemas comunicacionais instalados no país, como o comercial. Essa declaração pode ser contestada a partir da percepção de que a TV Pública não deveria atuar como um complemento do que já é desenvolvido por outras emissoras, mas sim, criar seu próprio espaço no meio comunicacional do país numa posição de referência. Entretanto, os indicadores de Bucci, Chiaretti e Fiorini (2012), que levam em conta a questão financeira, são importantes por também visarem a criação de sentimento de pertencimento da TV Pública em relação aos cidadãos. Esta proposta, que é reforçada por Coutinho (2013), é significativa pelo desconhecimento pela sociedade brasileira dos objetivos de uma TV Pública. A conceituação de que se trata de uma emissora ligada aos interesses do governo ainda é comum – e pesquisas anteriores realizadas pelo autor deste trabalho comprovam que ainda há certa dependência em relação ao Governo Federal, ou pelo menos, omissão em relação aos assuntos negativos da gestão governamental. A partir do momento que os cidadãos mudarem a forma de ver a TV Pública, como sendo representante de seus interesses, também poderão cobrar por uma programação mais independente e que corresponda ao interesse público. E para atingir esse objetivo é necessário que os critérios de qualidade formulados por estudiosos da televisão sejam considerados, de forma que mostrem que a TV pode oferecer um conteúdo além do que é veiculado no cotidiano dos telejornais líderes em audiência, seja pelas narrativas diferenciadas, pluralidade, interação social e outros conceitos citados nesta ampla discussão.

REFERÊNCIAS AGUIAR, I. (2012), TV Brasil: algo novo no ar. Florianópolis: Tribo da Ilha. BECKER, B. (2005), Telejornalismo de qualidade: um conceito em construção. Revista Galáxia, São Paulo, n.10. BORGES, G. (2014), Qualidade na TV pública portuguesa: análise dos programas do canal 2. Juiz de Fora: UFJF. BOURDIEU, P. (1997), Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar. BUCCI, E.; FIORINI, A.M.; CHIARETTI, M. (2012), Indicadores de Qualidade nas Emissoras Públicas - Uma Avaliação Contemporânea. Série Debates CI (Unesco), v. 10. COUTINHO, I. (2013), A informação na TV Pública. Florianópolis: Insular. GOMES, I; (2006), Telejornalismo de Qualidade. Pressupostos teórico-metodológicos para análise. E-Compós, Brasília,v.6. ROTHBERG, D. (2011), Jornalismo público: informação, cidadania e televisão. São Paulo: Editora Unesp. SILVA, G. (2005), Para pensar critérios de noticiabilidade. Estudos em Jornalismo e Mídia (UFSC), Florianópolis, v. 2. TRAQUINA, N. (2012). Teorias do Jornalismo, porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, v. 1.

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A notícia como recurso narrativo: Harry Potter e o site Pottermore. The news as a narrative resource: Harry Potter and the site Pottermore. G ab r i e l a G r u s z y n s k i S a n s e v e r i n o 1 A na C l áu di a Gruszynsk i2

Resumo: A história de Harry Potter foi expandida para múltiplos suportes midiáticos além dos sete livros escritos por J.K. Rowling, todos contribuindo para a construção da saga. O artigo propõe uma análise da seção Profeta Diário (Daily Prophet) do site Pottermore, na qual estão disponíveis histórias exclusivas escritas por Rowling em formato de notícias no nome de repórteres do Profeta Diário. Com base na pesquisa documental e bibliográfica, situamos características e contexto relacionados ao objeto empírico e estabelecemos os principais conceitos teóricos que norteiam a avaliação do site em uma abordagem de caráter exploratório. Considera-se que a notícia se coloca como um recurso narrativo ao se configurar como um modo de atualização do personagem e uma forma de reafirmação da representação do jornalismo em Harry Potter. A maneira de redação das notícias, sua relação com um acontecimento atual e o espaço do repórter em sua escrita mostram a verossimilhança do jornalismo ficcional criado pela autora e o jornalismo que se faz presente em nosso cotidiano.

Abstract: The story of Harry Potter was expanded to multiple media platforms beyond the seven books written by J.K. Rowling, all of them contributing to the construction of the saga. This article proposes an analyses of the Daily Prophet section of the site Pottermore, in which exclusive stories written by Rowling in the voice of Daily Prophet reporters in the format of news are available. Based on documental and bibliographical research, we situated the characteristics and the context related to the empirical object and established the main theoretical concepts that guide the evaluation of the site in an approach of exploratory character. It is considered that the news are a narrative resource as its configurated both as a manner to update the characters in the saga and reaffirm the representation of journalism in Harry Potter. The way the news are written, its relation to a current event and the space reporters are given in its writing show the verisimilitude between the fictional journalism created by the author and the journalism we have in our day to day life. 1.  Jornalista. Mestranda do Programa de Pós-Gradução em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Email: [email protected] 2.  Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador do CNPq. Email: [email protected]

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INTRODUÇÃO HISTÓRIA DE Harry Potter, iniciada por Rowling em 1997 com o livro Harry Pot-

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ter e a Pedra Filosofal, foi expandida para múltiplos suportes midiáticos, cada um contribuindo de modo distinto e essencial para desdobramentos da narrativa. Através de diferentes plataformas – livros, filmes, jogos, sites e parques de diversão – um universo ficcional foi se constituindo, no qual as pessoas podem conhecer e inserir-se no mundo mágico do personagem. A narrativa transmídia torna-se um espaço de mediação da realidade, em que há representações de instituições do real, como o jornalismo e seus profissionais. Enquanto os jornalistas podem ser percebidos como profissionais que dominam uma linguagem específica para cumprirem suas funções, dotados de tradições, preocupações e formas particulares de fazerem as coisas; o jornalismo pode ser compreendido como uma atividade que visa fornecer informações à sociedade, a partir de valores-notícias, princípios como a busca da verdade e a exatidão, e do entendimento da profissão como um serviço público. (TRAQUINA, 2008). A partir da história transmídia de Harry Potter, o presente artigo trata da construção do jornalismo na ficção. Tomando como objeto de análise o site Pottermore, nos focamos na notícia como produto intrínseco da atividade jornalística e como um recurso narrativo. Com base na pesquisa documental e bibliográfica, situamos características e contexto relacionados ao objeto empírico e estabelecemos os principais conceitos teóricos que norteiam a avaliação do site em uma abordagem de caráter exploratório.

UMA HISTÓRIA TRANSMÍDIA: SOBRE HARRY POTTER E O SITE POTTERMORE Joanne Rowling nasceu na cidade de Yate, no interior da Inglaterra, em 31 de julho de 1965. A data indica a grande influência da vida da autora na série de livros que a tornaria milionária: 31 de julho é também o aniversário de Harry, personagem principal de sua famosa série de livros Harry Potter. Os sete livros da série que vieram a ser escritos pela autora já venderam mais de 400 milhões de exemplares desde seu lançamento em 1997 e transformaram Rowling na única figura literária britânica que vale mais de um bilhão de dólares. Em 1990, sete anos antes de o primeiro livro ser publicado, Rowling já havia começado a pensar no enredo de Harry Potter, mas foi apenas em 1994 que, em um pequeno café em Edimburgo, na Escócia, a história do menino Harry ganhou vida. Quando, enfim, conseguiu encerrar o primeiro livro da série, Rowling enviou o manuscrito para uma agência literária. Apesar da carta de recusa que recebeu, não desistiu de seu sonho. Christopher Little, ao ler o manuscrito da autora, acreditou no potencial de sua história. O agente literário enviou originais para diversas editoras, até que a Bloomsbury decidiu publicar a obra de Rowling (SMITH, 2003). Com receio, contudo, de que meninos tivessem preconceito com um livro escrito por uma mulher, a editora sugeriu que a autora usasse apenas as iniciais ao invés de Joanne. Ela adotou a ideia. Como tinha, porém, apenas um nome próprio, resolveu usar também a letra “K”, do nome de sua avó favorita, Kathleen (SMITH, 2003). Assim nasceu J.K. Rowling, que estreou em 1997 sua série de best sellers com Harry Potter e a

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Pedra Filosofal (Harry Potter and the Sorcerer’s Stone). Nos anos seguintes, Rowling teve outros seis livros da série Harry Potter publicados: Harry Potter e a Câmara Secreta (Harry Potter and the Chamber of Secrets – 1998), Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (Harry Potter and the Prisoner of Azkaban – 1999), Harry Potter e o Cálice de Fogo (Harry Potter and the Goblet of Fire – 2000), Harry Potter e a Ordem da Fênix (Harry Potter and the Order of the Phoenix – 2003), Harry Potter e o Enigma do Príncipe (Harry Potter and the Half Blood Prince – 2005 ) e Harry Potter e as Relíquias da Morte (Harry Potter and the Deathly Hallows – 2007). O mundo mágico criado pela autora narra a história de Harry Potter, um menino bruxo. Por onze anos ele viveu com seus tios e seu primo Trouxas – pessoas não mágicas –, acreditando ter perdido os pais em um trágico acidente de carro. Quando, porém, chega a hora de ingressar em Hogwarts, Escola de Magia e Bruxaria, Harry finalmente descobre a verdade sobre quem é: um herói do mundo mágico. Quando tinha apenas um ano de idade, derrotou o bruxo das trevas, Voldemort, na mesma noite em que este matou seus pais. O que começou como literatura se transformou em outras linguagens/produtos. Os livros deram origem a roupas, videogames, brinquedos, histórias em quadrinhos e até doces, que geram pelo menos um bilhão de dólares anuais3. Além disto, hoje é possível visitar o parque temático The Wizarding World of Harry Potter que fica nos Estados Unidos e conta com atrações baseadas no enredo de Rowling. Foram lançados oito filmes, produzidos pelos estúdios da Warner Bros, que tornaram Harry Potter uma das franquias cinematográfica mais lucrativas da história, superada apenas pelos filmes da Marvel: Harry Potter e a Pedra Filosofal (Harry Potter and the Sorcerer’s Stone – lançado em 2001 e dirigido por Chris Colombus); Harry Potter e a Câmara Secreta (Harry Potter and the Chamber of Secrets – lançado em 2002 e dirigido por Chris Colombus); Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (Harry Potter and the Prisoner of Azkaban– lançado em 2004 e dirigido por Alfonso Cuarón); Harry Potter e o Cálice de Fogo (Harry Potter and the Goblet of Fire– lançado em 2005 e dirigido por Mike Newell); Harry Potter e a Ordem da Fênix (Harry Potter and the Order of the Phoenix – lançado em 2007 e dirigido por David Yates); Harry Potter e o Enigma do Príncipe (Harry Potter and the Half Blood Prince – lançado em 2009 e dirigido por David Yates); Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte I (Harry Potter and the Deathly Hallows – Part I – lançado em 2010 e dirigido por David Yates) e Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte II (Harry Potter and the Deathly Hallows – Part II – lançado em 2011 e dirigido por David Yates). Em outubro de 2011, Rowling lançou o site Pottermore.com (Figura 1), com a proposta de criar um espaço de vivência do mundo mágico de Harry Potter. A autora escreveu novos materiais sobre os personagens, lugares e objetos das histórias do bruxo, que podem ser acessados nas diversas seções do site, que contam com ilustrações, áudios, vídeos e jogos exclusivos criados a partir da narrativa da autora. O ambiente virtual propicia uma experiência de navegação e leitura online da saga, ampliando a relevância de Harry Potter para as novas gerações de leitores, ao mesmo tempo em que mantém o vínculo com os fãs existentes, contando com uma forma interativa de se entrar na história. 3.  Fonte: Acesso em: 18/03/2015.

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Figura 1. Home Page do site Pottermore.com acessível mediante login. Captura em 21/03/2015.

Constituí-se o que Jenkins (2008) coloca como convergência: há um fluxo de conteúdos em diversos suportes midiáticos, a cooperação de mercados midiáticos e a migração de públicos de meios de comunicação, que transitam entre diferentes plataformas na busca de experiências de entretenimento que desejam. Harry Potter se apresenta em uma trama complexa de modos de contar histórias, relacionadas aos diferentes meios em que se apresenta. Não é necessário, como explica Jenkins (2008), conhecer todas as plataformas para se conhecer e apreciar a história. Cada texto é autônomo e permite que o público conheça uma parte do enredo que é suficiente para a sua experiência. Um sujeito, por exemplo, não precisa ler o livro para poder aproveitar o jogo computador, ele pode assistir aos filmes sem sequer conhecer os livros. O público pode escolher buscar a história em suas diversas plataformas para conhecer o todo, ou se satisfazer em conhecer uma única a parte da história narrada em um único meio. Em 2014, tornou-se possível acessar a seção no site denominada Profeta Diário (Daily Prophet), na qual estão disponíveis histórias exclusivas escritas por Rowling em formato de notícias assinadas pelas repórteres Ginny Potter e Rita Skeeter (Figura 2). O veículo tornou-se conhecido dos leitores já no primeiro livro da série, sendo o principal jornal do mundo bruxo. Ginny Potter, nesta oferta narrativa não é mais a adolescente Ginny Weasley que estuda em Hogwarts, mas a esposa de Harry, conforme vemos no último livro. Rita Skeeter é a primeira repórter apresentada na narrativa de Rowling, que escreve para os principais veículos impressos do mundo bruxo: o jornal Daily Prophet, a revista de fofocas Witch Weekly e, eventualmente, até o periódico alternativo O Pasquim. Vemos assim que por meio dessas narrativas em forma de notícia presentes no site Pottermore,

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escritas na voz de personagens conhecidos dos fãs da série, Rowling deu continuidade à história de Harry Potter em um novo formato e com outros desdobramentos.

Figura 2. Seção Daily Prophet do site Pottermore.com. Captura em 21/03/2015.

Esta seção na qual as notícias foram disponibilizadas propõe ser um espaço em que se pode acessar as últimas notícias do mundo bruxo e se insere no contexto do mundo ficcional criado no site. A sua proposta inicial era propiciar uma narrativa nova que pudesse ser acompanhada de forma continua pelos usuários do site. Foi criado, então, um evento no mundo mágico de Harry Potter que se aproximava do que estava acontecendo na realidade: a partir da Copa do Mundo de Futebol da Fifa de 2014 surgiu a Copa do Mundo de Quadribol de 2014 (esporte bruxo). Deve-se observar que a Copa do Mundo de Quadribol já era um evento recorrente no mundo bruxo, que havia sido previamente figurado nas histórias de Rowling. O evento ressurge no site Pottermore a partir deste gancho e a concomitância dos eventos trouxe maior visibilidade para a proposta de atualização da narrativa. Assim Rowling, ao trazer a linha do tempo da história para 2014, brinca com a possibilidade viva na mente dos fãs de que o universo mágico de Harry Potter poderia estar vivo paralelo a nossa realidade. De abril a julho de 2014, foram postadas de forma periódica notícias criadas por Rowling que são atribuídas às repórteres ficcionais do mundo bruxo Ginny Potter e Rita Skeeter, que se dedicaram a cobrir a Copa do Mundo de Quadribol. No período de redação do presente artigo, vinte e cinco notícias estavam disponíveis no site, todas dizendo respeito ao evento: 20 tratavam de partidas e cinco eram coberturas jornalísticas de acontecimentos que se deram ao longo da Copa. O site Pottermore, ao constituir um seção vinculada a um veículo de comunicação presente em diferentes plataformas na narrativa transmídia, propicia que se estabeleçam trânsitos entre referências do mundo ficcional e aquele real no que se refere à atividade jornalística. Para podermos explorar algumas de suas interfaces, vamos a seguir situar aspectos relativos ao jornalismo.

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DE QUE JORNALISMO ESTAMOS FALANDO Necessitamos de um veículo especializado na transmissão de informações, o que, para Miguel (1999) justificaria a existência do jornalismo. O interesse de saber o que há de novo sempre esteve presente em nossa sociedade e as notícias, mesmo antes de assumirem o formato que conhecemos hoje, eram consumidas pelo público que desejava se manter informado. Os fatos dos quais podemos tomar conhecimento sem a imprensa são muito restritos. Sem as noticias, entraríamos em contato apenas com uma pequena parcela de informações através de nossa vida cotidiana. O jornalismo cresce a partir do “seu papel específico de disseminador de informações sobre a vida cotidiana” (FRACISCATO, 2005, p.36), tendo assim maior importância cultural e social onde se insere. Para Nelson Traquina, o jornalismo pode ser explicado como a resposta para a pergunta que as pessoas fazem todos os dias: “o que é que aconteceu/está acontecendo no mundo?” (TRAQUINA, 2005, p. 20). As pessoas buscam o jornalismo para ficarem informadas e, assim, conseguirem combinar estas informações com o seu conhecimento dos tópicos, o que lhes permite interagir com os outros e criar sua visão dos fatos. Gomis (1997) entende que a atividade profissional dos jornalistas consiste em uma interpretação sucessiva da realidade social. As notícias formam a imagem da realidade que o público utiliza para se manter informado: “Os meios atuam como mediadores generalizados. Esta é a sua função social”4 (GOMIS, 1997, p.175, tradução nossa). A notícia, para Gomis (2004), é uma interpretação de um fato, que pode ser feita de forma mais adequada se questionarmos quem esta informação beneficia ou prejudica, pois assim pode-se pensar quem é sua verdadeira fonte. Os fatos, como esclarece Gomis (2004), não se apresentam automaticamente aos jornalistas e, geralmente, não são buscados com diligência pelos jornalistas. São poucos os fatos imprevisíveis reportados nos meios de comunicação, a maioria da cobertura jornalística trata de atos anunciados, como entrevistas coletivas e discursos. Para o autor, a fonte fundamental das notícias são aqueles que têm interesse na publicação destas informações, seja através da programação de atividades ou da comunicação direta de notícias. Qualquer pessoa pode ser uma fonte para os jornalistas, desde que esta tenha informações para fornecer ao jornalista, como pessoas envolvidas, conhecedoras, ou que testemunharam um determinado acontecimento ou assunto. Traquina (2005), contudo, observa que as fontes são quem são, pois estão conectadas a setores decisivos da sociedade, como atividade política, econômica, social ou cultural. As fontes oferecem notícias, os meios de comunicação recolhem estas informações, lhe dão um formato adequado e as difundem para o público. Este processo de fornecimento de fatos é gratuito: “nem as fontes cobram por contá-los, nem os meios por publicá-los” (GOMIS, 2004, p. 103). As fontes, os meios de comunicação e o público são dependentes um do outro e cooperam um com o outro. Para Traquina (1993), os jornalistas são participantes ativos no processo de construção da realidade. “Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o acontecimento” (TRAQUINA, 1993, p. 168). A necessidade de escolher, excluir e acentuar certos 4. No original:“Los médios actúan de este modo como mediadores generalizados. Esta es su función social”.

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aspectos de um acontecimento demonstra como a notícia também constrói a realidade. “Os jornalistas têm óculos particulares – são os seus valores-notícia” (TRAQUINA, 2008, p. 77). Todos os dias os jornalistas enfrentam o desafio de ter que elaborar as notícias que serão divulgadas nos meios de comunicação. Os profissionais têm que julgar, entre os diversos acontecimentos que podem ocorrer em qualquer lugar a qualquer momento, quais irão se tornar notícia. Para Traquina (2008), os jornalistas operam uma seleção dos acontecimentos e uma construção destes eventos que selecionam ao construírem notícias. Elas são o resultado de um processo de percepção, seleção e transformação dos acontecimentos. A seleção de notícias é, como explica Gomis (2004), regida por princípios de neutralidade e universalidade: “pode entrar tudo e tudo será comunicado em tom informativo, reprimidos linguisticamente os afetos que o fato desperta no informador, e sem classificar a notícia como boa ou má” (GOMIS, 2004, p. 105).

NARRANDO COM NOTÍCIAS As notícias presentes na seção Profeta Diário do site Pottermore poderiam ser de qualquer jornal ao redor do mundo, a não ser pelo seu conteúdo inusitado – o mundo bruxo: têm lead, são regidas por valores-notícia e a hierarquização de informação é clara. Possibilitam que os leitores que fazem parte do mundo mágico mantenham-se informados e ampliem seus conhecimentos. Nestas notícias, além de acompanharmos as partidas de Quadribol – placares, reações da torcida, informações sobre os jogadores –, conseguimos descobrir pequenas informações sobre o que está acontecendo atualmente na vida dos personagens principais da série Harry Potter. É dado um novo contexto para os personagens e há uma atualização de suas vidas na série: são adultos, tem novas histórias, empregos e filhos que agora também fazem parte da narrativa. Somos transportados de 1997, quando encerrava-se a narrativa de Harry Potter, para 2014, quando ela continua a partir das notícias criadas por Rowling. Utilizando a notícia como recurso narrativo, a autora dá novos horizontes à história, atualizando os leitores a respeito da vida e dos personagens do mundo mágico. Estabelece-se um jogo instigante em que a cobertura feita por personagens ficcionais dá a ver seu mundo a partir de uma interpretação de jornalistas “nativos”, ou seja, Ginny e Rita escrevem, não J.K. A interpretação dos fatos é, portanto, responsabilidade de sujeitos do mundo bruxo e não de trouxas, o que amplia a impressão de que o mundo de Harry Potter está constituído e tem vida própria. De fato, a autora, ancorada em diferentes meios de comunicação, inseriu o jornalismo na história de Harry Potter desde o início da série, conferindo-lhe diferentes níveis de importância para o desenvolvimento da sociedade bruxa e da sociedade trouxa (não-bruxos). O universo ficcional recriou veículos existentes na realidade: a televisão, o jornal Profeta Diário, a revista Witch Weekly, a revista Pasquim e o rwlingádio, marcado pela emissora Potterwatch. No caso do site Pottermore, como vimos, o jornalismo é figurado na seção exclusiva do Profeta Diário. Mas é importante salientar que no site também é possível conhecer a história dos sete livros escritos por Rowling recontados de forma interativa, a partir de textos, áudios,

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ilustrações, jogos e animações. Isso contribui para complexificar a narrativa transmídia, conforme sugere Jenkins (2008). A partir do uso de palavras-chave é possível localizar temas específicos dentro da história, assim como personagens e objetos, mas é preciso acompanhar toda a narrativa para perceber todas as aparições do jornalismo na história e conhecer o contexto destas. Observamos que tanto os diferentes meios de comunicação criados por Rowling aparecem nesta história interativa narrada no portal. Não participam, contudo, da atualização da história feita pela autora através das notícias da seção Profeta Diário. No conjunto da série, temos personagens jornalistas que atuam como profissionais que operam na seleção dos fatos e construção das notícias. Seus perfis ficcionais permitem que observemos modos como os jornalistas são representados. Eles são três: Ginny Potter, Rita Skeeter – já mencionadas – e Xenophilius Lovegood. Ginny aparece apenas no site Pottermore como jornalista, apesar de ser uma personagem dos filmes e livros que contam a história de Harry Potter, no qual aparecia como uma adolescente. Como repórter do Profeta Diário, Ginny atua como correspondente de esportes. Rita está presente nas três plataformas trabalhando na função de jornalista para os principais veículos impressos da comunidade bruxa. Está sempre na busca de novidades, escândalos e curiosidades que possam agradar ao seu público e repercutir entre os bruxos. Xenophilius, figurado apenas nos livros e filmes da série, é dono, editor e repórter da revista O Pasquim e cria uma publicação que reflete sua excentricidade. Nas notícias do site Pottermore, Ginny é repórter exclusivamente de esportes e Rita é colunista de fofocas. Enquanto o estilo de escrita das duas jornalistas varia, os princípios que regem a redação de suas notícias são as mesmas que são ensinadas aos profissionais do mundo real: o texto deve ser claro e objetivo, deve conter informações pertinentes ao público e estas devem estar hierarquizadas do mais para o menos importante. A verdade, contudo, outra base do jornalismo moderno, não é demarcada no site Pottermore. A ética jornalística e o respeito entre as linhas da ficção e da verdade na notícia é debatido apenas através da ironia da repórter Ginny quanto a sua colega, à medida que corrige e questiona as informações trazidas por Rita. Temos assim representados perfis profissionais distintos, que aderem a princípios comuns que regem a atividade, porém que divergem em outros aspectos ligados às especificidades do âmbito de atuação – um vinculado ao jornalismo “sério” e outro mais próximo daquele popular/entretenimento. Dezenove notícias são descrições das partidas, todas creditadas à Ginny. Estas sempre trazem no topo, em negrito, o placar da partida e, se necessário, sua situação, como no caso dos jogos que ainda estavam em curso quando o texto foi redigido. Vale notar que os jogos de Quadribol não tem limite de tempo, no caso, houveram partidas que duraram inúmeros dias e, por isso, as notícias foram escritas enquanto os jogos continuavam a acontecer. Uma notícia trouxe atualização sobre o resultado de uma partida que continuava pendente devido uma possibilidade de sabotagem. As outras cinco notícias debateram diferentes acontecimentos que se deram ao longo do evento, como o furto e a devolução do mascote do time dos Estados Unidos. Rita, como correspondente de fofocas do

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jornal escreveu sozinha apenas uma matéria, que tratava do reencontro de membros da Armada Dumbledore na final da Copa do Mundo de Quadribol. É a noticia mais extensa disponível no site, que usa o evento apenas como gancho para tratar da vida pessoal de pessoas notórias no mundo bruxo. Rita participa também na notícia que descreve a final da Copa, quando a repórter traz informações sobre o que acontecia nas arquibancadas e não apenas em campo, enquanto Ginny descreve a partida em si. De todas as matérias, apenas em uma não há a identificação do repórter responsável. Ela traz informações sobre as apostas para as quartas de final da Copa, como com quem apostar e as chances de vitória para cada time – uma notícia que cumpre a função de serviço. Vemos que a opção de Rowling de utilizar o formato de notícias sobre um evento importante no mundo bruxo serve tanto para atribuir o caráter de veracidade próprio da cobertura jornalística a um universo ficcional, como para propiciar a sensação de proximidade com os acontecimentos na medida que estava baseado em uma plataforma em que era possível atualização e acesso imediato na web. As principais fontes de informação identificadas nas notícias são as oficiais e especializadas, dotadas de competência e autoridade para tratar dos respectivos assuntos. Enquanto o acontecimento das partidas, como eventos previstos, não exigiam o aparecimento de fontes na redação das matérias, as notícias que tratavam de eventos inesperados e surpreendentes traziam pessoas externas para complementar as informações trazidas pelo jornalista. Quando, por exemplo, acontece um acidente na abertura da Copa envolvendo os mascotes dos times, aparecem na notícia fontes que tem a capacidade explicar de forma clara o assunto: a presidente do conselho argentino de magia – autoridade máxima do lugar onde a Copa estava sendo realizada – e o consultor chefe de magizoologia – especialista em animais fantásticos. O tratamento das fontes neste universo ficcional, assim, mimetiza estratégias comuns da atividade, colocando em evidência a força da consulta a especialistas e fontes oficiais para dar credibilidade do relato. Os critérios de noticiabilidade marcados nas notícias do site Pottermore podem ser pensados principalmente no sentido da importância, seja do acontecimento em si, de sua consequência, de sua pertinência para a sociedade, ou em função dos agentes de notoriedade envolvidos. A excepcionalidade é também recorrente, trazendo situações que rompem com a normalidade, integrando o incomum, o insólito e o singular, além da imprevisibilidade, do inesperado e da surpresa, como acidentes e outros fatos que vão contra quaisquer expectativas. Os títulos das matérias que tratam de acontecimentos ao longo da Copa e as informações que têm destaque em seu conteúdo em todas as notícias prezam pelo critério de noticiabilidade de emoção, suspense e entretenimento, que funcionam como valores de construção da notícia e dão impacto às chamadas e aos títulos, com textos e reportagens em formatos mais criativos. Vemos, por exemplo, a matéria sobre a cerimônia de abertura da Copa (Figura 3), que traz um título impactante: “Cerimônia de abertura desastrosa leva a questionamentos sobre a segurança na Copa do Mundo de Quadribol” (tradução nossa, grifo nosso).

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Figura 3. Notícia de abertura da Copa. Daily Prophet/Pottermore.com. Captura em 21/03/2015

Conflito ou controvérsia como valores-notícia indicam polêmica, ambiguidade, controvérsia ou tensão estão presentes nas matérias que tratam, por exemplo, da desqualificação da seleção de quadribol do Haiti em sua partida contra o Brasil, e na descrição da partida de Estados Unidos e Jamaica, quando o resultado foi posto sob inquérito por uma possível sabotagem a um dos jogadores da seleção jamaicana. Também a negatividade – integrando a infração, a ilegalidade, a falha, a anormalidade e a violência – aparece como, por exemplo, na notícia sobre o furto do mascote da seleção do Liechtenstein por torcedores americanos que comemoravam a vitória de seu time. Atualidade e ineditismo – no sentido de novidade – podem ser observados na notícia que é inclusive intitulada “Notícias de Última Hora”5 (tradução nossa), que traz informações sobre o caso de furto do mascote do time de Liechtenstein. O interesse público é valor que conduz o conjunto da cobertura de um evento importante para a comunidade bruxa, atendendo ao direito do público à informação. Um aspecto importante de se observar é que a seção Profeta Diário está em um site, mas como um jornal respeita a forma de divulgação e os suportes do mundo bruxo, não estado evidente a noção de instantaneidade. Podemos estar lendo estas notícias na web, mas elas simulam visualmente a página de um jornal impresso entregue aos leitores através de corujas (meio de correspondência bruxo), tendo periodicidade diária, com edições noturnas especiais e uma edição de domingo (Figura 3). A estrutura e design desta seção, portanto, favorece uma experiência de navegação limitada, ainda que o conjunto do Potteromore.com ofereça variadas modalidades de interação. A única notícia que dá uma sensação de instantaneidade do relato, é um passo a passo da visão da final de Quadribol realizado pela voz das duas repórteres de forma simultânea. Esta é apresentada no mesmo formato das outras e deixa claro que é uma transcrição da cobertura ao vivo feita pelas correspondentes do jornal.

5.  No original: “LATE BREAKING NEWS”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O jornalismo, identificado por sua função de informar o público através de relatos que não ultrapassam as fronteiras entre a verdade e a ficção, ao ser trazido de forma verossímil para uma narrativa notadamente ficcional, empresta para a notícia construída por Rowling os seus princípios básicos, como verdade e objetividade. Ao utilizar as notícias como um recurso narrativo para dar continuidade à história de Harry Potter, a autora concede às histórias um efeito de realidade, aproximando o mundo dos leitores ao universo ficcional mágico. Isso concede aos fãs a sensação que esta história poderia de fato estar acontecendo em um mundo paralelo ao nosso. Sob outro ângulo, observando o como a história ficcional mostra o jornalismo, chama a atenção os modos de representação de práticas da atividade e de seus profissionais. Como vimos, ao trazer as fontes peritas para dar credibilidade a um relato – como o magizoologista chefe, por exemplo –, percebemos ironicamente a força da presença do especialista e de seu cargo hierárquico, o coloca em evidência modelos recorrentes da atividade jornalística. Dado o estranhamento que temos com estas fontes do mundo mágico, mais visível fica a estratégia de construção da credibilidade. Também a participação de perfis de profissionais que se engajam com coberturas sérias, ou alternativas ou frívolas trazem a tona estereótipos de jornalistas que aderem a padrões distintos de construção noticiosa. Ao mimetizar a prática jornalística, a narrativa ficcional dá a ver representações que compõem o imaginário em torno do jornalismo, permitindo que elementos que parecem inerentes a atividade sejam revisitados a partir do estranhamento gerado pela ficção.

REFERÊNCIAS JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 1. ed. São Paulo: Aleph, 2008. MOTTA, Luiz Gonzaga. O Trabalho Simbólico da Notícia. In: Anais da Compós, 2002, Recife (PE). POTTERMORE. Disponível em: Acesso em: 21/03/2015. RODRIGUES, Adriano Duarte. O acontecimento. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e estórias. Lisboa: Vega, 1993, p. 27-33. SMITH, Sean. J.K. Rowling. Uma biografia do gênio por trás de Harry Potter. Tradução de Carlos Irineu, Flávia da Rocha Pinto e Iva Sofia Gonçalves Lima. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo. A tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular, 2008.

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Diálogo emancipador: a relação do jornalista e seus personagens no livro-reportagem Emancipatory dialogue: the relationship of the journalists and their characters in the reporting-book A l e x a n d r e Z a r a t e M ac i e l 1 H ei to r Co sta L i m a

da

Rocha2

Resumo: As reflexões em torno da Filosofia da Linguagem nas obras de Wittgenstein, Gadamer, Habermas e na Fenomenologia de Schutz são associadas, neste artigo, a um olhar sobre a relação diferenciada do jornalista autor de livros-reportagens com os seus personagens. Os conceitos de dimensão pragmática da linguagem, intersubjetividade, fusão de horizontes, consciência dos preconceitos e, principalmente, do poder emancipador da comunicação, ajudam a compreender com mais clareza a interação dos profissionais com suas fontes. No caso do livro-reportagem, menos marcada pelas pressões das rotinas produtivas e pelo “aprisionamento” ao factual e aos valores-notícia. Os trabalhos em livro dos jornalistas Caco Barcellos (“Abusado”), Klester Cavalcanti (“O nome da morte”) e Eliane Brum (“O olho da rua”) são exemplos de comunicação de viés emancipatório com personagens complexos.

Palavras-chave: Livro-reportagem. Personagens. Jornalismo. Filosofia da Linguagem. Jornalista autor.

Abstract: Reflections on the philosophy of language in the works of Wittgenstein, Gadamer, Habermas and the Phenomenology of Schutz is associated, in this article, a look at the different relationship of the journalist-author of reporting-books with their characters. The concepts of pragmatic dimension of language, intersubjectivity, fusion of horizons, awareness of prejudice and, especially, the emancipatory power of communication, help to understand more clearly the interaction between professionals and their characters. In the case of reporting-book, less marked by the pressures of production routines and the “trapping” the factual and news-values. Work on the book of the journalists Caco Barcellos (“Abused”), Klester Cavalcanti (“The name of death”) and Eliane Brum (“Eye of the street”) are examples of communication emancipatory bias with complex characters.

Keywords: Reporting-book. Characters. Journalism. Philosophy of language. Report author. 1.  Professor mestre assistente do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus de Imperatriz. Cursa doutorado em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com bolsa pró-doutoral da CAPES. E-mail: [email protected]. 2. Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco/Programa de Pós-Graduação em Comunicação, atualmente desenvolvendo pesquisa de Pós-Doutorado na Universidade da Beira Interior/Portugal, com bolsa da CAPES. E-mail: [email protected].

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Diálogo emancipador: a relação do jornalista e seus personagens no livro-reportagem Alexandre Zarate Maciel • Heitor Costa Lima da Rocha

1.INTRODUÇÃO FOCO PRINCIPAL deste artigo é entender, com a luz da Filosofia da Linguagem

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e da Fenomenologia, a relação do jornalista autor de livros-reportagens com os personagens que terão os seus conflitos narrados em suas obras. O entendimento de Schutz a respeito do mundo intersubjetivo e tipificação ajuda a compreender a postura diferenciada desse profissional. Jornalistas escritores criticam as regras rígidas de controle do tempo e as lupas por vezes míopes do factual e dos valores-notícia. Também não trabalham em uma redação hierarquizada, o que os caracteriza como um grupo específico. Já a concepção de Wittgenstein sobre a importância de abandonar a postura de observador desinteressado e abraçar a perspectiva de participante para alcançar a compreensão, também pode ser associada ao jornalista autor de livros-reportagens. Outro conceito iluminador neste artigo é a questão dos preconceitos na ótica de Gadamer, vistos como pressupostos para uma abertura maior às complexidades do mundo do outro. Mas não poderia faltar o olhar mais crítico sobre o processo dialógico entre o autor de livros-reportagens e os seus personagens, que pode muito bem ser equacionado a partir da contribuição da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas. Uma das intenções deste artigo é entender como, no jogo da linguagem entre produtores dessas obras e suas fontes, são explicitadas as regras de validação, explicação e justificação, que caracterizariam a “situação ideal de discurso”. E avaliar contextos em que se estabeleceu um cenário de entendimento mútuo, reciprocidade e intercâmbio de papéis. Ao longo de todo o texto serão esmiuçados os conceitos desses autores, associados a exemplos do trabalho prático de interação social de três jornalistas. O contato de Caco Barcellos com os personagens do mundo marginal do tráfico de drogas no morro Santa Marta, no Rio de Janeiro e acima de tudo com o traficante Marcinho V.P., no livro “Abusado”. A relação de sete anos de Klester Cavalcanti com o matador de aluguel Júlio Santana, que assassinou 492 pessoas, relatada na obra “O nome da morte”. O aprendizado de Eliane Brum com as parteiras da Amazônia registrado em reportagem reunida na obra “O olho da rua”. Esses exemplos servirão para refletir sobre o compromisso do autor de livros-reportagens com uma visão menos estereotipada dos seus personagens, ligada à imersão de caráter ativo, sempre com perspectiva crítica, na vida do outro a ser narrada.

2.LIÇÕES DE SCHUTZ: JORNALISMO E INTERSUBJETIVIDADE A sociologia fenomenológica de Alfred Schutz, na interpretação de García, está interessada em discutir como se produz “a compreensão e a comunicação recíproca entre os sujeitos” (GARCÍA, 2012, p.66). Ela está centrada no cotidiano e não interessa apenas ao sociólogo, mas também ao jornalista. Este último é co-participante do processo de construção de símbolos de representação de uma sociedade a partir da coleta e organização dos seus discursos, amparada em um sistema de relevâncias. Na ótica de Schutz, conforme interpretada por García (2012, p.67), “a intersubjetividade existe no presente vivido, no qual os sujeitos falam e escutam uns aos outros, em um espaço e um tempo compartilhados”. Assim, o mundo da vida se apresentaria às pessoas em forma de significados socialmente construídos, encarados pelos membros

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de uma comunidade de uma maneira denominada por Schutz como “atitude natural”. Ou seja, um acervo de conhecimentos para compreender os problemas que se apresentam no cotidiano. Esse mundo do sentido comum, como alerta García, amparada no pensamento de Schutz (GARCÍA, 2012, p.71), é “tipificado em categorias de significado que permitem reconhecer os novos fenômenos e incorporá-los à consciência”. Quando alguém se encontra diante de uma situação nova, precisa reorganizar as suas tipificações para que possa retornar à atitude natural. Mas Schutz pondera, segundo García, que não existem interpretações únicas para as vivências, estas variam de acordo com as perspectivas de quem as interpreta. “Para que a comunicação seja possível não é só necessário que os sujeitos compartilhem um mundo, mas sim que sejam capazes de compreender este mundo de uma forma similar a como o outro o compreende” (GARCÍA, 2012, p.72). Assim, enquanto subjetividade para Schutz significa “a consciência que se tem de todas as coisas do ponto de vista próprio” (idem), a intersubjetividade consistiria no processo de compartilhamento das visões pessoais de mundo com os demais membros de seu círculo. Ou seja, para haver intersubjetividade, a interação é condição essencial, mas a descoberta do outro acarreta a formação ou confirmação de tipificações. Correia (2011, p.149) classifica os meios de comunicação como um “sistema de determinação de relevâncias”, no qual o jornalismo reivindica a competência de “detectar as relevâncias do mundo cotidiano a fim de traduzi-las em notícia”. A grande questão é o cenário das rotinas produtivas; dos valores-notícia; da competição mercadológica; das relações de hierarquia das redações e mesmo de concentração de poder nos meios de comunicação. Todos esses fatores influenciam os processos de coleta, organização e difusão das notícias, e, em primeira instância, a determinação das relevâncias. Em uma acumulação de experiência histórica da profissão, os jornalistas desenvolveram métodos “objetivos” para tipificar as realidades e determinar relevâncias. Correia faz uma crítica direta a essa pretensão, alertando que o jornalista, como todos os demais observadores sociais, “está presente no mundo da vida, participa nele e na forma como ele é percebido”. Seria recomendável para os profissionais deixarem de acreditar que “os seus enunciados são espelhos claros aonde a realidade se reflete, clara e cristalina” e ponderarem sobre o papel de alguém que “participa de um universo partilhado do qual é observador, mas no qual é agente social” (CORREIA, 2004, p. 225). No processo de produção de um livro-reportagem, o profissional jornalista logo percebe que está inserido em uma nova lógica de rotinas produtivas que pouco tem a ver com o trabalho em uma Redação. Teoricamente, dispõe de muito mais tempo para fazer suas entrevistas, trabalhar com a checagem dos dados e efetuar angulações da realidade social não tão amarradas às convenções mercadológicas do factual e dos valores-notícia para agradar um público consumidor de um veículo diário de informação. Se aproveitar essas novas condições para refletir a respeito da importância do seu trabalho, é capaz de chegar a temas pouco abordados, coletar depoimentos significativos e narrar a contemporaneidade com mais acuidade. Isso porque observa o cotidiano de uma perspectiva menos afetada por convenções tradicionais da profissão, como os limites do espaço e do tempo.

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No capítulo 31 do livro “Abusado”, o repórter Caco Barcellos “entra” na narrativa para deixar claro ao leitor como foi o seu processo de aproximação com os traficantes do morro Santa Marta, no Rio de Janeiro. Particularmente do seu personagem principal, Marcinho V.P., chamado de Juliano na obra. O curioso é que o próprio traficante é que convocou Caco para uma conversa em seu esconderijo na favela, no período em que estava sendo procurado pela polícia, final da década de 1990. Foi o início de uma série de contatos clandestinos que culminaram com a proposta de Márcio de que o jornalista escrevesse um livro sobre a sua vida, uma biografia. No livro, Caco Barcellos revela a sua contrapartida para o personagem, propondo uma obra não sobre ele, mas a respeito da quadrilha inteira e do modo de operação do sistema de tráfico no morro em todos os seus detalhes. Diante do aceite, o repórter começou a perceber os limites que enfrentaria ao abordar um mundo de vida de “personagens fora-da-lei, condenados e foragidos da justiça. Era, sem dúvida, um desafio cheio de implicações éticas, morais e legais” (BARCELLOS, 2003, p.459). Ou seja, o jornalista aceitou, com consciência, a incumbência de relatar – revendo os preconceitos pré-concebidos ou sensacionalistas – os acervos de conhecimento daqueles personagens, suas relações intersubjetivas e formas particulares de representação social. Ainda nesse capítulo esclarecedor, o repórter relata que teve que estabelecer “contratos” com os seus vários personagens, para não incorrer em deslizes éticos nos papéis de jornalista e cidadão. Desde o início deixou claro para todos os entrevistados que não queria saber dos planos criminosos futuros ou do presente, o que o tornaria imediatamente cúmplice. Apenas estava interessado nos relatos do passado. Quem estivesse vivo no lançamento do livro seria identificado sob pseudônimo e quem já tivesse morrido teria seu nome verdadeiro revelado. Mesmo assim, Caco Barcellos percebeu muita relutância nas primeiras entrevistas, só superada depois que adotou a estratégia de começar o livro entrevistando parentes e amigos de pessoas envolvidas no tráfico que já haviam morrido. A tática lhe permitiu reconstituir com precisão todo histórico de guerras que marcava aquela comunidade do morro Santa Marta. A partir de então, ganhou confiança dos sobreviventes e passou a coletar depoimentos de uma perspectiva muito mais privilegiada do que um repórter de redação da editoria de Polícia. Pouco antes da publicação do livro, já na prisão, Marcinho V.P. pediu uma leitura antecipada e Caco Barcellos negou, alegando que já havia submetido à sua análise a transcrição de todas as suas entrevistas, que somavam quase 300 páginas. Acrescentou que agiria da mesma forma se estivesse fazendo um livro a respeito do presidente da República. Como pondera Correia (2004, p.226), a “proximidade do senso comum e do mundo da vida” traz “potencialidades democráticas para o jornalista e para a totalidade da indústria midiática”. Ele recomenda que os profissionais, inspirados em Schutz, absorvam a abordagem etnometodológica da sociedade, “tornando possível a busca de novos ângulos, de outras formas de olhar e de outros âmbitos de significado que não sejam apenas os dominantes da cotidianeidade” (CORREIA, 2004, p.226). Nesse sentido, não só um profissional de livros-reportagens, que conta com mais controle de sua produção e visão autoral, mas qualquer jornalista mais esforçado, pode lutar pela autonomia de organização midiática de um sistema de relevâncias e tipificações menos preconceituoso,

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esquemático ou mercadológico. E, ainda, mais afeito ao papel do jornalismo como produção de conhecimento e reflexão crítica.

3.REFLEXÕES DE GADAMER: SUPERANDO PRECONCEITOS Fator essencial para entender a concepção de hermenêutica para Gadamer, conforme alerta Silva, é a sua definição de preconceito, que, “muito mais do que seus juízos” seriam a “constituição histórica do seu ser” (GADAMER apud SILVA, 2011, p. 120). Preconceitos seriam juízos prévios que nos movem a confirmá-los ou refutá-los na experiência dialógica com outros, consciência que deve ser cara ao cotidiano jornalístico, independente da tendência a tipificar o mundo de forma apressada. Como afirma Gadamer (idem, p. 221), os preconceitos não são necessariamente “injustificados e errôneos (...), mas constituem as linhas de orientação prévia que tornam possível a nossa experiência (...) predisposições de nossa abertura ao mundo”. No entanto, só é possível “distinguir entre preconceitos adequados e inadequados, iluminadores e obscurantes” (ibidem, p.222) quanto mais consciência tivermos do papel que eles exercem em nossa consciência subjetiva. Nesse sentido, a “compreensão e a comunicação” são elementos essenciais para essa superação e a prática jornalística precisa estimular constantemente essa reflexão no seu processo. Assim como a nossa pré-compreensão do mundo é moldada pela história, na concepção de Gadamer e de outros autores, o ato de compreender não deve ser entendido como “uma simples reconstituição dos pensamentos ou vivências de outrem, mas como um processo de entendimento e como uma procura de acordo sobre determinado assunto” (SILVA, 2011, p.225). Por isso, para Gadamer, no encontro com o outro, que aqui pode ser interpretado como o diálogo profissional com os personagens que farão parte dos livros-reportagens, deve estar prevista uma fusão de horizontes, ou hermenêutica de integração. “O resultado de uma fusão de horizontes não é a explicitação de um sentido prévio (...), mas a emergência de algo (uma nova perspectiva sobre o mundo ou um determinado assunto) que anteriormente não existia” (GADAMER apud SILVA, 2011, p.225). Essa postura desafiadora pode ser adotada pelo autor de livros-reportagens, adaptando o que diz Gadamer. Comunicar-se não seria impor uma opinião sobre a dos outros, nem mesmo a soma de visões subjetivas de mundo, mas algo novo, a “transformação de ambas”. Não é mais a minha “nem a tua opinião, mas sim interpretação comum do mundo”, o que gera a “solidariedade moral e social” (GADAMER, apud SILVA, p.229). Mais do que em uma produção de uma notícia, limitada pela pressão das rotinas produtivas, a elaboração de um texto de grande reportagem para se transformar em livro costuma proporcionar ao jornalista autor uma visão bem mais plural das realidades com as quais está entrando em contato. No entanto, se ele não adota como premissas a proposta da humanização e este olhar de fusão de horizontes com o outro, de nada valem as vantagens do modo de produção de uma obra desse tipo. O profissional já partirá a campo com uma história traçada, preconceitos realçados e com a predisposição de ajustar a realidade a um princípio esquemático e limitador. Mesmo em textos enormes e elaborados com paciência, como no caso dos livros-reportagens. Exemplo de uma postura aberta à riqueza de um personagem que seria, talvez, condenado previamente na rotina de uma editoria de Polícia tradicional, foi a do jornalista

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Klester Cavalcanti, na produção do livro “O nome da morte - a história real de Júlio Santana, o homem que já matou 492 pessoas”. No texto introdutório escrito pelo autor, Cavalcanti (2006) explica que foram necessários sete anos de conversas para que o assassino de aluguel autorizasse a colocar o seu nome verdadeiro no livro. Os contatos começaram em 1999 e prosseguiram, na média de uma conversa mensal, a princípio telefônicas e mais tarde presenciais. A intenção era buscar entender um assassino profissional que, em 35 anos, matou quase 500 pessoas. Mortes registradas em um caderno, com “data, local do crime, quanto ele recebeu pelo serviço e, o mais importante, os nomes dos mandantes e das vítimas” (CAVALCANTI, 2006, p.13). Como assumiu uma postura de não julgar previamente o seu entrevistado, Cavalcanti exercitou a fusão de horizontes, confrontando seus preconceitos e derrubando-os à medida que foi conhecendo melhor o seu personagem. Esse propósito fica claro quando o jornalista relata a primeira entrevista telefônica: “Pela conversa e tom de voz, Júlio não me pareceu um sujeito violento nem agressivo. Falava de forma compassada, serena e tinha um carregado sotaque nordestino” (idem, p.16). O autor também contou com a paciência. “A cada ligação, nossa relação ficava mais estreita. Sentia que ele passava a confiar mais em mim e a contar suas histórias de forma cada vez mais sincera e emocionada” (CAVALCANTI, 2006, p.17). Porém, só em 2006 é que o personagem aceitou que o seu nome e mesmo uma foto com efeitos técnicos para tornar o seu rosto irreconhecível fossem publicados, finalmente permitindo a concretização do projeto do livro. “Júlio me disse que tinha decidido largar a vida de matador para viver com a mulher e os dois filhos em outro estado, longe do Maranhão” (idem). Mesmo com a autorização e anos de coleta de informações telefônicas, Cavalcanti fez questão de marcar um encontro presencial com o seu personagem. Outra atitude que demonstra a intenção de ampliar o diálogo e saber “que aparência ele tinha, como andava, como se sentava, como sorria” (ibidem). O relato mostra como o jornalista lutou para superar preconceitos arraigados. Ele passou três dias “ao lado de um homem calmo, bem-humorado, caseiro, carinhoso com a mulher e com os filhos. (...) Perfil bem diferente dos assassinos que povoam a literatura e o cinema” (CAVALCANTI, 2006, p.18). Na ótica de Gadamer, segundo a interpretação de Silva, o eu pode abrir-se “genuinamente ao outro, reconhecendo-o como um parceiro de conversação que nos interpela e nos obriga a discutir a verdades sobre um assunto e, eventualmente, a rever as nossas crenças” (SILVA, 2011, p. 230). Ao lidarem com realidades de violência e opressão ao ser humano e mesmo de choque de valores, tanto Caco Barcellos quanto Klester Cavalcanti – ambos premiados por suas obras – encararam um desafio que poderia até mesmo ser mal interpretado pelo público final, o leitor. É comum a visão preconceituosa com relação a “jornalistas de Polícia” de que eles estariam “dando voz” a criminosos. Perspectiva que acabou não se concretizando, já que houve boa acolhida nas livrarias e por parte da crítica.

4. OLHAR DE WITTGENSTEIN: O JORNALISTA PARTICIPANTE Wittgenstein (apud SILVA, 2011b, p.136) apresenta a perspectiva do observador participante como aquele que procura compreender uma comunidade “a partir do seu interior ou à luz do seu próprio contexto prático e cultural”. Ela é colocada em oposição

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à definição do observador desinteressado, que nutre a pretensão de entender os agrupamentos humanos de um ponto de vista externo. O trabalho da jornalista Eliane Brum pode muito bem ser enquadrado na primeira categoria. No livro “O olho da rua” é justamente essa postura que ela adota, em reportagem com parteiras do Amapá. Muitas vezes o profissional jornalista pode encontrar um abismo cultural entre a sua visão de mundo e o das realidades com as quais ele se depara. Wittgenstein, segundo aponta Silva, acredita que as diferenças ao nível das culturas e das práticas comunitárias podem “comprometer a compreensão e a comunicação”. Mas, como sempre existem aspectos “do comportamento humano partilhados permite-se estabelecer, em princípio, a possibilidade da comunicação” (SILVA, 2011b, p.137). Para Wittgenstein, a linguagem só é “inteligível num contexto prático que remete para um cenário comunitário mais amplo” e a compreensão só é possível “na base de algum consenso pragmático ou de afinidades entre formas de vida” (SILVA, 2011b, p.138). Na obra mencionada, Eliane Brum (2008) escreveu prólogos para acompanhar cada uma das reportagens, justamente para explicar o seu processo de comunicação com os personagens. Sobre a experiência que resultou no texto “A floresta das parteiras”, a jornalista reflete a respeito da importância da escuta. Escutar, para a repórter, é “não interromper as pessoas quando elas não falam na velocidade que a gente gostaria ou com a clareza que a gente desejaria e, principalmente, quando elas não dizem o que a gente pensava que diriam” (BRUM, 2008, p. 38). Durante o contato com as parteiras da floresta amazônica, a repórter percebeu que a forma como elas elaboravam as suas representações da realidade no discurso eram tão belas que era como se as palavras também nascessem “dessas mulheres extraordinárias de parto natural (...) emergiam como literatura da vida real” (idem). Eliane Brum (ibidem) explica que as suas personagens falavam “tão bonito e com uma variedade e uma fundura tão impressionantes”, que o seu trabalho foi mínimo. “Bastava escutar e anotar cada suspiro para não perder nada. (...) Nem que eu estivesse fazendo ficção e pudesse inventar, eu chegaria perto da beleza com que elas se expressavam”. A profissional chama esse método de “psicografia de gente viva” (BRUM, 2008, p.39). Entretanto, esta não é uma postura de observadora desinteressada, pois trabalha com o mergulho na compreensão do outro. E há por parte de Eliane Brum uma clara noção da transformação que o seu contato com as fontes causa na sua forma de ver o mundo. “(...) Só tem graça ser repórter quando nos entregamos à reportagem e deixamos que ela nos transforme. Se um dia eu voltar a mesma de uma viagem para o Amapá ou para a periferia de São Paulo, abandono a profissão” (BRUM, 2008, p. 39). O curioso é que todas as reportagens que compõem o livro foram escritas para a revista Época. Ou seja, mesmo atada aos processos produtivos e prazos de fechamento, foi possível a essa repórter adotar essa postura mais aberta com relação às suas fontes. Ao tratar das formas de produção do livro-reportagem, Lima (2009, p. 9) ressalta a humanização como uma forma de evitar estereótipos, “visando retratar os seres humanos na sua inteireza complexa, com virtudes e defeitos”. Para tanto, o princípio chamado de imersão é essencial. “O autor precisa ir a campo, ver, sentir, cheirar, apalpar, ouvir os ambientes por onde circulam os seus personagens (...). Deve vivenciar parte das experiências de vida que eles vivem” (LIMA, 2009, p.373).

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Filósofos como Wittgenstein ajudaram a demonstrar que o fenômeno da compreensão não pode ser explicado apenas a partir dos “processos mentais, entidades físicas ou abstratas” (SILVA, 2011b, p.417). Deve-se buscar, sim, a observação atenta à “esfera social pragmática”. Lições que o jornalista não pode prescindir, mesmo imerso nas rotinas e certos maniqueísmos dos “saberes” da profissão.

5. HABERMAS: POR UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Tanto Gadamer quanto Wittgenstein e mesmo Schutz trouxeram avanços significativos para a Filosofia da Linguagem, inserindo, cada qual ao seu modo, os conceitos da interação social e da complexidade das relações práticas humanas como condição para a compreensão. No entanto, a postura crítica de Habermas e sua Teoria da Ação Comunicativa clareiam a reflexão a respeito da ética do jornalista na interação com os seus personagens. Bem como o entendimento que as condições de produção dos meios de comunicação podem gerar distorções sistemáticas no processo. Para Habermas (2012, p. 673), como a razão tecnológica e econômica tem a forma de um “poder quase-natural”, inclusive amealhando a “infraestrutura comunicativa de mundos de vida amplamente racionalizados”, cabe ao cientista social (e porque não ao jornalista?) refletir a respeito dos limites das posturas positivistas ou puramente hermenêuticas. Essas se mostraram “incapazes de decifrar os paradoxos da racionalização social”, já que não levam em conta, muitas vezes, a “constituição histórica dos seus campos de objetos” (HABERMAS, 2012, p. 674). Nesse sentido, o livro-reportagem, como exercício diferenciado do fazer jornalístico menos submetido a rotinas hierarquizadas; a influências de um grupo cultural e do poder legitimado e, principalmente, aberto à possibilidade de uma postura mais autoral e paciente do jornalista com relação aos seus personagens e público, reúne condições de resgate perene do poder da esfera pública. Na opinião de Habermas, mesmo nas grandes corporações de comunicação, que ajudam a construir o sentido da vida para a maioria das pessoas, “(...) a exploração do potencial autoritário é sempre precária, porque nas próprias estruturas da comunicação está inserido o contrapeso de um potencial emancipatório” (HABERMAS, 2012, p. 703). A mídia não consegue “(...) se esquivar das obrigações que resultam de seu contrato jornalístico sem entrar em conflito” (HABERMAS, 2012, p.722). Conforme a leitura de Marcondes (2000, p. 111) a respeito da proposta de Habermas, “(...) o uso da linguagem consiste em um ato de entendimento mútuo, levando (...) a um acordo fundamentado, justificado, ao qual se chega através do diálogo (...), da possibilidade de retornar, interrogar o discurso”. Portanto, no diálogo entre o jornalista e suas fontes e também com os seus leitores deixar claro os papéis de “(...) validação, explicação e justificação”, tornando transparentes as regras do debate, sem que haja um sentimento de superioridade de qualquer um dos lados, é condição essencial para emancipar o discurso jornalístico do seu ranço ideológico. Este é em muito gerado pelas suas condições específicas de modo de produção capitalista. A postura de constante reflexão por parte do jornalista deve fundamentar todo o seu trabalho. É preciso ter por base o entendimento central de Habermas segundo a qual há distorções na situação ideal de fala, “originárias da própria estrutura social, havendo

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uma assimetria na distribuição dos papeis linguísticos-sociais, nas regras do discurso e em seu controle” (MARCONDES, 2000, p. 112). Os exemplos das posições éticas com relação aos personagens por parte de Caco Barcellos, Klester Cavalcanti e Eliane Brum são patentes para indicar que é possível desenvolver um trabalho jornalístico fundamentado na “ideia de reciprocidade e intercâmbio de papeis” (idem). É preciso considerar, no entanto, que esse ideal normativo é muito complexo. Mas, como já ficou claro, na produção de um livro-reportagem parece encontrar mais recepção. Não são poucos os momentos em que os jornalistas aqui mencionados entraram em um sério processo de autocrítica e dúvidas a respeito dos seus rumos, pois estavam lidando com comunidades muito díspares do seu cotidiano e mesmo com outras lógicas e sentidos de interpretar o mundo. Portanto, para Habermas, na interpretação de Marcondes (2000, p.117), “(...) um pensamento crítico caracteriza-se pela capacidade de considerar visões de mundo e formas de visão alternativas”. Medina (2007, p. 23) pondera que nos estudos das relações entre jornalismo e literatura leva-se mais em conta a questão do estilo do que a “prática relacional (signo de relação)”. Ao refletir sobre o trabalho dos jornalistas com as histórias de vida dos protagonistas sociais, Medina alerta: se o repórter, por decisão “técnica ou atrofia afetiva, descartar a viagem à subjetividade do outro”, vai resolver apenas “de forma tosca a trama da história de vida. Na maior parte das vezes, apelando para a frieza linguística da entrevista pergunta-resposta”. (MEDINA, 2007, p.24). Para narrar as experiências cotidianas, sobretudo dos anônimos, sugere Medina (idem), “o signo de relação se move no horizonte do desconhecido, do misterioso, do imprevisível”. Mesmo lidando com criminosos, Caco Barcellos e Klester Cavalcanti evitaram se colocar em uma postura de superioridade. Abriram suas sensibilidades para as formas de vida particulares das normatizações internas rígidas do mundo do tráfico de drogas, no caso do primeiro. E às razões explicitadas por um matador juramentado, no segundo. Estabeleceram “contratos” com regras claras e justificadas na relação com suas fontes, respeitando-as como seres humanos. Procuraram deixar claro para os seus personagens as consequências do relato daquelas realidades sistematizadas na força de um livro, meio de comunicação perene e que exige do leitor um esforço bem maior de interação crítica e reflexão. Foram além de um olhar distanciado e factual e procuraram entender a contemporaneidade mergulhando na realidade com postura crítica. Abandonar os modelos interpretativos provisórios da profissão, de origem positivista, como a ilusão da completa objetividade; dos valores-notícia comerciais; da arrogância do entrevistador apressado em busca de aspas para justificar suas próprias teorias. Esse pode ser um processo doloroso e muito difícil para o jornalista, mas necessário. A vantagem é que quase sempre o resultado será transformador, tanto para os profissionais da informação quanto para os seus personagens.

6. ELEMENTOS PARA UMA CONCLUSÃO: ABERTURA AO DIÁLOGO Ao escrever um livro-reportagem, o jornalista ingressa em um território de busca de significações das interações sociais da realidade a serem interpretadas, que apresenta aspectos diferenciados das rotinas produtivas com as quais está afeiçoado nos meios de comunicação tradicionais. Bem mais liberto das amarras da cobertura diária

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rotinizada, com limites de tempo e espaço, em tese, o contato com o mundo da vida dos personagens, essencial para o seu trabalho, pode se dar como um processo dialógico crítico e transformador. Com regras claras para o interpretante e o intérprete e marcada pelo potencial emancipatório. Mas essa situação ideal de comunicação, na ótica de Habermas, não se concretiza apenas com o uso de técnicas comuns da profissão. Estas geralmente visam a objetivação e tipificação das realidades, enquadradas a partir de modelos prévios de concepção do mundo que muitas vezes os jornalistas reivindicam como saberes profissionais históricos e culturais de reconhecer e hierarquizar o que é relevante. Se o jornalista, pelo contrário, não estiver aberto a surpreender-se, não entender que está ingressando naquela comunidade humana de significados com um sentido de intersubjetividade aguçado, como ressalta Schutz, vai acomodar-se na postura de observador desinteressado e contribuir para estereotipar os seus personagens. Nesse sentido, a perspectiva da fusão de horizontes do jornalista (marcado pela sua cultura profissional) e dos seus personagens, buscando compreender como estes seguem regras, reconhecem ou contestam as instituições sociais, deve se dar com o mínimo de imposição e com consciência dos preconceitos pré-existentes, como frisa Gadamer. A situação que se estabelece entre o jornalista e suas fontes no prazo mais dilatado de produção que o livro-reportagem proporciona é contexto favorável para confrontar as diferentes redes conceituais presentes em uma comunidade. E também para perceber, com paciência e abertura, como se dão as práticas cotidianas da linguagem, na perspectiva de Wittgenstein. Mas o alerta de Habermas a respeito do perigo do observador social incorrer tanto em uma visão positivista de distanciamento quanto em um deslumbre pelo modo de vida dos seus personagens – que pode esconder distorções ideológicas – serve como parâmetro mais recomendável. A postura profissional de Caco Barcellos com a comunidade de traficantes de drogas; Eliane Brum com as parteiras da Amazônia e de Klester Cavalcanti com um assassino de aluguel representam exemplos de que é possível considerar o direito à alteridade ao narrar o real, principalmente no caso da produção de um livro-portagem. Se esses ou outros tantos repórteres que se lançam na missão de compreender comunidades ou personagens incomuns ou desviantes das normas tipificadas da sociedade não agirem com uma perspectiva crítica, o esforço será em vão. Mesmo com mais tempo para entrevistas, mais espaço para escrever, mais liberdade autoral de angulação permitidas, em tese, pelo meio de comunicação livro-reportagem, não será atingido o estágio da entrevista como diálogo emancipador. Ou seja, com as regras democráticas claramente estabelecidas no jogo da interpretação e narração do real.

7.REFERÊNCIAS Barcellos, C. (2003). Abusado: O dono do morro Santa Marta. Rio de Janeiro: editora Record. Brum, E. (2008). O olho da rua. Rio de Janeiro: Globo Livros. Cavalcanti, K. (2006). O nome da morte: A história real de Júlio Santana, o homem que já matou 492 pessoas. São Paulo: Editora Planeta.

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Correia, J. C. F. (2011). Alfred Schutz: algumas notas sobre uma fenomenologia da comunicação. In: Santos, J. M.; Alves, Pedro M. S.; Serra, J. P. (Orgs). Filosofias da Comunicação. Covilhã/Portugal: Livros LabCom, Universidade da Beira Interior. Gadamer, H.-G.. Wahrheit and Methode: Ergänzungen – Register (Gesammelt Werke, Bd 2), Tübingen, J.C.B. Mohr, 1999. García, M. R.. (2012) Intersubjetividad y comunicación: El encuentro alter-ego como eje conceptual para pensar La relación entre filosofía y pensamiento comunicacional. In: García, M. R. (coord.). Filosofía e Comunicación: Diálogos, encuentros y posibilidades. México: Cecyte. Habermas, J. (2012). Tarefas de uma teoria crítica da sociedade. In; Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Editora Martins Fontes. Marcondes, D. (2000). Filosofia, Linguagem e Comunicação. São Paulo: Editora Cortez. Medina, C. (2007). Jornalismo e signo da relação: a magia do cinema na roda do tempo. In: Revista Líbero, Ano X-nº19. Silva, R. S. (a). (2011) Gadamer e a comunicação. In: Santos, J. M.; Alves, P. M. S.; Serra, J. P. (Orgs). Filosofias da Comunicação. Covilhã/Portugal: Livros LbCom, Universidade da Beira Interior. Silva, R. S. (b). (2011) Wittgenstein e a comunicação. In: Santos, J. M.; Alves, P. M. S.; Serra, J. P. (Orgs). Filosofias da Comunicação. Covilhã/Portugal: Livros LbCom, Universidade da Beira Interior. Traquina, N. (2005). Teorias do jornalismo: Porque as notícias são como são. Volumes 1 e 2. Florianópolis: Insular.

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Avenida da Legalidade e da Democracia: narrativa jornalística e enquadramento da memória nos media Avenue of Legality and Democracy: journalistic narrative and memory framework in the media Ca mil a Garcia Kieling 1

Resumo: Em outubro de 2014, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre promulgou o projeto de lei que alterou o nome da Avenida Presidente Castelo Branco para Avenida da Legalidade e da Democracia. O processo de mudança gerou amplo debate, trazendo ao âmbito midiático disputas nos campos da história e da memória e manifestando sua relação com elementos estruturantes da narrativa jornalística (MOTTA, 2004). Interessa-nos compreender de que forma o jornalismo serviu-se da história, da memória e das contradições da realidade cotidiana para construir sua própria narrativa sobre o tema, através de três textos publicados no site do jornal Zero Hora. Para tanto, discutimos conceitos de Nora (1993) e Pollak (1989), autores que dinamizam a relação da memória com o tempo presente. Em nosso recorte, o jornalismo tende a abordar os acontecimentos de forma pragmática, tendendo a estabilizar as ambiguidades através do foco no factual. Ao mesmo tempo, essa narrativa complexifica a intriga quando assume que os dilemas em torno do simbólico são centrais e atreve-se a investigá-los.

Palavras-Chave: Narrativa. Jornalismo. Memória. Legalidade. Logradouros Públicos.

Abstract: In October 2014, the City Council of Porto Alegre passed the bill that changed the name of the President Castelo Branco Avenue to Avenue of Legality and Democracy. The changing process has generated extensive debate, bringing to the media disputes in the fields of history and memory and expressing its relation to structural elements of journalistic narrative (MOTTA, 2004). We are interested in understanding how journalism has used the history, memory and contradictions of everyday reality to build his own narrative on the subject through three texts published in Zero Hora newspaper’s website. Therefore, we discuss concepts of Nora (1993) and Pollak (1989), authors that streamline the relationship of memory and the present. In our sample, journalism tends to approach the events in a pragmatic way, tending to stabilize the ambiguities by focusing on factual. At the same time, this narrative complexifies the plot when assumes and investigates symbolic dilemmas.

Keywords: Narrative. Journalism. Memory. Legality. Public Spaces. 1.  Doutoranda em Comunicação Social no PPGCOM da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre pela mesma instituição (2010). [email protected].

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INTRODUÇÃO M 1º de outubro de 2014, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, capital do Estado

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do Rio Grande do Sul, promulgou o projeto de lei de autoria dos vereadores Pedro Ruas e Fernanda Melchionna, ambos do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que alterou o nome da Avenida Presidente Castelo Branco, principal via de acesso à cidade, para Avenida da Legalidade e da Democracia. O processo de mudança gerou amplo debate, trazendo ao âmbito midiático disputas nos campos da história e da memória, permeadas por questões do presente e projeções para o futuro. No campo jornalístico, repercutiu a dimensão simbólica dos acontecimentos, para além dos procedimentos legais e administrativos que efetivaram a alteração. Interessa-nos compreender de que forma o jornalismo serviu-se da história, da memória e das contradições da realidade cotidiana para construir sua própria narrativa sobre o tema. Para tanto, selecionamos três textos de diferentes gêneros publicados no site do jornal Zero Hora: Troca de nome da Castelo Branco não apaga a História, de cunho opinativo; No debate entre Castelo Branco e Legalidade, como tratar a história; e a notícia Novas placas da Avenida da Legalidade custarão R$ 2,3 mil. Nesse percurso, recorremos aos pressupostos teóricos de Nora (1993) e Pollak (1989), os quais dinamizam a relação da categoria memória com a comunicação porque, no caso do primeiro, está embutida a problematização da memória como produto (também) da midiatização; no segundo, está a perspectiva de que a memória é construção enquadrada no presente.

LOGRADOUROS PÚBLICOS: ESPAÇOS DE NEGOCIAÇÃO DA MEMÓRIA A mudança de nome de espaços públicos não é novidade. Em Porto Alegre, por exemplo, a Praça Quinze de Novembro, a famosa Praça Quinze, era denominada, nos primeiros anos do século XIX, Praça do Paraíso. Em 18 de setembro de 1869, o local começou a ser urbanizado e passou a chamar-se Praça Conde D’Eu, em homenagem (em vida) a Gastão de Orléans, príncipe imperial consorte do Brasil (marido de D. Isabel, filha de D. Pedro II) que atuou na Guerra do Paraguai (1864-1870). Atualmente, pela lei do município, é vedado denominar logradouros ou equipamentos públicos com nomes de pessoas vivas. À proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, seguiu-se uma sequência de mudanças de nomes de espaços públicos e uma resolução de 11 de dezembro de 1889 retirou a homenagem ao representante da família imperial e adotou para a praça o nome Quinze de Novembro. A Rua da Praia, que ainda hoje é conhecida pelo nome original, foi rebatizada como Rua dos Andradas em 1865, em homenagem ao aniversário da Independência do Brasil (FRANCO, 1992). Há ainda casos mais recentes na cidade, como a denominação Largo Zumbi dos Palmares em 2002 para o antigo Largo da Epatur e, no Rio de Janeiro, tramita a alteração, já aprovada pela Comissão de Cultura da Câmara, do nome da Ponte Rio-Niterói, que de Costa e Silva passaria a chamar-se Herbert de Souza – Betinho2. Para que se entendam os múltiplos impactos que repercutem na mudança de denominação em questão em nosso artigo (de Avenida Presidente Castelo Branco para 2.  http://oglobo.globo.com/rio/comissao-da-camara-aprova-mudanca-de-nome-da-ponte-rio-niteroi-decosta-silva-para-betinho-14543237. Acesso em: 25 de nov. 2014.

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Avenida da Legalidade e da Democracia), cabe um breve resgate. O marechal Humberto de Alencar Castelo Branco assumiu a presidência do Brasil – escolhido por um Congresso submetido a um Ato Institucional – 12 dias depois do golpe civil-militar de 1964, que colocou o país sob uma ditadura por 21 anos (SKIDMORE, 1988). Castelo governou até março de 1967, período no qual ocorreram graves violações constitucionais e aos Direitos Humanos. De acordo com o vereador Pedro Ruas, esta primeira denominação da avenida foi decidida de forma arbitrária e efetivada através de um comunicado dos Correios, sem passar pela Câmara Municipal, por influência do presidente (também militar) Emílio Garrastazu Médici que, na ocasião da inauguração da Freeway – estrada que liga Porto Alegre ao litoral norte, em 23 de setembro de 1973 –, contrariado com o nome em língua inglesa, sugeriu que o ex-presidente, morto em julho de 1967, fosse homenageado no trecho de via expressa que liga a rodoviária da cidade à estrada3. A Legalidade foi o movimento liderado em agosto de 1961 pelo então governador do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que garantiu o cumprimento da constituição e a posse do vice João Goulart quando o presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo. Do Palácio Piratini, Brizola resistiu política, militar e midiaticamente, através da Cadeia Radiofônica da Legalidade, um sistema de rádio que furou o bloqueio da censura e garantiu a comunicação com a população e a resistência aos golpistas (FERREIRA, 2014). A escolha deste evento para substituir a homenagem ao ditador é de grande valor simbólico, porque ele marca justamente a resistência ao movimento político e militar que, 3 anos depois desferiu o golpe que deu início à ditadura militar no Brasil. Na exposição de motivos que constam do projeto de lei, os vereadores autores da proposta afirmam de forma clara o objetivo eminentemente simbólico da mudança: [...] homenagear as gaúchas e os gaúchos que participaram e apoiaram o Movimento da Legalidade, ocorrido no ano de 1961, e refazer o sentido da história do nosso País, lembrando fatos que contrapõem o regime autoritário civil-militar que vigorou no Brasil no período de 1964 a 1985 e que foi marcado por diversos crimes contra a humanidade (PORTO ALEGRE, 2014, p. 1, grifo nosso). [...] Por certo, a medida aqui proposta configura uma prática institucional capaz de ressignificar a história do nosso País, pois a alteração do nome da Avenida Presidente Castelo Branco para Avenida da Legalidade garantirá, no mínimo, uma reflexão da sociedade sobre as violações perpetradas pelo regime civil-militar, ao propor a lembrança daqueles que defenderam os direitos humanos nesse período, mesmo sofrendo as violências por parte dos agentes do Estado. Ou seja, traremos à discussão coletiva os diversos abusos cometidos pelo anterior regime, permitindo aos cidadãos tomarem consciência de quão perversa foi a ditadura e repudiarem essa forma de governo, construindo e invocando no seu interior a ideia de não repetição desses abusos. (PORTO ALEGRE, 2014. p.3).

Antecipando-se às críticas e entraves de teor burocrático/pragmático, o texto do projeto preocupou-se em esclarecer que a mudança “não afetará o cotidiano de nenhuma 3.  Em http://www.sul21.com.br/jornal/111projeto-de-lei-e-promulgado-e-avenida-castelo-branco-da-lugara-avenida-da-legalidade-e-democracia/. Acesso em: 29 nov. 2014.

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cidadã ou cidadão porto-alegrense”, por tratar-se de “uma via de trânsito rápido, ou seja, sem acesso às moradias, aos comércios ou às indústrias da cidade” (PORTO ALEGRE, 2014. p.2). Em contraponto aos inexistentes incômodos ou custos burocráticos, está a mudança em si, que é até mesmo minimizada: “haverá apenas uma mudança simbólica no espaço em comento, ou melhor, uma ressignificativa e proposital mudança simbólica” (PORTO ALEGRE, 2014. p.2, grifo nosso). Não foi a primeira vez que se tentou mudar o nome da Avenida Presidente Castelo Branco. Em 2011, na efeméride de 50 anos da Legalidade, a proposta – neste momento, para Avenida da Legalidade – foi rejeitada pela Câmara de Vereadores, obtendo apenas 12 votos favoráveis. Em 2014, quando completaram-se 50 anos do golpe civil-militar de 1964, adicionou-se a palavra “Democracia” à proposta de novo nome. O projeto enfrentou críticas e resistência, mas foi sancionado. A aprovação da lei pela Câmara ocorreu em 27 de agosto de 2014 e contou com o voto favorável de 21 dos 31 vereadores4. Na sequência, o prefeito teve um prazo de 15 dias úteis para avaliar o projeto, podendo vetá-lo ou promulgá-lo. José Fortunati absteve-se, com alegação baseada no artigo 8º da Lei Complementar 320/94 do município5, que prevê a consulta prévia aos moradores domiciliados nos limites do logradouro que terá a denominação alterada. O silêncio do prefeito surpreendeu, pois era esperado que optasse por promulgar a lei, já que é filiado ao PDT (Partido Democrático Trabalhista), fundado em 1980 por Leonel Brizola, líder da Legalidade. O entrave aprontado pelo prefeito não avançou, porque a via é de trânsito rápido, sem acesso direto a comércio ou residências. Assim, no dia 1º de outubro de 2014, o projeto de lei foi sancionado pelo presidente em exercício da Câmara, Mauro Pinheiro (PT). Em 21 de novembro, foram instaladas duas placas de sinalização indicando o novo nome: Avenida da Legalidade e da Democracia.

MEMÓRIA: UMA CONSTRUÇÃO ENTRE O PRESENTE, O PASSADO E O FUTURO Interessa-nos, no caso que analisamos, compreender, pela via midiática, a construção da memória. Assim, faz-se necessário retomar este conceito, ainda que de forma breve, para explicitar o lugar de onde falamos. Quando Halbwachs (2006) refere-se à memória coletiva, incluindo aí sua face institucional, a memória nacional, o faz em uma perspectiva positiva, agregadora: trata-se da memória que reforça a coesão social, a continuidade, a estabilidade. Na perspectiva de Nora (1993), esse processo é visto de forma crítica, e a memória assume um papel de resistência face à natureza totalizadora da história. Em um mundo completamente historicizado, a memória seria prescindível e a dessacralização, completa: “No coração da história trabalha um criticismo destruidor da memória. A memória é sempre suspeita para a história, cuja missão é sempre a destruir e a repelir. A história é deslegitimação do passado vivido” (p. 9). Porém, a partir da progressiva substituição do Estado-Nação pelo Estado-Sociedade, os lugares de memória passam a ocupar um espaço paradoxal: nascem e vivem do sentimento de 4.  O resultado oficial da votação e os arquivos relativos à tramitação estão publicados em: http://votacoes. camarapoa.rs.gov.br/parlamentares?data=27%2F08%2F2014+00%3A00%3A00&sessao=72&tiposessao=O& tipovotacao=N&votacao=N210. Acesso em: 25 nov. 2014. 5.  http://www.camarapoa.rs.gov.br/biblioteca/integrais/LC320Atualizadaat%C3%A9LC692.htm. Acesso em: 29 nov. 2014.

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que não há memória espontânea, ou seja, é preciso organizá-los, institucionalizá-los para que não sejam varridos pela história; por outro lado, eles não precisariam existir se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem. Em um mundo de aceleração e mudança alavancadas pelos media, “o modo mesmo da percepção histórica dilatou-se prodigiosamente, substituindo uma memória voltada para a herança de sua própria intimidade pela película efêmera da atualidade” (p. 8). Essa nova memória, caracterizada pelo autor como menos espontânea, mais individual e subjetiva e menos social e coletiva, apresenta uma obsessão pela preservação material e pelo arquivamento. Por outro lado, também democratizou-se, ampliando o direito ao arquivo, antes restrito às grandes famílias, à Igreja e ao Estado. Cada um é o historiador de si mesmo (p. 17); venerávamos a nós mesmos através do passado; hoje, queremos nos compreender através dele. O homem-memória é substituído pelos lugares de memória, simultaneamente materiais, simbólicos e funcionais: Se é verdade que que a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para [...] prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro, e é isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memória só vivem de sua aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado imprevisível de suas ramificações. (NORA, 2004, p. 22).

Nesse sentido, a memória torna-se central para a história. Pollak (1989) aponta que especialmente o trabalho da história oral contribuiu para fazer emergir as memórias dos excluídos, dos marginalizados, das minorias. São narrativas que apresentam outra face, uniformizadora e opressora, da memória coletiva nacional. O autor vê a memória como disputa, interessando-se “pelos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias” (p. 4). Conecta o interesse dos pesquisadores por esses processos com o que chama de verdadeiras “batalhas da memória” ocorridas na Europa especialmente a partir dos anos 1970. Apresenta como exemplo os casos das vítimas do regime stalinista (1924-1953), dos deportados sobreviventes que retornaram à Alemanha e à Áustria depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e dos 130 mil alsacianos e lorenos recrutados e incorporados coercitivamente ao exército alemão durante esse mesmo conflito. Até poderem tornar-se legítimas, as memórias dessas vítimas foram proibidas, silenciadas, renegadas, guardadas. A passagem do tempo colabora para que, política e pessoalmente, esse silêncio seja rompido e a memória coletiva, complexificada. O contexto social modifica-se, as testemunhas oculares confrontam-se com a iminência do desaparecimento físico e passam a manifestar o desejo de perpetuar suas lembranças. Nesse ponto, os conflitos são inevitáveis: A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. (POLLAK, 1989, p. 6)

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Assim, Pollak (1989) propõe, em lugar da noção de memória coletiva, a concepção de memória enquadrada, ou seja, submetida a um trabalho de enquadramento construído não de forma arbitrária, mas com base em justificativas negociadas socialmente, alimentadas pela história, construídas em debates amplos, livres e democráticos: “Recusar levar a sério o imperativo de justificação sobre o qual repousa a possibilidade de coordenação das condutas humanas significa admitir o reino da injustiça e da violência” (p. 7). Os rastros desse trabalho de enquadramento são, além da produção de discursos organizados – de historiadores, de organizações civis, de sindicatos, da mídia –, também materiais: vestígios arqueológicos, museus, memoriais, filmes e, como demonstra o caso que analisamos aqui, logradouros públicos. As perspectivas de Nora e Pollak sobre a memória são interessantes para pensar a relação dessa noção com a comunicação porque, no caso do primeiro, está embutida a problematização da memória como produto (também) da midiatização, fenômenos que se aproximam pela sua aptidão à metamorfose, às ramificações, às mudanças; no segundo, abre-se a perspectiva de que a memória é construção enquadrada no presente, o tempo em que atuam os meios de comunicação. Nessa perspectiva, a Avenida da Legalidade e da Democracia constitui-se como um lugar de memória, ao mesmo tempo material, simbólico e funcional e seu enquadramento é, sem dúvida, construído, para além dos processos políticos e administrativos, também através dos media.

NARRATIVA JORNALÍSTICA EM DIÁLOGO COM A MEMÓRIA A tramitação da lei em questão foi objeto de interesse jornalístico. É natural que tenha sido assim, pois trata-se de um tema relevante, que faz emergir muitas feridas abertas da sociedade brasileira, as quais relembram que “nosso presente está construído sobre muitas injustiças” (MATE, 2009). No acontecimento, manifestam-se tanto o passado quanto o presente e as projeções para o futuro. Ele articula em si a complexidade não apenas daquilo que já é considerado parte da história, mas também enraíza-se no presente: na efeméride de 50 anos do golpe civil-militar, nas disputas políticas e memoriais atuais (principalmente aquelas ligadas à atuação da Comissão Nacional da Verdade6), na filiação política do prefeito Fortunati. A noção de acontecimento interessa tanto a historiadores quanto a jornalistas porque constitui a matéria-prima de suas atividades. Veyne (2008) chama de especificidade a característica que torna um acontecimento relevante para a história: o acontecimento específico é aquele que pode ser compreendido, que remete a uma intriga. Historiadores e jornalistas são narradores que não podem ter acesso à totalidade de um acontecimento, não só por restrições temporais, contextuais ou técnicas, mas porque os acontecimentos, 6.  Cabe destacar que o relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado depois da aprovação da mudança do nome da Avenida Presidente Castelo Branco, apresenta a seguinte recomendação: “49. Com a mesma finalidade de preservação da memória, a CNV propõe a revogação de medidas que, durante o período da ditadura militar, objetivaram homenagear autores das graves violações de direitos humanos. Entre outras, devem ser adotadas medidas visando: [...] b) promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas de qualquer natureza, sejam federais, estaduais ou municipais, que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido comprometimento com a prática de graves violações.” (BRASIL, 2014, p. 974).

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eles mesmos, “jamais são pura factualidade, e mesmo o fato não pode ser entendido a partir de uma perspectiva ingênua, como se tivesse uma realidade autônoma e prévia à sua configuração discursiva e mnemônica” (RIBEIRO; BRASILIENSE, 2007, p. 221). As teias da intriga na qual inserimos os fatos podem ser compreendidas em um sentido narrativo, tanto no jornalismo, como na história e na literatura. Motta (2004) coloca em diálogo autores de diversos campos para aprofundar questões fundamentais sobre a relação do jornalismo com a narrativa: “Se o jornalismo produz narrativas, qual é a sua natureza? Onde e como elas se nos revelam?” (p. 01). Através de Ricoeur (1994), complexifica a compreensão do discurso jornalístico enquanto narrativa ao retirá-lo do debate redutor “informação versus opinião” e inserindo-o nas dimensões do tempo, da ética e do ato de leitura: A força narrativa dos enunciados jornalísticos estaria menos nas qualidades narrativas intrínsecas do texto das notícias e reportagens ou no confronto entre o estilo descritivo e o narrativo, mas principalmente no entendimento da comunicação jornalística como uma forma contemporânea de domar o tempo, de mediar a relação entre um mundo temporal e ético (ou intratemporal) pré-figurado e um mundo refigurado pelo ato de leitura. (MOTTA, 2004, p. 11)

Motta (2004) apoia-se em Jauss (2002) para situar a recepção dos textos noticiosos em relação não apenas à realidade cotidiana do leitor, mas também aos seus referenciais estéticos: a recepção do texto jornalístico mobiliza, ao mesmo tempo, os saberes práticos e as experiências imaginárias. Deste ponto de vista, mesmo o mais puro jornalismo factual, o mais duro noticiário econômico, a mais perfeita pirâmide invertida constitui uma narrativa: O jornalismo é uma atividade mimética: representa a vida, as ações dos homens, dos bons e maus homens, relata os dramas, as tragédias, as sagas e as epopeias contemporâneas. As notícias são relatos fragmentados e contraditórios sobre a nossa existência, sobre as nossas dores e os nossos amores, nossos sofrimentos e gratificações, sobre os acasos e contingências que nos afetam. (MOTTA, 2004, p. 15)

Nesse sentido, é preciso analisar de que forma a narrativa jornalística serviu-se da história, da memória e das contradições da realidade cotidiana para falar da mudança de nome da Avenida Presidente Castelo Branco. Três textos publicados no site do jornal Zero Hora parecem-nos pertinentes: Troca de nome da Castelo Branco não apaga a História, assinado pela colunista Rosane de Oliveira em seu blog; No debate entre Castelo Branco e Legalidade, como tratar a história, texto interpretativo de autoria do jornalista Eduardo Rosa; e a notícia Novas placas da Avenida da Legalidade custarão R$ 2,3 mil. Troca de nome da Castelo Branco não apaga a História tende a reforçar uma concepção cumulativa da história, opondo “certo” e “errado” no enquadramento da memória. Nesse sentido, procura, ainda, identificar a proposta de mudança do nome da avenida com uma atitude autoritária. Esses elementos ficam claros já no título, que afirma que a troca de nome “não apaga a História”. Nessa afirmação está embutida a premissa de que a mudança de nome teria como objetivo um apagamento e não a possibilidade de deslocamento simbólico, ressignificação ou enquadramento, na perspectiva de Pollak

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(1989). O texto questiona, afinal, o sentido da mudança. Diante da resposta do vereador Pedro Ruas de que nome de rua é uma homenagem e que o representante de uma ditadura não é merecedor dessa distinção, o texto desenvolve um raciocínio que sugere projeções para o futuro a partir da alteração de nome da Avenida Presidente Castelo Branco: um “revisionismo radical” aplicado de forma desmedida levaria à renomeação em muitos outros casos, como escolas e ruas que carregam o nome de outros ditadores militares ou de Getúlio Vargas, por exemplo. Assim, evoca um modo de operação que só seria possível em regimes autoritários, sem qualquer semelhança com o trâmite democrático efetivado no caso da Avenida da Legalidade e da Democracia: Para corrigir equívocos históricos, um vereador obsessivo mergulharia na nomenclatura das ruas de Porto Alegre ou de qualquer outra cidade em busca de personagens que não deveriam merecer a homenagem. Para isso seria preciso criar uma classificação para as máculas e definir a partir de que grau o homenageado perderia o título. (OLIVEIRA, 27 ago. 2014)

Neste texto fica evidente a inserção da narrativa jornalística na conjugação entre intriga e tempo (RICOEUR apud MOTTA, 2004). Como vimos no trecho anterior, a jornalista dedicou-se a projetar o futuro. Em outra passagem, a autora incorpora à intriga dados que agregam as perspectivas do presente e do passado na narrativa do acontecimento, ao citar a filiação partidária do prefeito José Fortunati: A assessoria de Fortunati diz que ele não tem pressa e que antes de sancionar vai fazer os estudos técnicos necessários, mas é improvável que vete. [...] sendo um dos principais líderes do PDT, não será ele a dizer não a um projeto que homenageia o movimento liderado por Leonel Brizola [...]. (OLIVEIRA, 27 ago. 2014)

O prefeito é colocado frente a um paradoxo histórico: como negar a homenagem a um movimento importante da história do país, encabeçado pelo fundador de seu próprio partido? Ao associar uma mudança simbólica a fatores estritamente pragmáticos ou a uma perspectiva autoritária, pode-se contribuir para a desvalorização do processo democrático, no qual há espaço para que os lugares de memória tenham um enquadramento fundamentado em disputas justas e constitucionais, as justificativas mencionadas por Pollak (1989). A linha de pensamento adotada pela jornalista naturaliza as homenagens arbitrárias, distribuídas pelos apoiadores da ditadura de 1964 por todo o Brasil, desconsiderando o processo, muitas vezes injusto, sobre o qual se estabeleceram e justificando-as simplesmente porque referem o factual: a ditadura existiu, Castelo Branco foi presidente. Há no texto, ainda, outras justificativas pragmáticas, tanto para a negação da mudança quanto em seu favor: apesar de considerado “mais bonito”, o novo nome poderia não “pegar” (“Será difícil para os repórteres de trânsito se acostumarem a chamá-la pelo novo nome”, afirma); e, ainda, o fato de que a troca não acarreta entraves burocráticos à população. O texto No debate entre Castelo Branco e Legalidade, como tratar a história (ROSA, 25 set. 2014) insere os acontecimentos em uma intriga mais complexa. Isso fica demonstrado, principalmente, pelo mote problematizador da reportagem, que aponta diretamente à dimensão simbólica da proposta (“Por trás da possível mudança, no entanto, há um debate

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de como o Brasil deve tratar sua história e sua memória”, afirma no lead) e pela diversidade de fontes consultadas para compor o texto: Carla Simone Rodeghero, professora do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da UFRGS; Raul Ellwanger, coordenador-adjunto do Comitê Carlos de Ré; Fernanda Melchionna, vereadora e uma das proponentes do projeto; Mônica Leal, líder do Partido Progressista (PP) na Câmara de Vereadores; e Carlos Frederico Guazzelli, coordenador da Comissão Estadual da Verdade (CEV-RS). No texto, são pequenas as intervenções do jornalista como narrador: o autor da matéria preferiu construir o texto costurando as falas dos vários entrevistados e contraponto os argumentos de casa um através de citações diretas das fontes. A fala da especialista acadêmica, colocada logo no começo do texto, traz duas chaves importantes para o entendimento da questão: a necessidade de debate público sobre temas ligados à ditadura militar e a impossibilidade da imposição de um esquecimento (ou de um apagamento da história), especialmente em uma democracia. Entre os entrevistados, a maior parte é favorável à mudança, com exceção da vereadora Mônica Leal, que também recorre à suposta neutralidade factual e à tese do apagamento da história para justificar sua negativa ao projeto de lei. A matéria cita sua fala de forma direta: – Discordem ou não, figuras emblemáticas, de uma forma ou de outra, influenciaram a construção da história e precisam ser lembradas. Os acontecimentos passados e seus respectivos protagonistas têm um valor muito grande na construção da história de um povo. O que é um povo sem memória? O que foi consolidado ao longo do tempo não pode ser modificado simplesmente por razões ideológicas ou político-partidárias.

Os demais entrevistados são representantes de instituições que trabalham para trazer à tona a memória de grupos que foram vítimas da ditadura e que, mesmo depois de seu ocaso, tiveram sua memória silenciada, marginalizada e agora, como sinaliza Pollak (1989), manifestam-se e lutam por espaço no enquadramento da memória coletiva. A dimensão do enquadramento da memória, luta engendrada no presente, fica clara também pela fala do coordenador da Comissão Estadual da Verdade, Carlos Frederico Guazzelli: “A renomeação de logradouros públicos constitui uma das ações de memória, verdade e justiça”. Ao final, o texto dialoga com o futuro ao projetar os desdobramentos do debate. Àquela altura, o projeto estava sob avaliação do prefeito e a expectativa era de que Fortunati sancionasse o projeto, especialmente por conta de sua filiação partidária, como mencionamos anteriormente. Novas placas da Avenida da Legalidade custarão R$ 2,3 mil (MAGS, 11 nov. 2014) é uma notícia curta, redigida de forma direta, clara, em linguagem objetiva, mas que também serve para pensar o jornalismo como narrativa e sua participação no enquadramento da memória. A notícia é composta por dois parágrafos eminentemente informativos: o primeiro detalha o custo das placas de sinalização: A mudança do nome da Avenida Presidente Castelo Branco para Avenida da Legalidade e da Democracia acarretará a troca de quatro placas aéreas em Porto Alegre. O custo total da modificação será de R$ 2.343 – três placas custarão R$ 1.765 no total e um modelo maior sairá por R$ 578. Ainda não há data para substituir as placas com o nome antigo, de acordo com a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). (MAGS, 11 nov. 2014)

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O segundo faz um pequeno resgate dos trâmites legais que levaram à promulgação da lei. Logo abaixo, outros dois parágrafos, encimados pelo título “Entenda os nomes” explicam quem foi Castelo Branco e o que foi a Legalidade, oferecendo ao leitor uma narrativa história, também em viés neutro/imparcial. O jornalismo, é notório, serve-se de números, cifras, porcentagens, uma vez que esses elementos conferem precisão e aparência de neutralidade ao seu discurso. Sob o viés narrativo, a objetividade jornalística é categoria amplamente problematizada, e não pode ser encarada como sinônimo de linguagem asséptica: “O jornalismo toma empréstimos da ética para selecionar e apresentar as notícias, mesmo quando prega uma total suspensão de valores e juízo moral” (MOTTA, 2004, p. 16). A notícia, ao centrar-se nos custos financeiros das placas de sinalização, também contribui para o enviesamento pragmático da questão. É evidente que os custos em dinheiro são relevantes socialmente, mas são, também, mais fáceis de precisar do que os valores simbólicos. É justamente nesse tipo de contradição da realidade social que o jornalismo atua e deve centrar sua capacidade interpretativa. Esses números podem ser considerados importantes, não apenas pelo gasto público em si, mas sobretudo por que estão relacionados à Avenida da Legalidade e da Democracia e, nesse contexto, podem ser considerados valores baixos, altos ou justos; relevantes ou irrelevantes, mas é preciso insistir que esse viés não é neutro. A mudança está posta em prática e agora a atuação dos meios de comunicação também tem influência na cristalização do novo nome. Em serviços populares de localização online, como Google Maps e Waze, já figura a denominação Avenida da Legalidade e da Democracia. No noticiário geral também percebe-se o uso da nova nomenclatura, primeiramente acompanhada do lembrete “antiga Castelo Branco”, mas, já em alguns casos, utilizada sem essa complementação. Talvez uma das mais profundas marcas deixadas pelo autoritarismo no Brasil seja a insistência na visão de que conquistas das minorias possam transformar-se em regra absoluta e arbitrária, em “revisionismo radical”. Esse tipo de visão está ancorado em uma perspectiva acrítica sobre o jornalismo e a história, os quais, configurados como “narrativas verdadeiras” são tomados como redutores e estabilizadores das ambiguidades da realidade cotidiana, quando, na verdade, são originalmente inseparáveis da disputa e da contradição, assim como a memória. O jornalismo contribui para o debate quando identifica que os dilemas em torno do simbólico são centrais e atreve-se a investigá-los, conhecer-lhes os contornos, as fronteiras, as tensões. A história e a memória, assim como o jornalismo, são enraizadas nos fatos, mas também nas intrigas em que se inserem e nas disputas que engendram em ambientes democráticos, nas quais a participação dos meios de comunicação e, cada vez mais, das redes sociais, são de grande relevância. Lança-se o desafio de que o enquadramento da memória, na perspectiva de Pollak (1989), seja um caminho pavimentado pela legalidade e pela democracia.

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Uma bruxa no século XX? – percepções e evolução da narrativa do principal crime de Soalhães, Portugal A witch in the twentieth century? – perceptions and evolution of the narrative about the famous crime of Soalhães, Portugal Carla

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Resumo: Em 28 de fevereiro de 1933, uma notícia do Jornal de Notícias sensibilizou a opinião pública em Portugal: o assassinato de uma mulher espancada e queimada viva na freguesia de Soalhães, comarca de Marco de Canaveses, Distrito do Porto. Este artigo, por meio de estudo do caso, procura mostrar a interação e a troca que ocorrem na relação entre comunicação e informação na transmissão dos fatos, fazendo uso dos discursos empregados em diversas fontes. A análise se debruçou sobre os artigos de publicados pelo Jornal de Notícias e Primeiro de Janeiro, jornais que deram cobetura ao fato, os originais da peça de Bernardo Santareno de 1959 – O Crime de Aldeia Velha, obra inspirada nos fatos –, bem como sobre os relatos encontrados no inquérito policial. Procura-se assim, analisar as várias vozes dissonantes e, posteriormente, compreender os vários relatos de acordo com o ethos discursivo. A partir da polifonia presente nos discursos documentados – policial, artístico e midiático – pretende-se mostrar os diversos desdobramentos que a narrativa de um fato pode adquirir dependo da mediação.

Palavras-Chave: Comunicação. Informação. Narrativas. Discursos Circulantes. Mediação.

Abstract: On February 28th, 1933, a story published by the newspaper Jornal de Notícias impacted the public opinion in Portugal: the murder of a woman who was beaten and burned alive in Soalhães, a District of Oporto. This case study shows the interaction and the exchange between communication and information in transmission of facts, using the discourses employed in different sources. The analysis is focused on the articles published by the Jornal de Notícias and Primeiro de Janeiro, on 1959 Bernardo Santareno’s play – The Crime of the Old Village, a work inspired by the newspapers reports – as well as on the police investigation. With the analysis of multiples voices, the main objective is to understand the various reports according to the discursive ethos. From the polyphony present in the documented speeches – police, artistic play and media – this research shows the various developments that a fact’s narrative can acquire depending on mediation.

Keywords: Communication. Information. Narratives. Circulating Discourse. Mediation. 1.  Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, docente da Faculdade de Comunicação da UFBA. [email protected].

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INTRODUÇÃO OMUNICAÇÃO E informação são elementos pertinentes de descrição do real e,

C

nas palavras de Michel Maffesoli (2003), transfiguram a forma banalizada, superficial, em benefício do sentido profundo, com a convicção de

que se algumas fórmulas se disseminam no tecido social é por encontrarem substância no existente. Nesse sentido, elas nunca são neutras. No caso, exprimem o desejo de estar com outro, desejo de participação, de interação e de troca.

Uma dessas fórmulas perpetuadas há muitos séculos em várias culturas diz respeito à magia e religião – que estabelecem “uma existência simbólico-imaginária na qual se inscreve a possibilidade de superação mental de uma realidade social” (Nogueira, 2004, p. 23). Se a esta fórmula somar-se o acontecimento de um crime bárbaro, certamente, a disseminação das informações no tecido social será exponenciada. Em 28 de fevereiro de 1933, uma notícia do jornal português Primeiro de Janeiro impressiona o menino António Martinho do Rosário de dez anos, que mais tarde adotou o pseudônimo de Bernardo Santareno – considerado por muitos o maior dramaturgo português do século XX. Trata-se da notícia intitulada “É queimada em vida uma mulher”, que narra o acontecimento do dia 25 em Portugal: o assassinato de Arminda de Jesus, mulher espancada e queimada viva na freguesia de Soalhães, comarca de Marco de Canaveses, Distrito do Porto. Segundo o jornal, Arminda foi vitimada por seus vizinhos que pretendiam livrá-la do demônio, “Os celerados, estúpidos e inconscientes não mostram o mínimo constrangimento pelo seu crime. E por agora desce o pano sobre o primeiro acto da tragédia”. (Jornal de Notícias, 28 fev.1933).

Figura 1. Jornal de Notícias, 28 fev.1933.

A metáfora com o teatro presente no texto jornalístico deixou de ser um simples exercício de retórica. Baseado em suas impressões deste crime, vinte cinco anos depois

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Bernardo Santareno escreve a peça O Crime de Aldeia Velha – encenada pelo Teatro Experimental do Porto de dezembro de 1959 a fevereiro de 1960. O argumento ganha uma versão cinematográfica em 1964. E foi a percepção do menino António Martinho do Rosário que fixou a história no imaginário do povo português. Este artigo, mediante o estudo de caso do crime da queimada-viva de Soalhães – por meio da análise de conteúdo do processo criminal, artigos de jornal e o roteiro da peça –, procura mostrar a interação e a troca que ocorrem na relação entre comunicação e informação na transmissão dos fatos fazendo uso dos discursos empregados em diversas fontes.

BERNARDO SANTARENO Bernardo Santareno é o pseudônimo de António Martinho do Rosário, nascido em Santarém, em 1920, filho de Maria Ventura Lavareda e de Joaquim Martinho do Rosário. Aos 25 anos, transferiu-se para a Universidade de Coimbra, na qual se licenciou em medicina psiquiátrica em 1950. Para além da Medicina, surgiu o escritor e dramaturgo, sob o pseudônimo de Bernardo Santareno. A obra de Bernardo Santareno pode ser dividida em dois ciclos. O primeiro inserese em um naturalismo poético, apoiado numa linguagem coloquial e estruturado sobre uma problemática sexual – com temas como o adultério, a virgindade, o papel da mulher no casamento e a moral religiosa – e cuja ação tende a finais trágicos. Fazem parte desse ciclo: A Promessa, O Bailarino, A Excomungada – publicadas no mesmo livro (1957); O Lugre, O Crime de Aldeia Velha (1959); António Marinheiro ou o Édipo de Alfama (1960); Os Anjos e o Sangue, O Duelo, O Pecado de João Agonia (1961); Anunciação (1962). A partir de 1966, inspirado em Brecht, o trabalho do dramaturgo passa a ser moldado pelo teatro épico adaptado ao seu estilo próprio, tendo como temática os processos sociais turbulentos. Este ciclo é inaugurado com a peça O Judeu, um retrato do calvário do dramaturgo setecentista António José da Silva, executado pelo Santo Ofício. As outras peças são O Inferno (1967), A Traição do Padre Martinho (1969) e Português, Escritor, 45 Anos de Idade (1974) – drama autobiográfico e primeiro original teatral português a estrear depois de restaurada a ordem democrática no país. Em 1979, publicou o livro Os Marginais e a Revolução, uma compilação de quatro peças – Restos, A Confissão, Monsanto e Vida Breve em Três Fotografias. Há ainda a peça O Punho, publicada em livro postumamente em 1987 – Bernardo Santareno faleceu em 29 de Agosto de 1980. Para Santareno, “uma peça de teatro tem de ser conflito – claro e escuro, belo e feio, verdade e mentira, natural e monstruoso. Nunca foi, nem pode ser outra coisa” (SANTARENO, 1967, p. 633). O teatro era algo visceral para o psiquiatra/dramaturgo, cuja crença era que [...] cada homem, limitado e condicionado pela estrutura ético-social, pelas contingências individuais, como que vive uma vida incompleta, medíocre, em relação à que ele secretamente aspira – a vida de cada um de nós é como uma tragédia truncada, ou uma comédia apenas esboçada… E daí a profunda necessidade de, ao lado da vida, existir um centro, um lugar, uma ilha de luz isolada no meio da cidade noturna, em que a paixão e a imaginação possam arder livremente, até o fim, sem as limitações do cotidiano: e assim, nesta ilha de luz, no Teatro, o homem, cada um de nós, pode ver-se realizado, cumprido integralmente,

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pode aferir a sua real potencialidade de paixão, saber de quanto amor e ódio, de quanto bem e mal é capaz; o Teatro dá-nos o desenho completo de nós mesmos, a tragédia ou a comédia totais das nossas vidas prisioneiras. (SANTARENO, 1967, p. 10)

E é inspirado pela notícia publicada no jornal em sua infância que Bernardo Santareno desenha a tragédia em O Crime de Aldeia Velha (1959).

A NARRATIVA DA OBRA TEATRAL Na peça, ao contrário dos fatos que ocorreram no inverno, a ação se desenrola no verão. No primeiro ato, cena IV, toda vestida de preto, Zefa, uma senhora de 70 anos, anuncia que há vinte anos, desde a morte do padre Guilherme, nunca mais um sacerdote pisou naquele chão e que “Deus condenou Aldeia Velha a pagar, com o sangue dos meninos, os pecados do padre Guilherme… que era sem conto!”. (SANTARENO, 1991, p. 292) A personagem ampara sua crença dizendo que não se lembrava de ver falecer, naquela terra, tanta criança miúda como nos dois anos anteriores à morte do padre – que era ruim e amigo do mulherio. Rita, outra senhora de 60 anos, complementa: “Neste ror de tempo, o demônio tomou conta desta terra: Aldeia Velha faz juras pelo diabo!” (SANTARENO, 1991, p.293). A protagonista, Joana, uma clara referência a Joana d’Arc – a mártir francesa canonizada em 1920, que também foi queimada viva –, uma moça de 25 anos, muito bonita e sem pretensões de se casar, suscita a inveja e o rancor das mulheres de sua aldeia. Há, para além de sua beleza e independência, mais um motivo. Rita o explicita: “Toda a gente em Aldeia Velha, toda a gente!, dizia que a tua mãe era bruxa, que deitava mau olhado… (…) Até os cães, mais os gatos, até as estrelas do céu, até o vento e a água do rio… sabiam isso!” (SANTARENO, 1991, p.295). No desenrolar da trama, Antônio, o filho de Rita, e Rui, apaixonados pela moça, travam um duelo mortal. A ira da cidade recai sobre a moça, a quem atribuem uma possessão demoníaca capaz de fazer sucumbir os dois rapazes. Ainda no primeiro ato, cena XIII, Zefa sentencia: “Estão mortos. Foste tu, Joana!! Tu tens o diabo no corpo, mulher! O demônio tomou posse de ti… Possessa, possessa! Tu estás possessa do diabo, Joana!” (SANTARENO, 1991, p.310). O padre recém-chegado à cidade, Júlio, um jovem de 25 anos e filho de Florinda – outra mulher da aldeia –, tenta esclarecer a população e preservar Joana. Chama um velho padre, Cláudio, para ajudá-lo em seus intentos. Contudo, durante a trama, morre o filhinho de outra personagem, Teresa, pouco tempo depois de Joana tê-lo carregado em seus braços. Daí, então, a própria Joana passa acreditar que é má e que padece de uma possessão demoníaca: “Sinto-o no meu sangue…: no meu peito... aqui na minha cabeça... Salva-me, salva-me! Tire-me “isto”, senhor padre!...” (SANTARENO, 1991, p.312). Na visão de Bernardo Santareno, na batalha da Igreja contra a crendice dos aldeães, vence a ignorância. Um grupo de mulheres decide realizar o ritual “fogo santo” e Joana, espontaneamente, submete-se e é queimada viva com a esperança de ressuscitar purificada. Os gritos de Joana ecoam pela aldeia. Os homens correm à casa em que acontece o ritual. Tarde demais. As mulheres comunicam que Joana está morta, uma morte do coração. “Todos os homens se olham entre si: cruelmente, como quem compreende e aceita conscientemente a mentira.” (SANTARENO, 1991, p.369). A peça termina com “sempre a voz monótona das Mulheres, recitando o Padre-Nosso e a Ave-Maria”. (SANTARENO, 1991, p.370).

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Na narrativa romanceada do “Crime de Soalhães”, efetuada por Santareno, encontramos vários elementos das tragédias gregas. A Aldeia Velha sofre pelos erros cometidos no passado pelo sacerdote local. Nessa terra esquecida pela Igreja, nasce Joana com uma maldição que assolava sucessivas gerações de sua família. Ela tinha o poder de seduzir os homens, fascínio que exerceu sobre Antônio, Rui e também sobre o jovem padre Júlio. Além disso, o Destino – uma divindade cega, inexorável, nascida da Noite e do Caos – , trouxe mais uma fatalidade: a morte de um inocente, o filho de Tereza. Esse fato suscitou a lembrança de que várias crianças morreram vinte anos antes e parecia ser o sinal definitivo de que um novo ciclo de desgraças voltaria a ocorrer. Mais um elemento da tragédia grega presente em O Crime da Aldeia Velha é o reconhecimento: Joana reconhece-se como pecadora e isto, invariavelmente, vai levá-la à catástrofe, a uma morte horrível.

A NARRATIVA CINEMATOGRÀFICA

Figura 2. Cena do filme O Crime da Aldeia Velha, 1964.

A versão cinematográfica da peça, produzida em 1964, é considerada uma das principais obras do Cinema Novo Português e teve argumento do próprio Bernardo Santareno e do diretor Manuel Guimarães, artista plástico e cineasta de influências neorrealistas. A produção contou com atores portugueses conhecidos, e foi protagonizada pela atriz francesa Barbara Laage, dublada por Maria Barroso.

Figura 3. Barbara Laage em cena do filme O Crime da Aldeia Velha, 1964.

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A construção fílmica da obra mantém a narrativa original da peça e acrescenta alguns elementos de uma visão pessoal e artística sobre o Estado Novo em Portugal. Jorge Palinhos (2013) aponta para o fato de que no princípio do filme, curiosamente, aparece uma legenda, que informa “Esta história decorre no século passado”. Sabemos que o crime verdadeiro ocorreu na década de 1930, apenas 30 anos antes da produção cinematográfica. Na interpretação de Palinhos, a explicação plausível para esta declaração está longe de ser inocente: [...] ou se pretendia desviar a atenção da censura de que aquilo que se estava a retratar era uma aldeia portuguesa sob o Estado Novo como lugar de fanatismo e ignorância, ou então tratava-se de um comentário irónico, por parte dos autores, sobre uma realidade presente, mas que cuja natureza retrógrada a fazia assemelhar-se mais a um tempo longínquo. (PALINHOS, 2013)

O filme recorre ao uso dos contrastes de luz e sobras para criar ambientes fantasmagóricos. Para PALINHOS (2013), suas metáforas visuais excessivas mostram que a violência é o fruto de uma sociedade de repressão, na qual suas principais vítimas transformam-se nos principais algozes, refletidas na representação das mulheres mais velhas da aldeia – conservadoras, controladoras e presas ao obscurantismo.

A NARRATIVA POLICIAL Na verdade, fora da representação teatral ou fílmica da realidade, os fatos ocorridos em 1933 não tinham o enredo apresentado nos palcos ou nas telas. Arminda de Jesus, a vítima de Soalhães, de 30 anos, era casada, mãe de dois filhos pequenos, e não encontramos nenhuma referência à sua beleza nos textos do inquérito policial, nos autos do julgamento ou nos jornais. Diferentemente de Joana, Arminda era querida por toda sua vizinhança. A narrativa dos fatos ocorridos pode ser reconstruída a partir dos depoimentos presentes no inquérito e no julgamento, transcritos no livro de Pereira Coutinho e Guilherme Pinto, O Crime da Queimada-Viva de Soalhães, editado pela Câmara Municipal de Marco de Canavezes, em 1987. Preocupados com o peso “sobre Soalhães e o seu povo, da triste ‘fama’ de ser a terra do ‘mata e queima’” os autores procuram trazer à luz os eventos que culminaram no assassinato de Arminda de Jesus, um “crime que persiste na mente de muita gente e, agora, quase sempre ampliado pela imaginação de cada um” (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.46). À polícia, o irmão da vítima, José Monteiro Alves, declarou que na noite de 25 para 26, já tarde da noite, sua irmã entrou em casa de Joaquina Couto, a doida, onde um bando de pessoas estava ouvindo a leitura do que julgava ser o livro de São Cipriano. Sua irmã caiu ao chão com uma síncope e a doida começou a gritar “ponham essa mulher lá fora que está excomungada”. Puseram-na então fora de casa em braços, estando o respondente presente, ajudando até a trazê-la para fora. Sua irmã continuou com o ataque, mas então dando risadas e dizendo que via uma estrelinha, mas os outros que não a viam. Como a doida começasse a gritar “batei-lhe quando ela bulir” saíram de casa desta para lhe bater: Manuel Queiroz Correia e os irmãos Francisco Queiroz Correia e António Queiroz Correia,

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batendo-lhe todos os três, sendo este último que bateu menos e lançando-lhe os mesmos, em seguida, o fogo, parecendo ao declarante que quando tal fizeram já a sua irmã estava morta, levando quando muito dez minutos a praticar o crime. O declarante gritou por socorro quanto pôde mas um dos criminosos, o Manuel, mandava-o estar calado, sendo certo que nenhum d’eles queria mal a sua irmã de quem eram amicíssimos, praticando o crime com a ideia que a sua vítima estava excomungada. (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.9-10)

Outra testemunha ouvida, Alexandre de Oliveira – cunhado de Joaquina – apresentou uma narrativa muito semelhante. Pela ótica de um dos réus, Anastácio Pereira – cunhado e compadre de Arminda de Jesus –, obtemos outros detalhes. Como haviam feito na noite anterior, na reunião organizada para que todos orassem pela Joaquina – que parecia trazer o diabo no corpo, […] A certa altura a Joaquina disse para Virgínia e marido que se deitassem no chão que ficavam mortos o que no entender do respondente aconteceu, pois viu-os sem fôlego e na verdade como mortos, enchendo-se todos os presentes de medo tanto mais que pegando os assistentes no Manuel Correia e deitando-o numa cama, ele tudo deixou de fazer como se morto estivesse. Chegando nesse momento a infeliz Arminda, também à ordem da Joaquina se deitou no chão, mas em lugar de morrer, começou desde logo em altos gritos, de mãos erguidas para o ar, e outras vezes a bater palmas, ordenando a Joaquina que a pusessem lá fora, pois trazia o diabo dentro dela, o que alguns dos assistentes fizeram […] (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.15-16)

Outro réu, António Queiroz Correia – marido de Joaquina de Jesus –, disse que há cerca de três ou quatro anos, a mulher teve um ataque quando ela trabalhava no campo. Depois, os ataques voltaram a se repetir e Joaquina dizia-lhe que andava assombrada com espíritos maus. António sabendo que Anastácio, seu compadre, tinha um livro de S. Cipriano, convidou-o a fazer-lhe rezas e defumadouros, como mandava o livro. No dia 22 de fevereiro, [...] tendo a mulher do respondente uns ataques mais fortes, procurou o depoente uma tal Olívia Emília que lhe constava ser bruxa e que por acaso ali passou, a fim de vir ver a sua mulher. Veio ela, e depois de consultada, mandou que se levantasse da cama e que lhe dessem uns defumadouros […], porque a doença dela não era de médicos, mas sim de duas almas que a assombravam, das quais uma era boa e a outra ruim. (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.16)

Joaquina rejeitou o defumadouro e pediu um padre para se confessar. O abade foi visitá-la dia 24, pela manhã. Logo que o abade saiu, Joaquina começou a cantar, dando mostras de estar pior de sua doença. Nessa noite, várias pessoas foram a sua casa ler orações no livro de S. Cipriano, fato que se repetiu na noite seguinte. Em meio aos ataques de Joaquina, Arminda também teve um ataque e caiu no chão. Joaquina ordenou que a pusessem para fora da casa “que estava tudo excomungado, que ia arder tudo”. Quinze minutos depois, Joaquina mandou bater na Arminda e complementou: “pegai-lhe fogo, vai arder tudo”. Depois de atearem fogo, os acusados permaneceram

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ali todos ao pé da vítima até que ficou toda queimada, sendo certo que era o Anastácio quem ajeitava o fogo sobre ela. Que depois de a verem assim bem carbonizada retiraram-se todos para casa do respondente a orar para que ela ressuscitasse, até altas horas da madrugada. […] A infeliz Arminda era muito boa mulher, nunca sendo sua intenção matá-la, e tanto assim que recolheu para sua casa e sem seguida ao seu feito descansado, continuando nas rezas com sua mulher e os assistentes, e ficando admirado quando no dia seguinte foi preso. Como estavam perdidos, julgavam que a Arminda tornava a viver, tanto mais que já em sua casa tinham caído como mortos sua cunhada Virgínia e Maria, e ambas tinham tornado a viver não sabendo por isso, como tal coisa lhe passou pela cabeça. (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.16-18)

O pároco da freguesia de Soalhães, Joaquim Monteiro, declarou no inquérito que a sua freguesia é um foco de crendice e superstição. Apesar de empregar todos os esforços e aproveitar todas as ocasiões para mostrar o erro, não conseguiu convencer aquela gente da inutilidade e falsidade da prática de benzeduras e bruxedos a que recorrem quando se encontram doentes. Acrescentou que a freguesia de Soalhães é muito frequentada por bentas e bruxas – dentre essas, Olívia Emília de Gaia e a chamada bruxa de Santa Leocádia, concelho de Baião. Olívia Emília, a “bruxa”, perguntada acerca do crime de assassinato a que se referem os autos respondeu que nem chegou a conhecer a vítima. António Queiroz Correia chamou-a um dia para ir ver sua mulher. Vendo-a na cama, mandou-a levantar e disselhe que ela não tinha doença, mas sim que duas almas a assombravam: uma boa e uma ruim. Receitou-lhe, então, três defumadouros e se foi. A polícia deu por encerradas as suas investigações em 9 de Março de 1933.

A NARRATIVA DO JULGAMENTO O caso foi a júri um ano depois. Na contestação ao Ministério Público, o advogado de defesa não nega que seus clientes sejam os autores do crime, nem tampouco discorda das conclusões da polícia sobre os eventos daquela noite de 25 de fevereiro. Sua argumentação passa pela privação momentânea dos réus de suas faculdades mentais: O que fizeram, porém, absolutamente convencidos de que a pessoa da infeliz Arminda coisa alguma sofreria. Ora, Somente em manifesto estado de loucura é que assim teriam procedido, pois todos os que em tal acto colaboraram eram parentes ou bons amigos da infeliz, de quem não tinham o menor ressentimento, nem motivos para lhe fazerem o menor dos males, quanto mais para a assassinarem tão bárbara e cruelmente. Só, portanto, Altamente sugestionados e contagiados pela histeria da já aludida Joaquina, é que, supondo expulsarem o diabo do corpo da sua vítima, sem intenção e involuntariamente a mataram, demais. (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.26)

Como circunstâncias atenuantes, o advogado elenca o bom comportamento anterior, a espontânea confissão do crime; a longa prisão preventiva; a grande “estupidez” de seus clientes; a sugestão religiosa e supersticiosa; a intenção de evitar um mal; o imperfeito conhecimento do mal do crime; a imprevidência; a sua pobreza.

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O júri não aceitou o argumento da defesa sobre a falta de intenção criminosa, nem foi convencido da inimputabilidade dos réus. Pelo contrário, considerou como agravantes o crime ter sido cometido por mais de duas pessoas, com manifesta superioridade em razão do sexo e das armas, de noite, com o emprego simultâneo de diversos meios, com a insistência em consumar o fato, com o emprego de torturas e atos desnecessários à consumação e para aumentar o sofrimento da vítima. Contudo, o júri deu como provados a estupidez dos réus e o fato de o crime ter sido cometido pela sugestão religiosa e supersticiosa, com intenção de evitar um mal e sem perfeito conhecimento do crime. Em 30 de Maio de 1934, na Vila de Marco de Canavezes, foi pronunciada a sentença de Anastácio Pereira, António Queiroz Correia, Francisco Queiroz Correia e Manuel Queiroz Correia. Cada um dos réus recebeu a pena de seis anos de prisão maior celular, seguida de degredo por dez anos ou, em alternativa, uma pena fixa de degredo por vinte anos2, no imposto de justiça de 800 escudos com os acréscimos legais, fixando como indenização aos representantes da vítima a quantia de 6000 escudos a pagar solidariamente por todos os réus. Joaquina não foi condenada, pois, submetida a um exame médico-legal no Hospital Conde Ferreira, ficou constatado que “ela sofre de alienação mental durante as crises esteroepileptoides, e que é irresponsável pelo acto que lhe imputam…”.

A IMPRENSA A versão do crime na página do Jornal de Notícias – um dos maiores veículos de mídia impressa de Portugal –, apresentada logo depois do crime, trazia grandes exageros e apelava para o sensacionalismo. NO MARCO DE CANAVEZES É QUEIMADA VIVA UMA MULHER A pacata Vila do Marco de Canavezes, no passado último, foi palco onde se desenrolou uma tremenda tragédia. Se o nosso espírito voar e nos transportar às longínquas épocas da Idade Média, não encontra uma cena tão selvagem e revestida de tanta perversidade como aquela que vamos narrar. O nosso espírito não concebe que seres humanos pudessem ter coragem para praticar um crime tão hediondo. A realidade dos factos, porém, convence-nos de que sob este lindo céu azul, que num enorme e divino amplexo estreita toda a humanidade, há feras humanas, muito mais ferozes que as feras do monte. As cenas horríveis que vão ler-se, não se passaram em remotas paragens do sertão onde não tenha entrado as luzes da civilização e da Fé. Foi aqui – Marco de Canavezes. Terra de gente crente. Mas… entre as ovelhas mansas, disfarça-se muitas vezes o lobo traiçoeiro e entre o bom trigo surge de quando em vez o joio; e assim, entre essa gente boa, apareceram cinco feras que vieram quebrar a quietude da vila, lançando nela uma nódoa sangrenta que só o perdão de Deus, que não o esquecimento dos homens, poderá fazer desaparecer da mente os factos… (Jornal de Notícias, 28 fev. 1933). 2.  Pena de desterro ou exílio, imposta judicialmente em caráter excepcional, é a punição de um crime grave na forma de banimento, com o afastamento compulsório para as colônias portuguesas na África, normalmente, Angola.

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Na descrição dos personagens envolvidos, Joaquina era uma lavradeira, de 40 anos, que há tempos começou a sofrer de ataques histéricos e foi convencida de que seu mal “era obra do demônio que se tinha metido no seu corpo para lhe perder a alma”. Arminda Pereira, de trinta anos, casada, cujo marido estava no Brasil, onde, “honradamente anda ganhando a sua vida, animado do desejo de voltar à sua terra, com o pecúlio que garanta o futuro dos seus dois filhinhos, dois botões de rosa a desabrocharem para a vida”. Nota-se aqui uma tentativa de emocionar o leitor apelando para o seu senso familiar. No centro da tragédia, o texto coloca “a bruxa Engrácia Coelho”, a qual foi chamada por Joaquina para “enxotar” o diabo. “Impelida por um espírito mau, aparatosa “mise-encène”, empunhando um livro de São Cipriano, a Engrácia faz sobre o corpo da Joaquina três cruzes e leu umas rezas do livro”. Lembramos que, pelo depoimento do marido de Joaquina, quem visitou Joaquina foi Olívia Emília. O jornalista cria também diálogos inexistentes. Engrácia Coelho teria dito: “é o demo que anda cá pela freguesia – o seu mal, sra. Quininha, está metido no corpo de Arminda Pereira. Impeceu-a a si, e se não lho tirarem há-de vir fazer mal a outras pessoas e a senhora não se cura. É preciso enxotar esse demónio”. Para dar validade ao discurso, usou o artifício de dar à Joaquina um apelido que, aliás, nunca foi mencionado por nenhuma testemunha. O texto prossegue: Pouco depois da bruxa ir embora, entrou em casa a Arminda Pereira. Foi uma hora infeliz, uma hora que perdeu a Arminda, e deixou na orfandade duas criancinhas. A possessa, vendo-a chegar, começou a gritar: “Aí vem o espírito mau. Matem-na que ela traz o diabo no corpo. É ela a causa do meu mal”. (Jornal de Notícias, 28 fev. 1933)

Como vimos, essa não foi a sequência dos fatos. Arminda não entrou casualmente na casa de Joaquina depois que a “bruxa” se foi. Não se tratou de uma infeliz coincidência para Arminda. Nova cena. Novos personagens. Figuras sinistras, que por suas próprias mãos, afivelaram ao rosto a máscara da ignomínia. Quatro feras sob o aspecto de homens. Os seus nomes para que fiquem lavrados no livro do sinistro dos criminosos célebres – António Queiroz Correia, lavrador, marido de Joaquina, e seus irmãos Manuel e Francisco Queiroz Correia e Anastácio Pereira, cunhado da Arminda. Estes quatro indivíduos assistiram tranquilamente às rezas e benzedelas da famigerada bruxa. Ouvindo os gritos da louca Joaquina, resolveram praticar exorcismos. (Jornal de Notícias, 28 fev. 1933)

Aqui o autor emprega metáforas muito fortes: “afivelaram ao rosto a máscara da ignomínia”, “feras sob o aspecto de homens”. O jornalista condena os acusados a serem lembrados eternamente pelo ocorrido. Até onde pode chegar a estupidez! Como pôde ir tão longe a malvadez daqueles quatro facínoras?!

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Uma bruxa no século XX? – percepções e evolução da narrativa do principal crime de Soalhães, Portugal Carla de Araujo Risso

A Arminda, não podendo resistir às violentas pancadas caiu por terra, ante o apaziguamento da possessa que gritava: – “Sai espírito ruim!” E os outros em coro: – “Mostra-te Satanás! Vai para o mar coalhado! Cruzes! Cruzes!” O Anastácio deixa agora de bater, para ler as rezas do livro de São Cipriano. A pobre Arminda, já quase sem forças, dizia: – “Não me matem, olhem os meus filhos!” E logo os do grupo malfazejo: – “Hás-de ressuscitar!” (Jornal de Notícias, 28 fev. 1933)

Mais uma vez, o jornalista procura sensibilizar o leitor apelando para a relação entre mãe e filhos, artifício de que lançou mão mais de uma vez na sequência do texto. O crime é comparado a um Auto de Fé da Inquisição Portuguesa, no século XVI. Porém, afirma que naquela noite “estava consumado o acto da mais repugnante barbárie de todos os tempos.”. Com o objetivo de tornar o crime ainda mais macabro, o texto informa que na “calada da noite, os cães do lugar descobriram o cadáver. Foi um festim para aqueles irracionais esfaimados. As pernas da vítima, menos atingidas pelas chamas, foram devoradas pelos rafeiros. Lúgubre banquete! Horrível repasto!”. (Jornal de Notícias, 28 fev. 1933). Na autópsia de Arminda, não há referência ao ataque dos cães: Encontram-se completamente carbonizados com queimaduras de segundo e terceiro graus os membros superiores, tórax, abdómen, face interna dos membros inferiores, dorso e períneo, não se conhecendo pela inspecção externa o sexo. A cabeça e a face encontram-se completamente queimadas. (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.7)

Longe do calor dos acontecimentos, um ano depois, o jornal Primeiro de Janeiro faz a cobertura do julgamento, e publica dois artigos: em 24 e 31 de maio de1934. Os fatos são reportados procurando seguir o preceito de “objetividade” jornalística. O artigo jornalístico informa que as próprias testemunhas de acusação “declararam que os réus não cometeram o crime por quisessem mal à desgraçada vítima”. As narrativas são compatíveis com o que se lê nos autos, exceto na passagem que se refere às declarações José Monteiro Alves, que: “diz ter assistido a toda a cena canibalesca da agressão e queima da irmã. Viu tudo. Presenciou que foram os réus os criminosos, mas o principal culpado foi o Anastácio Pereira”. O emprego do adjetivo “canibalesca” para designar a ação ocorrida naquela noite em Soalhães é totalmente equivocado e leva o leitor a acreditar que os acusados comeram carne humana após o assassinato.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Régis Debray, com base em conceitos históricos, políticos e sociológicos, enfocou os efeitos de transmissão simbólica, a partir da mudança provocada no meio social onde ocorre, e analisou suas relações com as estruturas técnicas de transmissão. No livro Transmitir: o segredo e a força das ideias, Régis Debray fala da diferença entre a vida natural e a vida histórica:

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[...] o homem é o único animal que conserva vestígios do avô e pode ser modificado por eles. Ele inventa-se na medida em que faz estoque. Dotado da mesma estrutura atômica e submetido às mesmas leis físicas e biológicas das outras espécies animais, compartilhando o mesmo planeta, o gênero humano tem de particular o seguinte: seus membros podem viver, por procuração, uma experiência não vivenciada pessoalmente. (DEBRAY, 2000, p.91)

Régis Debray distingue “comunicação” de “transmissão”, tratando a primeira como “fazer conhecer, fazer saber” e a segunda como um termo regulador – são transmitidos bens, ideias, capital. A primeira [comunicação] é pontual ou sincronizante – trata-se de uma trama: uma rede de comunicação religa, sobretudo contemporâneos – um emissor a um receptor, presentes nas duas extremidades da linha. A segunda [transmissão] é diacrônica e caminhante – trata-se de uma trama – além de um drama – ela estabelece ligação entre os vivos e os mortos, quase sempre na ausência física dos ‘emissores’. (DEBRAY, 2000, p.15)

Debray substitui a palavra “comunicação” por “mediação” e o mensageiro pelo mediador. No caso dos relatos sobre a “Queimada viva de Soalhães” fica claro que a transmissão da mensagem depende de quem faz a mediação, do ethos enunciativo. Todo texto escrito, mesmo que o negue, tem uma “vocalidade” que pode se manifestar numa multiplicidade de “tons”, estando eles, por sua vez, associados a uma caracterização do corpo do enunciador (e, bem entendido, não do corpo do locutor extradiscursivo), a um “fiador”, construído pelo destinatário a partir de índices liberados na enunciação. O termo “tom” tem a vantagem de valer tanto para o escrito como para o oral. (MAINGUENEAU, 2008, p. 18-19)

O caráter da narrativa artística, seja ela teatral ou cinematográfica, pressupõe o uso da ficção e de licenças poéticas para se contar uma história. Bernardo Santareno não pretendia fazer uma narrativa fiel dos acontecimentos, mas sim usar de um caso emblemático e presente no imaginário português para abordar questões que para ele eram caras: a repressão sexual, o puritanismo e a crendice presentes na sociedade portuguesa no Estado Novo. Já no que diz respeito à narrativa jornalística, o universo de sentido do discurso impõe-se tanto pelo ethos como pela maneira de dizer que remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em uma experiência vivida. O poder de persuasão de um discurso jornalístico consiste em parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido de valores socialmente especificados. A qualidade do ethos remete, com efeito, à imagem desse “fiador” que, por meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado. Nas palavras de MAINGUENEAU (2004, p. 99), há um Paradoxo constitutivo: é por meio de seu próprio enunciado que o fiador deve legitimar sua maneira de dizer. O reconhecimento dessa função do ethos permite novamente que nos afastemos de uma concepção do discurso segundo a qual os “conteúdos” dos enunciados seriam independentes da cena de enunciação que os sustenta. Na verdade, não podemos dissociar a organização dos conteúdos e a legitimação da cena da fala.

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Por isso, com a mudança da cena da enunciação – a cobertura do crime e a cobertura do julgamento –, há também uma modificação na construção do discurso, independentemente de haver mudado o jornalista que escreveu as narrativas. Logo que ocorreu o crime, o “fiador”, cuja missão era relatar os acontecimentos de um fato que sensibilizou a opinião pública em Portugal, assumiu a indignação da população em seu enunciado e reproduziu os discursos circulantes na vila em que ocorreu o crime. Um ano depois, no julgamento, o “fiador” adotou uma narrativa compatível com o que se lê nos autos, deixando de lado, na maior parte do tempo, o tom passional e subjetivo, para assumir um caráter objetivo, próximo ao discurso policial e jurídico. “O imaginário é a partilha, com outros, de um pedacinho do mundo” (MAFFESOLI, 2003). Uma narrativa, portanto, será apenas um fragmento do mundo. Observar e organizar as apropriações particulares de um fato presentes em narrativas dispersas permite a organização de um discurso dentro de um painel multifacetado – descontínuo e nãolinear. Nas palavras de MAFFESOLI (2003), “a realidade não se resume à realidade. Existe algo que se pode chamar de surrealismo, de sobrerrealidade”. E ao retratar essa realidade para além da realidade, a comunicação sempre será fragmentada e articulada entre partes que ora se opõem, ora se complementam. Ao juntar os fragmentos das narrativas desse estudo de caso, pretendeu-se deixar evidente a polifonia presente nos discursos documentados – policial, artístico e midiático – e resgatar a memória de um acontecimento tão marcante na esfera social e cultural lusitana. Procurou-se observar a História pela ótica de FOUCAULT (2005, p. 33), transformando os documentos em monumentos e decifrando os traços deixados pelos homens para esboçar o quadro dos acontecimentos.

REFERÊNCIAS Debray, R. (2000). Transmitir: o segredo e a força das ideias. Petrópolis, RJ: Vozes. Foulcault, M. (2005) A Arqueologia do Saber. Coimbra: Edições Almedina. Maffesoli, M. (2003). A comunicação sem fim (teoria pós-moderna da comunicação). Revista FAMECOS, nº 20, 13-20. Porto Alegre. Recuperado em 10 de fevereiro, 2015, de: http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/famecos/article/viewFile/336/267 Maingueneau, D. (2008). Ethos Discursivo. São Paulo: Contexto. _______ . (2004). Análise de textos de Comunicação. São Paulo: Cortez. Nogueira, C. R. F. Bruxaria e história: as práticas mágicas no Ocidente cristão. Bauru: EDUSC, 2004. Palinhos, J. (2013) A violência ritual em O Crime da Aldeia Velha. O poder e a repressão representados no texto de Bernardo Santareno e no filme de Manuel Guimarães. Atas do II Encontro Anual da AIM, 437-449. Lisboa. Recuperado em 10 de fevereiro, 2015, de: http:// aim.org.pt/atas/pdfs-Atas-IIEncontroAnualAIM/Atas-IIEncontroAnualAIM-37.pdf. Pereira Coutinho; Pinto, G., (1987) O Crime da Queimada-Viva de Soalhães. Marco de Canavezes: Câmara Municipal. Santareno, B. (1991) Obras completas – 1º volume, 2ª edição. Lisboa: Editorial Caminho. _______ . (1963). Notas Sobre o Teatro. O Tempo e o Modo, n. 9, 10-15. Lisboa. _______ . (1967). Situação de um Ator Dramático em Portugal. O Tempo e o Modo, n. 50-53, 591-592. Lisboa.

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Autor e narrador: sujeitos e caminhos na reportagem jornalística Author and narrator: subjects and paths in journalist reporting Jaqu elin e L e mos1 Resumo: Este artigo busca debater aspectos da narrativa no jornalismo. Ao assumir a condição inequívoca de autoria no texto, o jornalista abre-se para possibilidade de dar maior complexidade ao ato narrativo, abre-se para articular vozes, visões de mundo e experiências. Nesta complexidade é possível estabelecer dois sujeitos distintos: o autor (repórter) e o narrador (sujeito elaborado pelo repórter para contar uma história). O embasamento teórico da pesquisa procura articular as noções de complexidade e dialogia (Cremilda Medina) filosofia do diálogo (Martin Buber); narração (Paul Ricoeur); experiência e comportamento face a face (Erving Goffman). O autor no jornalismo é um mediador cultural, tem um lugar social demarcado por sua formação profissional e está diretamente ligado ao exercício de um ofício. Já o narrador no jornalismo é uma criação do autor. É um sujeito que existe para narrar, que adota perspectivas e estratégias para contar uma história, um fato/acontecimento. A constituição do(s) narrador(es) do jornalismo está sob a batuta do autor jornalista. O elemento disparador do processo de criação se dá, pelo que já foi possível observar em entrevistas com repórteres – de jornais, rádios e TVs –, a partir de uma necessidade vital de levar o leitor/telespectador/ouvinte à comunhão de uma experiência.

Palavras-Chave: Jornalismo. Narrativa. Reportagem. Narrador. Autor. Abstract: This article aims to discuss aspects of narrative in journalism. To assume the unique condition of authorship in the text, the journalist opens to the possibility of giving more complexity to the narrative act, opens to articulate voices, points of view and experiences. On this complexity, is possible to establish two distinct subjects: the author (reporter) and the narrator (subject prepared by the reporter to tell a story). The theoretical basis of the research seeks to articulate the notions of complexity and dialogy (Medina) philosophy of dialogue (Buber); narration (Ricoeur); experience and behavior face to face (Goffman). The author in journalism is a cultural mediator and has a social place demarcated by their professional training, directly linked to the exercise of a trade. But the narrator is an author creation. Is a subject that exists to narrate, that adopts perspectives and strategies to tell a story, a fact. The constitution of the(s) narrator(s) of journalism is under the baton of the journalist author. The trigger element of the creative process takes place, so it was already possible to observe in interviews with 1.  Doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e mestre pela mesma instituição. É graduada em jornalismo pela UFG e professora pesquisadora na Universidade São Judas/SP. E-mail: jaquelemos@ uol.com.br

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Autor e narrador: sujeitos e caminhos na reportagem jornalística Jaqueline Lemos

reporters – newspapers, radios and TVs – from a vital need to bring the reader/ viewer/listener to a community experience.

Keywords: Journalism. Narrative. Report. Narrator. Author.

P

OR MEIO desse artigo buscamos uma reflexão sobre os paradigmas que envolvem

a construção das narrativas do jornalismo (no ambiente do impresso, do rádio, da televisão e da internet), em especial sobre a grande reportagem – um gênero textual expressivo e paradigmático, que é singular do jornalismo. Um passo inicial que se faz necessário é compreender o percurso da reportagem no ambiente paradigmático no qual ela se alicerçou como uma expressão da narrativa jornalística. Ao mesmo tempo, propomos um deslocamento teórico para o ambiente complexo que nos permita detectar as marcas constitutivas do ethos do narrador no jornalismo, entrelaçando as características profissionais, os momentos de diálogos (aqui compreendido como etapas da apuração, da escuta, e da observação) e a tessitura da narrativa propriamente dita. A grande reportagem é um gênero textual capaz de iluminar a complexidade do mundo contemporâneo, pois reelabora simbolicamente a realidade por meio da narrativa densa, intensa, complexa. Além de um texto singular do jornalismo, a grande reportagem é também um gênero por meio do qual é possível melhor compreender as conexões da mediação social e da produção simbólica nas quais estão envoltas o ofício do jornalista. De acordo com Cremilda Medina, ao assumir a tarefa de tecer o presente o jornalista se envolve na produção simbólica e “a distância que existe entre a realidade objetiva e a representação dessa realidade é percorrida pelo esforço da interpretação” (MEDINA, 2008, pág 30). Assim, podemos compreender o jornalismo como uma produção simbólica que ressignifica o acontecimento e abre portas para uma leitura complexa da realidade. Ao ressignificar cotidianamente a realidade, o repórter assume um compromisso mais elaborado e menos confortável que o reducionismo dos dogmas atrofiantes ditados em manuais de redação, tais como: “ser neutro”, “ser imparcial”, “manter-se distante dos fatos”. Segundo Cremilda Medina, “uma definição simples de narrativa é aquela que a compreende como uma das respostas humanas diante do caos. Dotado de capacidade de produzir sentidos, ao narrar o mundo, o sapiens organiza o caos do mundo” (MEDINA, 2006, pág 67). Entretanto, verifica-se que nas rotinas profissionais, o jornalismo teme banhar-se no caos e caminha frequentemente no sentido da redução da realidade, seja por aprisioná-la em explicações ou dicotomizações; seja por tradicionalmente normatizar o apagamento da autoria e, por certo também, o embotamento da complexidade narrativa. O ethos hegemônico que sustenta a prática jornalística tradicionalmente cria barreiras para que seja possível identificar efetivamente a existência da clara separação que existe entre autor e narrador. Na literatura, no campo das artes, o autor ciente da sua episteme sabe claramente que ele elabora um sujeito outro para narrar suas histórias. Também é nessa perspectiva que a noção de narrador, ou seja, do sujeito que narra, é um lugar fronteiriço imbricado de complexidade. No jornalismo, autor e narrador estão envoltos em conflituosas tramas conceituais, quando não raro passam por um processo de “apagamento”. Enraizado no campo

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paradigmático do positivismo, o jornalismo historicamente recusa até mesmo a autonomia da autoria no texto, quando encarcera o jornalista em um narrador de 3ª pessoa, disciplinado em manuais de redação. Imagine então, admitir que a “narrativa da vida real” possa ser elaborada por um sujeito “criado” pelo autor? Se não há a autonomia da autoria, o jornalista é apenas aquele que redige “narrativas enclausuradas”, conforme analisa Fernando Resende: [...] porque partem [os jornalistas] do princípio de que sua construção [a narrativa] depende exclusivamente de normas/regras previamente estabelecidas que, uma vez aplicadas ao texto jornalístico, são capazes de explicar os acontecimentos do mundo. Um dos princípios epistemológicos do jornalismo ancora-se no fato de ser este o lugar do discurso pautado pela verdade. (RESENDE, 2002, pág 42)

É possível perceber que as normatizações sedimentadas como verdades na prática jornalística não só promovem um embaçamento do olhar do repórter, mas também encarceram o processo de elaboração do texto. Se o jornalista aceitar tacitamente que o seu lugar profissional é o do simples “relato objetivo dos fatos”, ele estará abrindo mão de ser um agente partícipe da construção cotidiana das narrativas da contemporaneidade. Esse problema está cotidianamente colocado nas rotinas profissionais, como verifica o pesquisador Rogério Chistofoletti na sua tese de doutorado. Ao investigar a questão da objetividade e da autoria na reportagem, ele diz: Na maioria dos produtos jornalísticos oferecidos ao público, existe uma tentativa deliberada de calar os sujeitos que reportam em detrimento de uma suposta possibilidade de os fatos falarem por eles mesmos. Nas redações, nos estúdios, e nas ruas, o repórter deve desaparecer em nome da notícia. (CHRISTOFOLETTI, 2004, pág 165)

Mas também alerta que fazer desaparecer a autoria no jornalismo é impossível, posto que: A comunicação, e em especial o Jornalismo, envolve sujeitos que consomem informações e sujeitos que as produzem e as disseminam. Por mais que se tente, não é possível fazer desaparecer os sujeitos dessa equação. Por natureza, a atividade é humana e não pode prescindir dos elos que a compõem. A cada tentativa de matar o autor, mais o estilo se firma como um eco da voz do criador. Não só na literatura, mas também no jornalismo. (CHRISTOFOLETTI, 2004, pág 173)

A partir da premissa de Christofoletti, é possível caminhar no sentido oposto a um conjunto de valores e práticas que hegemonicamente está alicerçado nas rotinas profissionais jornalísticas. Para tanto, verifica-se que é necessário um primeiro deslocamento: o paradigmático. É necessário impregnar-se de um novo ethos. É necessário compreender o jornalismo como uma forma de mediação social, cujas narrativas estejam abertas à pluralidade, à polifonia, à dialogia, portanto, à complexidade. O jornalista que cultiva seu papel autoral é um sujeito que se deixa tocar pelos fatos e que se coloca na perspectiva de elaborar sujeitos outros aos quais cabe a arte da tessitura do presente, da narrativa do presente. Exige-se uma postura complexa do jornalista, como ressalta Cremilda Medina:

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[...] a reportagem, na sua estilística interpretativa, articula [...] entrevistas conceituais com o protagonismo e o contexto sociocultural numa narrativa autoral que põe em movimento a aventura humana. O resgate da cena viva exige a criação de um narrador que dramatize o que se passa à sua volta. Para isso o autor da narrativa é um ser aberto aos demais códigos da experiência social que observa. (MEDINA, 2008, pág 98)

Nesse processo, Cremilda Medina reitera a importância da desobstrução dos sentidos para que o jornalista seja capaz de uma narrativa fértil. A plenitude dos cinco sentidos no repórter afeto ao acontecimento lhe dá condições para ensaiar uma compreensão da dinâmica do caos em seus múltiplos códigos. Jornalistas que narram tanto o cotidiano quanto o evento extraordinário são convidados a fertilizar o texto verbal com notações não-verbais. (MEDINA, 2008, pág 107)

O jornalista é capaz de uma narrativa provocativa, inquietante, sutil? É possível desde que a pauta jornalística promova o rompimento com reducionismo, com as padronizações e os superficialismos que não desvendam o complexo e singular do humano ser na contemporaneidade. Ou melhor, “o que efetivamente sinaliza a busca autoral é a narrativa dos afetos. Descobrir-se afeto ao seu tempo. Perceber a dimensão identitária de estar afeto ao outro, embora existam conflitos e diferenças que são inerentes à convivência.” (MEDINA, 2006, pág 77).

NECESSIDADE VITAL Narrar é uma necessidade vital e genuinamente humana. Todos dos dias, cada um de nós narra sua própria história. Fazemos isso quase que intuitivamente e instintivamente quando, por exemplo, paramos para responder: “como foi o seu dia?” Provocados por outro (ou por nós mesmos), a simples indagação nos coloca diante da necessidade de “organizar”, “dar sentido”, “ressignificar” o dia, os fatos que perpassaram nossa trivial rotina. Reelaboramos a realidade a partir do momento que nos propomos a revisitar os acontecimentos do nosso prosaico cotidiano. Se narrar é vital e pode até mesmo ser intuitivo, talvez se assemelhe a uma atividade simples. Mas não é: nem no nosso cotidiano e tampouco em outras formas narrativas. No jornalismo, o ato narrar está imbricado de elementos mais complexos, pois realiza-se no corpus de uma atividade profissional. É per si um ato ancorado no conceito de uma profissão, cuja deontologia há décadas normatiza comportamentos, dita procedimentos, define regras. Ao ressignificar um acontecimento para fazê-lo chegar aos leitores, ouvintes, telespectadores ou internautas, o repórter fala de um lugar social de onde espera-se uma postura determinada. Este lugar social carrega um conjunto de variáveis que compõem o jornalista (aqui sujeito institucional, o autor). A gênese do profissional jornalista é definida pela sua formação na graduação, ambiente no qual se imprimem as primeiras marcas identitárias do jornalista. E, quando o aprendiz entra no mercado de trabalho seu lugar social caminha em paralelo ao veículo de comunicação no qual ele está inserido. O jornalista (o autor) é aquele sujeito que traz consigo uma formação e uma trajetória construídas nas vicissitudes das rotinas profissionais, cujas marcas nos alertam sempre que o dia a dia e o tempo são variáveis imponderáveis na profissão:

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A atividade [jornalística] oscila por contingência do próprio fenômeno, com extrema maleabilidade de acordo com as exigências do momento. O improviso, a sensibilidade à ação oportuna e a capacidade de reação imediata são qualidades precípuas ao jornalista que fazem de sua “obra” diária um produto imediato, atilado, atual, antecipador, provocador, inquietante, contestador e contestável. O custo operacional é a imperfeição, perfeitamente assimilada por aqueles que vivem o desafio do tempo da informação. (MEDINA, 1982, pág 22)

Para buscar compreender as características do autor e do narrador no jornalismo, é necessário articular o texto (lato sensu) e as condições de elaboração dele. O foco é o fazer jornalístico. Portanto, um passo inicial a ser dado nas referências teóricas é definir o campo jornalístico. Cremilda Medina diz que: “ao se firmar no terreno do fenômeno imediato, ao reunir dados precisos, ao se aproximar no tempo e no espaço do real concreto, o jornalismo expressa uma forma de conhecimento da realidade” (MEDINA, 2008, pág 26). O jornalismo é uma forma de comunicação mediada, traduzida fundamentalmente na forma de “narrativas da contemporaneidade”, tendo a reportagem um status de destaque nestas formas narrativas. Pois, segundo Medina: A reportagem pode ser interpretada como uma rica peça literária, porque único autor trabalhou muito bem a forma; ou pode ser interpretada como uma rica matéria porque muitas pessoas têm oportunidade de falar através dela. São duas maneiras de encarar o papel do profissional – ou se exige dele a perfeição do autor “miraculoso”, onipotente, alfabetizado até o requinte de pleno domínio verbal, capaz de “concluir sobre o mundo” com autoridade de um cientista social; ou se exige dele a humildade do intermediário que sai para a sociedade para rastrear o maior número possível de versões, na busca incessante de uma verdade inatingível, na solidariedade aberta a todos que tenham alguma coisa a falar... (MEDINA, 1982, pág 23)

Como o texto jornalístico pode estar imbuído de propósitos vários, cabe ressaltar que a reportagem é essencialmente um gênero que busca a interpretação. Para Beltrão: A interpretação é uma das características básicas do jornalismo [...]. É um exercício da inteligência e do discernimento de um agente qualificado, com excepcional aptidão para apreender toda a significação do fato para a comunidade. (BELTRÃO, 1976, pág 47)

Ainda de acordo com Beltrão, para o jornalista interpretar a realidade, ele deve “esquadrinhar sua entranha [do fato], procurando seus antecedentes melhores, e projetar uma visão futura” (BELTRÃO, 1976, pág 51). Para ir às entranhas do fato (acontecimento) exige-se o olhar complexo do jornalista e do jornalismo. A realidade, ao ser ressignificada pelo jornalista autor-mediador, está envolta em múltiplas dimensões, solicita “a plenitude dos cinco sentidos no repórter afeto ao acontecimento” (MEDINA, 2008, pág 107) e “lhe dá condições para ensaiar uma compreensão da dinâmica do caos em seus múltiplos códigos” (MEDINA, 2008, pág 107). Estar afeto ao acontecimento (MEDINA) é um compromisso de escuta plena e de encontro profundo com o outro. Exige que o repórter rompa com o analfabetismo afetivo (RESTREPO) no qual estamos costumeiramente mergulhados. O ato de narrar nessa perspectiva, desde o seu momento embrionário – quando a pauta é formulada – provoca inicialmente no autor e, posteriormente, no narrador (narradores) a construção da relação sujeito-sujeito (Eu-Tu), mobilizada pela busca da dialogia (BUBER).

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No jornalismo autor e narrador envolvem-se numa teia de diálogos e na complexidade destas relações estabelece-se a dialogia, como nos alerta BUBER: O dialógico não se limita ao tráfego dos homens em si; ele é [...] um comportamento dos homens uma-para-com-o-outro, que é apenas representado no seu tráfego. [...] Há um elemento que parece pertencer indissoluvelmente à constituição mínima do dialógico, de acordo com seu próprio sentido: a reciprocidade da ação interior. Dois homens que estão dialogicamente ligados devem estar obviamente voltados um-para-o-outro; devem, portanto, – e não importa com que medida de atividade ou mesmo de consciência de atividade – ter-se voltado um-para-o-outro. (BUBER, 1982, págs 40 e 41)

A percepção do outro é uma atitude fundamental para que a narrativa jornalística seja complexa. Observação, emoção, cumplicidade e sensibilidade com as realidades com as quais nos deparamos cotidianamente são atitudes de aproximação e de investigação que tanto carecem o jornalismo na atualidade. Ao mesmo tempo, são atitudes que têm sido sistematicamente experimentadas por repórteres que se deixam tocar pela complexidade. São caminhos muitas vezes tortuosos e difíceis e, principalmente, são incursões necessárias aos jornalistas que desejam fugir das respostas simples. É uma postura, diríamos, mais rica diante das possibilidades das narrativas jornalísticas. É um exemplo que pode ser observado como uma das várias formas de aproximações do narrador jornalista com a realidade. É uma das aproximações sensíveis para se deixar tocar pelos acontecimentos, para mediar. Como estamos lidando com uma forma de atribuição de sentidos que o seu “produto final” remonta uma das possibilidades de leitura das realidades sociais, temos muita responsabilidade tanto no ato de apurar, observar e narrar. Perceber vários sentidos de interferência no texto jornalístico parece-nos um passo fundante para uma apreensão compreensivo-complexa das realidades.

AUTOR E NARRADOR, SUJEITOS E CAMINHOS Quem é o autor no jornalismo? Se mesclarmos as noções de autoria propostas por MEDINA com a definição de REIS e LOPES, vamos caminhar no sentido de compreender este sujeito como um agente cultural, produtor de sentidos, que atua cotidianamente na reelaboração das realidades observadas. Para MEDINA, o jornalista: [...] como privilegiado leitor da cultura, uma vez que transita na primeira realidade, observa o mundo à sua volta e capta depoimentos dos protagonistas sociais, ouve relatos e reúne declarações do universo conceitual (informações especializadas, opiniões e interpretações), assume, nessas mediações, uma responsabilidade autoral que permeia qualquer editoria. Ao produzir sentidos – e é isso que o jornalista faz –, ele está falando de certa cultura, com os protagonistas culturais localizados2. (MEDINA, 2006, pág 81)

Ao mesmo tempo, para REIS e LOPES, o autor é:

2.  Grifos nossos.

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[...] a entidade materialmente responsável pelo texto narrativo, sujeito de uma atividade literária3 a partir da qual se configura um universo diegético com suas personagens, acções, coordenadas temporais etc. A condição do autor conexiona-se estreitamente com as várias incidências que atingem a autoria: nos planos estético-cultural, ético, moral, jurídico e econômico-social, a autoria compreende direitos e deveres, ao mesmo tempo que atribui uma autoridade projectada sobre o receptor. (REIS; LOPES, 2007, pág 39)

Esse sujeito, que é um leitor cultural, é também dotado de direitos e deveres, tem um lugar social demarcado por sua formação profissional e age socialmente também em sintonia com o veículo de comunicação para o qual trabalha (a sintonia não significa ausência de conflitos, mas a permanente necessidade de mediação). A identidade social do jornalista transita no cruzamento de dois planos: 1) de um conjunto de normas e valores tacitamente aceitos e apreendidos na sua formação profissional; 2) de um conjunto de concepções formuladas intuitivamente na prática cotidiana da profissão, nas quais detectam-se os traços de visão de mundo e concepção de jornalismo que cada autor carrega consigo. O autor, o sujeito formal e real, tem nome, sobrenome, identidade profissional. O autor está diretamente ligado ao exercício de um ofício. É ele quem determina o ponto de partida da narrativa jornalística. Ao pensar em uma pauta e sugeri-la para o chefe, o jornalista dá início à elaboração da narrativa. É o momento embrionário da narrativa, mas o narrador ainda não está efetivamente configurado neste momento. Durante todas as etapas da apuração (pesquisa, produção, observação e entrevistas), o sujeito que age e elabora é o jornalista/autor. Este autor, a priori, define seu modus operandi e estabelece as relações com os acontecimentos e com os sujeitos dos acontecimentos permeado por um papel social do qual se espera um determinado comportamento profissional. Quando vamos aos diálogos estabelecidos com os três jornalistas4 autores com os quais conversamos, é possível identificar alguns destes elementos. Para o repórter César Dassie, a apuração na televisão traz consigo uma realidade concreta, impossível de ser modificada: Olha só, estou falando de uma equipe de TV. Você chega com o carro, câmera, microfone, três ou quatro pessoas – a equipe básica: motorista, cinegrafista, operador de áudio e o repórter. Você chega ao lugar com o carro, com um aparato tecnológico... [...]. Então, logo de cara a gente interfere no ambiente. (César Dassie, em entrevista para esta pesquisadora)

Marilu Cabañas e Christian Carvalho Cruz explicitam a necessidade de iniciarem o diálogo deixando claro quais são suas intenções, qual é o trabalho profissional que será feito.

3.  REIS e LOPES sempre fazem referência ao ambiente literário nas suas definições, entretanto, podemos trazê-las para o campo jornalístico. 4.  Neste artigo trazemos parte do trabalho de campo feito para a elaboração da tese de doutorado - em andamento - na ECA/USP, PPGCOM, sob orientação da professora Dra Cremilda Medina. Dentre os repórteres entrevistados temos César Dassie, do Globo Rural, programa da TV Globo; Marilu Cabañas, repórter da Rádio Atual, em São Paulo e o Christian Carvalho Cruz, repórter do jornal O Estado de S. Paulo, no caderno Aliás.

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Fiquei fuçando a história, mas com ar de curiosa somente. Até que chegou um ponto que eu falei: “Ah, sou repórter e queria fazer uma matéria com vocês, posso?”. “Pode, claro! Vamos combinar um dia.” [...] Foi o que eu fiz. Combinei tudo [...]. O que eu queria era acompanhar um encontro deles. Cheguei lá: eu e meu gravador. (Marilu Cabañas, em entrevista para esta pesquisadora) A família me recebeu. [...] Cheguei com o carro do jornal [...]. A porta estava aberta, eles estavam assistindo televisão. Eu bati, me identifiquei, como sempre. Eventualmente me desculpo, falo: “Desculpa, sei que vocês estão num momento difícil, mas é que eu queria saber um pouco mais”. (Christian Carvalho Cruz, em entrevista para esta pesquisadora)

Os jornalistas (autores) vão ao encontro do acontecimento demarcados pela sua identidade profissional. As falas dos entrevistados exprimem a seguinte ideia: “Sou repórter, trabalho em tal lugar, gostaria de conversar, de ouvir a sua história”. O encontro com o outro tem início mediante uma clara formalização do lugar e do papel social, nos quais um dos interlocutores (o jornalista) está envolto. Podemos recorrer a Erving Goffman para compreender alguns dos aspectos que perpassam o lugar formal do autor no jornalismo: Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento possui os atributos que aparenta possuir, que o papel que representa terá as consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser.” (GOFFMAN, 1985, pág 25)

Ciente do papel social que ocupa, o jornalista (autor) vai ao encontro dos protagonistas dos acontecimentos com o intuito de ver, observar, sentir, ouvir. É uma atitude que pode desencadear um diálogo efetivo ou apenas promover um encontro superficial, pautado por autoritarismos. O encontro e o diálogo com o outro são parte dos papeis desempenhados pelo autor. Quando recorremos aos depoimentos dos jornalistas entrevistados, percebemos que a observação, a escuta e o diálogo exigem de cada um deles uma entrega sincera e intensa. Eu sempre vou quase “vazio” para esses encontros. Estou interessado realmente nessas pessoas, quero saber o que elas têm para contar, não é só o meu interesse jornalístico. É o meu interesse de vida, real e sincero. Como eu estou vazio, me deixo encher pela história dessas pessoas, me deixo contaminar. Acho que é daí que eu vou tirar o jeito de escrever. (Christian Carvalho Cruz, em entrevista para esta pesquisadora) [...] o pessoal falava muito. Eu os deixava falar, tem que deixar. A gente não pode jogar fora um ouro desses. Para mim isso é ouro. Aquelas sonoras, aquela vivência, aquela poesia toda que eles estavam passando eu não podia jogar fora. Não pode ser assim: “ah, vamos correr!” Sabe aquela coisa da correria? Não! Calma! (Marilu Cabañas, em entrevista para esta pesquisadora) Estabelecer o diálogo não é uma coisa fácil. [...] Chegamos, conversamos com as pessoas. [...] É interessante captar a pessoa contando a história pela primeira vez, de uma forma

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mais aberta. [...] A ideia é estabelecer um diálogo, antes que ele se torne um produto, antes dele se tornar a reportagem. Tentamos deixar a reportagem o mais natural possível. E aí a gente tenta fazer uma conversa e não uma entrevista. Eu acho que isso faz a diferença. E as pessoas entendem. Por mais que não entendam de televisão, entendem de conversa, de pessoas. Aí quando elas se desligam do aparato tecnológico a coisa flui. (César Dassie, em entrevista para esta pesquisadora)

As reflexões feitas pelos jornalistas nos indicam que a densidade da reportagem é intrínseca à postura de apuração desempenhada pelo autor (repórter). Os jornalistas entrevistados expressam interesse genuíno pelo outro e evidenciam que as potencialidades da narrativa são intensificadas se o autor estabelecer diálogos intensos. Cada um deles relata suas estratégias intuitivas para captar o mundo e os personagens em observação. Quando o autor conclui toda a apuração, o narrador começa a ganhar vida. E quem é o narrador no jornalismo? Dificilmente este questionamento pode ser feito no singular. Então: Quem são os narradores no jornalismo? O plural logo de início traz uma marca forte desta noção quando no campo jornalístico. A narrativa jornalística é, preponderantemente, uma costura, uma articulação de narrativas. De acordo com Cremilda Medina, “ao narrar, o escritor mobiliza múltiplos narradores literários, muitos coautores e receptores da mensagem. A intertextualidade existe antes, durante e depois de uma escritura” (MEDINA, 2014, PÁG 49). Uma definição de narrador podemos buscar em REIS e LOPES: [...] o conceito de narrador deve partir da distinção inequívoca relativamente ao conceito de autor, não raro susceptível de ser confundido com aquele, mas realmente dotado de diferente estatuto ontológico e funcional. Se o autor corresponde a uma entidade real e empírica, o narrador será entendido fundamentalmente com o autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicação narrativa. [...] o narrador é, de facto, uma invenção do autor; responsável, de um ponto de vista genético, pelo narrador, o narrador pode projetar sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas, culturais etc., que perfila, o que não quer dizer que o faça de forma directa e linear, mas eventualmente cultivando estratégias ajustadas à representação artística dessas atitudes: ironia, aproximação parcial, construção de um alter ego, etc (REIS; LOPES, 2007, pág 257 e 258)

Entidade fictícia. Autor textual. Invenção do autor. Definições precisas e claras no mundo das artes, mas uma caixa de marimbondos no mundo do jornalismo. Embarcamos aqui em um universo de reflexão que encontra ressalvas e rejeições várias de estudiosos da comunicação. Entretanto, é impossível deixar de meter a mão na cumbuca, ou melhor, na caixa de marimbondos. A constituição do(s) narrador(es) do jornalismo está sob a batuta do autor jornalista. É o repórter – aquele que observou, sentiu, viu e ouviu – o sujeito que impulsiona o “nascer” dos narradores na reportagem. O elemento disparador do processo de criação se dá, pelo que já foi possível observar, a partir de uma necessidade vital de levar o leitor/telespectador/ouvinte/internauta à comunhão de uma experiência.

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Vejamos alguns trechos de relatos de jornalistas autores entrevistados para essa pesquisa: [...] o repórter tem que se transportar de novo para o lugar onde estava. Ele esteve presente naquela história, interferiu, estabeleceu uma relação com as pessoas. Então, é necessário recuperar o clima da história que você está contando para estabelecer um ritmo dessa narrativa. [...] Quando tudo estiver montado, eu pergunto para o César que esteve apurando: “como está o material? Está longo? Está cansativo?” “A reportagem conseguiu reconstruir a história que a gente foi buscar e que a gente presenciou?” Acho que essa é a questão: a presença. A reportagem precisa trazer para o telespectador a presença da história, o que presenciamos em campo. (César Dassie, em entrevista para esta pesquisadora) As palavras que vou usar no texto têm que combinar com toda atmosfera, com todo, com tudo o que eu estava vivenciando. A construção do texto é uma coisa assim: eu fico cabisbaixa, preciso ter aquele momento para poder escrever e deixar vir as coisas que eu vivenciei. (Marilu Cabañas, em entrevista para esta pesquisadora) Se a gente tem uma boa história, o mínimo que podemos fazer é contá-la como ela merece. O repórter tem o privilégio de estar lá [...]. Por isso, minha obrigação é deixar a narrativa tão rica quanto foi a experiência para mim. [...] O leitor não vai estar lá. Eu tive o privilégio de ouvir e ver estas coisas. Então tenho que contar do jeito que capte um pouco a riqueza toda que eu senti lá. (Christian Carvalho Cruz, em entrevista para esta pesquisadora)

Os textos já observados indicam que complexidade da narrativa jornalística corresponde a um mosaico de vozes e de sentidos, que explicitam a polifonia e polissemia. Ao mesmo tempo, já foi possível perceber que os sujeitos que narram no texto estão entrelaçados em uma rica teia de perspectivas e pontos de vista. Narrar no jornalismo é um ato que exige o encontro, a escuta, o diálogo, a compreensão, o gesto solidário e o compartilhar. O autor da reportagem conecta-se com uma teia de narradores para entrelaçar olhares complementares sobre os acontecimentos que ganham visibilidade no vasto mundo dos jornais, revistas, TV, rádio, fotos e internet.

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Os números e a objetividade do jornalismo: o sentido de verdade revelado através das relações de comunicação e trabalho Numbers and the objectivity of journalism: the sense of truth revealed through communication and work relations Olívia Bulla1 Resumo: O artigo propõe debater a construção de um sentido de verdade no texto jornalístico a partir do uso dos números na notícia, servindo como argumento para a construção da objetividade. Para tanto, desenvolvemos o tema a partir da problematização de que o uso dos números potencializa o valor da notícia e que as rotinas produtivas no mundo do trabalho do jornalista permitem ao emissor da notícia contar a versão que se quer dos fatos. A proposta insere-se no debate sobre linguagem e produção de sentido em Comunicação, através das reflexões do discurso pela análise de matérias referentes às manifestações sociais contra o aumento da tarifa de transporte público em São Paulo, em junho de 2013, e sua retomada durante a Copa do Mundo no Brasil em 2014, bem como através de entrevistas com alguns dos autores dessas reportagens. As questões abordadas têm como orientação teórico-metodológica o binômio comunicação e trabalho, a partir do qual se busca encontrar a materialidade do sentido dos números no discurso jornalístico, formulado com obediência às rotinas produtivas específicas. Palavras-Chave: Números. Jornalismo. Objetividade. Comunicação. Trabalho.

Abstract: This article intends to discuss the construction of a sense of truth by the use of numbers in the news, serving as an argument of objectivity. We develop the theme from questioning the use of numbers as if it enhances the news value and consider that the labour routines of journalists allow tell which version they want of the facts. The proposal is thinking through the reflections of speech by examining reports in a brazilian newspaper about social protests in São Paulo and in Brazil, during 2013 and 2014. Those questions are made through the binomial communication and work, from which we seek to find the materiality of the sense of the numbers in the journalistic discourse, formulated with compliance with the specific production routines. Keywords: Numbers. Journalism. Objectivity. Communication. Work.

INTRODUÇÃO

O

DEBATE SOBRE linguagem e produção de sentido em Comunicação precisa avançar no

significado cultural dado aos números, pois “a sociedade está acostumada a ouvir e repetir que os números não mentem jamais” (PULITI, 2013, p. 27). Esse prisma ajuda a afastar a opinião pública de dados que desafiam os conceitos pré-estabelecidos,

1.  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universade de São Paulo (ECA-USP). E-mail: [email protected].

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encontrando somente aqueles que reforçam a crença dominante. Em nenhum lugar isso é tão evidente quanto no noticiário. O presente artigo propõe aprofundar os estudos nessa esfera trilhando por um caminho que objetiva analisar informações veiculadas pelo Jornalismo com base em números. Nossa proposta é mostrar que, no geral, os números – antes, portanto, dos dados – são usados para simular um sentido de verdade no texto jornalístico, servindo como argumento para a construção da objetividade. Para compreender como os números são usados para sustentar um discurso no Jornalismo, consideramos que as rotinas de trabalho e as práticas produtivas permitem, e até incentivam, ao enunciador usar esse recurso na interpretação dos fatos sociais e na veiculação de notícias. As suspeitas são de que a quantificação da informação através dos números ajuda a construir a versão que se quer dos fatos, com o consentimento dos processos produtivos. Portanto, considera-se o mundo do trabalho como mediação fundamental da Comunicação, relacionando os conceitos de linguagem e naturalizando todo o processo de produção da notícia. Para elucidar tais conceitos, o recorte se dá a partir de um corpus, que consiste em reportagens referentes às manifestações sociais contra o aumento da tarifa de transporte público em São Paulo, em junho de 2013, e um ano depois, quando protestos foram retomados em meio à Copa do Mundo sediada no Brasil. Esse material consiste em uma análise documental que capta a utilização dos números para retratar um fato importante da história política brasileira recente, uma vez que os protestos saíram do âmbito dos R$ 0,20 e se transformaram em reivindicações dos mais diversos tipos e com importância até em esfera internacional. O material coletado foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo, doravante Estadão. O objetivo é discutir como os números nas reportagens são usados como argumento de objetividade, “torturando” os fatos. Segundo Vainer (2013), não há como não reconhecer uma conexão estreita entre os protestos que tiveram curso em junho de 2013 e o contexto propiciado pelos intensos e maciços investimentos urbanos associados à Copa de 2014. Não se pode também descartar os efeitos desses eventos nas urnas, resultando nas eleições presidenciais mais acirradas do Brasil entre os pensamentos de direita e de esquerda desde 1989. Por isso, a análise desse corpus foi feita sob a ótica da presença do Outro e com um discurso clivado pelas ideologias. Essa avaliação foi confrontada com as observações das rotinas produtivas dos jornalistas, por meio de entrevistas com alguns dos autores que mais se repetem entre as reportagens selecionadas, o que permitiu entender como o produto jornalístico derivado dos números é tratado e como se dão as decisões que marcam o valor do número e sua representatividade no fato noticioso. A proposta se insere nas investigações realizadas pelo Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT), se utilizando de métodos quantitativos e qualitativos, cuja abordagem teórica destaca a centralidade do trabalho para os estudos de comunicação. Nesse sentido, considera-se que esse fato pode ser explicado a partir da busca nas teorias sociais, das influências e do contexto que dão sentido aos números, sendo amplamente aceitos na sociedade. O que se propõe mostrar é que, em geral, esse consenso é equivocado. Afinal, a história por trás dos números pode revelar uma colossal falta

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de bom senso. Questionar essa “sabedoria convencional” com as perguntas corretas é o grande desafio. Conforme Levitt (2007), os seres humanos reagem a incentivos e, com os dados certos, os números são capazes de contar a história que faz o mundo parecer menos complicado. Quando se aprende a examinar os dados de forma correta, é possível explicar enigmas que do contrário pareceriam insolúveis, pois nada como o poder dos números para remover camadas e camadas de desconhecimento e contradições. (LEVITT, 2007, p. 14).

Essa percepção insere-se na Economia, ciência que é feita para medir e almeja “deixar que os números falem a verdade. Não favorecendo este ou aquele lado” (Levitt, 2010, p. 15). Isso porque a economia é sintonizada com as matemáticas e consegue traduzir em números os objetos de estudos econômicos. Já no Jornalismo, o receptor é capaz de engolir “inverdades” através dos números, pois a objetividade é o limite ao qual se tende, mas nunca se alcança.

TEORIA E PRÁTICA Dentre as ciências sociais aplicadas e os fundamentos gerais da problemática teórica da Comunicação, destacamos o modelo de Shannon e Weaver, com a denominada Teoria Matemática da Informação, que vê a comunicação como sinônimo de troca de informações e reflete uma preocupação apenas com a forma das mensagens a serem transmitidas - sem se ocupar com o conteúdo e o significado em si. Dominante por várias décadas, Rüdiger (2011 apud Weaver, 1980) lembra que a teoria matemática é tão geral que não é preciso estabelecer quais são as espécies de símbolos em jogo: letras, palavras escritas, faladas, notas musicais, música sinfônica, pinturas e, claro, os números. Nas reflexões sobre a indústria cultural, Adorno e Horkheimer destacavam a importância da linguagem matemática nas sociedades contemporâneas, dizendo que o procedimento matemático tornara-se o ritual do pensamento. Uma das razões seria a necessidade de simplificação dos fatos, aliada à universalidade da linguagem numérica, apresentando os números como códigos precisos e abrangentes. Porém, atualmente prevalece uma crítica a esse modelo informacional. Sob a perspectiva de Martín-Barbero, predomina o entendimento de que o campo de estudos da comunicação não pode ser compreendido como um mero campo de circulação de mensagens. Rüdiger (2011) explica que, nesse novo paradigma, “a comunicação é um processo dialógico e interativo, enquanto a informação, sim, seria um processo unidirecional e instrumental, em que o comunicador controla o receptor” (p. 27). Já no contexto filosófico, a origem dos números enquanto coisas sobre as quais se pode falar foi na Grécia Antiga, com Pitágoras e os “pitagóricos”, no século 6 a.C.. “Antes disso, os números eram apenas números, coisas para se contar com” (DUDLEY, 1997, p. 1). Nietzsche (1973) lembra que para o filósofo e matemático grego e seus seguidores, “o número é a essência própria das coisas” (p. 61). Nessa essência, “tudo é número”, ou seja, todas as coisas são construídas pelos números e, por sua vez, copiam os números. A fim de capturar essa “aura de plausibilidade” dos números para a construção de sentido no Jornalismo é necessário partir do pressuposto de que no processo de

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produção da notícia há diversos modos de se dizer e, consequentemente, diversas formas de se interpretar o que é dito, permitindo com que os números ganhem a aparência de fatos e sejam aceitos sem questionamento. Ou seja, considera-se que há uma conexão convincente na comunicação, pois o número parece preciso e oficial, eleito o eixo na relação entre o discurso de uma organização, suas normas gerais, e a aderência à prática do cotidiano, sua renormalização a partir da singularidade profissional. O número é, portanto, o elemento que revela as rotinas produtivas para alcançar a objetividade do Jornalismo, pois há uma predisposição em aceitá-lo, seja na produção ou na recepção. Essa análise se dá no sentido de compreender como os elementos linguísticos e extralinguísticos - aspectos históricos, sociais, culturais, ideológicos - se relacionam para a produção de sentido no texto, que é dotado de atividade e iniciativas. Trata-se de uma reconstrução da tese de que a sociedade é constituída simbolicamente e as pessoas, portanto, se relacionam através de símbolos. Nesse sentido, a comunicação é um processo em que a estrutura simbólica é mediada pelo próprio contexto social, pressupondo um consenso. Mas, como lembram Marx, Engels (2010), “as ideias da classe dominante são as ideias dominantes” (p. 113) e a comunicação se vê acorrentada à ordem social reinante, resultando em um conflito. Nele, os representantes da cultura dominante impõem seus valores, desmotivando o diferente. Por isso, além de aprofundar em termos teóricos a análise das matérias selecionadas, foram necessárias entrevistas diretas com os autores que mais se repetem nas reportagens, nas quais os números aparecem como argumentos mais pertinentes para a construção de sentido. A coleta desse material foi fundamental para compreender que se trata de um sujeito que atua no mundo social, junto com a presença do Outro no discurso, produzido dentro de um contexto social e histórico. Ressalta-se, contudo, que os dados das entrevistas não são vistos como realidade objetiva, mas sim como um discurso a ser interpretado, a fim de depurar as avaliações subjetivas e generalizações que os entrevistados atribuem à própria experiência. Desse modo, a proposta remete à dualidade das dimensões individuais e coletivas no mundo do trabalho e as situações narradas não devem ser tomadas como “fatos objetivos”, mas sim de forma a situar o discurso individual em determinadas condições de produção. Buscou-se, com isso, compreender as transformações e reconfigurações na relação trabalho/linguagem acionadas pela atividade de cobertura jornalística limitada pela linha editorial do jornal Estadão. Para tanto, as reflexões foram embasadas na Análise de Discurso (AD) a partir de Michel Pêcheux, cujo conceito pode ser definido como o estudo das condições de produção de um enunciado. Orlandi (2005) explica que o fundador da Escola Francesa de Análise de Discurso teoriza “como a linguagem é materializada na ideologia e como esta se manifesta na linguaguem” (p. 10). Pêcheux, acrescenta Orlandi, “estabelece como central a relação entre o simbólico e o político” (ibid), permitindo compreender como as relações de poder são significadas e simbolizadas. Trata-se, com isso, de fazer uso de um dispositivo capaz de analisar a relação entre o simbólico e o poder, visando compreender as formas como a ideologia e os signos se materializam no corpo do texto, através da língua e da textualização do discurso. Pelo confronto do político com o simbólico, a AD de Pêcheux levanta questões a partir da

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historicidade, interrogando a transparência da linguagem e descentralizando o conceito de subjetividade. Maingueneau (1989) diz que em uma reação frente ao Estruturalismo, cuja tendência era fechar os discursos sobre eles mesmos, a AD francesa põe em primeiro plano as relações intertextuais, e, igualmente a este movimento, atestam-se os trabalhos do “Círculo de Bakhtin”, “que fazem do ‘dialogismo’, da relação com o Outro, o fundamento de toda discursividade” (p.111). Essas duas linhas, concomitantes, são fundamentais como ferramenta teórico-metodológica nos estudos da linguagem e da análise do discurso. O que une essas perspectivas, em nossa visão, é a concepção que elas têm sobre o sujeito, pois se trata de um sujeito que atua no mundo social, dentro de um contexto social e histórico. Cabe notar que a AD escolhida vai se deslocando de uma leitura determinista de superestrutura para uma autocrítica em que as formações discursivas e ideológicas deixam de ser estruturantes para serem mais permeáveis à história e à dialética. Portanto, o sujeito não é mais o assujeitado das estruturas, mas sim um ser social histórico na arena da luta de classes dada pelo discurso. De acordo com essa concepção, o sujeito é filiado a um saber discursivo, que produz seus efeitos por intermédio da ideologia e do inconsciente. A partir dessa relação, a hipótese é de que o jornalista usa os números para sustentar a objetividade de um discurso e que o mundo do trabalho naturaliza todo esse processo de produção da notícia. Desse modo, a imprensa tende a procurar elementos que reforcem sua crença, amplificando um fato fabricado. A seguir, mostraremos que, por parecerem convincentes, os números podem ser um instrumento poderoso para apoiar um argumento e convencer o receptor, intimidando-o. Assim, ao transmitir uma informação baseada em números, a notícia se afasta ainda mais do seu papel de interpretação da realidade, dificultando a reflexão dos fatos sociais pelo receptor, em função de um discurso ideológico.

RECORTE A fagulha dos protestos que tomaram as cidades brasileiras em meados de 2013, das chamadas Jornadas de Junho, foi a mobilização contra o aumento da tarifa no transporte público urbano na capital paulista convocada pelo Movimento Passe Livre (MPL) no dia 6 daquele mês. Aparentemente despretensiosa, a manifestação liderada por 150 jovens ganhou a manchete dos principais jornais de São Paulo no dia seguinte. A chamada de capa do Estadão em 7 de junho de 2013 é dividida entre uma notícia econômica e a que se refere ao protesto ocorrido na noite anterior. No título e no texto, os números sobre a manifestação que parou a cidade de São Paulo são usados como recursos para quantificar a informação, ao citar a presença “de cerca de mil pessoas contra o aumento da passagem de ônibus e metrô de R$ 3,00 para R$ 3,20” que “parou o trânsito de algumas das principais vias” da cidade “no horário de pico”. Tratava-se, portanto, conforme a manchete daquele dia, de um “protesto contra tarifa” de transporte público protagonizado por um número nem tão grande de pessoas, mas que acabara “em depredação e caos em SP”. Na linha fina, o jornal dizia que os “manifestantes fecharam avenidas, invadiram shoppings e deixaram rastros de destruição”. Tal cenário criado buscava ainda qualificar os personagens, dizendo que “pelo menos 50 pessoas ficaram feridas e 15 foram detidas”. Ao lado, uma foto intitulada “vandalismo” na legenda.

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Nesse trecho inicial já é possível perceber o papel dado ao número na notícia, quantificando o total de manifestantes, sendo que alguns dos envolvidos foram classificados como “vândalos”, que bloquearam o trânsito e provocaram confrontos com a polícia. Para o Estadão, o primeiro dia de protesto contra o aumento da tarifa de ônibus na capital levou “caos” e “depredação”, causando um dos piores índices de congestionamento do ano, o que acabou por ofuscar, na manchete do jornal, os motivos das reivindicações sociais. Tanto que no editorial do dia seguinte, 8 de junho de 2013, o jornal constrói argumentos a partir dos números da reportagem do dia anterior para defender que o protesto contra a tarifa não passa, como dizia o título do texto, de “Puro Vandalismo”. Já na versão dos jornalistas, as manifestações de junho de 2013 demandaram um tipo de cobertura que, até então, não era foco do jornal onde esses profissionais trabalhavam. “Junho foi algo completamente atípico, foi algo completamente diferente”, conta o reporter Bruno Paes Manso, da editoria de Cidades. Ele lembra que os protestos do MPL já haviam ocorrido em gestões municipais anteriores, como a do ex-prefeito Gilberto Kassab, que também havia sido “perseguido”. “Então não era uma novidade pra gente, em tese”, continua Manso. “Era um assunto que não costumava inclusive ser coberto pelo jornal”, pois viam “os ‘malas’ do MPL como um protesto a mais dentre as dezenas que acontecem na cidade”. Ocorre que “2013 foi tomando uma proporção que ninguém imaginava”, conta Paulo Saldaña, que acompanhou as manifestações daquele ano “da redação”. Para ele, a população só conseguiu “ter uma dimensão depois de determinados dias que as coisas tinham acontecido”. “A gente ia acompanhando e falava: ‘Pô, cara, onde isso vai parar?”. Portanto, assim como se verificou na análise das matérias do jornal, as manifestações de 2013 não despertaram interesse pelo próprio fato social em si, a saber, a revogação dos R$ 0,20 de aumento no preço da passagem de ônibus. Chamaram atenção pelo “caos”, pelo “trânsito” e, sobretudo, pela generalização da revolta, pois não se apontou os culpados e tampouco se explorou as causas de tanta “desordem”. Caio do Valle, que assim como Saldaña fez a cobertura das manifestações de 2013 “na retaguarda”, direto da Redação, avalia que “as demandas” dos manifestantes, de qualquer tipo de protesto, “tinham que ter um espaço maior”. Mas a ausência das reivindicações sociais no jornal, para ele, “é porque, infelizmente, o jornalismo de Cidades está acostumado a fazer esse tipo de cobertura. É mais o ato em si, é mais o que o ato em si provoca do que o que se pede com esse ato”. Nesse sentido, observa do Valle, os números ganham uma importância para dar “dimensão, compor a matéria e contar a história” seja sobre o trânsito ou sobre os conflitos nas ruas, entre PM e MPL. E aí, “existia um confronto de dados, né? Porque a polícia, às vezes, divulgava um número de participantes, e o Passe Livre, outro”. Bruno Ribeiro brinca dizendo que “a Polícia pega o total e divide por dez e o MPL pega o total e multiplica por dez”. Desse modo, “a discussão especialmente sobre transporte público não aconteceu”, prossegue Manso. Para ele, a cobertura do jornal impresso “ficou muito em cima do fenômeno de manifestação”. Ou seja, no âmbito das práticas produtivas, a pauta buscava compreender a manifestação – a conseqüência, a reação - e não o transporte público - a causa, a origem - regulando a atividade de trabalho e, posteriormente, o modo de pensar. “Talvez tenha sido a maior falha na cobertura”, finaliza Manso. Portanto, percebe-se, novamente, como aquilo que foi apreendido durante a análise do corpus, sobre a recorrência do enfoque nos danos ocorridos durante as manifestações,

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é relatado pelos jornalistas como uma escolha profissional consonante à linha editorial do Estadão. Ao se eximir de sua tarefa maior, que é o compromisso com a informação, o profissional passa a atender o que se julga conveniente à linha editorial do jornal. Já em 2014, a manchete do Estadão de 12 de junho, dia do início da Copa do Mundo no País, dizia que o “Brasil é favorito em Copa contestada”. Um ano após as manifestações, apenas essa chamada retoma muitos elementos já apresentados e mostram que, assim como se posicionou contra a redução de R$ 0,20 na tarifa de ônibus, o jornal coloca-se contrário à realização da Copa do Mundo no país – mas não contra a Seleção Brasileira nem a paixão nacional, o futebol. Afinal, na estreia do Mundial, com o Brasil “favorito”, é o governo quem está “na marca do pênalti”. O editorial daquele dia 12 se utiliza de termos futebolísticos para mostrar confiança com a bola no pé, afinal a Seleção abria o evento “com Neymar como craque” e “favoritismo dentro de campo”, e lembrar ainda que logo depois do evento tem eleições presidenciais. Porém, fora das quatro linhas vale-tudo para tirar da jogada a candidata à reeleição. Por meio de números, o editorial do dia 12 destaca que “desaparece a diferença que levaria Dilma à vitória na primeira rodada”, o que abre espaço para uma disputa mais acirrada em um segundo turno. Não era, portanto, somente um torneio de futebol, mas também uma copa eleitoral. Do ponto de vista dos jornalistas, em 2014, a imprensa, os manifestantes, as autoridades, estavam todos “mais preparados”. Já não havia mais o MPL “ostentando a bandeira de redução de tarifa”, lembra Manso. Para Diego Zanchetta, que “viu o movimento nascer” da janela da Câmara Municipal, onde apurava outra matéria, “2013 e 2014 foram muito diferentes, porque... 2014 os protagonistas foram os Sem-Teto, que não tiveram o uso tanto da violência, do embate, mas uma tática muito mais organizada, é...de invasão de terrenos (...)”. Assim, as manifestações de 2014 estiveram longe de provocar a mesma sensação de perplexidade entre os jornalistas e a opinião pública que foi causada um ano antes. Da mesma forma, a violência deixou de ser o mote. Após a vitória popular em 2013, o ano de 2014, ao contrário, “mais tirou a direita do armário do que...”, avalia Saldaña, remetendose ao cenário político que se desenhou, nas eleições presidenciais de outubro recente.

CONCLUSÃO Apenas na apresentação inicial de um trecho da análise que faz parte da pesquisa de Mestrado, em andamento, é possível aferir que a linha editorial do Estadão se insere em uma sociedade na qual prevalece uma forma disfarçada de censura, que é o silêncio da grande mídia em relação a determinados temas. Quando ocorre essa censura disfarçada de silêncio a grande mídia omite algo dos espaços públicos, sonegando ou excluindo a possibilidade desse tema fazer parte do conhecimento e do debate público. Mas ao invés de omitir, pode-se também “disfarçar” a notícia, construindo o sentido do texto a partir dos números, por exemplo. Assim, a informação chega ao leitor com uma dupla conotação: a do discurso matemático (da exatidão, da objetividade, da verdade, do conhecimento cientifico) e a do discurso jornalístico, concedendo à mensagem a credibilidade e isenção necessárias, ao mesmo tempo ofuscando os verdadeiros conteúdos (mercadológico, político e ideológico).

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Antes de tudo, portanto, consideramos a influência causada pela conotação do número na mensagem jornalística, vendo a notícia como uma mercadoria e, como tal, sujeita a pressões de anunciantes e consumidores. Estes, por confiarem e acreditarem nos números, veem na notícia baseada no discurso matemático a representação de uma verdade inquestionável, sem perceber que a notícia é apenas uma representação da realidade. Mais que isso, a notícia é uma manipulação do real fabricado e mascarado a partir dos números. Essa reflexão mostra quão simplista pode ser a noção de objetividade sobre o sentido que os números podem mostrar no discurso jornalístico. Ao procurar argumentos técnicos para ofuscar questões políticas, éticas e ideológicas, através dos números, pode-se ser capaz de ocultar o papel que o Jornalismo desempenha, atuando tanto na reiteração e sedimentação de valores conservadores quanto na direção contrária a isso. Mas é o jornalista (e o seu meio) quem fala e quem identifica os fatos como importante, traduzindo-os em notícia. Por isso, a objetividade jornalística deve ser vista como um mecanismo ideológico proposto pelos meios de comunicação, a fim de mascarar a evidência de que a suposta realidade dos fatos é, na verdade, uma construção social. Esse caráter ideológico da produção da notícia resulta em um sentido para o real, ocultando o fato de que este sentido é uma construção imaginária ou meramente uma interposição simbólica entre sujeito e realidade, através da linguagem. Assim, a contribuição pretendida aqui é mostrar a realidade deve ser apresentada de modo que o leitor faça o seu próprio julgamento. Considera-se que o poder dos números no processo de produção da notícia é limitado e começa a evaporar à medida que se examina o contexto, se reconhece e se identifica a construção de um discurso (e sua ideologia). O contexto desses signos para compreender seu significado é a essência da correspondência entre fatos e dados, entre palavras e números, que deve ser captada pelo leitor, perpassando aquilo que se exprime somente pela língua e evidenciando suas diferentes versões.

REFERÊNCIAS Dudley, U. (1997). Numerology or what Pythagoras wrought. EUA: The Mathematical Association of America. Levitt, S., & Dubner, S. (2007). Freakonomics: o lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta. Rio de Janeiro: Elsevier. ______ . (2010). Superfreakonomics: o lado oculto do dia a dia. Rio de Janeiro: Elsevier. Maingueneau, D. (1989). Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes. Marx, K., & Engels, F. (2010). Cultura, arte e literatura. Textos escolhidos. São Paulo: Expressão popular. Nietzsche, F. (1973). Crítica Moderna. Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural. Orlandi, E. (2005, junho). Michel Pêcheux e a Análise de Discurso. Estudos da Língua(gem) (1), 9-13. Puliti, P. (2013). O juro da notícia. Florianópolis: Insular. Rüdiger, F. (2011). As teorias da comunicação. Porto Alegre: Penso. Vainer, C. (2013). Quando a cidade vai às ruas. In: Maricato, E [et al] (Ed.), Cidades Rebeldes – Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (pp. 35-40). São Paulo: Boitempo: Carta Maior.

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O modo de pensar e fazer o jornalismo do portal de notícias Brasil Post: apontamentos iniciais The way of thinking and doing the journalism in Brasil Post website: first impressions A l i n e T. A m a r a l H o r n 1

Resumo: Este estudo, em fase inicial de desenvolvimento, faz parte de um projeto internacional idealizado no grupo de pesquisa Comunicação e Cultura Ciber, que pretende analisar como se configura o modo de pensar e fazer jornalismo no portal de notícias Brasil Post, primeira versão sul americana do Huffington Post. A metodologia utilizada baseia-se em pesquisa documental relacionada ao eixo comunicação e cultura, sociedade pós-moderna e estudos de jornalismo, a destacar: Martín-Barbero (1997), Marcondes Filho (2009), Stuart Hall (2000) e Zélia Leal (2010). Já o recorte de estudo, realizado entre os dias 2 e 7 de janeiro e 3 a 10 de março de 2015, está embasado na análise das chamadas das notícias do portal, a partir do referencial teórico adotado por Marcondes Filho (2002) para exemplificar a imaterialidade jornalística. Entre as conclusões parciais, constatase que o fazer jornalístico deste portal tem imbricado um teor humorístico, algumas vezes pejorativo, o que leva a crer, inicialmente, que as notícias estejam mais ligadas as demandas de mercado, do que aos assuntos de interesse público.

Palavras-Chave: Jornalismo. Webjornalismo. Brasil Post. Abstract: This study, in an early development phase, is part of an international project created in research group Communication and Cyber Culture, which aims to analyze the configuration of the way of doing and thinking journalism in the website Brazil Post, the first south american news website version of the Huffington Post. The methodology is based on desk research related to the axis communication and culture, post modern society and journalism studies, based on the following authors: Martin-Barbero (1997), Marcondes Filho (2009), Stuart Hall (2000) and Zelia Leal (2010 ). The study was done between 2 and 7 January and between 3 and 10 March, 2015. It’s based in the analysis of headlines news from the theoretical framework adopted by Marcondes Filho (2002) to illustrate the journalistic immateriality. Among the partial findings, it’s possible to conclude that the journalism in Brasil Post produces content with humor, which is pejorative, sometimes. Apparently the choice by using humor is linked to market interest than to issues of public interest.

Keywords: Journalism. Webjournalism. Brasil Post.

1.  Mestranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFPR. E-mail: [email protected]

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O modo de pensar e fazer o jornalismo do portal de notícias Brasil Post: apontamentos iniciais Aline T. Amaral Horn

1. INTRODUÇÃO RENTE ÀS mudanças contemporâneas vigentes na era digital – repercussão de

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notícias internacionais em tempo real, participação do público na produção de conteúdo web e interação da população de todo mundo via mídias sociais – fato é que compreender a configuração do jornalismo dos dias de hoje, é também, refletir sobre as mudanças do indivíduo e sociedade. Portanto, para acompanhar as rápidas mutações no cenário pós-moderno, é natural constatar que o jornalista, como representante do interesse público, esteja passando por uma transição que demanda a urgência pela revisão de sua própria atuação profissional. Para levantar reflexões acerca desta realidade, o estudo em questão, em fase inicial de desenvolvimento, faz parte de um projeto internacional idealizado no grupo de pesquisa Comunicação e Cultura Ciber, que propõe analisar como se configura o modo de fazer e pensar o jornalismo no portal de notícias Brasil Post, primeira versão sul americana do Huffington Post. Nestes primeiros meses de pesquisa (setembro de 2014 até atual) o grupo de pesquisa observou a postura político ideológica, o conteúdo, a narratividade, o algoritmo e a relação do público com o portal. Dentre estes levantamentos iniciais, o recorte de análise deste estudo, centra-se na análise das chamadas das notícias e, propõe analisar os temas mais recorrentes no portal. Para tanto, a metodologia utilizada baseia-se em pesquisa documental ancorada nos principais conceitos teóricos de Martín-Barbero (1997), no entendimento que a comunicação é pensada a partir das práticas sociais e mudanças do indivíduo e da cultura. Nesta conjuntura, pretende-se aprofundar a compreensão sobre a identidade do sujeito pós-moderno e principais mudanças no fazer jornalismo na era digital, tendo como referencial teórico os seguintes autores: Marcondes Filho (2009), Stuart Hall (2000) e Zélia Leal (2010). Já o recorte de estudo, realizado entre os dias 2 e 7 de janeiro e 3 a 10 de março de 2015, está embasado no referencial teórico adotado por Marcondes Filho (2002) para exemplificar a imaterialidade jornalística, termo utilizado para nomear o novo caráter do jornalismo. A partir do entendimento que falar de comunicação é falar de nós mesmos, da constituição identitária do sujeito e, que falar de Jornalismo é falar de interesse público, da relação com o outro e das trocas culturais, este trabalho propõe levantar reflexões iniciais que discorrem sobre o modo de pensar e fazer o jornalismo no portal de notícias Brasil Post, como retrato, ainda que parcial, das várias faces do Jornalismo, suas possíveis contrariedades e descontinuidades.

2. A COMUNICAÇÃO, O SUJEITO E O JORNALISTA NO MUNDO PÓS-MODERNO Segundo Martín-Barbero (1997) a comunicação é pensada a partir das práticas sociais e mudanças do indivíduo e da cultura. Porém, compreender o universo da comunicação a partir da cultura, antecede um questionamento fundamental: mas, afinal, que cultura é esta? Para Wolton (2006, p. 229) há três sentidos para a palavra “cultura”: o primeiro sentido remete a ideia de obra e criação, o segundo integra símbolos, valores e representações e, o último leva em conta os modos de vida e os conhecimentos cotidianos. Considerando a definição apresentada pelo autor, sabe-se que a cultura das sociedades contemporâneas configura-se sob o prisma da instantaneidade, do supérfluo,

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do momentâneo, das relações efêmeras e, tais características refletem a constituição da identidade do homem pós-moderno. Se o sujeito é movediço, as profissões, sejam elas quais forem, passam também por um processo “inacabado”, em transição, traduzido em mutações que acompanham este mundo acelerado. Nos mundos off e on (line), o que importa é o quanto o sujeito mostra e faz o outro ter conhecimento do que na verdade ele “aparenta ser”. Estas colocações podem parecer reducionistas quando se fala em mundo pós-moderno, mas são fundamentais para a discussão acerca dos estudos do Jornalismo que, neste estudo, abrange o mundo web. Segundo Wolton (2006, p. 47), a globalização da informação vai acentuar o desligamento entre o jornalista e sua opinião pública nacional: Ele será cada vez menos o ‘representante’ do cidadão e cada vez mais um indivíduo isolado confrontado com todas as influências. A questão da confiança que lhe é atribuída como condição da sua legitimidade se tornará ainda mais importante. Os jornalistas têm a temível responsabilidade de informar, sem retomar sistematicamente o discurso dos atores políticos, mas também nem sempre tendo os meios para as suas investigações (WOLTON, 2006, p. 47).

Considerando a conjuntura apresentada, levanta-se aqui a necessidade do jornalista, sujeito pós-moderno e representante do interesse público, acompanhar estas transformações da trama cultural. Se o jornalista apreende as mediações, ou seja, tudo aquilo que influencia a maneira como o indivíduo vai receber e reelaborar as mensagens que o atingem, ele reelabora o seu modo de fazer jornalismo, mesmo inconscientemente, pois faz parte da trama cultural e, à medida que se transforma, o seu papel também muda perante a sociedade. Portanto, a partir da afirmação de Martín-Barbero (1997) de que hoje os meios de comunicação de massa tem um relevante papel no processo de formação das nações latino-americanas, é inegável que a análise do modo de fazer o jornalismo perpasse pela análise da conjuntura cultural contemporânea e pelos fenômenos de comunicação. Portanto, partindo da concepção de que o sujeito pós-moderno é resultado de uma sociedade impactada pela globalização e que sua identidade “não é fixa ou permanente e, sim, uma ‘celebração móvel’, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006, p. 12), é importante considerar que um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades pós-modernas: Isso esta fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido se si” estável, é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constituiu uma ‘crise de identidade’ para o indivíduo (HALL, 2000, p. 9).

Neste cenário, Hall (2006, p. 75) afirma que quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais,

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pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, “mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’”. É evidente que essa ausência de vínculo do indivíduo pós-moderno acaba por inferir sobre o modo de fazer jornalismo no século XXI. É o que aponta Leal e Pereira (2010, p.1), quando enfatizam que há nos dias de hoje um cenário marcado por um conjunto de transformações no modo de produção da notícia, pelos processos de convergência digital e pela crise da empresa jornalística enquanto modelo de negócios. Não é por menos, que Marcondes Filho (2009, p. 156) chama, hoje, imaterialidade jornalística, o novo caráter do jornalismo: (...) claramente diferente daquele do século passado, a imprensa político-literária, ou o jornalismo do século XX, marcado por um grande desenvolvimento empresarial, mas ainda acoplado a luta ideológica, a questão do firmar posições em relação aos polos antagônicos da política: a esquerda e a direita. Na nova era, o jornalismo abandona totalmente esses critérios, métodos e formas de se fazer notícias e parte para outro tipo de produção, agora organicamente coerente como este novo mundo (MARCONDES FILHO, 2009, p. 156).

Para atender às novas exigências deste “novo mundo”, o autor faz menção a quatro categorias que exemplificam a imaterialidade jornalística: o texto, a imagem, a prática jornalística e o processo de trabalho. Em relação ao texto, o autor relata a tendência que estes fiquem cada vez mais compactos, enxutos, não possuindo mais que três parágrafos. Já a imagem deixa de ser um documento de exatidão e verdade, pois quando editada, passa a distorcer a realidade. A prática jornalística é pautada por situações fictícias advindas da publicidade, grifes da moda e mundo das celebridades. E, por fim, o processo de trabalho se traduz em textos jornalísticos razoáveis, que deem conta das exigências de tempo. Estas definições demonstram a provocação do autor em relação à configuração do jornalismo dos dias de hoje e, ilustram suas tendências e novos formatos. Os jornalistas, diante de um público mais ativo e participativo, têm sido pressionados a buscar alternativas para o processo de coleta e formatação de informações. Segundo Flichy (1999 apud LEAL; PEREIRA, 2010, p. 14), em virtude da popularização de ferramentas tecnológicas, aliadas a mecanismos cada vez mais acessíveis de conexão com a internet, há uma flexibilização das fronteiras entre produtores e audiência. Neste contexto, a velocidade da informação, torna-se uma característica do jornalismo, muito exigida, principalmente, aos jornalistas que atuam em plataformas web. Conforme Marcondes Filho (2002, p. 147) exemplifica, sob as novas condições, “a prática de produzir e divulgar notícias (...) opera sob o princípio da rapidez, da redução e racionalização”. A distinção entre as gerações de jornalistas reforça ainda mais as reflexões acerca da constituição do modo de fazer Jornalismo no século XXI. De um lado, (MARCONDES FILHO, 2002, p. 54) os velhos jornalistas, comentaristas, “imbuídos das funções clássicas em extinção e movidos ideologicamente”, em oposição aos jovens, “desatrelados desses valores, alguns preocupados com uma única ideologia, a da transparência”, outros sem nenhuma, e, raramente, alguns com alguma ligação aos antigos princípios da imprensa. Ou seja, a juventude ingressante na profissão encontra hoje uma situação de dupla perplexidade:

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(...) de um lado, um campo profissional extremamente mutante, incerto, movediço, tanto do ponto de vista da própria identidade do jornalismo quanto das possibilidades futuras de uma “profissão que não existe”. É uma especialização em profunda mudança, sem que se veja com muita clareza os rumos que são seguidos nas próximas décadas (MARCONDES FILHO, 2002, p. 54).

Segundo Leal e Pereira (2010, p. 2), o jornalismo profissional - pressionado pelas novas tecnologias, pelas práticas de comunicação organizacional e entretenimento, pela participação ativa do público e pela democratização das formas de acesso ao espaço público midiático - parece vivenciar um momento de indefinição. Isso leva a crer que a prática jornalística pode ser vista como “um espaço múltiplo, heterogêneo atravessado por uma tensão permanente entre ordem e dispersão, entre estabilidade e mudança” (BOURDIEU, 1997; RUELLAN, 1993 apud LEAL; PEREIRA, 2010, p.4) e, estas transformações, no mundo digital, sem dúvida, podem ser ainda mais atenuantes.

2.1 A internet e o webjornalismo Segundo dados da Pesquisa Brasileira de Mídia 2014, enquanto a maioria dos brasileiros (53%) nunca acessa a internet, aproximadamente um quarto da população (26%) o faz nos dias da semana. Este estudo aponta ainda que o hábito de acessar a internet é mais comum na população mais jovem, nos maiores centros urbanos e nos estratos de maior renda e escolaridade: 77% dos entrevistados com menos de 25 anos têm contato com a rede, pelo menos, uma vez por semana. Esse percentual cai para 3% entre os respondentes com mais de 65 anos. Em relação a influencia que as redes sociais, em especial o facebook, têm nos hábitos de uso da internet no Brasil, a pesquisa aponta que 32,1% dos entrevistados utiliza as mídias sociais para se informar. Entre os respondentes com renda familiar acima de 5 salários mínimos, 78% têm acesso à rede em casa, o que ocorre com apenas 16% dos entrevistados com até 1 salário mínimo de renda familiar. Entre os dados da pesquisa, vale ressaltar que o jovem está em maioria na internet, e, portanto, tendo em vista que o jovem hoje pode ser o jornalista de amanhã, é fundamental compreender como se estabelece sua relação com o mundo digital e, evitar o que alerta Meyer (2004, p. 244) em relação ao que é feito para conquistar a atenção do público web. Segundo o autor, comunicadores profissionais experimentam uma série de coisas, como tornar o conteúdo o mais chocante e bizarro possível, divulgar informação tão rápido que não sobra tempo para checar os fatos ou ainda “mesclar o conteúdo editorial a publicidade paga ou ao material de assessoria de imprensa, de forma tão imperceptível que o consumidor não tem consciência de estar recebendo uma mensagem comercial”. Meyer admite que embora essas ações, em geral, não sejam realizadas por jornalistas legítimos, “há uma quantidade suficiente de infrações altamente visíveis feitas por jornalistas para que a opinião pública considere a distinção bastante imperceptível”. Neste mesmo raciocínio, Ramonet (2004, p. 243-244 apud FÍGARO, 2013, p. 159) afirma que há dez anos (meados dos anos 2000) os meios de comunicação ainda eram

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considerados autônomos em relação ao resto do universo da comunicação, “com sua própria lógica, com sua própria dinâmica”. Porém, diante da afirmação do autor, Fígaro (2013, p. 159) considera que após a denominada “revolução digital”, o universo da comunicação, separado por Ramonet como esfera de informação (imprensa, agência de notícias, noticiários de televisão), a comunicação institucional (publicidade, propaganda) e a cultura de massa (telenovela, quadrinhos) “passou a não mais apresentar diferença entre as três esferas”. Considerando o posicionamento crítico de Fígaro (2013) em relação aos meios de comunicação e às mudanças no mundo de trabalho do jornalista, cabe a este profissional além da capacidade de atuar em multiplataformas e ter domínio sobre aspectos estéticos e de conteúdo, ter “noções de marketing e de administração, visto que se prioriza a visão de negócios/mercadoria já inserida no produto cultural, por meio do tratamento dados as pautas e a segmentação do público” (FÍGARO, 2013, p. 14). Por outro lado, vale ressaltar que o jornalista deve ser capaz “de atuar no campo da comunicação de maneira integrada, articulando diferentes mídias e linguagens da comunicação a partir de uma sólida formação humanística” (FÍGARO, 2013, p. 145). Segundo Leal e Pereira (2005, p. 7) um modelo de produção de notícias bastante adotado pelas webredações é o que os franceses chamam de journaliste assis ou jornalista sentado. O termo é utilizado para designar um jornalismo direcionado ao tratamento de uma informação que não é coletada pelo próprio jornalista. A figura do jornalista sentado adaptou-se muito bem às condições de produção para o digital. “Como repórter de notícias em tempo real, ele é responsável pela transposição para a web de material informativo produzido por outros meios, sejam eles jornalísticos ou não” (LEAL; PEREIRA, 2005, p. 7). Os autores também consideram que a produção de notícias on-line não se resume apenas ao factual, ao que é publicado instantaneamente: O jornalismo on-line dedica-se também à produção de material informativo para o armazenamento de informações em bancos de dados, seguindo o formato narrativo da indexação de temáticas jornalísticas (Moraes, 2004). A internet é, ao mesmo tempo, a mídia da instantaneidade e a mídia da memória. A ausência de limitações de espaço na rede possibilita a cobertura exaustiva de alguns assuntos, reunidos em “sites especiais” (LEAL; PEREIRA, 2005, p. 14).

Leal e Pereira (2005, p. 5) ainda atentam que os sites de notícia entenderam que era mais fácil e mais barato contratar estagiários de outras áreas, não necessariamente de comunicação. “Com salários menores e sem os vícios e exigências de um jornalista formado, esses ‘produtores de conteúdo’ passaram a ocupar parte do novo mercado de trabalho”. Isso é reflexo do que aponta Fígaro (2013, p. 146), quando afirma que as empresas, administradas por economistas, analistas, engenheiros, estão ligadas ao sistema capitalista, globalizado, financeiro e internacional. Neste contexto, “o jornalista é apenas uma peça dentro do processo, cada vez mais sufocado, cada vez mais raro nas redações”. Frente a estes desafios relativos à profissão do jornalista, vale ressaltar a reflexão levantada por Moretzsohn (2007, p. 17) em relação à necessidade de tratar uma questão fundamental no jornalismo: explorar as possibilidades deste profissional superar,

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no contexto de suas rotinas profissionais, o caráter imediato dos fatos para oferecer ao público elementos de reflexão. Neste contexto, Meyer (2004, p. 99) considera que o problema está justamente em “encontrar o equilíbrio entre velocidade e exatidão, entre ser abrangente e meramente interessante”. Portanto, a questão do tempo, da qualidade/ tratamento da informação, das relações de mercado, questões institucionais e de marketing, estão sem dúvida, entre os maiores desafios atuais do jornalista, principalmente, no mundo online, pois requer deste profissional alguns enfrentamentos: sobre si como sujeito pós-moderno “movediço”, perante a sua própria práxis em “transição” e, frente às mudanças culturais vigentes.

2.2. Brasil Post: um pouco da história O Huffington Post, considerado um dos sites de notícias mais acessados do mundo, possui 13 edições internacionais: Estados Unidos,  Brasil,  Canadá,  Alemanha,  Espanha, França,  Grécia, Índia, Itália, Japão, Coreia do Sul, Maghreb (com base na Tunísia) e Reino Unido. Fundado por Arianna Huffington, o portal foi comprado em fevereiro de 2011 pela América Online por 315 milhões de dólares, e hoje, “supera os números de publicações tradicionais americanas, como os do jornal The New York Times”2, além de contar com uma equipe de 130 jornalistas e cerca de 9.000 colaboradores blogueiros não remunerados. Lançado em 28/02/2014, o Brasil Post, primeira versão latino americana do Huffington Post, associado à Editora Abril, possui uma equipe de dez pessoas, liderada pelo diretor editorial Ricardo Anderáos e pelo editor-chefe Otávio Dias. Na matéria “Boas-vindas: apresentando o Brasil Post” (28/01/2014)3, Arianna Huffington afirma: (...) a proposta para a versão brasileira é receber suas muitas vozes, políticos, empresários e acadêmicos, lado a lado com estudantes, ativistas e artistas, sem hierarquias. Será um portal onde todos os brasileiros poderão vir para compartilhar suas paixões ou simplesmente postar o que já estão escrevendo em seus próprios blogs, como canal de distribuição adicional (HUFFINGTON, Arianna).

Em outra matéria publicada no Brasil Post “12 questões para entender o Brasil Post”4 (28/01/2015), é relatado que o objetivo do portal é “procurar e selecionar o que há de mais bacana nessa multidão de vozes, para fornecer ao leitor uma curadoria desse conteúdo gerado espontaneamente”. Uma das características mais predominantes do portal é o foco na interação, nos comentários e sugestões de leitores usados como ponto de partida para as matérias: “Hoje, todos somos produtores e consumidores de informação: interagimos, comentamos e nos engajamos com tudo o que vemos”. Segundo Anderáos, diretor editorial do portal (2015)5, “o resultado é que, desde 1 de janeiro de 2.  Matéria disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/vida-digital/huffington-post-chega-ao-paisatras-do-sonho-brasileiro/ (04/09/2011). Acesso em: 08 mar. 2015 3.  Matéria “Boas-vindas: apresentando o Brasil Post”. Disponível em: http://www.brasilpost.com.br/ariannahuffington/boasvindas-apresentando-o_b_4676219.html?utm_hp_ref=brazil . Acesso em 17 out. 2014 4. Matéria “12 questões para entender o Brasil Post disponível em: http://www.brasilpost.com.br/2015/01/28/ entenda-o-brasil-post_n_6551094.html. Acesso em: 08 março de 2015 5. Matéria “Um ano de Brasil Post, nunca aprendi e me diverti tanto”. Disponível em: http://www.brasilpost. com.br/ricardo- anderaos/brasil-post-aniversario_b_6559198.html. Acesso em: 09 mar. 2015

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2015, 5,5 milhões de pessoas visitaram o Brasil Post (...) E mais de 62% desses visitantes consumiram nosso conteúdo em seus celulares”. Diante deste breve apanhado de relatos que retratam algumas características importantes do portal de notícias de matriz americana, parte-se para a análise dos temas do Brasil Post, versão nacional do Huffington Post.

2.3. O modo de fazer e de pensar o jornalismo do Brasil Post No período de observação do Brasil Post, foi possível identificar algumas características predominantes referentes ao conteúdo, linguagem e imagem. Em relação ao conteúdo há uma intensa repetição das notícias em diferentes editorias (País, Mundo, Comportamento, Viral etc) e a permanência das mesmas durante muito tempo em destaque tanto na homepage, assim como nas editorias. Quando isso não acontece, notícias antigas são republicadas e colocadas em destaque, o que provoca uma falsa sensação de algo factual e/ou novo foi noticiado. Este tipo de ocorrência além de causar estranhamento e confusão ao leitor web, caracteriza a predominância de matérias frias, comuns, ao mundo digital. Porém, quando a repetição é marcante no webjornalismo, a desconfiança em relação à veracidade daquilo que está sendo noticiado, provoca no leitor desconforto e incerteza, o que pode comprometer a credibilidade do próprio portal. No período de observação correspondente aos dias 02 a 04 de janeiro de 2015, por exemplo, nenhuma atualização havia sido realizada, o que é questionável, visto que trata-se de um portal de notícias. Quanto à linguagem, é possível notar dois traços bastante marcantes: o coloquial – “25 fotos de casamento mais liiindas de 2014” (06/01/15), “Sim!! 5 motivos para acreditar que ele vai ganhar a melhor festa de 2015”(09/03/15), “Ao contrário do que você pensa, fumar não vai aliviar o seu stress” (08/03/15) - e o uso do imperativo, remetendo aos recursos utilizados pelo marketing – “Assista: Vóóóóó.....o portal caiu!” (09/03/15), “Assista: pegadinha da porta mágica deixa as pessoas MA-LU-CAS” (07/03/15), “Conheça Monica Moreira Lima, apresentadora do sem vergonha” (03/01/15). É importante atentar que a linguagem coloquial faz parte por si só do mundo web, porém, a maneira como é utilizada - uso de termos ambíguos, tom falado e provocativo - é bastante questionável. Já as imagens utilizadas no conteúdo noticiado, em sua maioria veem de banco de imagens ou então são tratadas e/ou editadas, o que não só caracteriza a perda do factual e a tendência do portal de notícias em priorizar conteúdos “frios”, mas acentua uma certa distorção da realidade, reproduzindo simulacros. No dia 05 de janeiro de 2015, por exemplo, das 26 notícias da homepage do Brasil Post, apenas 4 apresentaram imagens factuais/reais. Este breve panorama geral do portal, ilustra observações que já tem sido realizadas e discutidas nos encontros do grupo de pesquisa já mencionado. Por considerar a complexidade dos temas abordados e, tendo em vista que este estudo integra uma pesquisa de maior abrangência, ainda em fase inicial de desenvolvimento, a análise deste trabalho irá concentra-se no estudo dos temas mais recorrentes noticiados no Brasil Post. Neste primeiro momento da pesquisa, a análise dos assuntos noticiados está embasada nas manchetes e/ou chamadas das notícias:

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(...) a principal arma de captura da atenção das notícias são manchetes ou chamadas, que manipulam as duas formas de curiosidades: as provocadas pelas estratégias de arrebatamento, que envolvem questões de expressão, e as desencadeadas pela estratégia de sustentação, ligadas ao conteúdo. Toda a manchete ou chamada é concebida para ‘sensibilizar’, para atrair sensorialmente e passionalmente. Por meio desse recurso, cada jornal veicula uma grande carga afetiva e pede concentração para o que destaca como o mais importante, o mais fabuloso, o mais perigoso, o mais prazeroso, o mais... (...) Podemos dizer que a satisfação de conhecer a ‘história toda, ou, pelo menos os detalhes da narrativa no momento específico da edição, é uma das expectativas associadas à manchete (HERNANDES, 2006, p. 53).

Esta “captura de atenção” provocada pelas chamadas das reportagens, sem dúvida, é notória no webjornalismo. No período de observação, foi possível identificar na homepage do portal notícias sobre mulheres, saúde, sexo, gastronomia, porém, os temas que tiveram maior predominância e destaque se enquadram nas seguintes categorias, adotadas, para este estudo: autoajuda, celebridade e dicas. Na categoria autoajuda, nota-se uma predominância de notícias referentes a relacionamentos amorosos, como é possível observar nas seguintes chamadas: “10 medos que você precisa superar para ter relacionamentos melhores” (01/01/2015), “8 fatos surpreendentes que levam a um casamento duradouro” (02/01/2015), “Eles foram casados por 67 anos...e morreram de mãos dadas”(03/03/15), “8 passos para deixar os impulsos ciumentos de lado” (05/03/15), “Ciência comprova: casais que dormem de conchinha são mais felizes” (06/03/15). Há outras, como: “Os jeitos mais esquisitos de curar ressaca (só para os de estomago forte)” (03/01/2015), “5 coisas que não te contam sobre a perda de peso”(04/01/2015), “8 riscos que você corre por dormir demais”(04/03/15), “3 melhores jeitos de fazer tarefas simples”(09/03/15), relacionadas a saúde e comportamento. Já na categoria celebridades, é possível notar que as chamadas são mais coloquiais, em relação às demais notícias do portal: “A melhor entrevista de todos os tempos com Xuxa” (01/01/2015), “Curtiu ‘Boyhood’? o diretor tem uma notícia que vai te deixar ansioso” (02/01/2015), “Quanto que você pagaria para um jatinho de Elvis Presley?” (03/01/2015), “7 momentos em que Alexandre Frotta se mostrou ser um babaca”(03/03/15), “Assista: 8 músicas e clipes inesquecíveis dos Back Street Boys para matar a saudade (04/03/15), “Sabrina Sato: poderia ser um vazamento da minha intimidade” (05/03/2015), “Kelly Clarkson responde críticas sobre estar acima do peso: ‘Eu sou incrível’”(06/03/15). O tom “falado” e informal gera uma falsa sensação de intimidade com o público. Há uma tentativa de aproximar o mundo das celebridades (ficção) ao mundo da vida real, provocando “emoções”, “sensações” no sujeito comum. Na categoria dicas, elencou-se chamadas que apresentam números, resgatando a ideia de que tudo tem uma solução, uma “receita de bolo” que é cabível a qualquer leitor, como é possível observar a seguir: “7 alternativas válidas para conter gastos em 2015”(01/01/2015), “14 provas de que sim, existe racismo no Brasil” (02/01/2015); “5 séries de TV que serão apostas em 2015 (e você vai querer assistir)”(03/01/2015), “Estes são os nove problemas mais comuns no sexo, por especialistas” (04/01/2015), “5 inovações da geração baby boomer que mudaram o sexo para sempre” (05/01/2015),”10 músicas mais

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tocadas nas rádios brasileiras” (06/01/2015), “7 aplicativos que facilitam a vida de quem trabalha em casa”(06/03/15), “5 empresas que respeitam as mulheres com benefícios específicos para elas”(09/03/15). Diante do que foi retratado em relação aos temas mais recorrentes no portal, é possível notar uma contrariedade do que de fato é noticiado em relação ao viés ideológico do Brasil Post, conforme descrição abaixo: (...) todas as suas edições ao redor do mundo se posicionam favoravelmente a bandeiras progressistas como o respeito pleno aos direitos humanos, descriminalização da maconha, a preservação do meio ambiente, os direitos LGBT, o combate ao racismo, o empoderamento das mulheres e a transparência na gestão pública6.

Apesar do portal não assumir uma posição político partidária, aponta seu posicionamento em relação a temas de interesse público - respeito aos direitos humanos, preservação do meio ambiente, combate ao racismo etc - como é possível observar nas chamadas a seguir: “14 provas de que sim, existe racismo no Brasil” (02/01/2015), “Cientistas descobriram a possível causa da larica em quem fuma maconha” (03/03/2015), “O empoderamento da mulher, do pior ao melhor” (03/01/2015) entre outras. Por outro lado, esta atribuição parece ser enganosa, conforme declaração do próprio diretor chefe do Brasil Post, Ricardo Anderáos7: Pouco a pouco, fomos aprendendo a cobrir o noticiário tradicional de maneira mais interessante. Conseguimos dar boas notícias, mostrar que o sucesso é ter qualidade de vida e não ser rico ou famoso, falamos de coisas aparentemente inúteis, mas cativantes, misturamos “coisa séria” com o trivial (ANDERÁOS, Ricardo)

Quando Anderáos (2015) afirma “falamos de coisas aparentemente inúteis, mas cativantes, misturamos coisa séria com o trivial”, fica evidente que o real posicionamento do portal privilegia a cobertura de temas fúteis e de pouca relevância social. Conforme aponta Marcondes Filho (2009, p. 163) “as pautas que são hoje definidas no jornalismo cotidiano pouco têm a ver com preocupações mais macrossociais ou com interesses gerais e populações ou de tendências na sociedade”. Para o autor, o jornalismo cria cada vez mais discussões fictícias em torno “das grifes da moda, dos novos spots publicitários ou de personagens de telenovelas, que surpreendentemente passam a existir como figuras reais no mundo”. Vale atentar que a maior parte das notícias do Brasil Post são curtas (contendo no máximo três parágrafos) e o texto da notícia é intercalado, na maioria das vezes, por animações e/ou boxes de imagens fictícias, editadas ou oriundas de banco de imagens, como já foi falado. Neste contexto, Marcondes Filho (2009, p. 164) justifica que o jornalista considerado um bom profissional, nos dias de hoje, “é aquele capaz de dar conta das exigências de tempo, produzindo textos jornalísticos razoáveis e com uma grande maleabilidade redacional ou editorial”. Como justificativa, argumenta: 6.  Matéria “12 questões para entender o que é o Brasil Post”. Disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2015 7.  Notícia “Um ano de Brasil Post, nunca aprendi e me diverti tanto”. Disponível em: . Acesso em 09 mar. 2015

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A precedência é o que caracteriza uma situação das culturas contemporâneas como em processo de ‘dislexia’, segundo a qual está se reduzindo nas pessoas a capacidade de ler textos, principalmente textos longos ou que envolvem certa abstração. Esses textos tornam-se ilegíveis já que a ociosidade visual com decodificação exclusiva de cenas ocupa o lugar dessa informação (MARCONDES FILHO, 2009, p. 159).

Como consequência, Marcondes Filho (2009, p. 165), aponta que há um novo tipo de relação de trabalho nas empresas que privilegiam jovens jornalistas que estão identificados com esse novo padrão de produção, os chamados yuppie, profissional que não tem nenhuma vinculação expressiva com princípios e são “funcionários facilmente adaptáveis a qualquer tipo de ordens ou exigências jornalísticas das empresas”. Não é possível afirmar que os jornalistas do Brasil Post possam ser caracterizados conforme a descrição do autor, por outro lado, sabe-se que a equipe de profissionais do portal é composta por jornalistas, na sua maioria jovem, além de inúmeros blogueiros, que não são necessariamente jornalistas. Portanto, a título de reflexão, vale ressaltar que “não temos mais um grande especialista em uma área ou em um tema; temos uma multidão de bons redatores, capazes de passar por todas as redações e mesmo funcionar como editores delas” (MARCONDES FILHO, 2009, p. 165).

3. CONCLUSÃO Entre as conclusões parciais, constata-se que o fazer jornalístico do Brasil Post privilegia a repetição de notícias em diferentes editorias, a utilização constante de termos no imperativo (linguagem de marketing), a produção de textos curtos e intensa utilização de animações e imagens. Já em relação ao modo de pensar o jornalismo do portal, pode-se afirmar que este está pautado no hiper-realismo, simulacro e consumo, características das sociedades pós-modernas. A fragmentação do sujeito é percebida, não somente nos temas mais recorrentes - autoajuda, celebridades e dicas - como também no próprio modo de construção das chamadas e textos noticiados. Além de curtos, na maioria das vezes são intercalados com imagens que instigam emoções: felicidade, choque, estranhamento. Há também uma predominância de notícias fait-divers, pouco instrutivas e reflexivas, privilegiando o teor bizarro e/ou grotesco. Portanto, diante destes apontamentos iniciais, é possível afirmar que este portal de notícias tem imbricado um teor humorístico, algumas vezes pejorativo, o que leva a crer, inicialmente, que as notícias estejam mais ligadas as demandas de mercado, do que aos assuntos de interesse público. Por considerar a complexidade de frentes de estudo deste projeto internacional, idealizado no grupo de pesquisa Comunicação e Cultura Ciber, não se tem a pretensão de chegar a respostas fechadas neste momento da pesquisa. Por outro lado, acredita-se que as reflexões aqui levantadas suscitarão novos questionamentos e interpretações relativas ao fazer jornalístico deste portal, considerando que “qualquer que seja a nova forma do jornalismo, ela precisará de um abundante manancial de jornalistas éticos e capazes” (MEYER, 2004, p. 239).

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REFERÊNCIAS Fígaro, R. (2013). As mudanças no mundo do trabalho do jornalista. São Paulo: Editora Atlas S.A. Hall, S. (2000). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. Hernandes, N. (2006). A mídia e seus truques. São Paulo: Editora Contexto. Leal, Z. Pereira, F. (2010). Mudanças estruturais no jornalismo: alguns apontamentos. Disponível em: . Acesso em: 20/11/2014. _______ . (2005). Dez anos de jornalismo on-line:Consolidação de um modelo de produção de notícias para a Web. Disponível em: http://sbpjor.kamotini.kinghost.net/sbpjor/admjor/ arquivos/iiisbpjor2005_-_cc_-_elias_machado_-_zelia_leal_adghirni___f.pdf. Acesso em: 25/02/15. Marcondes Filho, C. M. (2009). A Saga dos cães perdidos. 2.ed. São Paulo: Hacker Editores, 2002. _______ . Ser jornalista. São Paulo: Paulus. Martín-Barbero, J. (1997). Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. Meyer. P. (2007). Os jornais podem desaparecer? Como salvar o jornalismo na era da informação. São Paulo: Editora Contexto. Moretzsohn, S. (2007). Pensando contra os fatos – Jornalismo e Cotidiano: do senso comum ao senso crítico. Rio de Janeiro: Revan. Secretaria de Comunicação Social da Presidente da República - Pesquisa Brasileira de Mídia 2014. 2014, p. 47-62. Disponível em: . Acesso em: 03/03/15. Wolton, D. (2006). É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus.

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Despachos do front: semiótica das paixões no New Journalism Dispatches: Greima’s Semiotics in the New Journalism Gisele K rodel R ech1

Resumo: Um dos filmes de guerra mais cultuados da contemporaneidade, Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, possui na essência de seu roteiro fragmentos da realidade, extraídos do livro-reportagem Despachos do Front, do jornalista de guerra Michael Herr. Foi a narrativa visceral do autor que, segundo o roteirista John Milius, serviu de ponto de partida para a contextualização da história original de ficção que inspirou a película: o clássico Coração das Trevas, de Joseph Conrad, publicado no início do século XX. De caráter essencialmente descritivo, a obra de Herr trabalha sentimentos patêmicos como a desolação e a angústia, temas recorrentes no estudo da semiótica das paixões de Greimas. Neste artigo, extraiu-se o capítulo intitulado Hells Suchs, publicado como uma grande reportagem na revista Esquire, para uma análise baseada no trabalho greimasiano. É toda esta paixão, contida nos relatos de Herr, que emana na jornada de insanidade no Vietnã do clássico Apocalypse Now.

Palavras-Chave: Despachos do Front. New Journalism. Semiótica das Paixões. Abstract: One of the most revered of contemporary war films, Apocalypse Now, by Francis Ford Coppola, has the essence of his script fragments of reality, from the book Dispatches, by the journalist Michael Herr. According to screenwriter John Milius, the visceral narrative of the author inspired the contextualization of original fictional story that inspired the film: the classic Heart of Darkness, by Joseph Conrad. Basically descriptive, Herr’s work works feelings as the desolation and distress, recurring themes in the study of Greimas`s semiotics. In this article, extracted the chapter Hells Suchs, published as a big reporter in Esquire, for an analysis based on Greimas work. It is all this passion, contained in Herr reporters emanating from the insanity journey in Vietnam classic Apocalypse Now.

Keywords: Dispatches. New Journalism. Greimas´s semiotics.

INTRODUÇÃO MOVIMENTO DA contracultura, que tomou parte nos Estados Unidos nos anos

O

60, teve manifestações nas mais diversas vertentes de comunicação. No jornalismo, em particular, resultou no fortalecimento de um fenômeno denominado New Journalism – ou Novo Jornalismo. Nomes como Gay Talese, Truman Capote e Tom

1.  Mestre e docente da Universidade Estadual de Londrina – [email protected].

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Despachos do front: semiótica das paixões no New Journalism Gisele Krodel Rech

Wolfe são apenas algumas das referências de um jornalismo muito próximo à literatura, que combatia a assepsia da objetividade, pautada pelas técnicas da pirâmide invertida e do lide. O trabalho consistia, segundo Tom Wolfe (2005, p.23), em “mergulhar fundo na aventura de retirar a narrativa jornalística do limbo e transformá-la, através de técnicas ficcionais e intensíssimos esforços de reportagem, em objeto literário e documental e primeira grandeza”. O esmero textual na reprodução de fatos e personagens reais provocava um envolvimento latente entre o autor – ou enunciador – com o seu objeto, levando ao leitor – ou enunciatário, a ter contato com um texto cheio de vida, repleto de sentidos patêmicos. É com base nesta característica que evoca as paixões que as obras produzidas pelo movimento podem ser, facilmente, foco de análise com base nos estudos semióticos de Greimas. Com a proposta de comprovar a aplicabilidade da semiótica das paixões nos textos produzidos durante a efervescência do New Journalism, tomou-se como objeto uma grande reportagem de autoria do jornalista de guerra Michael Herr, publicada com o título de Hells Sucks2 na revista Esquire, uma das principais publicações norte-americanas que passaram a dar espaço a matérias com um método de construção literária, com personagens, enredos e testemunho da realidade. Foi das grandes reportagens publicadas no periódico que surgiram diversos livro-reportagens. Um deles é Despachos do Front, de Herr, que acompanhou o conflito entre os Estados Unidos e o Vietnã do Norte entre 1967 e 1969, como correspondente, tornando-se testemunha de um dos maiores massacres bélicos dos últimos tempos.

OS ELEMENTOS PATÊMICOS NO JORNALISMO LITERÁRIO As diretrizes e os referenciais das obras produzidas no movimento do New Journalism foram sistematizadas em uma antologia por um dos precursores do movimento: Tom Wolfe. De acordo com Pena (2011), Wolfe registrou quatro recursos básicos que, de uma maneira ou outra, podem ser identificados de modo recorrente nas obras dos autores vinculados ao New Journalism, a saber: reconstrução a história cena a cena; registro de diálogos completos; apresentação de cenas pelos pontos de vistas de diferentes personagens; registro hábitos, roupas, gestos e outras características simbólicas dos personagens. Ainda segundo Pena, O detalhamento do ambiente, as expressões faciais, os costumes e todas as outras descrições só farão sentido se o repórter souber lidar com os símbolos. Se puder atribuir significados a eles e, mais importante ainda, se tiver a sensibilidade para projetar a ressignificação feita pelo leitor. (PENA, 2011, p.55)

O cuidado na reconstrução de cada história vivenciada e a transposição dela à linguagem escrita envolvem um jogo de sentidos patêmicos, que a semiótica entende como estados da alma do sujeito. São esses estados que, em suma, conduzem a trama 2.  A referida grande reportagem acabou virando um dos capítulos do livro Dispatches, no qual Michael Herr compilou os principais textos publicados à epoca em que foi correspondente no Vietnã. Na tradução para o português, feita por Ana Maria Bahiana, o capítulo ganhou o nome O inferno é uma merda.

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Despachos do front: semiótica das paixões no New Journalism Gisele Krodel Rech

narrativa e dão corpo às significações de um texto. Segundo Fiorin, em entrevista concedida a Cristina Sampaio, Para a semiótica a paixão estudada é uma paixão de papel. A semiótica diz o seguinte: que a paixão é uma dimensão importante do discurso e o sujeito da enunciação é sempre um sujeito apaixonado. A paixão é, para a Semiótica, um arranjo de elementos lingüísticos, dado que é uma paixão de papel, uma paixão representada. Ela é um arranjo de modalidades, que são moduladas. (FIORIN apud SAMPAIO, 2008 p.60)

No contexto da semiótica greimasiana, as modalidades servem de base para a organização sintagmática. Com base no conceito de modificação do predicado pelo sujeito, de um modo simplista, pode-se dizer que existe um jogo entre os verbos querer, saber, poder e fazer – ou a negação deles pelo sujeito, que são determinantes para o percurso narrativo que conduz uma história por meio das paixões. São esses arranjos que estão imbricados na narrativa que vão dar ao texto a imanência pretendida pelo enunciador. Em suma, Os diferentes termos e as diferentes relações evidenciadas no seio da categoria modal relacionam-se no essencial, nas formulações que precedem, com o sujeito, e não com o objeto e com a junção; isso não significa, no entanto, que o objeto e a junção não sejam concernidos pela modalização. (GREIMAS et FONTANILLE, 1993, P.42-43)

Na sequência, será possível perceber na prática como se dá o processo de modalização das paixões, com auxílio da figuritivização do texto e do uso de elementos de efeito para a concretização da imanência pretendida pelo enunciador.

HELLS SUCKS E A SEMIÓTICA DE GREIMAS O capítulo do livro Despachos do front, ora tomado para análise, foi a primeira grande reportagem da cobertura de Michael Herr para a Esquire. Em Hells Sucks, o autor narra em primeira pessoa – procedimento repetido ao longo de todo o livro – como verdadeira testemunha ocular dos fatos descritos. Inserido no contexto da guerra, debruçado nos horrores do combate, ele elabora um texto contundente para descrever o percurso até a vitória norte-americana e sul-coreana na Ofensiva do Tet, a sangrenta disputa iniciada no final de janeiro de 1968, que terminou com a morte de 4.324 norte-americanos, aliados e sul-coreanos de um lado e 45 mil norte-vietnamitas e vitecongues, fora os 14 mil civis que perderam a vida ao longo do conflito. A ofensiva quebrou um pretenso cessar-fogo em ocasião do ano novo lunar e, a despeito da vitória norte-americana, foi decisiva para sacramentar a reprovação do combate nos Estados Unidos, afundando de vez as pretensões do então presidente Lyndon Johnson de se reeleger. Vale lembrar que a Guerra do Vietnã é considerada a primeira guerra midiática e as imagens chocantes dos corpos empilhados e dos milhares de feridos não se restringiram ao front causando, desta feita, uma grande comoção mundial e a repulsa da opinião pública pelo desperdício de vidas. Na introdução do capítulo, na descrição carregada de figurativização de Saigon, de chofre, Herr deixa transparecer a desolação, o sentimento disfórico. Mais do que isso, das palavras exalam armargura, um sentimento durável de tristeza, ligado a uma decepção. Aos olhos de Herr, o enunciador, Saigon era

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uma cidade desolada com longas avenidas povoadas apenas por lixo, papéis voando, montinhos bem específicos de excrementos humanos, as flores mortas e os cartuchos vazios de fogos de artifício do Ano-novo lunar. Saigon já era deprimente quando estava viva, mas durante a Ofensiva tornou-se tão desolada que, de um jeito esquisito, era revigorante (HERR, 2005, p.77).

Tome-se atenção no uso das expressões como avenidas povoadas por lixo, flores mortas e cartuchos vazios de fogos de artifício do Ano Novo Lunar. No lugar onde antes havia pessoas, agora há lixo – e o lixo ganha o status de personificação devido à utilização do lexema povoados. O que restou das pessoas foi o excremento – o que não presta delas. E a esperança tradicionalmente trazida pelo Ano Novo reduziu-se aos cartuchos vazios dos fogos. Na descrição do cenário desolador, o enunciador se vê na situação de não poder fazer, a despeito de saber que aquilo não é normal, que aquilo está fora da ordem. Mais adiante, ele continua no processo descritivo do ambiente, abusando da utilização de um texto repleto de figuras para descrever o cenário adverso, onde qualquer pessoa em sã consciência preferia não estar – é o reflexo modal do não querer estar. O Vietnã era um quarto escuro repleto de objetos mortais, o VC estava em toda parte, como a teia de um câncer, em vez de perder a guerra aos pedacinhos ao longo dos anos nós a perdemos rápido em uma semana. (HERR, 2005, p.78)

A teia de um câncer é uma figura para descrever um mal que se espalha rapidamente e sem muita chance de ser freado, avassalador, diante dos olhos impotentes. O que também chama a atenção é o uso do termo objetos mortais para os vietcongues – ou VC. É a coisificação do inimigo que vive à espreita, pronto para explodir o inimigo. O processo de ambientação passa pelo trâmite da debreagem enunciativa, que envolve o sujeito subjetivo – no caso, o eu – o tempo presente e testemunhal, aos olhos do enunciador e o espaço do aqui, a despeito de em todo o texto ficar claro o desejo do enunciador de não querer estar. No trecho que segue, os elementos citados ficam ainda mais flagrantes. Tanto quanto as tropas e os vietnamitas, o Tet estava empurrando os correspondentes muito mais de encontro ao muro do que eles jamais haviam querido estar. Eu percebi que embora pudesse reter muito da minha infância comigo, minha juventude tinha sido extraída à força apenas nos três dias que levei para atravessar os 97 quilômetros entre Can Tho e Saigon. (HERR, 2005, p. 79)

Neste ponto, surge a paixão da desilusão, da perda de preciosa juventude retirada à força, não de modo concreto, mas de modo figurado. Ninguém envelhece fisicamente tanto, de fato, em três dias. Mas os efeitos psicológicos do front na mente do jovem profissional que viajou ao Vietnã em busca de um desafio na carreira, de um furo jornalístico, fazem valer por muitos anos de amadurecimento, sentindo nas costas o olho do inimigo, pronto para acabar com um possível futuro em questão de segundos. Na evolução de Hells Suchs pode-se perceber uma verticalização do texto, que contribui para o ritmo crescente da angústia imanente ao texto, como se ele fosse ganhando corpo a cada linha, a cada palavra apoiada no processo de figurativização desta paixão.

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A narrativa do percurso de Saigon a Hué é como o caminho desse processo. Ficamos ali sentados tentando dar força uns aos outros, sorrindo diante do tempo e do desconforto, compartilhando o primeiro medo, felizes porque não éramos nem os primeiros, nem os últimos do comboio (...). Muitos pracinhas assobiavam e nenhum assobiava a mesma música do outro, parecia um vestiário antes de um jogo que ninguém queria jogar. (HERR, 2005, p. 80)

Outra vez mais, a utilização de expressões de efeito auxilia no processo narrativo, como no uso de um jogo que ninguém quer jogar em lugar da malfadada morte – ou a indesejada das gentes, imortalizada por Manuel Bandeira. Ou ainda a construção de efeito da dissonância no ato banal de assobiar – o que comprova que cada um ali presente, do enunciador aos demais personagens, estavam mesmo interessados em salvar a própria vida, em um sentimento egocêntrico totalmente oposto aos ideais de guerra, que conclamam que a união faz a força e máximas do gênero. Aí percebemos reflexo de outro arranjo modal, o de não dever agir de uma determinada maneira, mas ser impulsionado a isso, dadas as circunstâncias provocadas pelas adversidades e pelo espírito de sobrevivência, inerente ao ser humano. No entanto, ao ver a morte de perto mais uma vez, volta a tona a angústia de ver e não poder fazer, o sentimento patêmico da impotência, da desolação, do não poder fazer. De manhã atravessamos o canal numa tábua e começamos a andar na direção do interior até chegarmos aos primeiros das centenas de civis mortos que veríamos nas semanas seguintes: um velho debruçado sobre o seu chapéu de palha e uma garotinha que tinha sido atingida quando andava de bicicleta, caída ali com o braço para cima como numa reprimenda. (HERR, 2005, p. 81)

Nos breves momentos em movimento, os olhos longe da podridão dos cadáveres, dão a leve impressão de que tudo vai ficar melhor, sensação que termina tão logo o enunciador se depara com a carnificina provocada pela guerra. Como de praxe, civis também pagam com suas vidas – só nesta ofensiva, foram 14 mil delas perdidas. E os civis, ainda sem nomes, podem ser tanto um velho que já viu a vida passar e repousava sob a aparente tranquilidade de um chapéu de palha ou uma criança no desabrochar da vida, que morreu cumprindo a ingênua atividade de andar de bicicleta. Os corpos inertes, jogados aos montes como restos de carne num abatedouro, retornam o sentimento de falência, de não poder fazer, de limitar a angústia ao olhar desolado. Cabe destacar a descrição da posição de queda da garotinha, em tom de reprimenda, como se clamasse contra os horrores da guerra. Horrores, aliás, que de tanto ser vistos, acabam vertendo para uma quase resignação. É o que se chama de banalização imagética, que torna algo tão comum que beira o costume. O arranjo modal da angústia se traveste de conformismo – é o não poder fazer cada vez mais intensificado. Fazia frio e o sol não saiu nenhum dia, mas a chuva fazia coisas nos corpos que eram, de certa forma, piores do que o sol poderia fazer. Foi em um dia assim que percebi que o único cadáver que eu nunca teria coragem de olhar era o que eu nunca teria que ver. (HERR, 2005, p.83)

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No uso de elementos figurativos no trecho acima, outra vez percebe-se a personificação de coisas. O que torna os corpos pedaços de carniça é a intempérie, a água da chuva. Em vez de provocar o sentimento de purificação, ela promove um cenário ainda pior contribuindo sobremaneira no processo de decomposição. Diante de cenário tão desolador, o que resta ao enunciador é o consolo de não ser obrigado a ver o próprio corpo, caso o pior acontecesse. A angústia provocada pela profusão de cadáveres gera até uma citação dentro do próprio texto de Herr a uma fotografia de um colega – o fotojornalista John Olson – que ele assegura traduzir tudo o que ele, como enunciador, realmente sentia. A maioria dos tanques e caminhões que transportava baixas tinha que trafegar por uma longa estrada reta sem proteção chamada Beco do Morteiro. Cada tanque dos marines que já tinha passado por lá havia sido atingido pelo menos uma vez. Uma epifania de Hué está na maravilhosa foto de John Olson para a Life, os feridos da companhia Delta sendo amontoados às pressas num tanque. (HERR, 2005, p. 87)

Figura 1. A foto de John Olson, publicada na revista Life, traduz em imagem o arranjo modal da angústia, o não poder fazer, o sentimento de mãos atadas que guia o texto de Herr. Fonte: Revista Life, 1968.

Em uma análise breve, é possível perceber que Herr trabalha a narrativa com tamanha maestria que mesmo antes de visualizar a foto é possível imaginá-la, graças ao esmero descritivo e passional do autor ao transmitir as sensações que experimenta na construção textual. A foto, caberia uma análise particular, que coloca em oposição os soldados, símbolos da luta, em posição combalida. É o símbolo da queda de um gigante, do dilaceramento do orgulho e da certeza de que a Guerra do Vietnã já estava ganha. Em tese, o que romperia o sentimento da angústia, já ao final da narrativa, não rompe o arranjo modal da angústia, a despeito da vitória dos norte-americanos e sul-coreanos na Ofensiva do Tet. Na verdade, porque o que surge, após o término do combate, é a certeza da falta de propósito da guerra, do desperdício de vidas e do passo equivocado dado pelos Estados Unidos ao encamparem uma luta ideológica apoiada na arrogância e na suposição de que o apoio aos sul-vietnamitas tornaria os comunistas da Coreia do Norte um inimigo fácil de ser dizimado.

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A bandeira do Vietnã do Norte que havia tremulado durante tanto tempo sobre o muro sul foi cortada e retirada, e a bandeira americana foi hasteada em seu lugar. Dois dias depois, os Hoc Bao, rangers vietnamitas, entraram furiosamente no Palácio Imperial, mas não havia mais ninguém do exército norte-vietnamita lá dentro. Exceto alguns mortos no fosso, todos os corpos tinham sido enterrados. (HERR, 2005, p.89)

Essa sensação de decepção, de luta infrutífera e despropositada se fortalece em elementos utilizados pelo enunciador ao figurativizar a tomada do palácio. A flâmula do inimigo, cortada e retirada, dá lugar à bandeira dos Estados Unidos, que tremula ao custo de milhares de vítimas. Todos os corpos já haviam sido enterrados, assim como o ideal de que a luta valia a pena. Foi a partir daí que a opinião pública se voltou definitivamente contra a Guerra do Vietnã. Em suma, quando no texto surge pistas do alcance do momento de euforia em contraposição à constante disforia, elas se dissolvem.

CONCLUSÃO Ao tomar como recorte o texto de Michael Herr, que marca o testemunho na Ofensiva de Tet, um dos momentos mais marcantes da Guerra do Vietnã, podemos identificar claramente os sentidos patêmicos na imanência textual. O que guia esse exercício prático é uma paixão específica: a angústia e seus arranjos modais. O trabalho termina facilitado pela narração em primeira pessoa, com o diferencial de o autor fazer as vezes de enunciador – isso é o que leva a crer que a semiótica das paixões cabe quase que naturalmente na análise de textos do jornalismo literário. O apego ao caráter testemunal fortalece este entendimento, dando força ao sujeito da ação, ao sujeito da performance. Mesmo que, no texto ora analisado, a performance seja a estagnação, a resignação do sujeito que se manifesta pelo arranjo modal de não poder fazer. Em todo o percurso do texto, angústia se traduz da real paixão que guia o enunciador.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GREIMAS, Algirdas Julien e FONTANILLE, Jacques. Semiótica das Paixões: Dos estados das coisas aos estados da alma. São Paulo: Ática, 1993. HERR, Michael. Despachos do front. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. PENA, Felipe. Jornalismo Literário. São Paulo: Contexto, 2005. SAMPAIO, Cristina. José Luiz Fiorin, Semiótica e Paixão. Revista Online de Literatura e Lingüística. Recife: Eutomia, 2008. WOLFE, Tom. Radical Chique e o novo jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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O “dom” da ubiquidade jornalística: o mito panóptico e a produção de notícias The “gift” of ubiquity journalistic: the panopticon myth and the news production A n t o n i o P i n h e i r o To r r e s N e t o 1

Resumo: A todo instante, uma série de fatos sociais estão em desenvolvimento. São guerras civis, rituais religiosos, desastres naturais, atividades esportivas, entre tantos outros acontecimentos. Teoricamente, seria impossível mensurar de forma quantitativa e qualitativa tudo isso. Acontece que a mídia (seja ela impressa, televisiva, radiofônica) chama para si a responsabilidade de levar ao público os fatos mais importantes que acontecem mundo afora. A partir disso, constrói-se a noção de que os jornalistas teriam um “dom” especial de estarem presentes em todos os lugares e saberem sobre tudo o que se passa. Pretendemos no artigo ensaiar uma leitura a respeito de como é possível imaginar o mito do panoptismo inserido nas práticas profissionais e em discursos jornalísticos autolegitimadores.

Palavras-Chave: Prática jornalística; Discursos autolegitimadores; Panoptismo. Abstract: All the time, a series of social facts are in development. Are civil wars, religious rituals, sports activities, among many others events. Theoretically, it would be impossible to measure quantitatively and qualitatively all this. It turns out that the media (be it print, television, radio) call to himself the responsibility of bringing to the public the most important events that happen around the world. From this, it builds the notion that journalists have a special “gift” to be present everywhere and know about everything that’s going on. We intend in this article rehearse a reading as to how it is possible to imagine the myth of panopticism inserted in professional practices and journalistic self-legitimator speechs.

Key-Words: Journalist practice; Self-legitimator speechs; Panopticism.

1. INFORMAÇÕES INSTITUCIONALIZADAS CLIMA DE tensão parece tomar conta do ambiente. Olhos atentos na tela do com-

O

putador, enquanto as mãos são levadas à cabeça. Sentados, os apresentadores do telejornal recebem os últimos retoques na maquiagem ao mesmo tempo em que colocam os seus pontos eletrônicos e ainda atendem a uma ligação em que parecem estar recebendo uma informação de alta relevância. Correria de jornalistas para todos os lados com seus microfones e cadernetas em punho. Some-se a isso uma trilha sonora de fundo 1.  Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Email: [email protected]

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O “dom” da ubiquidade jornalística: o mito panóptico e a produção de notícias Antonio Pinheiro Torres Neto

impactante e frases de sentido que vão sendo mostradas na tela: Nunca Ignorar; Nunca se Acomodar; Nunca Relaxar; Nunca Desistir; Nunca se Intimidar; Nunca Desligar. Essa descrição (em certa medida até grosseira) que acabamos de fazer foi baseada em um vídeo veiculado pelo canal a cabo Globo News2. Podemos nos arriscar a dizer que o material, a primeira vista, carrega um tom um tanto quanto publicitário (afinal de contas, estamos falando de um canal pago). Porém, seu conteúdo, ou suas marcas discursivas expressas através de imagens, texto e som vão muito além do que os nossos olhos enxergam num primeiro momento. O que parece uma mera peça publicitária, buscando atingir potenciais telespectadores, pode na realidade ser reveladora de todo um modo bastante específico de agir característicos dos sistemas midiáticos e dos profissionais que nele estão inseridos. Nos dias atuais, boa parte dos cidadãos recorrem aos meios de comunicação como uma forma de saberem o que está acontecendo ao redor do mundo. Ao atuarem como lugar de referência, rádio, televisão, portais de notícias on-line e periódicos impressos demarcam constantemente a situação em que o mundo se encontra, e põe ordem em um espaço caótico de acontecimentos ininterruptos. “Todas as manhãs, as pessoas que querem saber o que está acontecendo no mundo leem o jornal, escutam a rádio, veem a televisão, ou navegam pela internet. Esses indivíduos consomem uma mercadoria muito especial: as notícias” (ALSINA, p.09, 2009). O alcance social que cada uma dessas mídias imprime no cotidiano é variável. O jornalismo impresso, por exemplo, atinge determinado público (alfabetizado, que paga pela assinatura do periódico e ainda dispõe de tempo para ler um calhamaço de páginas durante o café da manhã), diferindo-se do alcance/direcionamento exercido pelo telejornal que vai ao ar no horário da noite, e que já não possui as mesmas características dos portais de informação presentes na internet. Poderíamos listar várias características que diferem cada uma dessas mídias entre si. Contudo, esse não é nosso objetivo neste artigo. Há um fato, porém, de bastante importância referente à mídia quando se fala a respeito do seu papel e de sua inserção em meio à sociedade que compartilhamos. Esse aspecto, aliás, não se refere apenas as suas capacidades técnicas de alcance e difusão de conteúdo. Tem a ver, na verdade, com a própria maneira de como os veículos midiáticos possuem um caráter institucional em nossa sociedade, atuando como peça chave na construção social da realidade (BERGER e LUCKMANN, 2003). Para Lorenzo Gomis (1991), quando se lê um periódico, se escuta o noticiário radiofônico ou se assiste as notícias transmitidas pelos telejornais, estaríamos tendo contato com a realidade global que nos envolve e que tem a ver com o presente social que vivenciamos (GOMIS, 1991, p.15). Nesse sentido, aquilo que a mídia retrata, ou a “realidade” que ela transmite, acaba sendo convencionado como os pontos de referência do nosso cotidiano. É a ela que deveríamos fazer a seguinte pergunta: o que de mais importante está acontecendo no mundo hoje? Ainda segundo Gomis (1991), tem-se e noção de que a mídia ocupa um lugar central dentro da nossa sociedade, atuando como construtora da realidade, e não como mero mediador. Isso porque estaria intrínseco a suas funções oferecer uma imagem do nosso 2.  O vídeo “Globo News. Nunca desliga” pode ser assistido através do site www.youtube.com

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entorno social não como uma percepção direta e orgânica desta, mas sim como algo configurado por meio de referências e interpretações que ela faz dos fatos que nos cercam. Nesse sentido, a mídia não é um mero espelho da realidade. Ela atua em uma esfera de intervenção muito maior e mais complexa do que aparenta. Não há captura da realidade empírica que não passe pelo filtro de um ponto de vista particular, o qual constrói um objeto particular que é dado como um fragmento do real. Sempre que tentamos dar conta da realidade empírica, estamos às voltas com um real construído, e não com a própria realidade (CHARAUDEAU, 2012, p. 131).

Não estamos, de modo algum, querendo dizer que a mídia é a única instância produtora de referências sobre a realidade. Sabemos, muito claramente, que diversas instituições (família, escola, Estado, etc.) também constituem e constroem esses pontos balizadores que nos servem de explicação para entendermos o mundo. Porém, e nesse ponto destaquemos a nossa intenção: gostaríamos de evidenciar como o papel desenvolvido pelos canais de comunicação jornalístico possuem uma forte institucionalização em meio as nossas vidas. Nesse sentido, embora não seja o único produtor de verdades sobre os fatos que nos rodeiam, o jornalista se torna um dos encarregados pela certificação institucional da verdade (ALSINA, 2009, p.256). Podemos dizer que isso acontece, em parte, devido à promissora capacidade que estes profissionais teriam de dizer quais fatos sociais são merecedores de serem transformados em informação noticiosa, e que consequentemente nos são dados com a realidade do momento. Essa realidade, como já dito anteriormente é que nos serve de parâmetros para entendermos o nosso entorno. A mídia, dentro de suas especificidades e restrições, busca fazer isso ao nos fornecer o produto notícia. “Os meios permitem reduzir a realidade social que está em desenvolvimento a uma imagem cômoda e manejável, a qual o público tem acesso ao longo do dia”3 (GOMIS, 1991, p.186, tradução nossa). Tal atividade é possível de ser desenvolvida apenas pelo fato deste grupo profissional formado pelos jornalistas afirmarem saber o que os outros não sabem, mais precisamente, o que venha a ser notícia e como produzi-las (TRAQUINA, 2008, p.20). Creio que não há muitas novidades sobre o que tratamos até o momento. Entretanto, após entrarmos em contato com alguns escritos do filósofo Michel Foucault, começamos a vislumbrar possíveis aproximações entre essa discussão sobre a produção de informação noticiosa operada pela mídia, e a noção de panoptismo discutida por Foucault (1987). Esperamos não estarmos sendo pretensiosos demais, mas o nosso objetivo está concentrado em demonstramos como alguns aspectos dessa ideia panóptica tão presente na sociedade disciplinar é assimilada, em certa medida, como um mito dentro da atividade jornalística. Para isso, pautaremos nossa discussão em torno de dois eixos de observação, que aqui chamaremos de “discursos autolegitimadores da mídia” e “práticas profissionais jornalísticas”. Basicamente, o artigo está embasado em uma revisão bibliográfica de 3.  “Los medios permiten reducir la realidad social cambiante a una imagen cómoda y manejable, a la que el público tiene acesso a lo largo del día”.

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autores que refletem sobre a produção noticiosa midiática; e dos escritos relativos ao pensamento foucaultiano. Na medida em que tentaremos relacionar esses dois campos centrais em nossa discussão (o panoptismo e a produção de noticias efetuada pela mídia), nos muniremos de exemplos práticos para melhor ilustrarmos as situações.

2. UM MUNDO FILTRADO A todo instante uma infinidade de fatos sociais está se desenvolvendo mundo afora. São guerras civis, rituais religiosos, casamentos, mortes, desastres naturais, encontros políticos etc. Teoricamente, não há uma maneira de mensurar quantitativamente e qualitativamente todos estes acontecimentos. Porém, a mídia chama para si tal responsabilidade. Por meio de um discurso autolegitimador (que trataremos mais a frente), constrói-se uma noção de que os veículos de comunicação repassam para a sociedade os fatos ipsis litteris, quase como espelhos da realidade. Entretanto: Os meios não apenas transmitem, mas preparam, elaboram e apresentam uma realidade modificada e formatada. O meio não é um espelho (ESPTEIN, 1974), porque o espelho não toma decisões, apenas reflete aquilo que está diante de si, enquanto que os meios adotam decisões, seguem uma política, lutam contra a falta de tempo, a distração dos colaboradores, a limitação de recursos4 (GOMIS, 1991, p.16, tradução nossa).

A reflexão proposta por Lorenzo Gomis (1991) é bastante esclarecedora no sentido de entendermos que antes de se tornar notícia em determinado meio de imprensa, o acontecimento percorre um longo e complexo caminho, passando inicialmente por um processo de escolha e seleção sistemática (exemplificado, grosso modo, na equação que envolve elementos de exclusão ou inclusão) e que apenas posteriormente, após receber um tratamento midiático (que envolve processos técnicos de construção textual, imagética, sonora, etc.) esse acontecimento será reportado para a sociedade. É necessário entendermos, então, que no processo de produção noticioso realizado pelos jornais existem categorias/normas sedimentadas e compartilhadas pelos membros da “tribo jornalística” (TRAQUINA, 2008), que vão dizer quais acontecimentos merecem ser noticiados, e quais devem ser excluídos ou “inexistirem”. Teoricamente, não se trata de escolhas subjetivas por parte dos jornalistas, mas sim, escolhas orientadas através de critérios de noticiabilidade. Na definição de Nelson Traquina (2008), trata-se do: (...) conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é, possuir valor como notícia. Assim, os critérios de noticiabilidade são o conjunto de valores-notícia que determinam se um acontecimento, ou assunto, é susceptível de se tornar notícia, isto é, de ser julgado como merecedor de ser transformado em matéria noticiável e, por isso, possuindo “valor-notícia” (TRAQUINA, 2008, p.63).

4.  “Los medios no sólo transmiten, sino que preparan, elaboran y presentan una realidadque no tienen más remédio que modificar cuando no formar. El medio no es um espejo (ESPTEIN, 1974), porque el espejo no toma desiciones, sino que refleja simplesmente lo que tiene ante sí, mientras los que animan los medios adoptan decisiones, siguen uma política, luchan com la falta de tiempo, la distracción de los colaboradores, la limitación de recursos”.

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Poderíamos prolongar a discussão sobre critérios de noticiabilidade, apresentando até mesmo categorias estabelecidas por teóricos da área (WOLF, 2008; TRAQUINA, 2008). Porém, não adentraremos nessa seara por não ser o foco central da discussão deste artigo. O que gostaríamos de deixar claro para o leitor é que apesar de a mídia defender o princípio da universalidade (GOMIS, 1991, p.76), onde nada do que acontece em nossa sociedade pode ser excluído da possibilidade de se tornar notícia, seja o que acontece no campo ou na cidade, na terra ou no mar; nem tudo o que acontece no mundo se torna notícia no dia seguinte. Como afirma Mar de Fontcuberta (1993), “Nenhum meio de comunicação pode incluir todas as informações que recebe ao longo de um dia, nem sequer de uma hora. Não existe nem espaço nos meios impressos e nem tempo nos audiovisuais capazes de abarca-la. Por tanto é preciso selecionar”5 (FONTCUBERTA, 1993, p.41, tradução nossa). Em meio a essa discussão surge a máxima muito comum no meio jornalístico: costuma-se dizer que se algo não aparece nos meios de comunicação, ou ele não existiu, ou não foi considerado como um acontecimento “digno” de ser selecionado pelo sistema midiático. Essa lógica de pensamento comporta algo muito interessante. Por meio dela surge a noção de que os meios de comunicação são capazes de enxergar tudo o que se desenvolve em nosso entorno, e de saberem tudo o que acontece, provenha da região que for. Captura-se assim o mito panóptico (ALSINA, 2009, p.122).

3. O PANOPTISMO FOUCAULTIANO Apesar de estarmos falando em panoptismo foucaultiano, sabemos, entretanto, que a noção do panóptico foi proposta, inicialmente, pelo filósofo inglês Jeremy Bentham. Na ocasião, por volta de 1787, o termo foi pensado no plano físico, arquitetônico, imaginando uma estrutura que funcionasse como um sistema de cerceamento e controle para com os indivíduos que nela fossem postos (FOUCAULT, 1987; SPÍNDOLA, 2011). Sua descrição a define como uma estrutura física, um prédio circular com uma torre central (esta com largas janelas) de onde se pode observar as celas construídas a sua volta. Cada uma dessas celas teria “duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado” (FOUCAULT, 1987, p.166). Desse modo, seria preciso apenas colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancafiar o condenado, o louco, o doente, etc. Ter-se-ia, nesse sentido, sujeitos individualizados em suas celas, e sob constante visibilidade por parte daquele que o observa. “O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente” (FOUCAULT, 1987, p.166). É possível afirmar que algumas condições históricas específicas impulsionaram o desenvolvimento de tal dispositivo. Segundo Foucault (1987), com a grande explosão demográfica experimentada no século XVIII, há uma consequente mudança da escala quantitativa dos grupos que são visados no sentido de serem postos sob controle e manipulação. Grosso modo, busca-se estabelecer relações de poder. Para isso, é 5.  “Ningún medio puede incluir toda la información que recibe a lo largo de todo un día, ni siquiera durante una hora. No existe ni espacio en los medios impresos ni tiempo en los audiovisuales capaz de abarcala. Por lo tanto hay que seleccionar”.

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preciso que se tenha disciplinamento desses corpos, de modo que haja uma relação de docilidade-utilidade. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina (FOUCAULT, 1987, p.119).

É um trabalho minucioso, da política dos detalhes, como gosta de dizer este filósofo francês. Atividade modesta, mas permanente, e que vai aos poucos permitir a formação de toda uma conjuntura de disciplinamento social. Nesse ponto, vale destacar uma mudança paradigmática apontada por Foucault (1987). Se tradicionalmente o poder era tomado como aquilo que se vê, se manifesta, se mostra de modo imponente (esse mostrar e essa imponência referente à quem o exerce); o poder disciplinar vai romper com essa lógica, buscando exercer o seu poder por meio da invisibilidade. “Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos. (...) É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar” (FOUCAULT, 1987, p.156). De modo resumido, podemos dizer que todos esses procedimentos, ou todas essas disciplinas que buscavam o “bom adestramento” dos corpos eram empregadas por meios diversos. Há um esquadrinhamento dos espaços; uma busca constante pela potencialização do tempo (nos mais diferentes lugares, tais como escolas, fábricas, entre outros); exames que qualificam, classificam e punem. No âmago de todas essas questões, o que se inscreve é uma marcação, uma diferenciação, uma individualização desses corpos. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção (FOUCAULT, 1987, p.161).

Todo esse movimento acaba por desaguar em uma lógica panóptica, bastante conjugada a essa busca pelo disciplinamento dos corpos. Entretanto, a aplicabilidade de disciplinas na busca por corpos dóceis realizado na era clássica estava localizada em determinados espaços. Eram os colégios, os hospitais Marítimos e Militares, as grandes oficinas, a cidade pestilenta. Por outro lado, o panóptico de Bentham, como afirma Foucault (1987, p. 172) acaba por proporcionar um dispositivo disciplinar que teria a capacidade de percorrer toda a sociedade, de forma generalizada. Isso porque tal modelo seria polivalente em suas aplicações, podendo servir tanto para cercear prisioneiros, como também para “(...) cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos” (FOUCAULT, 1987, p.170).

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É notório que se as disciplinas, tal como eram implantadas na era clássica, imprimiam uma lógica da exceção localizada em determinados espaços (como dito anteriormente); com o panoptismo busca-se a vigilância generalizada, difundindo procedimentos disciplinares por toda a sociedade. “Pode-se então falar, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas, espécie de ‘quarentena’ social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do ‘panoptismo’” (FOUCAULT, 1987, p.178). Pablo Spíndola (2011), no artigo intitulado “O panoptismo de Foucault: uma leitura não utilitarista”, defende que Jeremy Bentham, ao conceber o modelo panóptico, estaria interessado em dar uma resposta à sociedade que buscava soluções disciplinares para os seus prisioneiros. “Já o panoptismo inventado por Foucault consistiria em perceber como esse panóptico é o indicativo de uma percepção social” (SPÍNDOLA, 2011, p.09). Ou seja, o panoptismo seria uma forma de ver a reverberação social do projeto proposto por Bentham. De certo modo, e como bem destaca Fernanda Bruno (2013, p.18), as práticas de vigilância, sejam elas voltadas para indivíduos ou populações, costumam se caracterizar a partir de três elementos centrais: observação, conhecimento e intervenção. Se analisarmos, resumidamente, o panoptismo, podemos enxergar claramente essas três dimensões. Há um olhar ininterrupto sobre os indivíduos, por meio de um esquadrinhamento geral dos espaços sociais; essa postura de observação gera, consequentemente, informações sobre quem se observa, desaguando, finalmente, em uma intervenção direta sobre os indivíduos do modo que se deseja. Colocamos na mesa, então, o seguinte questionamento: seria possível imaginar aproximações entre essa ideia de panoptismo que aqui descrevemos e a prática jornalística empregada em nossa sociedade?

4. O MITO DO PANOPTISMO JORNALÍSTICO: PRÁTICAS PROFISSIONAIS E DISCURSOS AUTOLEGITIMADORES Como foi dito a algumas páginas atrás, buscaremos demonstrar uma possível aproximação entre o panoptismo foucaultiano e a atividade jornalística tomando como base dois eixos de discussão: os discursos autolegitimadores, e as práticas profissionais empregados pela esfera midiática. Um primeiro ponto a destacarmos é a necessidade de entender que enquanto a vigilância do panoptismo está se referindo à uma sociedade disciplinar, onde é instaurada a prática da visibilidade constante sobre a população, em todas as esferas; no nosso caso, jogamos com a ideia de que os veículos de comunicação induzem os leitores/telespectadores/ouvintes a imaginarem que esses meios de difusão informacional são detentores de um poder onisciente e onipresente quanto ao que acontece mundo afora. Dessa forma, o que gostaríamos de deixar claro é que a mídia pode até se aproximar da noção do panoptismo como retratado anteriormente, mas com uma dinâmica que lhe é própria e que sirva aos seus interesses na busca por um discurso que a legitime enquanto instituição que publiciza os fatos para a sociedade, marcando-os ou excluindoos. Se nas atividades de vigilância voltadas para os indivíduos ou populações ocorre

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uma observação, gera-se um conhecimento e acontece uma intervenção; podemos nos arriscar a fazer um paralelo com esse pensamento dizendo que: a prática jornalística busca observar os fatos sociais de modo onipresente e onisciente, gera um conhecimento ao interpretar aquilo que se passa em nossa sociedade e intervêm socialmente ao entregar para os indivíduos informações noticiosas que funcionam como mapas de significação sobre a “realidade” vivenciada. Apesar disso, não basta que os periódicos produzam informação noticiosa (notícias, reportagens, artigos, etc.). É preciso que haja um consumo destas. Aliás, esse consumo gera consequentemente, e obrigatoriamente, um pacto que reconhece o conteúdo publicizado pela instância midiática como sendo a verdade de fato sobre a realidade social. A isso dá-se o nome de contrato pragmático fiduciário. Qual seria então a primeira função da informação da mídia? Poderíamos dizer que consiste em “fazer saber”. Se não acreditamos que a informação da mídia é real, ela não pode “fazer-nos saber”. Assim, estaríamos diante de um saber discutido. O discurso perde o seu virtuosismo, sua capacidade de “fazer saber”. Portanto, e com esse objetivo, os meios de comunicação nos propõem um contrato pragmático fiduciário, que tem a pretensão de que acreditemos que o que os meios de comunicação dizem, é verdade, e ao mesmo tempo nos propõem que confiemos no discurso informativo dos meios. Se eu não acreditar nas notícias, então, para que elas servem? (ALSINA, 2009, p.231).

Nesse sentido, há uma persuasão nítida operada pela mídia para fazer-se crer na atividade que ela desenvolve. A prática profissional do ombudsman é um exemplo interessante para pensarmos essa reiteração de tal contrato, pois ao que parece, a autocrítica fortalece o contrato pragmático existente entre mídia e leitores. Como destaca Miquel Rodrigo Alsina (2009), é preciso que o contrato seja revalidado constantemente, afinal, não há cláusula determinando que ele não possa ser contestado. Isso pode acontecer, principalmente, nos momentos de cerceamento das liberdades sociais, como é o caso das ditaduras, onde a imprensa, em alguns casos, ou se alinha a estrutura ditatorial; ou passa a sofrer reveses. Outra noção, ainda pensando em práticas profissionais, que poderíamos citar como ponto de referencial na defesa de que os jornalistas formulam um saber sobre a totalidade dos acontecimentos sociais, seria o que se conhece como vocabulário de precedentes como observaram Ericson, Baranek e Chan (apud TRAQUINA, 2008, p.41). Para eles, tal vocabulário abrange três aspectos: o saber de reconhecimento; saber de procedimento, e saber de narração. O saber de reconhecimento seria a capacidade que os jornalistas têm de distinguirem quais são os acontecimentos que possuem valor social para se tornarem notícia, ou não. Desse modo, os profissionais da imprensa teriam uma capacidade secreta que os diferenciam dos outros indivíduos. O saber de procedimento tem a ver com o conhecimento que o repórter possui para recolher dados e elaborar as notícias (técnicas de apuração). Por último, o saber de narração ressalta a habilidade dos jornalistas em compilar todas as informações recolhidas e transformá-las em uma narrativa noticiosa em tempo útil e de forma interessante.

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Se no modelo panóptico buscava-se “(...) induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, 1987, p.166); aqui a mídia busca introjetar a ideia de que a todo o momento estou entrando em contato com informações verídicas e produzidas por profissionais especializados.

4.1. Observando tudo de cima “Essa imagem é fundamental. Nós estamos vendo os bandidos da Vila Cruzeiro fugindo neste momento. (...) Vamos deixar claro: são três horas da tarde, essas imagens são ao vivo, de um dos helicópteros da Rede Globo que está sobrevoando toda a região onde a polícia está em ação. (...) A imagem é impressionante! São dezenas, eu me arriscaria a dizer que nós já vimos pelo menos cem homens saindo, seja em carros, seja em várias motos. (...) Há sinal de disparos, e pelo menos dois bandidos foram feridos”6. Essa narrativa aconteceu exatamente no dia 25 de novembro de 2010. Na ocasião (uma quarta-feira à tarde), a Rede Globo fazia uma cobertura ao vivo de uma ação de ocupação da favela da Vila Cruzeiro (Rio de Janeiro), efetuada pelas Polícias Civil, Militar e Federal, contando ainda com a presença da Marinha do Brasil7. O que se via na televisão era algo impressionante, quase surreal. Vários homens armados fugindo desesperadamente por uma estrada de terra de difícil acesso. Mais difícil ainda seria enviar uma equipe de reportagem até o local. Além dos obstáculos geográficos (a região em que a massa de homens em fuga se encontrava era cercada por morros e mata), corria-se o risco de morte, afinal tratava-se ali de um confronto. As imagens que chegavam às mais diversas casas do país eram possíveis graças às câmeras de alta definição do Globocop (o helicóptero da Rede Globo de Jornalismo). É comum vermos a utilização de helicópteros para capturar imagens aéreas do trânsito nas grandes cidades, dos estádios de futebol, de maratonas, entre tantas outras atividades. Na maior parte dos casos, a ideia é fornecer paras os telespectadores ângulos diferenciados, que proporcionem uma visão mais geral sobre o fato que está sendo tratado. Em outras tantas vezes, a utilização de ferramentas como o Globocop acaba por possibilitar um olhar sobre “objetos” que seriam praticamente impossíveis de serem capturados pelos indivíduos “comuns”. Talvez essa seja uma das ferramentas de maior potência quando se fala em panoptismo jornalístico. Descobrir objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies (FOUCAULT, 1987, p.169) poderia ser o lema do Globocop. Através dele são rompidas barreiras geográficas, temporais e visuais, na busca por transmitir o acontecimento ao vivo para os telespectadores. Contudo, gostaríamos de destacar que essa prática de proporcionar um ângulo diferente, inusitado sobre lugares, acontecimentos etc., tem ganhado novas proporções, e que vão para além da esfera jornalística. Fernanda Bruno (2013) cita o exemplo do Surveillance Saver, “(...) um protetor de tela que disponibiliza imagens de 600 câmeras de vigilância ao redor do mundo, tornando o seu monitor um 6.  O vídeo com o título “Helicóptero abatendo traficantes em fuga na Vila Cruzeiro – RJ – 25/11/10” pode ser assistido através do site www.youtube.com 7.  A cobertura deste fato rendeu a Rede Globo o recebimento do Prêmio Emmy Internacional 2011 (considerado o Oscar da televisão). Foi a primeira vez que um telejornal brasileiro recebeu a honraria.

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dispositivo panóptico” (BRUNO, 2013, p.24). Outro caso curioso é o da transmissão de imagens do planeta Terra, feitas diretamente do espaço, e em tempo real. A iniciativa partiu da NASA, que instalou quatro câmeras de alta definição na ISS (Estação Espacial Internacional). As imagens são transmitidas em tempo real pelo site Ustream8 e proporcionam um visual impressionante que pode ser observado a qualquer momento, bastando apenas ter acesso à internet. A diferença entre o conteúdo divulgado entre os dois portais citados e o Globocop, por exemplo, é que este último (ou melhor dizendo, os jornalistas que o operam) faz uma interpretação sobre aquilo que está sendo publicizado. A respeito disso, Lorenzo Gomis (1991) afirma que os enquadramentos / significações / interpretações que os meios de comunicação realizam são necessários, pois caso contrário, se nos deparássemos com um fluxo de imagens livres e contínuas, tenderíamos a ficar com a sensação de algo difuso, inacabado, entediante. Ou seja, preferiríamos uma informação manipulada (no sentido de ser produzida, selecionada), mas verossímil e carregada de significados (interpretada), do que uma visão livre sobre a “realidad en crudo” (GOMIS, 1991, p.18). A interpretação da realidade como um conglomerado de noticias responde a uma expectativa pública e a necessidades técnicas. A realidade social concreta, ao vivo, se dilui ao longo do dia e da noite, e parece lenta, difusa, maçante. Não é possível observá-la por horas a fio. Corresponde, portanto, a atividade profissional chamada jornalismo apresentar uma versão concentrada da realidade social, dramatizadora, sugestiva, que escolha o mais interessante entre tudo o que tenha ocorrido e ajuste essa versão as necessidades de tempo e de espaço.9 (GOMIS, 1991, p.18-19, tradução nossa).

4.2. Todas as notícias que couberem no jornal Outro ponto que gostaríamos de tocar refere-se aos discursos autolegitimadores expressos através das epígrafes e dos slogans de alguns jornais/telejornais. Destacamos três casos de forma a melhor ilustrar nossa discussão: as epígrafes dos jornais impressos The New York Times e Folha de S. Paulo; e o slogan do canal a cabo Globo News. Segue abaixo a reprodução de cada um deles.

Figura 1. Fac-símile do cabeçalho do jornal impresso The New York Times, no qual é possível identificar a epígrafe “All the news that’s fit to print”. 8.  http://www.ustream.tv/channel/iss-hdev-payload 9.  “La interpretación de la realidad como um conglomerado de noticias responde a una expectativa pública y a necesidades técnicas. La realidad social verdadera, en directo, se diluye a lo largo del día y la noche, y parece lenta, difusa, aburrida. No es posible entrar en contacto expectante con ella a horas fijas. Corresponde por tanto a la actividad profesional llamada periodismo dar de la realidad social presente una versión concentrada, dramatizadora, sugestiva, que escoja lo más interesante de todo lo que se sepa há ocorrido y hasta lo retoque para ajustarla a las necessidades del tiempo y el espacio”.

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Figura 2. Fac-símile do cabeçalho do jornal impresso Folha de S. Paulo, no qual é possível identificar a epígrafe “Um jornal a serviço do Brasil”.

Figura 3 – Imagem do slogan do canal a cabo Globo News, intitulado “Nunca desliga”.

Nos casos que aqui enfatizamos, nosso interesse está voltado para a epígrafe dos jornais New York Times (“All the News That’s Fit to Print”), Folha de S. Paulo (“Um Jornal a Serviço do Brasil”) e para o slogan da Globo News (“Nunca Desliga”). Em certo sentido, essas frases (apesar de curtas) buscam causar impacto e são bastante reveladoras no sentido de expressarem como esses jornais/canal televisivo veem seu papel em meio à sociedade. O que está em jogo, sem dúvida, é um tipo de propaganda que, em última instância, visa persuadir leitores/telespectadores. Para isso, pauta-se em alguns valores caros a prática jornalística. Quando o produto a ser vendido é a informação jornalística, normalmente os slogans publicitários dos jornais baseiam-se em valores como credibilidade, equilíbrio e veracidade. Costumam interpelar um leitor que acredita na imprensa como um instrumento de informação diária sobre os fatos de interesse público (AMARAL, 2010, p. 344).

Em comum aos três exemplos temos o fio de condução da ideia de completude/ totalidade. No NYT temos a noção de que estaria impresso nas páginas do periódico norte-americano tudo aquilo que “se preste” a ser notícia. É como se uma voz dissesse aos leitores: “Nós observamos tudo o que aconteceu, e aqui está, entregue em suas mãos, as notícias que são necessárias para sua vida”. A epígrafe da Folha, apesar de ser “mais modesta”, traz consigo a busca por vender a ideia de um jornal de âmbito nacional, que apesar de estar situado na região Sudeste do Brasil, seria capaz de atender todas as demandas dos milhares de brasileiros espalhados pelo nosso vasto território. A necessidade principal seria também entregar ao público leitor um produto a ser consumido: as notícias. Nesse contexto, teoricamente não haveria diferença entre algo que acontece no Nordeste do Brasil, ou na região Norte, em comparação à região Sudeste. Tudo seria monitorado. No último caso, da Globo News, talvez seja a frase de maior impacto entre as citadas: “Nunca Desliga”. Ora, esse seria por excelência um exemplo do panoptismo dentro dos discursos que autolegitimam a prática jornalística como uma detentora do dom da ubiquidade. Bastaria, nesse sentido, ler um jornal ou ligar a TV no telejornal para sabermos e vermos tudo o que se passa mundo afora.

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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alsina, M. R. (2009). A construção da notícia. Petrópolis: Vozes. Amaral, M. F. (2010). Autorreferência na imprensa: jornalismo de “primeira” e de “segunda classe”. Estudos em jornalismo e mídia. 7 (2), 342-353. doi: 10.5007/1984-6924.2010v7n2p342/ issn. 1984-6924 Berger, P. & Luckmann, T. (23ª ed.). (2003). A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes. Bruno, F. (2013). Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina. Charaudeau, P. (2012). Discurso das mídias. São Paulo: Contexto. Foucault, M. (1987). Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes. Fontcuberta, M. (1993). La noticia: pistas para percibir el mundo. Barcelona: Paidós. Gomis, L. (1991). Teoria del periodismo: como se forma el presente. Barcelona: Paidós. Spíndola, P. (2011). O panoptismo de Foucault: uma leitura não utilitarista. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, 2011. Traquina, N. (2ª ed.). (2008). Teorias do jornalismo: a tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular. Wolf, M. (3ª ed.). (2008). Teorias das comunicações de massa. São Paulo: Martins Fontes.

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A presença e a ausência de informação no produto jornalístico The presence and absence of information in the journalistic product M a ry Weinstein1

Resumo: Este trabalho faz uma abordagem sobre o jornalismo considerando alternativas para mediação do debate público criadas com a internet. Assim como as narrativas nas plataformas de geração de produtos jornalísticos são atreladas aos períodos da evolução das tecnologias, as formatações dos conteúdos jornalísticos também se adequam às condições oferecidas pela indústria dos dispositivos de mediação. Compreendemos que o diálogo na esfera pública se adequa a tendências, como concisão, imediaticidade, incompletude, que vão se firmando com a introdução dos aparelhos. Estes, ao mesmo tempo em que modificam as práticas jornalísticas, também podem propiciar obstáculos à comunicação, dentro de um campo caracterizado por disputas e interesses diversos. Por isso, pontuamos aspectos da prática comunicacional cuja notícia parece requerer critérios de noticiabilidade reajustados inclusive para responder a uma transmidiação, apuração e distribuição diferenciadas. Tratamos da discussão que se recoloca na esfera pública (Habermas, 1984) e das redes sociais e tecnologias, (Castells, 2013; Lemos, 2013), em função do próprio jornalismo (Sodré, 2009; Groth, 2011; McCombs, 2011). Observamos os meios de propagar a informação e mostramos nuances nas suas formulações. Analisamos a presença e a ausência de dados no produto dirigido ao público, com exemplificações em um universo empírico composto por publicações impressas e digitais.

Palavras-Chave: Produto jornalístico. Jornalismo. Debate público. Abstract: This work is an approach to journalism considering the alternatives for mediation of public debate created with the internet. As the narratives on the platforms of journalistic products are linked to periods of developments in technology, the formatting of the news content is also suited to the conditions offered by the industry of mediation devices. We understand that the dialogue in the public sphere suit trends, such as brevity, immediacy, incompleteness, ranging establishing itself with the introduction of devices. These, while modifying the journalistic practices, can also provide barriers to communication within a field characterized by disputes and interests. So we pointed aspects of communication practices when the news seems to require newsworthiness criteria adjustement to respond to a transmidiation and differentiated distribution. Our focus is the discussion that take place in the public sphere (Habermas, 1984) 1.  Doutora, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), [email protected].

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using social technologies and networks (Castells, 2013; Lemos, 2013), as a function of journalism itself (Sodré, 2009; Groth, 2011; McCombs, 2011). We observed the means of spreading information and show nuances in their formulations. We have analyzed the presence and the absence of data on the product directed to the public, with an empirical universe of printed and digital publications.

Keywords: journalistic product. Journalism. Public debate.

1. NARRATIVAS E CONTEÚDOS S INFORMAÇÕES, as novidades, as notícias passaram a ter alcance maior e mais

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rápido a partir da prensa que se disseminou pela Europa nos séculos XV e XVI, transformando e ampliando a esfera pública que, conforme o conceito europeu, se identificava com o espaço em que a ideologia ou a racionalidade burguesa se materializava, em instituições como cafés, clubes, revistas e jornais (SODRÉ, 2009, p. 11). Agora, sem que seja preciso se deslocar geograficamente, as informações podem aparecer e ser apreendidas praticamente em qualquer lugar, na mesma hora em que são produzidas ampliando assim essa esfera pública delineada no início da Modernidade. Para tanto, os meios de comunicação jornalística precisaram e precisarão aceitar e incorporar dispositivos ultra modernos já que os recém integrados computadores e aparelhos móveis servem para a emissão e/ou para a recepção de mensagens de vários tipos, para a produção e divulgação da informação. Neste trabalho, a abordagem sobre comunicação tem como foco o jornalismo - como é produzido e disponibilizado na contemporaneidade. Consideramos as alternativas de mediação do debate público que aparecem com a internet e sua construção de linguagem, cuja dimensão está para a atualidade assim como a que a Revolução Industrial teve para o século XVIII, quando induziu um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, sociedade e cultura (CASTELLS, 1999, p. 50). Assim como as narrativas nas diversas plataformas de geração de produtos jornalísticos são atreladas às tecnologias disponíveis em uma época, as formatações e especificidades dos conteúdos jornalísticos, apesar de resistirem, também, se adequam às condições oferecidas pela indústria que se atualiza com os dispositivos de mediação. É como Wolton (2006, p.17) se refere à televisão, que ainda nem chegou a um século de vida mas que se vê confrontada pelo desafio de resistir ao triunfo da fragmentação possibilitada pela técnica e apresentada como um progresso. A internet, por sua vez, trouxe novas perspectivas, inclusive, para a liberdade de expressão porque se fazem “receptivas às diversidades das formas discursivas e à precariedade dos sujeitos da fala o que dá margem a hipótese da redistribuição do poder comunicativo pelas tecnologias digitais” (SODRÉ, 2009, p. 122). Se as redes sociais possibilitam uma composição entre atores, conforme os pressupostos da Teoria Ator-Rede (LEMOS, 2013, p. 35), é porque os interesses comuns viabilizam a associação, mesmo que atuem de forma contrária ao entendimento de “grande público”, requerido classicamente pelos meios de comunicação de massa, o que contribui, inclusive, para que segmentações se estabeleçam em nichos específicos, sem que necessariamente uma espinha dorsal comum, sem uma linguagem, nem uma

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A presença e a ausência de informação no produto jornalístico Mary Weinstein

informação acessível a todos, seja oferecida ao mesmo tempo, ou no mesmo espaço, dificultando ou tornando prescindível que se crie uma unidade, um ambiente em que todos se reconheçam. Basta pensar nas Jornadas de Junho de 2013. Desta vez, não por impossibilidade técnica, mas por um desinteresse que pode ocasionar a não busca pela informação, ou a informação que não alcança a todos, ou que não faz parte de um cardápio de ofertas comum ou único, como seria em um jornal tradicional. Não que essa comunicação se torne restritiva, elitista, ou seletiva, porque, em termos gerais, objetiva a amplificação de uma informação, por vezes de forma que vá até compensar o modo como era feita antes, no que se refere à impossibilidade de fazer a informação entrar no fluxo dos meios de massa. E as revoltas de 2013 no mundo seriam um exemplo que se torna palpável. Porque “rede é o movimento da associação, do social em formação” (LEMOS, 2013, p. 35). No jornal tradicional, de papel, a discussão acontecia sem que a informação, uma vez publicada, pudesse sofrer alterações ou ajustes, sem que o que foi escrito pudesse ser revisto ou repensado. Não era uma veiculação reversível, era incorrigível. Diferentemente, na comunicação digital, veremos que as informações podem ser complementadas ou corrigidas a partir da própria interatividade possibilitada pelo meio, com base em críticas, correções e ponderações, assim como em novas apurações. Os meios de massa requerem uma infraestrutura muitas vezes inviável por motivos organizacionais ou financeiros, ou porque em certos casos podem carecer de autonomia, ou, ainda, porque realmente representam um segmento, seja ele público ou privado, embora estejam, para todos os efeitos, à mercê do público em geral. Os dispositivos sugerem fortemente, ou, praticamente, impõem formas de se produzir notícia. O que Wolton (2009) chama de grande público está associado à sociedade de massa e é uma domesticação do número da multidão que era, como explica, um enigma assustador em suas origens, de quando passa do estágio de turba para o status de massa, de público. No plano político, estaria associado à opinião pública. O autor se refere a uma outra noção, ainda vinculada à sociedade de massa, mas com referência ao espetáculo, às mídias de massa, sendo “numeroso e indistinto socialmente” (WOLTON, 2009, p. 125). Neste momento, o debate na esfera pública se adequa a tendências como concisão, imediaticidade, incompletude da informação, que vão sendo impostas e se firmando com o uso de aparelhos de larga mobilidade, fazendo com que este modo de processar a informação e divulgá-la se torne aceitável e consumível, também, em um processo que exime produtores de fornecerem informação completa, como naturalmente se almeja no jornalismo. Se todos os meios compõem a agenda da mídia que se torna, em certa medida, a agenda do público, e este seria o estágio inicial na formação da opinião pública (McCOMBS, 2009, p. 18), então, cabe dizer que as diversas veiculações sobre um assunto vão se complementando, suprindo umas às outras do que estava faltando nelas. Sendo que, a esta altura, o público se apropria dos novos meios de comunicação e passa a produzir, também, uma notícia feita por ele e o próprio agendamento, que acaba sendo absorvido pela grande mídia. Sobre uma cultura comum a todas as publicações, é pertinente lembrar o entendimento de Groth (2011, p.101) sobre “os jornais e revistas reais”:

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estariam ligados uns aos outros por meio de um sentido e de características comuns, indiferente do quão diversos eles sejam em forma e conteúdo, no porvir e no destino influenciado pelos seus produtores e consumidores, na sua realidade natural e no meio ambiente social, nos fluxos intelectuais do tempo e nas ambições de poder dos outros poderes socioculturais (GROTH, 2011, p. 101).

É neste ponto que, na presente condição, seria o caso de reconhecermos uma reestruturação daquela esfera pública descrita por Habermas (1981) e que pode ser estudada sob o novo prisma da Teoria Ator-Rede (TAR), uma vez que a revolução que se processa ganha de novo proporções inauditas com a participação de atores diversos. As interferências de sujeitos que se pronunciam em relação ao que estava estabelecido se acirram diante das novas perspectivas, empoderando a esfera privada que vai se tornando pública por vontade própria, como se vê nas relações estabelecidas no Facebook. Na disputa entre a esfera pública política e o mandamento democrático, havia o objetivo de reduzir ao mínimo os conflitos estruturais de interesses e decisões burocráticas, sendo um dos problemas de cunho técnico e, o outro, econômico - “da solucionabilidade de ambos é que hoje, efetivamente, depende até que ponto a esfera pública politicamente ativa pode ser concretizada em sua intencionalidade crítica” (HABERMAS, 1981, p. 271). Enquanto nos meios digitais há maior necessidade de uma economia de tempo, nos meios impressos a grande questão é a de lugar para exposição, já que se prevê um número maior de notícias do que o espaço disponível. O gatekeeper aparece, então, com o pretexto de selecionar as principais notícias. No meio digital, há outras motivações para a seleção do que é publicado. Questões políticas fazem parte da linha editorial de qualquer publicação, seja digital ou impresso. Neste momento da imprensa, os veículos se transportam de um modelo de prática para um outro inteiramente imprevisível, sem padrões estabelecidos, sem perspectivas delimitadas. Embora ainda esteja em uma condição indefinida, decorrente de uma inovação sem precedentes, é possível perceber algumas adequações dos meios tradicionais para os que agora se apresentam tendo um produto jornalístico pretensamente novo, mas por enquanto sem um padrão formalizado para atender ao leitor. Percebe-se que, ao mesmo tempo em que se modificam as práticas jornalísticas porque surgem novos dispositivos capazes de torná-lo mais ágil e rápido de fazer, este momento de transição também pode propiciar obstáculos à comunicação, dentro de um campo sempre caracterizado por disputas e interesses diversos. “Com os meios técnicos de atender às necessidades, crescem também, por outro lado, os meios de destruição” (HABERMAS, 1981, p. 272). Vale lembrar que, a despeito das novas tecnologias a serviço da midiatização, jornais impressos ainda se mantêm com infraestrutura, capaz de garantir a produção de reportagens. As redações de impresso continuam mantendo uma ação importante no momento em que se processa a convergência das mídias. Também, contribui para este estado de produção a credibilidade que se deve à própria tradição do consumo das notícias em papel, que vem resistindo à introdução das novas formas de mediar o produto jornalístico, inclusive as que comercializam a possibilidade de transmitir notícias eletronicamente como os telefones móveis, I-pods, blackberries etc, que reproduzem o conteúdo dos impressos. O cotidiano dessas instituições do jornalismo

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sugere frequentes confrontos. O caminho inverso também se vê. Jornais televisivos e impressos repercutem questões agendadas na mídia digital, com frequência e, muitas vezes, com destaque, ocorrendo, aí, as transmidiações (JENKINS, 2009) de conteúdos. Diante deste movimento de transformação da cena midiática que se estende desde a segunda metade do século XX, pontuamos aspectos da prática comunicacional contemporânea em um tipo de jornalismo que parece requerer critérios de noticiabilidade e estrutura de construção também reajustados inclusive para responder à mencionada transmidiação, apuração e distribuição diferenciadas, que possivelmente nem correspondam mais aos parâmetros introduzidos por Galtung e Ruge (1965), e que se maleabilizam dentro de uma globalização já integrada às mais diversas realidades. Notadamente, o objeto notícia da prática da produção jornalística alargou-se fazendo com que também se mantenha indefinido. O que deve ser noticiado? Quais as consequências dos rearranjos, qual a importância dos conteúdos nesta nova ordem? Apesar das mudanças proporcionadas pela tecnologia, a reportagem e o jornalismo não continuariam os mesmos? Como o jornalismo reaparece nesse novo formato que se impõe com inovações que se expandem também sobre o cotidiano das cidades, contumaz assunto da prática jornalística? É válido veicular informações incompletas ou equivocadas, quando não se tem a garantia do conteúdo integral? Por isso, observamos os velhos e novos meios de propagar a informação noticiosa e mostramos algumas questões direcionadas às suas formulações e apresentações. Ainda de forma insipiente, analisamos a presença e a ausência de dados no produto veiculado, dirigido ao público, com exemplificações dentro de um universo empírico composto por publicações impressas e digitais. Também, observamos algumas lacunas da informação mediada digitalmente.

2. A INFORMAÇÃO NO NOVO TEMPO E ESPAÇO Vejamos alguns exemplos de veiculações de unidades jornalísticas no meio impresso e no digital: 1) No primeiro (matéria sobre demolição de uma casa antiga), analisamos a atuação de um blog e seus efeitos, buscando lacunas no tipo de cobertura; 2) No segundo (matéria sobre contaminação de trabalhadores), mostramos a omissão de informação nas primeiras veiculações online; 3) No terceiro (derrubada de píer), também, mostramos a ausência de uma contextualização sobre o conflito que reaparece como notícia nova e imprecisa; 4) No quarto (restauração da Igreja da Vitória), aparecem alguns aspectos do jornalismo impresso que se adequa e resiste, redução do conteúdo com comprometimento do produto; 5) No quinto (capa desrespeitosa), mostraremos a publicação de uma capa que se transforma em viral devido à indignação que provocou nas redes sociais.

2.1. Derrubada de casa na Rua 2 de Julho Vitória da Conquista é a terceira maior cidade da Bahia, polo de desenvolvimento do Sudoeste do Estado, com aproximadamente 350 mil habitantes, segundo dados do IBGE. Circulando por ela, há jornais em papel e em meio digital, assim como a venda em bancas de jornais editados em Salvador, como o A Tarde e o Correio. A televisão tem produção local, pela TV Sudoeste, afiliada da Rede Bahia, que é retransmissora da TV Globo, e pela TV Aratu, repetidora do SBT. A região tem, também, vários blogs produzidos nela.

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E foi em um deles, o Blog do Anderson2, que, em 2 de janeiro de 2015, saiu publicada a notícia sobre a ameaça de destruição de uma edificação do início do século passado, então um dos últimos remanescentes do estilo eclético na cidade. O texto tinha um parágrafo, com 121 palavras. Não continha informações provenientes do proprietário do imóvel, nem das autoridades locais. Embora o assunto tenha relevância e despertasse o interesse de moradores da cidade, a informação foi colocada com uma foto ilustrativa da fachada frontal do imóvel, mas sem entrevistas, nem opiniões, exceto a do próprio blogueiro, ou seja, sem aprofundamento na questão da preservação do patrimônio local. No post, há nove “respostas” de leitores, o que em outros sites costumam ser chamados de comentários, referentes ao conteúdo da postagem. O blog (Figura 1) não informa os motivos para a demolição da casa nem que, a uma distância de dois imóveis além, um outro casarão já tinha sido demolido pelo mesmo proprietário que, atualmente, explora o terreno no Centro da cidade como estacionamento. O texto veiculado pelo blog: A cada dia um pouco da história de Vitória da Conquista é apagado. Um dos setores que mais sofrem é o da arquitetura, onde os antigos casarões dão espaço a construções modernas. Na Rua 2 de Julho um imóvel está prestes a ir ao chão. O fato foi lamentado pelo historiador e ex-presidente do Sindicado dos Bancários de Vitória da Conquista, Eduardo Moraes: “Lamentável que a memória arquitetônica de Vitoria da Conquista esteja sendo destruída a cada dia pelo vil capital. Casarão do início do século XX , localizado na Rua 2 de Julho, será demolido”. Na tarde desta quinta-feira (1) o Blog do Anderson esteve in loco e ainda pode registrar uma imagem que certamente será lembrada no futuro próximo (BLOG DO ANDERSON, 2/1/2015). Figura 1. Demolição

Notícia sobre demolição, no Blog do Anderson, 2/1/2015.

Na cidade, não houve outro tipo de repercussão relativa à iminente destruição do patrimônio e a casa foi, mesmo, derrubada. Nem na nota veiculada pelo Blog do Andreson, nem em qualquer outro espaço, o público é informado que Vitória da Conquista possui uma Lei de Tombamento (nº 707/93), que poderia ser utilizada para evitar o perecimento deste que era um dos últimos exemplares da arquitetura eclética na cidade. A função 2.  http://www.blogdoanderson.com/2015/01/02/historia-mais-um-casarao-sera-demolido-em-conquista/

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do jornalismo de antecipar acontecimentos, alertando e mostrando de forma assertiva alternativas para o debate público não foi exercida, embora a denúncia tenha de fato sido feita, fazendo com que a informação principal tivesse se tornado pública. O blogueiro Anderson não possui graduação em jornalismo e atua praticamente sozinho, a partir de informações fornecidas por um conjunto de fontes que ele construiu com o seu blog.

2.2. Trabalhadores passam mal por tomarem água infectada por ratos Notícia sobre 50 trabalhadores que beberam água onde havia ratos, na cidade de Pojuca, na Bahia, e que, em decorrência, foram hospitalizados, foi veiculada em vários jornais impressos, sites e blogs, todos eles tendo que contar a insólita história acontecida em um canteiro de obras, sabendo-se que o setor é responsável por uma boa parcela de anúncios que garantem a sustentabilidade dos veículos de comunicação. O Jornal A Tarde veicula conteúdo sem inicialmente divulgar o nome da construtora responsável pela obra. Somente em uma atualização, às 11h34, Trabalhadores bebem água com ratos mortos e passam mal (A TARDE, 6/1/2015), a empresa do setor da construção civil é identificada. No Portal G1, há a ocultação do nome da construtora que, em nenhum momento, é mencionado, como se a informação não fosse relevante, na matéria Trabalhadores passam mal após ingerirem água com ratos mortos (G1, 6/1/2015).

2.3. A justiça dos píeres Com foto creditada à “divulgação”, a reportagem intitulada Sucom começa a demolir píer na Ribeira após ordem da Justiça (CORREIO, 17/08/ 2013, p. 6) informa que a prefeitura demoliu um local de atracação de barcos em uma área popular da cidade, porque tratavase de uma construção irregular, sem alvará. A prefeitura seria a gestora desta área reconhecida como “de marinha”, porque, apesar desse status, está dentro de perímetro urbano. Sendo “de marinha”, está sob jurisdição federal uma vez que a responsável por estas áreas é a Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Portanto, não precisaria aguardar determinação da Justiça, uma vez que tanto a Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município (Sucom), quanto a SPU, têm poder de polícia, e poderiam embargar o píer sem precisar de ordem judicial. A veiculação desta notícia, na maioria dos veículos do meio digital, informa ter sido a SPU a acionar a prefeitura, com exceção do site Se liga Bocão. Enquanto o Correio divulgou que a demolição fora “ordenada” pela Justiça Federal, o jornal Tribuna da Bahia, em sua versão online, atribuiu a ação ao SPU: Sucom inicia demolição de píer irregular construído na Ribeira (TRIBUNA DA BAHIA, 26/01/2015). Também, o site Varela Notícias citou a SPU na matéria Píer na Ribeira começa a ser demolido (17/08/2013). “A ação foi solicitada pela Justiça Federal ao secretário Municipal de Urbanismo e Transporte, José Carlos Aleluia”, informou a matéria Sem alvará, píer da Ribeira é demolido (Bocão News, 17/08/2013). A publicação no Correio e nos demais jornais e sites de notícias não faz menção aos píeres situados na Vitória que chegaram a ter recomendação de demolição expedida pelo Ministério Público Federal, em 2009, depois de uma série de matérias publicadas pelo jornal A Tarde, em suas versões impressa e online, em 2008 e 2009, a exemplo de Píeres em situação irregular (23/10/2008) e Ibama multa e embarga oito píeres (1/05/2009).

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Isso porque, de acordo com o artigo 20 da Constituição de 1988, o mar e os terrenos marginais a ele são bens da União. E a Lei nº 9.636/98, nos artigos 11 e 18, determina que à SPU cabe zelar e fiscalizar para que sejam mantidos a destinação e o interesse público, o uso e a integridade física desses espaços. (A TARDE online, 23/10/2008)

2.4. Restauração da Igreja da Vitória Em 26 de janeiro de 2015, matéria Igreja da Vitória reabre para fiéis depois de 18 meses de restauração, assinada pela repórter Lucy Brandão Barreto, foi publicada na página 4 do jornal Correio, pertencente à família do prefeito de Salvador Antônio Carlos Magalhães Neto, o ACM Neto, que aparece rezando na foto, onde, também, estão o Cardeal Primaz do Brasil Dom Murilo Krieger e a avó do prefeito, Arlete Magalhães, viúva do ex-senador, ministro, governador e prefeito Antônio Carlos Magalhães, o ACM. Este jornal se tornou berliner e mais barato há quatro anos, desbancando o principal concorrente, o centenário A Tarde, que continua em tamanho standard. O Correio da Bahia era um jornal sem credibilidade e sua distribuição era feita em grande parte como cortesia. Isto porque pertencia à família do político Antônio Carlos Magalhães, que acompanhava e pautava suas edições. O projeto de renovação do Correio da Bahia, com o intuito de lhe assegurar um novo perfil e novos leitores, começou a ser pensado entre 2007 e 2008. Naquele momento, o mercado baiano era menor que o de Recife e Vitória do Espírito Santo. Havia menor circulação de impressos na Bahia que nestes dois estados. E, então, o jornal que tinha como objetivo único fazer política sob a supervisão direta e indireta do próprio senador, retirou esta editoria de suas páginas e passou a publicar matérias sobre tudo, buscando construir a sua credibilidade. Era um jornal de variedade que queria se tornar competitivo economica e politicamente. E se manteria assim até a contratação de Sérgio Costa, pinçado na redação da Folha de São Paulo que aprimorou a ideia. Foi ele quem percebeu que a melhor forma de contemplar os leitores seria se tornando um jornal com um cardápio predominantemente local. A partir daí, o jornal mais barato do estado, 0,50 centavos, reduziu seu espaço para reportagens e suas páginas passaram a ser compostas por matérias do tamanho quase de notas, com uma média 100 palavras. Em uma página, podem caber quatro matérias, uma foto, sete anúncios, como a de número 13, da edição de 26 de janeiro de 2015. Matérias únicas dividem as páginas com anúncios e, assim, mesmo as matérias de página inteira são reduzidas para que caibam anúncios, na maioria delas. O jornal tem um miolo de 12 páginas de classificados, além dos anúncios espalhados pelas 32 páginas de notícias. O Correio passou a ser muito objetivo no que se referia a agradar o leitor. E, a partir de pesquisas de opinião, passou a organizar o seu conteúdo em função da expectativa e interesse dos que passaram a poder comprar o seu produto. Às segundas-feiras, o jornal dedica mais da metade de suas páginas ao esporte. Em 13 de outubro de 2014, 22 das suas 39 páginas foram espaço para assuntos de futebol e demais esportes. Também costuma fazer promoções presenteando os compradores do jornal com DVDs de artistas populares. O A Tarde promoveu uma série de reportagens durante mais de 10 anos, desde 2003 até 2012, sobre o tombamento de 12 imóveis no Corredor da Vitória e preservação de monumentos, dos quais apenas a Igreja da Vitória, cuja restauração é objeto da

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reportagem, terminou tombada definitivamente, conforme o decreto nº 25/37. Durante este período em que o Instituto do Patrimônio Artístico e Nacional (Iphan) foi responsável pela jurisdição local, o Correio não se referiu à medida nem às consequências decorrentes. O anúncio do tombamento do Corredor da Vitória rompe com um espaço de 53 anos sem que o governo federal tomasse inciativas de porte em prol da proteção de tantos objetos, sendo estes em uma área de ocupação nobre, em que moradores e empresários foram diretamente afetados. Moradores, porque estes tiveram que se adequar às restrições referentes a alterações nos imóveis e empresários, por motivo semelhante, mas com o agravante de que esta medida afetaria seus negócios. Em entrevista a esta autora, em 25 de novembro de 2009, o então diretor de redação do Correio da Bahia, afirmou que o episódio teria sido considerado irrelevante. Mesmo que tenha tido, como contou, um entendimento sobre tombamento, sobre a venda de dois dos imóveis tombados, sobre a preocupação dos proprietários e sobre o envolvimento da indústria da construção civil, como nos parágrafos transcritos abaixo: O senhor esteve lá e conversou com ele [jornalista Jorge Calmon] sobre isso? Eu estava com ele participando de uma comissão de julgamento de um prêmio jornalístico qualquer. Fiquei conversando sobre isso [sobre a sua casa, no Corredor da Vitória]. Ele me mostrou a casa muito bonita. E ele preocupado com essa história de tombamento. Eu não sei que ano foi esta conversa. Mas ele já estava preocupado. Ele já estava querendo sair dali. Ele achando que ia sair dali, morar sozinho, a casa grande demais. Ele ainda estava inteiro. Por conta dos elogios que foram feitos à casa dele e ele aventando já a possibilidade. Porque já estava se falando de se vender a casa dos cardeais para a Odebrecht. Se criou um pequeno momento de se preservar, aquela coisa, enfim, que o cardeal também, indignado, com a possibilidade de não vender, de não fazer negócio ali. Ele nunca suportou aquela casa, desde quando ele desembarcou aqui. Foi morar numa casa emprestada pelo cônsul da Alemanha, primeiro no Caminho das Árvores, depois ele foi lá pra Federação, onde está até hoje. Eu não sei se você já fez a pesquisa no Correio pra saber a postura que o Correio tomou. O Correio praticamente nem abordou o assunto. Pois é. Eu acho que a gente não deu importância nenhuma a essa história. E olhe que eu sempre tive uma preocupação muito grande com o patrimônio histórico porque quando cheguei aqui na Bahia e fui trabalhar no Estado de São Paulo eu ganhei destaque no Estadão exatamente por conta disso. Eu comecei a fazer matéria sobre o patrimônio histórico. E sempre tive muito cuidado com relação a isso. Mas acho que o Correio foi absolutamente indiferente a isso, não encampou isso à época e não sei se A Tarde também fez isso à época. Pode ser que o Correio não tenha abordado o tema porque A Tarde tomou conta do assunto? Não, acho que não. Eu não tinha essa preocupação. Tanto que na transposição do Rio São Francisco, que A Tarde saiu à frente e não dividir a Bahia, a mesma coisa. Não tinha esse preconceito, não. Mas acho que em relação a esse episódio, o Correio foi absolutamente indiferente. Porque entenda o seguinte: enquanto eu estive lá no Correio da Bahia, a única pessoa que me dava orientação com relação a vamos fazer isto ou aquilo era o senador. Não passava ali decisão pelo campo empresarial. Eu não era interlocutor dos executivos das demais empresas. Não ouvia pra nada. Minha relação era com o dono do jornal e acabou (WEINSTEIN, 2011, p. 262-263).

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Entretanto, neste novo acontecimento em que uma empresa do setor imobiliário promove uma restauração em um objeto tombado pelo patrimônio cultural nacional, o Correio divulga a ação da citada incorporadora MRM Construtora que, na verdade, oferece uma contrapartida sugerida por ela mesma à prefeitura, como pretensa reparação à infração de derrubada, sem alvará, de uma mansão, praticada por ela, para que, então, pudesse viabilizar e levantar o espigão de 45 pavimentos, se não no mesmo local da casa derrubada, na vizinhança imediata à igreja tombada, com a anuência da Arquidiocese local e do instituto de proteção do patrimônio. Há ainda outras informações imprescindíveis para o entendimento da questão que sustenta a informação final contida no último período – “a obra custou R$5 milhões e prevê ainda requalificação da praça da igreja e construção de um mirante para a Baía de Todos os Santos”.

2.5. A manchete do Correio Finalizando, mostramos uma manchete veiculada pelo jornal Correio, em sua versão impressa, publicada em 18 de março de 2015, sobre o assassinato de um bailarino integrante do Balé Folclórico da Bahia, conhecida companhia de dança, em que uma gíria é utilizada. A percepção de um título (Figura 2) desrespeitoso foi imediatamente sentida por quem leu a capa do diário. Como tratava-se do impresso, não havia possibilidade de substituir a frase considerada desrespeitosa pelos leitores. Nas redes sociais, o tratamento dado ao caso pelo jornal causa uma comoção e muitos internautas externam indignação em relação ao meio de comunicação. O debate se instala. O professor da Universidade Federal da Bahia Leandro Colling coloca um post em sua timeline, pedindo a todos que endereçassem o seu descontentamento ao diretor do jornal, divulgado o endereço dele. Figura 2. Manchete

Reação contra a capa sobre assassinato de um bailarino

No dia seguinte, o jornal publicou em sua sessão de opinião um artigo do próprio professor, e mais, ao pé dele, um pedido de desculpas a quem “mal interpretou” a capa

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do dia anterior. O jornal publicou a manchete em questão no impresso, percebeu a reação que provocou nas redes sociais e pediu desculpas no impress, mesmo. Também, o artigo Quando a imprensa dá mais uma facada http://www.correio24horas.com.br/ detalhe/ noticia/ leandro-colling-quando-a-imprensa-da-mais-uma-facada/? foi levado para as redes sociais e o professor foi elogiado no Facebook por ter reivindicado mais respeito à causa contra a homofobia. Mas, e ao jornalismo, como buscar o respeito por uma prática que esteja em conformidade ao bom senso e pautado no interesse de todos? O Correio publicou uma Nota da Redação ao final do artigo do professor: “O CORREIO pede desculpas a quem o mal interpretou na formulação da manchete da prisão do assassino confesso do solista do Balé Folclórico da Bahia, publicada na 1ª edição de ontem” (CORREIO, 19/03/2015, p. 2).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O jornalismo vem mudando em vários aspectos, mas compor uma notícia com dados novos, ainda desconhecidos, sem incorreções e de forma completa, continua sendo o principal desafio e proposta neste campo. O espaço e o tempo sempre foram os obstáculos a serem transpostos para que a informação pudesse ser produzida dentro dos parâmetros objetivos da prática. Apesar dos avanços que agilizaram tanto a busca quanto a divulgação da notícia, restrições em algumas plataformas se mantiveram e agora se acumulam às trazidas no novo formato. O espaço continua sendo um limitador para o jornalismo impresso, assim como o tempo. No digital, se o espaço precisa ser também repensado, quando a escrita e o audiovisual se pronunciam, o tempo quanto menor, melhor, para que a notícia não esteja ausente. E, nessas disputas entre meios e veículos, é formado esse jornalismo que passa a ser consumido diariamente, a cada hora, em meio às possibilidades de uma informação espraiada também por canais não jornalísticos, fazendo com que a fonte formalmente habilitada não seja necessariamente a de maior credibilidade, ou a mais utilizada. Apresentamos uma configuração da agenda do público e, por conseguinte, das demais agendas, com a mobilização ampliada de atores presentes nas redes, em uma fase de composição de sua forma e de seu conteúdo ainda inconsistentes, se comparados ao jornalismo tradicional. Ainda não há um modo standard para esse jornalismo que vem se remodelando com a chegada dos novos avanços tecnológicos, de dispositivos que possibilitam uma informação transmitida mais rapidamente. É preciso perceber como essas novas possibilidades podem inclusive reduzir as fronteiras deontológicas incorporadas e típicas do jornalismo tradicional. No impresso, as restrições no oferecimento de informação passam a ser uma realidade, depois que alguns jornais optaram por textos menores, como reflexo de uma contemporaneidade protagonizada pela plataforma online. As matérias ficaram menores, com menos informações do tipo “entenda o caso”, artifício comumente utilizado por vários jornais impressos como O Globo, Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e A Tarde, dentre outros, que entendem que o leitor precisa ter subsídios para poder compreender. Para evitar que o leitor leia um fragmento de notícia sem saber sobre o que contribuiu para que o acontecimento ocorresse. No online, o leitor pode clicar em links que o levem para informações anteriores, mesmo quando o jornal é uma reprodução da publicação impressa, que por sua vez, adota a notícia resumida, sem dados anteriores e sem a possibilidade de ampliá-la.

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Atleta de papel: a representação do atleta paralímpico nas páginas da Folha de S. Paulo Paper athlete: the portrayed of the Paralympic athlete at Folha de S. Paulo’s pages Tat i a n e H i l g e m b e r g 1

Resumo: Ao analisarmos os estudos sobre grupos minoritários percebemos que grande parte dos mesmos trata o conceito de estereótipo atrelado à questão racial ou de gênero, com raríssimos trabalhos relacionados à questão da deficiência, isso evidencia a importância do tema. O estudo em questão pretende discutir os estereótipos associados ao atleta paralímpico no jornal Folha de S. Paulo, durante os Jogos Paralímpicos de 2012. Em suma nossos resultados apontaram que a maior parte da terminologia utilizada para se referir aos atletas cingese a termos esportivos e termos genéricos. Nossos dados também salientam a importância do modelo médico (deficiência vista como doença) para a explicação da deficiência. Chegamos à conclusão de que os valores e características esportivas desempenham um papel fundamental nessa cobertura, no entanto a presença ainda forte do modelo médico, em slogans e terminologias, bem como a comparação ainda presente entre atletas paralímpicos e olímpicos, como uma forma de legitimação dos primeiros nos remetem a uma representação ambígua que de um lado constrói uma imagem esportiva do atleta, mas de outro reforça os estereótipos da deficiência.

Palavras-Chave: Atleta Paralímpico. Estereótipo. Jornalismo. Abstract: When we analyse the studies about minority groups we realize that most of it deal with the concept of stereotype related to racial or gender issues, with rare studies related to the disability issue, which shows the importance of the theme. This paper aims to discuss the stereotypes associate to the Paralympic athletes at the newspaper Folha de S. Paulo, during the 2012 Paralympic Games. To sum up, our results showed that most of the terminology related to the athletes was sportive or general. Our data also showed the importance of the medical model (disability as a disease) to explain disability. We conclude that the sportive values and characteristics have a fundamental role in this coverage, however the strong presence of the medical model, at slogans and terminologies, as well as the comparison between Paralympic and Olympic athletes, as a way to legitimate the Paralympics, lead us to an ambiguous portrayed that in one hand build an athlete’s sportive image and at the other hand reinforce the disability stereotypes.

Keywords: Paralympic Athlete. Stereotype. Journalism. 1.  Doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. tatianehilgemberg@gmail. com.

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INTRODUÇÃO EGUNDO DADOS do IBGE (2010) cerca de 45,6 milhões de brasileiros declaram

S

possuir algum tipo de deficiência, isso corresponde a 23,9% da população. Apesar do número relativamente expressivo, não só essas pessoas como também o tema deficiência fica relegado a segundo plano. Os indivíduos que não seguem as “normas” prescritas relativamente à aparência ou comportamento são alvos de tratamentos diferenciados, que variam de acordo com o período histórico e valores culturais. Lippmann em 1922 foi pioneiro, nas ciências sociais, ao formular o conceito de estereótipo. Segundo o autor os estereótipos são imagens mentais sobre a realidade que se interpõem entre indivíduo e realidade; são como “fotos em nossas cabeças” para ilustrar o que caracterizou como uma representação interna mental de grupos sociais, em contraste com a sua realidade externa. Segundo Lippmann (1997), quando nos aproximamos da realidade, não vemos primeiro para depois definir, mas primeiro definimos e depois vemos, ou seja buscamos em nosso aparato cultural a classificação na qual o indivíduo se insere. Isso significa que os estereótipos se formam a partir de sistema de valores individuais e têm como função organizar e estruturar a realidade. Gilman (1985) afirma ainda que os estereótipos são representações brutas do mundo, eles perpetuam uma noção de diferença entre o “eu” e o “outro”, e ratifica a ideia de Lippmann de que não são nem aleatórios nem pessoais, são, sim, produtos da história e da cultura. Difference is that which threatens order and control (...). Patterns of association are most commonly based, however, on a combination of real-life experience (as filtered through the models of perception) and the world of myth, and the two intertwine to form fabulous images, neither entirely of this world nor of the realm of myth (GILMAN, 1985, p. 21)2.

Nossas primeiras impressões, que são de fato baseadas em observações rasas, irão determinar as categorias sociais nas quais iremos inserir o novo e através das quais iremos orientar nossa interpretação posterior. Conforme sugere Hall (1997) geralmente as pessoas que são significativamente diferentes da maioria são expostas de forma binária – heróis e vilões/ bom e mau/ civilizados e primitivos/ feio e atraente/ –, rejeitado porque é diferente e atraente porque é estranho e exótico; isso ao mesmo tempo. Tais contextos sugerem que existe uma dificuldade em se identificar com corpos que possuem diferenças marcantes, e que passam a ser vistos, portanto, como patologias. “Ou seja, quando uma pessoa com características diferentes daquelas que se esperava encontrar em determinado ambiente é apresentada ou é vista fazendo parte dele, essa pessoa é considerada estranha” (SANTOS, 2008). A percepção dessas diferenças nos leva a atitudes e comportamentos relativamente ao “outro”. O desenvolvimento dessas atitudes perante as pessoas com deficiência, o “outro” em questão, atravessou diversos períodos remetendo-nos a diferentes perspectivas em relação a este grupo. 2.  Diferença é aquilo que ameaça a ordem e o controle (...). Contudo os padrões de associação são mais comumente baseados na combinação de experiência de vida (filtradas através de modelos de percepção) e do mundo do mito, e esses dois se entrelaçam a fim de formar imagens fabulosas, nem totalmente desse mundo nem do reino do mito. (Tradução livre da autora)

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Ao analisarmos os estudos sobre grupos minoritários percebemos que grande parte dos mesmos trata o conceito de estereótipo atrelado à questão racial ou de gênero, com raríssimos trabalhos relacionados à questão da deficiência, isso evidencia a importância do tema. O estudo em questão pretende discutir os estereótipos associados ao atleta paralímpico no jornal Folha de S. Paulo, em relação a seu papel social através de uma revisão bibliográfica baseada na literatura especializada.

OS ESTEREÓTIPOS DA DEFICIÊNCIA De fato, foram apenas nos últimos 200 anos que as políticas a favor das pessoas com deficiência apareceram. Desde os seus primórdios que a sociedade tendeu a marginalizar e inabilitar as pessoas com deficiência apondo-lhes o estigma da diferença. Na Antiguidade o “problema” da deficiência não existia, pois as crianças que nasciam com algum tipo de deficiência eram abandonadas e em sua grande maioria acabavam morrendo. Na Idade Média, com o advento do Cristianismo, o homem passa a ser visto como manifestação de Deus, sendo, portanto, o extermínio das pessoas com deficiência uma prática inaceitável. A visão da deficiência se transforma sendo agora atribuída ora a desígnios divinos, ora à possessão demoníaca. Por uma razão ou por outra a principal atitude da sociedade em relação a tais indivíduos era de intolerância e punição (ARANHA, 2007). A partir do século XV, a pessoa com deficiência passa a ser vista como um ser improdutivo, ou seja, um “peso” para a sociedade. Nos séculos XVII e XVIII, a discussão sobre a deficiência ganha certo fôlego, as atitudes vão desde a institucionalização até o ensino especial. No século XIX e XX alguns governos começam a reconhecer sua responsabilidade no cuidado do bem-estar destes cidadãos. A partir daí o debate sobre o tema passa a ser mais amplo e novos direitos vão sendo conquistados. Contudo mesmo na atualidade, e apesar de vivermos numa sociedade dita inclusiva, o preconceito para com a pessoa com deficiência é ainda prevalecente. Todo o indivíduo que foge aos padrões de normalidade é considerado estigmatizado. Marques (2001) refere que os estereótipos são aplicados às pessoas com deficiência, pois são socialmente tidas como incapazes e improdutivas, e biologicamente consideradas “anormais” (modelo médico). Uma outra dicotomia relevante para a presente discussão prende-se ao fato de para além de serem vistos como seres incapacitados que não conseguem solucionar seus problemas, há da mesma forma, a imagem do “super-herói”, com algumas capacidades mais desenvolvidas em detrimento de outras, acabando por reforçar estereótipos, estigmas e posturas preconceituosas. Quando apenas a deficiência está em evidência o indivíduo é visto como coitadinho, mas ao se transformar em atleta de alto nível, recordista mundial, medalhista paralímpico, o indivíduo com deficiência é o herói, que superou suas próprias dificuldades. O estereótipo é utilizado, muitas vezes, como facilitador do cotidiano, contudo seus impactos, geralmente negativos, podem levar a generalizações sobre o indivíduo ou grupo, e gerando julgamentos enviesados. De acordo com Hall (1997) o estereótipo reduz o indivíduo a algumas poucas características simples, e completa seu pensamento

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com a interessante diferenciação entre estereotipar de tipificar, utilizando, para isso, os argumentos de Robert Dyer (1977). Segundo esse último, sem o uso de tipos seria muito difícil, ou até mesmo impossível, dar sentido ao mundo, pois enquadramos objetos, pessoas e eventos em categorias nas quais eles se enquaixam de acordo com a cultura. Assim tipificar é essencial para criar significado. Classificamos as pessoas de acordo com papeis sociais, classe, sexo, faixa etária, nacionalidade, raça, grupo linguístico, preferências sexuais, personalidade. O tipo é qualquer caracterização simples, vívida, memorável, facilmente apreendida e amplamente reconhecida, na qual poucos traços estão em primeiro plano e a mudança, ou “desenvolvimento”, é reduzida ao mínimo. Já os estereótipos se apegam a algumas características simples, vívidas, memoráveis, facilmente apreendidas e amplamente reconhecidas de uma pessoa, e reduzem-na a esses traços. Em suma, estereotipar reduz, essencializa, naturaliza e fixa diferenças, separando o normal e o aceitável do anormal e inaceitável, ou seja auxilia na manutenção da ordem social e simbólica. Classifica as pessoas segundo normas e constroem os excluídos como “outros”, sendo elemento-chave da violência simbólica. Cada pessoa desempenha um papel na sociedade. Quando pensa-se na pessoa com deficiência somos levados a crer que seu papel está associado à incapacidade, e portanto quando a mesma age de forma diferente do “esperado” sente que burla as regras e passa a ser vista com ares de super-herói. Em estudos recentes sobre o esporte adaptado (FIGUEIREDO e NOVAIS, 2009; THOMAS e SMITH, 2003; SCHANTZ e GILBERT, 2001), por exemplo, os estereótipos mais encontrados foram o coitadinho e o super-herói, revelando que a mídia (tanto audiovisual, quanto escrita) tende a descrever as performances dos atletas com deficiência de forma relativamente consistente com o modelo médico. Sendo assim, estes atletas tendem a ser retratados como “vítimas” ou pessoas “corajosas” que “superaram” o próprio “sofrimento” da deficiência para participar em um evento desportivo, um super-herói. Este estereótipo deixa a impressão de que a pessoa com deficiência para se ajustar terá de fazer algo extraordinário ou realizar um esforço heróico para compensar a sua limitação (SCHELL e DUNCAN, 1999). O modelo do super-herói viria reforçar as baixas expectativas da sociedade acerca das pessoas com deficiência (HARDIN e HARDIN, 2004), e enfatizar o esforço individual dessas pessoas para se adaptarem; como se ter uma deficiência fosse culpa das mesmas (SCHANTZ e GILBERT, 2001). O que depreende-se deste discurso é que as pessoas sem deficiência, quando bem sucedidas nos seus empreendimentos, alcançariam o sucesso pelo talento ou pela inteligência; enquanto aquelas que têm alguma deficiência o teriam feito pela necessidade de compensar o ‘mal’ que os aflige (MARQUES, 2001). Ao contrário, por exemplo, do que acontece nos desportos para pessoas sem deficiências, onde por exemplo o fracasso é apresentado como uma perda trágica, nas Paralimpíadas os comentários parecem ser rasos. Quando certo atleta ou equipe perde, a imprensa sugere que o perdedor deve ser grato pela experiência Paralímpica, este é um caso claro de os paratletas serem retratados como “outros”, como atletas menos-do-que-capazes. De acordo com Moura (1993, p.46) tanto o olhar de piedade quanto o de admiração parte de um único princípio, o preconceito.

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[...] tanto aquele que foi marginalizado pela visão pública de deficiência como aqueles que conseguiram [...] [se] mostrar em condições de competitividade são de certa forma vistos publicamente como elementos não humanos: um pela sua história e seu modo precário de vida, como elemento sub-humano, o outro pelo inverso da mesma moeda – da deficiência – como um super-humano.

O processo de identificar o outro refere-se à ideia de que nossa identidade é, geralmente, criada e mantida através de distinções que estabelecemos entre nós e aqueles que percebemos como diferentes de nós. Ao afirmarmos que as pessoas com deficiência são inúteis, danificadas, defeituosas e disfuncionais, os membros sem deficiência da sociedade são capazes de reafirmar e reforçar a identidade de ser o oposto a essas características indesejadas. Puppin (1999) afirma também que a deficiência surge apenas quando o conceito de eficiência passa a ser marca de nossa sociedade, e portanto passa a designar o improdutivo, o negativo. Alguns autores afirmam que os estereótipos divulgados são reflexos dos medos e ansiedades da sociedade, ou seja, nós evitamos falar sobre a possibilidade da deficiência, em nós ou em alguém próximo, e o que tememos geralmente estigmatizamos (LONGMORE, 1985). Gilman (1985) ratifica essa ideia ao afirmar que nós criamos imagens de coisas que geralmente tememos ou glorificamos, e dessa forma os estereótipos perpetuam um senso de diferença entre o “eu” e o “outro”.

METODOLOGIA Para alcançar os objetivos propostos no nosso estudo iremos buscar identificar as representações dos atletas paralímpicos, para tanto utilizaremos a análise de conteúdo. Para este trabalho escolhemos analisar a cobertura dos Jogos Paralímpicos de 2012, por nos ser mais conveniente encontrar informações sobre os atletas com deficiência no período dos Jogos e por ser 2012 o mais recente, do jornal Folha de S. Paulo, impresso com maior circulação em 2012 segundo dados divulgados pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC). Para analisar este material utilizaremos análise de conteúdo baseando-nos na ideia de “pacotes interpretativos” de Gamson e Modigliani (1989), e inspirados no trabalho de Vimieiro (2010) no qual a autora apresenta, após uma longa discussão sobre a falta de clareza metodológica de estudos que se utilizam da análise de enquadramento, críticas com as quais concordamos, suas escolhas metodológicas que intitula de análise indireta de enquadramentos. “Pacotes interpretativos”, resumidamente, são conjuntos formados por dispositivos simbólicos, através dos quais é possível organizar os pacotes, que têm como ponto central o enquadramento. Contudo esses autores apenas nos inspiraram mostrando um possível caminho em nossa escolha metodológica. Dessa forma, levando em consideração nossos objetivos e questões de investigação, pretendemos identificar os estereótipos ou representações associados ao atleta paralímpico da seguinte forma:

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Tabela 1. Categorização Conteúdo Terminologia

1. Termos esportivos 2. Termos genéricos 3. Termos do modelo social 4. Termos do modelo médico 5. Termos vitimizadores

Slogans

1. Superação/Inspiração 2. Inclusivo 3. Vítima/Menos importante 4. Heroísmo 5. Médico 6. Esportivo 7. Comparados a atletas sem deficiência ou olímpicos

QUEM É O PARA-ATLETA NAS PÁGINAS DO JORNAL? Muito freqüentemente os meios de comunicação “constroem” e enquadram as pessoas com deficiência em suas histórias e imagens, retratando-as como diferentes ou como pessoas que não se enquadram na sociedade. Sendo assim alguns autores (HALLER, 2000) veem as representações midiáticas não como disseminações de informações, mas sim como um enquadramento e um reforço de uma visão específica sobre as pessoas como deficiência. Dessa forma as atitudes acerca destes indivíduos a partir das representações midiáticas podem se desenvolver em um misto de piedade e inspiração pelo enfrentamento (ibidem). Segundo Kama (2004) o estereótipo do coitadinho complementa o processo de objetificação da pessoa com deficiência, em que estes indivíduos se tornam a personificação de suas deficiências. Por outro lado, os atletas com deficiência, segundo diversoso estudos (SHEEL e DUNCAN, 1999; SCHANTZ e GILBERT, 2001; THOMAS e SMITH, 2003), também são retratados como super-heróis e pessoas com habilidades extraordinárias para lidar e superar seus obstáculos. Essa imagem de super-heroísmo é problemática, uma vez que leva-nos à suposição de que todas as pessoas com deficiência devem esforçar-se heroicamente para superar suas limitações a fim de ajustar-se (SCHELL e DUNCAN, 1999). Os dados de nosso estudo, no entanto, revelam a possibilidade de um novo caminho na cobertura midiática dos Jogos Paralímpicos (TAB. 02). Ao analisarmos a terminologia utilizada para se referir aos atletas percebemos que a maioria cinge-se a termos esportivos, como atleta, jogador, competidor, para-atleta, etc. e termos genéricos, que apontam o nome e nacionalidade do indivíduo. Tais resultados reforçam resultados de estudos nossos anteriores (HILGEMBERG e NOVAIS, 2012) que apontavam para uma progressiva “melhora” no uso de termos associados aos atletas, com um aumento gradativo na utilização de termos genéricos e a queda de termos considerados inadequados.

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Tabela 02. Terminologias associadas aos atletas

Terminologia

Frequência

Porcentagem

1. Termos esportivos

61

23,55%

2. Termos genéricos

178

68,72%

3. Termos do modelo social

9

3,47%

4. Termos do modelo médico

10

3,86%

5. Termos vitimizadores

1

0,38%

A linguagem desempenha um importante papel na retirada da deficiência como uma experiência humana mundana. E como sabemos a linguagem também não é um sistema referencial transparente; ela não refere-se direta e objetivamente aos objetos do mundo. Na verdade, ela é um elemento importante na constiruição de nossas percepções (HALL, 1997). Assim, a abordagem e a terminologia utilizada pelos meios de comunicação de massa refletem na interpretação da sociedade sobre os principais temas de interesse coletivo. Se a informação não é cuidada, acaba reforçando estigmas e posturas preconceituosas transmitidas culturalmente, que podem significar, no mínimo, um empecilho à evolução e ao desenvolvimento social. Amaral (1994, p.7), afirma que A abordagem e a terminologia utilizada pelos meios de comunicação de massa [...] refletem na interpretação da sociedade sobre os principais temas de interesse coletivo. Se a informação não é cuidada, acaba reforçando estigmas e posturas preconceituosas transmitidas culturalmente, que podem significar, no mínimo, um empecilho à evolução e ao desenvolvimento social.

A maior presença de termos genéricos pode ser revelador da exigência jornalística da neutralidade ou, em alternativa, pode indiciar a existência de uma conscientização por parte de jornais e jornalistas de que a terminologia utilizada, relativamente às pessoas com deficiência, pode refletir e influenciar as atitudes em torno das mesmas, criando e/ou perpetuando estereótipos. Da mesma forma, sabemos que as categorias que utilizamos para entender e classificar o mundo são rotuladas através da linguagem e delimitadas pelos estereótipos. A fim de avaliar os estereótipos associados aos atletas paralímpicos, para além das terminologias analisamos slogans encontrados nas notícias referentes a esses indivíduos (TAB. 03). Tabela 03. Slogans associados aos atletas paralímpicos

Slogans

Frequência

Porcentagem

1. Superação/Inspiração

2

4,87%

2. Inclusivo

4

9,75%

3. Vítima/Menos importante

3

7,31%

4. Heroísmo

5

12,19%

5. Médico

15

36,58%

6. Esportivo

8

19,51%

7. Comparados a atletas sem deficiência ou olímpicos

4

9,75%

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Nossos dados salientam a importância do modelo médico para a explicação da deficiência. Nesse modelo a deficiência é vista como um problema que precisa ser tratado. Através deste modelo busca-se que as pessoas com deficiência sejam, ou voltem a ser, funcionais para que assim possam ser integradas à sociedade (KAMA, 2004). Este modelo trabalha a partir de uma perspectiva biológica e vê as limitações individuais como a principal causa das múltiplas dificuldades experenciadas pelas pessoas com deficiência (BARNES et al, 1999). Também adota as definições e percepções nas quais a deficiência é tida como uma incapacidade de um indivíduo e que resulta na perda ou limitação de uma função (THOMAS e SMITH, 2009). Portanto as explicações médicas para a deficência dos atletas ainda está muito presente na cobertura dos Jogos Paralímpicos, mostrando ser ainda difícil desvincular as explicações medicalizadas da deficiência do esporte paralímpico. Outro dado que deve ser ressaltado é a grande porcentagem de slogans esportivos, como por exemplo “com grandes chances de garantir ouro”, “ um dos maiores medalhistas do país”, “recordista mundial”, demonstrando paralelismo entre a cobertura esportiva olímpica e paralímpica. É, também, de se destacar a presença de slogans que remetem ao heroísmo do atleta. Aqui percebemos a maior diferença entre os trabalhos já realizados por nós no âmbito do esporte paralímpico. Em geral, a cobertura esportiva tendia a associar aos atletas com deficiência slogans de super-heroísmo que desencadeiam duas ideias: primeiro, a deficiência não é socialmente construída, mas é equivalente a uma limitação que pode e deve ser superada pela dedicação dos indivíduos; e, segundo, por padrão, todas as pessoas com deficiência que não atingem esse tipo de performance são consideradas preguiçosas e sem auto-disciplina. No entanto observamos exatamente o oposto. Nossos dados nos mostram a tendência para a apresentação de características de heroísmo semelhantes às de atletas sem deficiência. Temos atletas que são “candidatos à herói”, “astro”, “superstar”; diferente do discurso do atleta que supera a própria deficiência para competir nos Jogos.

REFLEXÕES FINAIS Nos últimos dez anos houve um aumento no número de pesquisas, e pesquisadores, que enfocam a questão da deficiência. Este número, no entanto, é considerável apenas nos Estados Unidos e Europa, ficando o Brasil muito aquém nesse ramo de pesquisa. Ainda levará algum tempo para que a deficiência transforme-se em uma categoria de análise cultural, histórica, humana, etc., com a mesma importância, ou status, de gênero e raça. Contudo, é inegável que houve uma evolução no tratamento dado ao tema; na década de 70 dava-se ênfase à questão da cura e a campanhas de caridade; na ficção, a pessoa com deficiência era usada para dar maior dramaticidade ao enredo. O primeiro programa periódico que tratava da deficiência surgiu em 1975 na Inglaterra. Nos anos 80, o filme Amargo Regresso, com Jon Voight e Jane Fonda, foi um marco na abordagem da questão da deficiência pelos meios de comunicação, mostrando a pessoa com deficiência como um ser tão humano como qualquer outro personagem (MERKX, 2007). Depois disso, a pessoa com deficiência passou a ser apresentada como “super-herói”, ou seja, recebeu um novo estereótipo.

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Com este estudo percebemos mudanças na cobertura esportiva paralímpica, com maior utilização de termos esportivos e genéricos, que vai de encontro a muitas investigações que sugerem que os atletas com deficiência são representados de forma negativa pelos meios de comunicação em geral – impresso, rádio, televisão –, através do uso de terminologia inadequada, e de estereótipos que enfatizam a deficiência e não o atleta. Ao retornarmos ao nosso objetivo principal neste artigo, ou seja, analisar a representação do alteta paralímpico pelo jornal Folha de S. Paulo dutante os Jogos Paralímpicos de 2012, chegamos à conclusão de que os valores e características esportivas desempenham um papel fundamental nessa cobertura. No entanto a presença ainda forte do modelo médico, em slogans e terminologias, bem como a comparação ainda presente entre atletas paralímpicos e olímpicos, como uma forma de legitimação dos primeiros nos remetem a uma representação ambígua que de um lado constrói uma imagem esportiva do atleta, mas de outro reforça os estereótipos da deficiência.

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O Salão Arte Pará no Jornal Liberal: imprensa e mercado na agenda cultural da região Norte (marketing de difusão) The Salão Arte Pará in the newspaper: press and marketing on the cultural agenda on the north region (marketing of diffusion) To k y P o p y t e k C o e l h o 1

Resumo: Belém do Pará possui um repertório cultural que domina sua agenda desde o período denominado Belle Époque Amazônica e, igualmente, a imprensa se fez presente. As Organizações Romulo Maiorana (ORM), um monopólio de rádio difusão, juntamente com o Salão Arte Pará, evento de arte que ocorre há mais de 30 anos em Belém, pode ser um exemplo disso. Assim, seu processo de consolidação, dentre outros fatores, ocorreu através de políticas de interesses comerciais através da imprensa baseados na publicidade visando à projeção das ORM, no mercado paraense. Para compreender esse processo, foram analisados documentos de periódicos das edições do jornal O Liberal e alguns catálogos do Salão. Também bibliografias referentes a imprensa e publicidade, marketing cultural e conteúdos historiográficos sobre história cultural e artística de Belém. Com esta análise desenvolveu-se um trabalho crítico sobre os interesses implícitos da criação do Salão Arte Pará na região Norte, compreendendo que os discursos de responsabilidade social veiculados no jornal podem estar relacionados à estratégias de projeção de empresas no mercado consumidor paraense.

Palavras-Chave: Salão. jornal. Marketing cultural. Mercado. Abstract: Belém do Pará has a cultural repertoire that dominates its agenda since the period called Belle Époque Amazon and also the press was present. The Organizations Romulo Maiorana (ORM), a broadcast radio diffusion monopoly, together the Salão Art Pará, art event that occurs for more than 30 years in Belém city, can be an example. Thus, the process of consolidation of the Salão, among other factors, occurred through commercial interests policies through the press based on publicity seeking to projecting the ORM, in the Pará State market. To understand this process, newspaper editions of the journal O Liberal and documents of catalogs of the Salão Art Pará were reviewed. Also bibliographies related to press and publicity, cultural marketing and historiographical content on cultural and artistic history of Belém city. This analysis has developed one critical work on the implicit interests of the creation of the Salão Art Pará in the North, including the social responsibility of speeches conveyed in the paper may be related to companies projection strategies in the consumer market in Pará State.

Palabras clave: Salão. Newspaper. Cultural marketing. Market. 1.  Mestrando em Artes Visuais, na linha História e Teoria da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Email: [email protected].

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SINALIZAÇÕES INICIAIS: BELÉM A CAPITAL AMAZÔNICA DAS ARTES VISUAIS A ATUALIDADE, a capital Belém dispõe de uma variedade de eventos artísti-

N

cos e culturais, os quais constroem a agenda cultural e o circuito das artes da região. São eventos itinerantes e permanentes que ocorrem nos interiores dos importantes espaços culturais da cidade e são responsáveis pelo trânsito de diferentes perfis de espectadores. Dentre os eventos, são importes citar: Mostra de Arte Meus primeiros Passos, promovido há mais de vinte anos pelo Centro Cultural Brasil - Estados Unidos na Galeria Edgard Contente com o objetivo de oportunizar a participação de artistas iniciantes em um evento de arte; o Salão de Pequenos Formatos que pertence a Universidade da Amazônia e que ocorre há quase 20 anos na galeria Graça Landeira propondo um formato de exposição diferenciado, já que para a submissão de trabalhos o requisito sugere um tamanho das obras de no máximo 40x40 cm; o Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia criado pelo jornal Diário do Pará, o mais novo evento, vem com o objetivo de privilegiar a fotografia contemporânea paraense e; o Salão Arte Pará que é promovido pelo Jornal Liberal há mais de 30 anos e que tem por finalidade privilegiar a produção artística paraense nas mais diferentes categorias artísticas, o qual analisaremos mais adiante. Portanto, diante desse cenário, vale buscar compreender como esta capital adquiriu um potencial artístico e que se consolidou garantindo a manutenção de sua agenda cultural até os dias de hoje. A cidade de Belém, capital do Estado do Pará, Norte do Brasil, foi fundada em 12 de janeiro de 1616 por Francisco Caldeira de Castello Branco (HURLEY, 1940, p. 20). Sua população é de aproximadamente 1.425.000 habitantes, chegando a dois milhões se somada à sua região metropolitana, segundo dados recentes (IBGE 2013). Esta cidade já representava sua importância para a região amazônica desde sua fundação, quando era disputada por europeus (holandeses e franceses) devido a sua localização estratégica. Destaque especial, para o período que compreendeu a Belle Époque amazônica, quando as províncias do Grão-Pará – como era chamada na época – e Amazonas, isoladas das principais regiões do país e do mundo por falta de estímulos do império, alcançam grande projeção no mercado por meio da produção da borracha, constituindo uma aproximação com a indústria mundial (DAOU, 2000, p. 12). Assim, o impacto que a produção da borracha causou nessas províncias, em especial Belém, promoveu um desenvolvimento estrutural e de capital que modificaram todo seu aspecto arquitetônico e artístico-cultual. A cidade se transformou em uma metrópole, onde os ideais políticos buscaram modernizá-la nas questões urbanísticas e arquitetônicas (DAOU, 2000, p. 31). Nas questões culturais, em específico, Belém destacou-se grandemente por sua aproximação com metrópoles europeias construídas pelas elites, pois experimentava momentos de poderio econômico capaz de subsidiar diferentes espaços e eventos como cafés, teatros e a participação de gente de várias partes do mundo. Esta aproximação era visível já desde o nome das lojas, dos hotéis e cafés: Paris N’América, Bom Marché, Hotel América, Café Madrid, Café Chic (CORREA, 2010, p. 296). Mais que isso, “os teatros apresentavam grandes companhias vindas de Portugal, da França e do Rio de janeiro, para espetáculos de variedades e de operetas, revistas, magicas e dramas” (CRUZ, 1973, p. 424).

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No caso das artes plásticas, os ideais políticos buscaram dar atenção especial. Podemos ver isto na própria imagem que o intendente na época, Antonio Lemos, buscou promover de si mesmo custeando eventos artísticos. Sua reputação era carregada por figuras importantes da poesia, da literatura e, em especial, da pintura (CORREA, 2010, p. 302). Sobre esta última, muitos renomados artistas oriundos da Europa apresentaram suas obras em Belém, como por exemplo, Domenico De Angelis (1852-1904), o qual que expos pinturas de paisagens de sua terra. Sobre esse contexto, para Ângela Tereza de Oliveira Correa (2010, p. 303), a passada de artistas de diferentes nacionalidades em Belém representava principalmente o interesse das elites pelas características estéticas europeias. Por outro lado, mesmo entre crises financeiras provocadas pelo declínio da borracha, alguns eventos artísticos continuavam ocorrendo como, por exemplo, a exposição Ismael Nery, no Palace Teatro, em 1929 , dentre outras atividades (MOURA, 2012, p. 1964). Mais adiante, em 1970, ocorreu a Pré-Bienal, que tinha por objetivo a seleção de artistas com potencial para representar a arte brasileira na XI Bienal Internacional de São Paulo. Foram selecionados trinta artistas que, dentre eles, Valdir Sarubbi (1930-2000), artista paraense fazia parte, repercutindo positivamente no cenário artístico da região (MOURA, 2012, p. 1968). Assim, são nesses aspectos que podemos compreender que historicamente a capital Belém desenvolveu um potencial para as artes visuais e que isso foi resultante de momentos chave como, por exemplo, a Belle Époque amazônica, e que disseminou atividades culturais e artísticas na região até o tempo atual.

PANORAMA ATUAL DA IMPRENSA PARAENSE: JORNAL LIBERAL E DIÁRIO DO PARÁ (MONOPÓLIO E DISPUTA) O Salão Arte Pará é um evento de Arte Contemporânea anual que ocorre em Belém do Pará desde 1982, e vem de ano em ano buscando consolidar-se como um evento importante de arte que privilegia as produções artísticas da região Norte e de outros estados do país. Com efeito, este evento tem adquirido visibilidade aos olhos de muitos artistas da região e de outras do país, que desejam expor as suas produções em um salão de arte. Portanto, este evento compreende a apresentação de expressões artísticas nas mais variadas formas, suportes, técnicas e conceitos, bem como a participação de artistas que, de certa forma, a partir dele, alcançaram respeito e credibilidade no cenário artístico regional e nacional. Juntamente a este repertório participam, como personagens indispensáveis, a curadoria e suas ações transformadoras que promoveram uma aproximação do evento a aspectos fundamentais que um salão de arte necessitaria para alcançar sua hegemonia no cenário das artes da região e do país. Todavia, pensar o Salão Arte Pará apenas como um evento importante para a região Norte e sua agenda cultural e artística seria prender-se em um viés reducionista e perder de vista conteúdos implícitos que motivaram sua proposição. É preciso compreender que este Salão nasceu a partir da imprensa, o jornal Liberal e, por meio dela, a possibilidade de legitimar-se no cenário artístico e atrair credibilidade e respeito do público, tanto ao jornal como às empresas ligadas ao evento. Portanto, no que se refere a imprensa paraense, sua participação no acontecimentos da região nas questões de opinião pública e política sempre exerceu influência.

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Entre os séc. XVIII e início do séc. XIX mais de trezentos jornais e folhetins eram veiculados na capital Belém, bem como nas demais regiões do Estado do Grão Pará (como era chamado no período) e do Maranhão. Esta circulação de informativos ocorreu , segundo Tiago Almeida Barros (2009, p.1), por conta das “mudanças políticas e sociais que fundamentaram o marco da contemporaneidade no Estado: o debate das ideias iluministas de liberdade contra o despotismo desenfreado da metrópole”. Deste modo, a impressa paraense nesse contexto segue como ferramenta política, instigando a sociedade à reflexão sobre a questões pertinentes a independência do império, pois a região ainda encontrara-se vinculada à Lisboa e não com à Corte do Rio de janeiro, como ocorria com as outras regiões. Nesse enredo, a imprensa teve presente e a Revolução Cabana pode ser um exemplo disso, pois nela o jornal O Paraense, idealizado por Felipe Patroni, nesse momento surge como afronta ao poder político vigente (BARROS, 2009, p. 2-3). Atualmente no Estado do Pará existem vários jornais impressos em circulação disputando o leitorado, os três principais, a nosso ver, são: Diário do Pará, Liberal e Amazônia – estes dois últimos pertencem ao mesmo dono. Destaque para os jornais Liberal e Diário do Pará, pois existe uma disputa acirrada pelo leitor paraense e que nos oportunizam visualizar o enredo da atual impressa da região e onde entra nesse cenário o Salão Arte Pará. Jornal Liberal surge com sua primeira edição, segundo Castro e Seixas (2014), em 1946 por Moura Carvalho e, por conseguinte, compreende ao diário impresso mais antigo do Estado do Pará, com mais de 60 anos de existência (SEIXAS; CASTRO, 2014, p. 103). De princípio seu objetivo era para servir de ferramenta de propaganda do Partido Social Democrático (CASTO e SEIXAS, 2013, p. 2). Entretanto, em 1966, o jornal é vendido para o colunista e comerciante Romulo Maiorana, que na época era dono da Delta Publicidade, o qual assume a direção até 1986, quando falece, passando a direção para seu filho Romulo Maiorana Junior. Durante mais de três décadas o jornal Liberal manteve em primeiro lugar a preferencia do leitorado paraense, nas quais duas delas com Romulo Maiorana na direção (CASTRO e SEIXAS, 2013, p. 8). Isto é quebrado após o crescimento na disputa pelo leitor com o jornal Diário do Pará. Atualmente, o jornal Liberal foi incorporado às Organizações Romulo Maiorana (ORM), que compreende a um conglomerado de rádios AM e FM (Liberal FM, LIBMusic FM e O Liberal CBN AM), televisão aberta (TV Liberal, filiada a Rede Globo), bem como dispõe de uma operadora de televisão fechada denominada ORM Cabo e um portal de notícias na internet ( CASTRO; SEIXAS, 2014, p. 103). No que se refere ao jornal Diário do Pará, este foi criando em 1982, por Jáder Barbalho, afiliado ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB-PA). O jornal foi fundado com objetivos semelhantes ao do jornal Liberal, o de promover Barbalho, no seu início de carreira política. Com os anos e a disputa pelo leitor o Diário consegue romper a liderança absoluta que o jornal Liberal tinha e se torna seu principal adversário. Ainda visando quebrar esse monopólio, o jornal Diário do Pará é fundido ao Grupo Rede Brasil Amazônia (RBA), o qual dispõe de uma teve aberta, a TVRBA (a filiada a Rede Bandeirante), e emissoras de rádio AM e FM (Diário FM) e um portal de notícias na internet, Diário online (CASTRO e SEIXAS, 2014, p. 103-104).

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Nesse contexto entra o Salão Arte Pará, porque compreendemos que sua criação não surge exatamente para privilegiar a arte local e projetá-la na agenda cultural e artística da região como vem explicitado no discurso de abertura de sua primeira edição pronunciado pelo seu fundador Romulo Maiorana (LIBERAL, 1982, p. 13). Por meio desse evento as ORM visa assegurar sua influência nos acontecimentos da região, tanto políticos e/ou cultural. No caso do Salão Arte Pará, tendo um evento com força para influenciar o que deve acontecer na agenda cultural da região poderia ser suficiente para servir de ferramenta de legitimação desta empresa e de outras ligadas a ela. Isto se torna evidente quando observamos o comportamento das duas empresas de comunicação elencadas aqui quando ocorre o Salão Arte Pará. Ou seja, a ORM usa todos os seus recursos midiáticos para difundir para o público informações sobre o Salão Arte Pará, enquanto que a RBA não difunde informação alguma sobre ele em nenhum dos seus veículos de comunicação. Ainda nesse sentido, num caráter de disputa e visando diminuir a influência que a ORM tem sobre a agenda cultural por meio do Salão, a RBA resolve criar em 2010 um evento de arte semelhante a ele, o Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia, o qual é vinculado ao jornal Diário do Pará, assim como o Salão Arte Pará é vinculado ao Jornal Liberal. O que difere um do outro é somente a proposição, o Arte Pará, que articula todas as categorias artísticas com um discurso de privilegiar a arte da região, o Prêmio Diário privilegia a fotografia contemporânea paraense. Este evento, assim como o Arte Pará, é difundido por todos os meios de comunicação que a RBA dispõe para alcançar todo tipo de público.

PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO ATRAVÉS DO JORNAL LIBERAL: MARKETING DE DIFUSÃO Como vimos anteriormente, as Organizações Romulo Maiorana é uma empresa que atua na área da comunicação e do jornalismo, dentre as empresas do grupo temos jornal Liberal. O Salão Arte Pará está atrelado a este jornal que, por conseguinte, tem uma fundação cultural que atua nas atividades artísticas de Belém, a Fundação Romulo Maiorana (FRM). Levando o nome do seu criador, a instituição, sem fins lucrativos, foi fundada em 1981 com o objetivo de trabalhar na área cultural da região e em âmbito nacional, como no caso, o Arte Pará. Suas realizações englobam curadoria, editoração, reuniões e encontros, oficinas, cursos, exposições individuais e coletivas, dando suporte à produção artística e ascensão de novos talentos. Assim, ao longo de sua história, no campo das artes visuais desenvolveu vários eventos expositivos como: “Programa do Índio” (2001), “Programa do Índio-UPS” (2001), “Expia Marajó” (2002) e “Margens” (2003), dentre outros. Por outro lado, não somente as ORM e sua Fundação estão relacionadas ao Salão Arte Pará, mas diferentes empresas atuantes na região Norte e que participam das atividades do evento como patrocinadoras. Durante seus mais de trinta anos de existência foram atreladas ao Salão Arte Pará importantes empresas da região Norte. Se analisarmos o primeiro catálogo do evento, de 1982 e sua primeira reportagem no jornal não é possível identificar a presença de empresas relacionadas. Nos catálogos, por exemplo, encontraremos indícios de associação de marcas somente a partir da edição de 1985,

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quando aparece a logomarca da empresa de cigarros Souza Cruz (CATÁLOGO, 1985, p. 1). Dai em diante, são muitas as marcas associadas, as mais atuantes são: a CERPA (empresa de cerveja), a Companhia Vale do Rio Doce (atual mineradora Vale), a UnimedBelém (Plano de Saúde), a Estacon Engenharia, os Supermercados Nazaré, a O Boticário, a Construtora Leal Moreira, a Marko Engenharia e a NBT – Norte Brasil Telecon (Hoje a empresa de telefonia celular Vivo). Observando o tempo de atuação dessas empresas como patrocinadoras, num levantamento geral, encontramos algumas que ganham destaque pela quantidade de edições em que colaboram. A Companhia Vale do Rio Doce, que iniciou sua parceria desde 1987 e se mantendo presente até os dias de hoje, é a mais antiga empresa parceira. Destaque também para a rede de supermercados Nazaré que desde 1998 patrocina o Salão e permanece até hoje, bem como a cooperativa de saúde Unimed-Belém que, no total, participa desde 1998, permanecendo como parceira até hoje. Diante desse contexto, o que estimularia a participação de uma empresa de grande ou médio porte associar suas marcas a um salão de arte regional? Pode um evento cultural tornar-se uma ferramenta de estímulo do interesse de um público pelos produtos de empresas ligadas a ele? Se sim, como seriam estas estratégias para atrair para si valores de mercado? São questões que encontramos algumas respostas quando buscamos compreender a criação da Fundação Romulo Maiorana, bem como do Salão Arte Pará gerenciado por ela e as empresas ligadas. Isto pode estar relacionada ao discurso da responsabilidade social e do marketing cultural. Na atualidade, a atuação de empresas em projetos socioculturais vem acontecendo de forma expressiva, uma área que era até então de responsabilidade dos governos. As ações governamentais no que tange ao incentivo à cultura atualmente tem-se transferido essas responsabilidades para a iniciativa privada, isto se dá por meio das Leis de Incentivo à Cultura, as quais permitem com que empresas utilizem recursos que seriam destinados a pagamentos de impostos para projetos culturais. Desta forma, direcionando parte dessas responsabilidades fiscais para projetos culturais as empresas podem utilizar esses recursos em projetos que aproximam ela do cotidiano do púbico. Segundo Marcos Berreto Correa (2004, p.49-50), estas leis representam convites das instâncias governamentais às empresas para que possam ter uma função atuante no desenvolvimento do cenário mundial. As leis de incentivo trouxeram maior interação entre governo, iniciativa privada e instituições e agentes culturais, num processo que levou a uma grande evolução das relações dessas forças na realização de intervenções na área cultural (CORREA, 2004, p. 50).

Assim, esta aproximação entre governos e instituições privadas é importante, se levarmos em consideração as constantes diminuições de verbas do governo a cada ano para os setores de incentivo a cultura. De acordo com Correa (2004, p. 50-51), as leis de incentivo à cultura surgem de fato como “uma alternativa a essa falta de recursos e trazem a oportunidade de criação de uma política cultural coletiva, levada a cabo pelo governo, tendo como aliados estratégicos a iniciativa privada e os profissionais do meio cultural”. De princípio, as empresas sofreram embates no que concerne relacionar sua imagem a projetos sociais e, desse modo, não conseguiam uma comunhão com tudo, porém, segundo Correa (2004, p. 56), elas perceberam que apoiando projetos culturais poderia

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acarretar em resultados mais transformadores para a própria empresa, já que nesse enredo, “chama atenção para os aspectos fiscais, tributários e econômicos das potenciais parcerias entre iniciativa privada, artistas e produtores culturais, tendo o Estado como intermediário”. Isto representa para as empresas um importante papel nas instâncias econômicas da sociedade, pois podem utilizar recursos do seu próprio gerenciamento e que seria destinado a impostos, potencializando ainda mais suas ações nesse campo e, dependendo do projeto, a empresa pode contar com um valor de acordo com a lei a qual ele esteja relacionado, como por exemplo, valores destinados ao pagamento de imposto do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Nessas perspectivas, as ORM percebe o Salão Arte Pará como uma ferramenta com potencial não somente para atrair valores sociais a si mesma, mas também para alavancar valores de responsabilidade social a qualquer empresa que participar de suas atividades. Assim, no que se refere às estratégias adotadas pelo jornal Liberal para difundir para os leitores conteúdos sobre o Salão Arte Pará para aproximá-los das empresas podemos identificar duas maneiras: a primeira seria os recursos linguísticos nas reportagens para atrair opiniões positivas sobre o próprio evento e, a segunda, informes sobre a atuação das empresas nas atividades do Salão, como veremos a seguir. No que diz respeito a utilização dos recurso linguísticos, já podemos identificálos desde o noticiário da primeira edição do evento. Num primeiro olhar, quando analisamos esta reportagem, publicada pelo jornal Liberal em 30 de outubro de 1982, vemos reportar os detalhes do vernissage do evento. Entretanto, quando buscamos analisar oque está intrínseco na mensagem encontramos significados relacionados aos interesses de mercado, pois a reportagem apresenta na sua configuração uma fotografia mostrando pessoas contemplando a exposição e segue com uma legenda que possui um recurso linguístico muito utilizado nas revistas e jornais para atrair a atenção do leitor: No Salão Arte-Pará 82, o melhor (Figura 1). Desse modo, a mensagem é bastante clara: quem prestigiar este Salão terá a oportunidade de vislumbrar o melhor da arte paraense em um único local.

Figura 1. A primeira edição aberta ao público. Fonte: jornal Liberal, outubro de 1982.

Este mesmo recurso linguístico utilizado na primeira edição do evento acontece em diferentes edições. Em 2009, por exemplo, identificamos a seguinte reportagem do jornal Liberal: Arte Pará trás cultura para o leitor (Figura 2). A página do jornal admite

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uma grande fotografia que, no seu conteúdo apresenta algumas pessoas lendo um material, e ao lado apresenta o texto da reportagem. O título da reportagem busca construir a imagem de um evento como aquele que aproxima o leitor dos acontecimentos culturais da região. A reportagem não aparenta ter um propósito comercial, até porque não menciona empresas ou vende algum produto, mas visa a convencimento do leitor do sobre questões do impacto do Salão na vida social.

Figura 2. Reportagem do evento. Fonte; O Liberal, novembro de 2009, p29.

Esta prática é bastante empregada na técnica de propaganda e da publicidade ao se basear em apropriações linguísticas acompanhadas de imagens para capturar a percepção do receptor. Nesse sentido, se fossemos analisar essas combinações enquanto comunicação podemos visualizar o quanto difere a comunicação verbal da visual, porém, se trabalhadas juntas, constituem também em uma bastante empregada para reforçar uma mensagem persuasiva, como é caso das duas matérias jornalísticas analisadas até aqui. De acordo com Toben Vestergaard e Kin Schroder (2000, p. 31), quando ponderamos sobre esses dois recursos juntos no contexto dos veículos de comunicação impressos, como o que analisamos aqui, ocorre o que denominam de ancoragem, ou seja, um elo que liga a imagem e o texto, a legenda. Partindo desse princípio, se fossemos buscar apenas contemplar uma imagem sem um texto acompanhando-a poderíamos extrair múltiplos significados que ela pode emanar, já que, no contexto da comunicação, são muito mais ambíguas do que textos. Porém, no contexto da publicidade, segundo Vestergaard e Schroder (2000, p. 31), a imagem nunca é neutra, ou seja, nunca fica a disposição de interpretação de diferentes significados pelo receptor, mas sim de um significado selecionado, isto é, a sedução do olhar para uma única interpretação dentre várias que ela carrega. Segundo os autores, este recurso é bastante visível nas mensagens publicitárias dos outdoors, revistas e jornais, os quais buscam não somente direcionar o olhar do espectador para um singelo enunciado, mas, entre fotos e legendas, propor imagens indiciais, as quais indicam relação direta com interesses particulares, ou seja, que favoreçam conotações favoráveis a temática apresentada (VESTERGAARD; SCHRODER, 2000, p. 35).

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Já no que se refere às reportagens sobre a atuação das empresas no Salão existem várias matérias que expõem conteúdos ao leitor de modo bastante evidente exaltando as empresas patrocinadoras. Identificamos, por exemplo, a matéria publicada em 9 de setembro de 2004, com o seguinte título: Vale patrocina Arte Pará (Figura 3). A matéria expõe uma fotografia mostrando o momento em que a tanto a diretoria da Fundação Romulo Maiorana e a empresa Vale assinam o contrato de parceria estabelecido para a edição do evento daquele ano, bem como na matéria contém informes pontuando a importância da parceria e o quanto a empresa Vale vem atuando nos projetos sociais e culturais da região.

Figura 3. Matéria divulgando empresas. Fonte; Liberal, novembro de 2004, p. 1

As relações entre as Organizações Fundação Romulo Maiorana e as empresas patrocinadoras do Salão Arte Pará se constitui, a nosso ver, uma espécie de troca de favores, onde a ORM ajuda as empresas a terem visibilidade no mercado a partir do evento e, em troca, as empresas dão apoio logístico e financeiro ao Salão. Isto é bem visível quando analisamos no jornal, a reportagem feita pelo jornal Liberal em 18 de setembro de 2004 mostra, por exemplo, claramente como funcionam os métodos utilizados para divulgar assuntos dos negócios das empresas patrocinadoras. A matéria intitulada “Nazaré valoriza a arte” (Figura 4), informa ao leitor que a rede de supermercados Nazaré fechou novamente um contrato de patrocínio ao Salão Arte Pará com a FRM, bem como os motivos pelos quais levaram a continuidade desse apoio. No entanto, no final da matéria esse discurso é deixado de lado e, oportunamente se apresenta assuntos sobre os negócios da empresa: Após a assinatura do convênio, Alberto Correa, diretor da empresa, apresentou à diretoria executiva da Fundação Romulo Maiorana os novos projetos da rede de supermercados, como o Magazine Nazaré, que deverá ser inaugurado em novembro [...], oferecendo a seus clientes um mix de lojas que vai de confecções a materiais de acabamento para a construção civis distribuídos em cerca de dez departamentos (LIBERAL, 2004, p.1).

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Portanto, a nota chama atenção do leitor para um novo empreendimento dos Supermercados Nazaré a ser instalado em um determinado ponto da cidade de Belém e, os benefícios deste, para a população consumidora. Também, em 2012, temos a reportagem intitulada “Fibra é o novo parceiro do Salão Arte Pará” (CARVALHO apud LIBERAL, 2012, p.3). A matéria segue com o mesmo discurso da reportagem analisada anteriormente, tendo como nota informações para o leitor sobre a Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), um resumo sobre sua reputação no mercado, suas instalações e os cursos oferecidos à população. Esta categoria de reportagens sempre terão notas de cunho comercial, favorecendo a empresa parceira.

Figura 4. Matéria divulgando empresas. Fonte; Liberal, setembro de 2004, p. 1

Nessas relações, a própria empresa Vale, na edição do jornal Liberal de 2002, declara que, ao apoiar o evento consegue credibilidade, “[...] a empresa conquista, com o patrocínio do Arte Pará, um grande retorno em imagem” (LIBERAL, 2002, p.1). Ainda na mesma nota, a empresa reitera que havia feito uma pesquisa que entrevistava a população paraense para saber quais projetos culturais apoiados por ela mais tinham a ver com sua imagem, segundo a empresa Vale, o Salão Arte Pará estava em primeiro lugar na opinião do público. Por outro lado, não somente é explorada a imagem dessas empresas no jornal, mas também suas marcas são expostas nos cartazes publicados também no jornal Liberal como forma de convite ao leitor para participar do evento, como mostra a figura 5. Estes cartazes apresentam uma configuração bastante ilustrada e contem informativos sobre datas e locais a serem visitados, bem como na parte inferior da página é reservado para o incremento das logomarcas de cada empresa atuante na edição do evento.

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Figura 5. Cartazes e anúncios. Fonte; Liberal, 2004; 2011.

São matérias como estas analisadas aqui que são publicadas repetidamente durante cada edição do Salão Arte Pará. Sobre táticas publicitárias como essas utilizadas pela ORM, que se baseiam em publicar repetidamente matérias jornalísticas com temas relacionando o Salão a imagens de responsabilidade social das empresas, podem estar relacionadas ao interesse de legitimar essas empresas no mercado da região. No contexto da publicidade, matérias que expõem em demasiado um discurso que enaltece um determinado objeto, segundo Nelly de Carvalho (2004, p. 12) visa tornar esse objeto familiar, de modo que, expondo em excessivo o mesmo discurso, aumenta sua banalidade, mas ao mesmo tempo permite que sejam assimilados pelo senso comum. No caso do Salão Arte Pará, divulgado no contexto do jornal impresso, existe uma consciência por parte da ORM sobre a importância de se utilizar esse meio para difundir conteúdos sobre ele e que pode estar ligado à questão de, tanto o jornal como a revista se basearem na escrita, ambos ocupam lugar de destaque, pois, segundo Nelly Carvalho (2014, p. 15) “exerce a função de direcionar o sentido da imagem”. Também, não somente por isso, mas também no que diz respeito ao público que ler o jornal é mais diverso, compreende a várias faixas etárias, bem como são de diferentes classes sociais e econômicas. Ao contrário das revistas, por exemplo, que é direcionada a um público específico.

SINALIZAÇÕES FINAIS Belém como vimos neste artigo é uma cidade que teve no seu repertório produções artísticas e, na atualidade, continua tendo eventos importantes no contexto das artes visuais. Vimos também que existem dois importantes jornais que disputam o leitorado paraense, os quais buscam diferentes possibilidades se se legitimar neste cenário, quer seja pela política, mercado e/ou agenda cultural da região. Nesse contexto de possibilidades que a capital oferece, nasce o Salão Arte Pará. Um produto da imprensa que parte

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O Salão Arte Pará no Jornal Liberal: imprensa e mercado na agenda cultural da região Norte (marketing de difusão) Toky Popytek Coelho

para a agenda cultural e artística da cidade de Belém, visando nesse contexto, legitimar não somente como influenciador de um tipo de evento de arte ofertado para o público, mas em meio às possibilidades que sua imagem pode impactar no empresariado local. Tudo o que discutimos aqui propõe refletir sobre verdadeiros interesses implícitos dentro de uma proposta de salão, em que o público por meio do jornal é informado e direcionado ao que se deve pensar sobre ele. Sob forma de publicidade, conteúdos de cunho comercial visam construir uma imagem positiva das empresas no que tange a responsabilidade social, bem como a própria legitimação do Salão e do jornal que o veicula, o jornal Liberal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, T. A. Manifestações da modernidade no Pará provinciano. A Imprensa como arma na disputa de poder na Cabanagem (1833-1839). In: 7º ENCONTRO NACIONAL DA REDE ALFREDO DE CARVALHO, 8, 2009, Fortaleza. Anais... Fortaleza: UNIFOR, 2009. p. 1-14. CARVALHO, Nelly de. Publicidade: a linguagem da sedução. 3ªed. São Paulo: Editora Ática, 2004. CASTRO, Avelina Oliveira de; SEIXAS, Netília Silva dos Anjos. História, discursos e relações de poder nas páginas de O Liberal. In: Encontro Nacional de História da Mídia, 2013, Minas Gerais. Anais do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, Ouro Preto, UFOP, 2013, p. 1-15. CRUZ, Lúcia Santa; MARTINELI, Fernanda. O engajamento social como estratégia de comunicação: consumo e responsabilidade no discurso empresarial. In: GRACIOSO, Francisco. Arenas da comunicação com o mercado: articulações entre consumo, entretenimento e cultura. São Paulo: Alameda, 2010, p. 253-271. DAOU, Ana Maria. A Belle Époque Amazônica. 3ªed.Rio de janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000. FUNDAÇÃO ROMULO MAIORANA. (Belém). 4ª Arte Pará –Belém: catálogo, 1985. 1 p. HURLEY, Jorge. Belém do Pará: sob o domínio Potuguez, 1616 a 1823. Belém: Livraria Clássica, 1940. LIBERAL, O. Salão Arte-Pará 82, o melhor. LIBERAL, Belém, 30 out. 1982. Artes, caderno 1, p.13. ______ . Vale do Rio Doce mantém apoio ao Arte Pará. LIBERAL, Belém, 2 set, 2002. Magazine, Cartaz, p.1. ______ . Nazaré valoriza a arte. LIBERAL, Belém, 18 set, 2004. Cartaz, Variedades, s/p. ______ . Fibra é o novo parceiro do Salão Arte Pará 2012. LIBERAL, Belém, 15 set, 2012. Atualidades, Opinião, p. 3. ______ . Arte Pará trás cultura para o leitor. LIBERAL, Belém, 15 nov, 2009. Magazine, p.29. ______ . Vale patrocina o Arte Pará. LIBERAL, Belém, 9 set, 2004. Cartaz, p.1. MOURA, Eliane Carvalho: Olhares para a Amazônia: A curadoria em Belém do Pará. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 2012, Rio de Janeiro. ANAIS DA ANPAP, Rio de janeiro: UERJ, 2012, p.1962-1969.

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A mulher no discurso da imprensa nacional e internacional: uma análise do gênero notícia como prática social e discursiva The women’s speech in the national and international press context: an analysis of the news genre as a social and discursive practice L a í s G o n ç a lv e s N a t a l i n o 1 Resumo: Quando olhamos para os textos da imprensa, notamos que as mulheres, em geral, são parte de um grupo que tem não tem voz e quando isso ocorre, a pequena quantidade de fala feminina noticiada é relatada através do seu papel social ou desvio de status (CALDAS-COULTHARD, 1997). O presente artigo tem como objetivo a análise de quatro notícias, retiradas de dois jornais online brasileiros e dois jornais britânicos, que tratam da morte de Margaret Thacher, a fim de observar, a partir da análise crítica do discurso, de que modo se apresentam os atores sociais e como suas vozes aparecem relatadas nos textos. A partir da análise do corpus proposto, comprova-se que mesmo se tratando de uma grande figura política, a personagem feminina retratada nas notícias, é nomeada e sua fala representada de forma diferente aos demais personagens masculinos envolvidos no fato, isto evidencia a supremacia da fala masculina nos discursos da imprensa mundial.

Palavras-Chave: imprensa. mulher. gênero notícia. prática social. análise do discurso.

Abstract: When it comes to texts distributed by the press, its noticeable that women, in general, are part of a group that has no voice. As a result, the small amount of women’s speech published in the news is related to their social role or status of deviation (caldas-coulthard, 1997). The present study aims at analyzing four news’ articles, two from two online Brazilian newspapers and two from two British newspapers. All four articles are related to the death of Margaret Thacher, and the critical discourse study will aim at analyzing how social actors are represented in the speech and how their speeches are reported in the texts. Based on the analysis of the proposed corpus, the author of this paper concludes that even when dealing with a major political figure, the female character delineated in the news is named and her speech differs from male’s speeches involved in the same fact. This demonstrates the supremacy of male’s voice in texts published by the national and international press .

Keywords: press. women. news genre. social practice. discourse analysis.

1.  Mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected]

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A mulher no discurso da imprensa nacional e internacional: uma análise do gênero notícia como prática social e discursiva Laís Gonçalves Natalino

INTRODUÇÃO OM A invenção da prensa, em 1438, por Gutenberg, houve uma revolução da

C

impressão de documentos, bem como da comunicação, já que as informações passaram a ser distribuídas com mais velocidade, e essa invenção permitiu a redução do custo da produção de livros e, posteriormente, do jornal e de revistas, que começaram a se proliferar a partir da Revolução Industrial. Sendo assim, o surgimento da prensa, aumentando as possibilidades de impressão e disseminação das informações, impulsionou o desenvolvimento da imprensa, um negócio poderoso que exerceu e continua exercendo grande influência sobre a opinião pública. Na época em que o jornal torna-se meio massivo de comunicação, a figura feminina era vista, exclusivamente, como protetora dos interesses do lar, esta, segundo Mesquita e Savenhago (2011) encontrava-se inserida no contexto de: [...] uma cultura machista, consagrada e enraizada socialmente – que delega ao homem a missão de exercer o papel de ser pensante e mantenedor financeiro do lar e à mulher o de obediência e de cumpridora de deveres determinados pelos representantes do sexo masculino – demorou a se emancipar. (MESQUITA; SAVENHAGO, 2011, p. 1)

Com os movimentos feministas, iniciados na década de 70, pensa-se em um cenário de progresso em que as mulheres se emanciparam, ganharam visibilidade na sociedade e participação no mercado de trabalho. No entanto, se olharmos para os textos, principalmente, os textos da imprensa, notamos que as mulheres, em geral, são parte de um grupo que tem não tem voz e quando isso ocorre, a pequena quantidade de fala feminina noticiada, é relatada através do seu papel social ou desvio de status (CALDAS-COULTHARD, 1997) e, além disso, as mulheres são frequentemente representadas pela imprensa a partir de estereótipos que alimentam o imaginário de milhares de pessoas. O presente artigo tem como objeto de estudo quatro notícias que tratam da morte de Margaret Thacher, retiradas de dois jornais online brasileiros e dois jornais britânicos, a saber: BBC Brasil, Folha de São Paulo, BBC London e The Guardian; todas as notícias foram veiculadas no dia da divulgação da morte, dia 8 de abril de 2013. Olhando para essas notícias, propõe-se o principal objetivo desta investigação: analisar, através da análise crítica do discurso de que modo se apresentam os atores sociais e como suas vozes aparecem relatadas nos textos. Deste modo, a pesquisa compreende os seguintes objetivos específicos: analisar como os atores sociais são nomeados e quais os parâmetros determinaram essas escolhas e observar como são relatadas as falas desses atores sociais e suas implicações para os textos. Baseando-se na ideia de que a mulher, todavia tem sua voz “apagada” pelo modo com que é retratada pela imprensa, nesta pesquisa propõe-se que, mesmo se tratando de uma grande figura política, a personagem retratada nas notícias, seria nomeada e sua fala representada de forma diferente aos demais personagens masculinos envolvidos no fato. O que comprava, mais uma vez a supremacia da fala masculina nos discursos da imprensa mundial.

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A mulher no discurso da imprensa nacional e internacional: uma análise do gênero notícia como prática social e discursiva Laís Gonçalves Natalino

O DISCURSO JORNALÍSTICO: UMA PSEUDONEUTRALIDADE Quando lemos uma notícia ou matéria jornalística esperamos certa neutralidade no que nos está sendo apresentado. De fato, consensualmente, o trabalho dos jornalistas tem como principal alicerce a objetividade e, consequentemente, a postura neutra diante do fato a ser noticiado, essa visão é indicada e confirmada pelos manuais de redação. No entanto, se olharmos as notícias como um reflexo da realidade, isto é, como uma reprodução (em texto) da realidade, devemos considerar os fatores culturais relacionados à formação de sentido na observação dessa realidade e o dinamismo da linguagem ao descrever essa realidade. Para Zipser (2002, p.10), [...] o vínculo entre a realidade, o fato a ser noticiado e o produto final do trabalho de reportagem podem ser usados para ilustrar o processo de constituição de sentido dos textos, entendidos estes últimos em sua concepção mais ampla. Tal processo nada mais é do que um correlato, no universo da imprensa, das leituras que se fazem de uma realidade, de um fato. Trata-se, enfim, de uma leitura e não da leitura desse mesmo fato. (grifo da autora).

Zipser (2002), ao fazer uma releitura do conceito de jornalismo proposta pelo profissional e pesquisador alemão Fank Esser, entende-o como um sistema parcial de atuação social, tendo a interferência de seus agentes – redator, jornalista, leitor – na concepção de realidade. A autora menciona, ainda, que: [...] o produto final da reportagem, estabelecerá um vinculo com os fatos, que será o resultado do gerenciamento de múltiplas variáveis, ditadas pelas esferas políticas, sociais, econômicas, pela condicionante da história, pela extensão da liberdade de imprensa, pelo teor de formação de seus agentes, e, não menos importante, pelo perfil do público a que a reportagem se destina. (ZIPSER, 2002, p 10)

Nesse sentido, fica claro que o discurso jornalístico é totalmente influenciado pela dimensão histórico-cultural e, sobretudo, social, no qual está inserido. O que Zipser e Esser articulam sobre este ponto, vai ao encontro do que propõe Caldas-Coulthard, (1997) em News as Social Practice, livro em que a autora demonstra, através da análise crítica do discurso, que as notícias não são um fenômeno natural que surgem apenas dos fatos da vida real, mas são também, determinadas pela cultura e sociedade em que circulam. Assim como Zipser (2002), Caldas-Coulthard (1997, p. 7), considera as “[...] notícias não como um evento, mas como um relato do evento” 2, sendo esta construída a partir da interpretação, propósitos e, consequentemente, ideologias dos jornalistas, editores, e todos os que participam de sua construção.

AS NOTÍCIAS COMO DISCURSO E COMO PRÁTICA SOCIAL Práticas sociais são “fazeres” ou atividades que trazemos como seres humanos que vivem em sociedade. Ao falarmos em discurso, devemos entendê-lo como processo social de significação e construção de sentido, isso quer dizer, como os textos se relacionam em seus contextos sociais. 2.  Todas as traduções de citação deste artigo foram feitas pela autora do mesmo.

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A mulher no discurso da imprensa nacional e internacional: uma análise do gênero notícia como prática social e discursiva Laís Gonçalves Natalino

Sendo, todo texto considerado uma unidade de interação completa com o Outro, ou uma forma de materialização de uma mensagem que é feita através de algum recurso semiótico, deve-se ter em mente que, as escolhas discursivas são carregadas de intenção e, consequentemente, ideologias. Nesse sentido, Brandão (1994) menciona que: A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem como discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. (BRANDÃO, 1994, p.12)

Todo texto está inserido em um gênero discursivo, o que é definido por CaldasCoulthard (2008, p.36) como “[...] forma de usar a língua em relação a um tipo especial de atividade social”, ou seja, textos que apresentem os elementos estruturais, mesma estrutura linguística e, principalmente, mesmo propósito social. As notícias são analisadas nesta pesquisa como um gênero dentro do discurso da mídia, portanto devem ser vistas, conforme já comentamos anteriormente, como determinadas pela cultura e sociedade em que circulam. Caldas-Coulthard (1997) subdivide as notícias em três categorias: 1. Hard news – são aquelas em que o conteúdo principal é o conflito, ela relata acidentes, crimes e pode aparecer nas seções locais, nacionais, ou internacionais dos jornais. 2. Soft news or feature news – definida por jornalistas, por ter características femininas, apresentam humor e textos relacionados ao âmbito pessoal da vivência das pessoas. 3. Special topic news (esportes, negócios, artes etc.) – aparecem em seções especializadas dos jornais, esportes, negócios, artes, política, são alguns exemplos desse tipo de notícia. Esta subdivisão já pode nos dar algumas pistas de como os atores sociais, ou personagens das notícias serão nomeados, ou seja, quais serão as escolhas dos jornalistas para nomear os personagens dentro do discurso. Em notícias de crimes, acidentes (hard news), por exemplo, não haveria necessidade de nomeação por relações familiares, intimidade, etc., o que já seria encarado com um pouco mais de naturalidade em soft news. É o que veremos na análise das notícias desta pesquisa, que sob esta subdivisão deve ser considerada como uma hard new. Outra característica importante ao gênero notícia é a ocorrência da intertextualidade, ou seja, as relações que ocorrem entre os textos, principalmente às referências “manifestas”, representadas pelas citações ou paráfrases, que têm o propósito, principalmente, de dar credibilidade, ou legitimar o que está sendo relatado. A fala dos atores sociais poderá ser introduzida basicamente de forma direta ou indireta, entretanto, a maneira com o qual é introduzida, pode revelar o grau de comprometimento da imprensa/jornal com o fato que está sendo noticiado. Conforme menciona Coulthard (2008, p.31) “[...] sempre que interagimos assumimos um ponto de vista ou perspectiva especial sobre o que vamos comunicar, esta perspectiva sinaliza nossa visão de munda e nossas ideologias”, isso não é diferente na imprensa, que no gênero notícia, apresenta textos em que há, além da interpretação e a perspectiva de um determinado evento, ideologias expressas através das escolhas dos jornalistas e editores.

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A mulher no discurso da imprensa nacional e internacional: uma análise do gênero notícia como prática social e discursiva Laís Gonçalves Natalino

A MULHER NAS IMPRENSAS BRASILEIRA E BRITÂNICA: ANALISE DE NOTÍCIAS DA MORTE DE MARGARET THATCHER Embora o objeto de estudo desta investigação seja, relativamente pequeno, compreendendo apenas quatro notícias, foi possível levantar dados que comprovassem o que viemos discutindo até aqui. Conforme já mencionado, a pesquisa tem como objeto de estudo quatro notícias que tratam da morte de Margaret Thacher, retiradas de dois jornais online brasileiros e dois jornais online britânicos, são eles: BBC Brasil, Folha de São Paulo, BBC London e The Guardian, sendo todas as notícias veiculadas no dia da divulgação da morte, dia 08 de abril de 2013. Para a análise a que se referia a investigação de como era feita a nomeação dos atores sociais nas notícias optou-se por: observar, separadamente apenas para o modo com que era nomeada a figura de Margaret Thatcher em cada um dos países (Brasil e Londres). Em seguida, foi feito um levantamento dos demais personagens, como eram nomeados e como suas falam eram introduzidas ao discurso. Em ambos os casos foi feita a categorização dos parâmetros de forma de endereçamento aos atores sociais, conforme propõe Van Leeuwen, (1996). Os parâmetros poderiam variar entre ocasião, sexo, idade, relações familiares, status social hierarquia, graus de intimidade, por titulo, pelo último nome, pelo primeiro nome, pela combinação de ambos ou por nada. Quando ponderamos as formas em que as falas são introduzidas ao discurso, utilizamos o conceito dos Verbos de Relato da Fala, de Halliday (1985), em que há três modalidades de verbo como possibilidade de se relatar a fala em discurso, são eles: neutro, metaproposicionais (assertivos, diretivos, expressivos) e de direção de palco (prosódicos e paralinguísticos). Abaixo, tem-se a visualização das tabelas construídas a partir os dados analisados: Tabela 1. Formas de endereçamento à Margaret Thatcher nas notícias do português e os parâmetros que determinaram as escolhas 1. Dama de Ferro

Sexo e Apelido

2. Margaret Thatcher, “milk snatcher”

Primeiro e último nome e Apelido

3. Dama de Ferro, ela foi a única chefe de governo britânica mulher e liderou o Reino Unido entre 1979 e 1990

Apelido, Sexo, Status social

4. Margaret Hilda Thatcher nasceu em 13 de outubro de 1925 no condado de Lincolnshire, filha de um dono de mercearia

Sexo e Relações familiares

5. A primeira-ministra nasceu como Margaret Roberts, em Lincolnshire, a 27 km de Londres. Ela incorporou o sobrenome com o qual ficou conhecida em 1951, após se casar com o empresário Denis Thatcher

Sexo e Relações/Intimidade

6. Premiê britânica Margaret Thatcher

Status social

7. Primeira-ministra do Reino Unido Margaret Thatcher

Status social

8. Primeira-ministra

Status social

9. Margaret Thatcher, figura política central do século 20

Status social

10. Ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher

Status social

11. A ex-premiè

Status social

12. A baronesa Thatcher

Status social

13. Thatcher

Último nome

Fonte: Elaborada pela autora (2014).

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A mulher no discurso da imprensa nacional e internacional: uma análise do gênero notícia como prática social e discursiva Laís Gonçalves Natalino

Tabela 2. Formas de endereçamento à Margaret Thatcher nas notícias do inglês e os parâmetros que determinaram as escolhas 1. Iron Lady

Sexo e Apelido

2. Thatcher […], known chiefly for being a milk-snatching education secretary under Edward (1970-74)

Ocasião

3. Margaret Thatcher

Primeiro e último nome

4. Lady Thatcher

Sexo e Último nome

5. Lady Thatcher – whose husband Denis died in 2003

Sexo e Intimidade

6. The first woman elected to lead a major western state, Lady Thatcher

Sexo e Status social

7. Lady Thatcher was Conservative prime minister from 1979 to 1990. She was the first woman to hold the role

Sexo e Status social

8. Lady Thatcher was born Margaret Roberts, the daughter of a shopkeeper and Conservative councilor in Grantham, Lincolnshire, in 1925

Sexo, Relações familiares e Status social

9. Margaret Thatcher, the most dominant British prime minister since Winston Churchill in 1940 and a global Champion of the late 20th-century free Market economic revival

Status social

10. Ex-Prime Minister Baroness Thatcher

Status social

11. Former Prime Minister Baroness Thatcher

Status social

12. Thatcher

Último nome

13. Thatcher, who was 87

Idade

Fonte: Elaborada pela autora (2014).

Tabela 3. Formas de endereçamentos a demais atores sociais e como suas falas são relatadas nos textos QUEM? 1. A Buckingham Palace spokesman 2. BBC political editor Nick Robinson 3. Blair’s successor as prime minister, Gordon Brown

PARÂMETROS DE ENDEREÇAMENTO

COMO A FALA É INTRODUZIDA?

Nada Status social, apelido e último nome Status social, hierarquia, primeiro e último nome

RELATO DA FALA

Said

Neutro

Said

Neutro

Said

Neutro

4. Cameron

Último nome

Afirmou/Said

5. David Cameron 6. Ed Miliband 7. Former Labour leader Neil Kinnock 8. German Chancellor Angela Markel 9. Her spokesman, Lord Bell 10. London Mayor Boris Johnson 11. Lord Howe

Primeiro e segundo nome Apelido e Último nome

Said/ Told/Called her/Spoke Said

Metaproposicional (assertivo)/ Neutro Metaproposicional Neutro

Status social

Said

Neutro

Status social

Said

Neutro

Sexo e Hierarquia

Said

Neutro

Status social

Said

Neutro

Sexo e último nome

Said

12. Mr Cameron

Sexo e Último nome

Decribed/ Said/ Told

13. O Palácio de Buckingham

Impersonalização

Afirmou

Neutro Metaproposicional (expressivo)/ Neutro Metaproposicional (assertivo)

14. Porta-voz da ex-premiê, Lord Bell 15. President Barack Obama 16. Scottish First Minister Alex Salmond

Status social e Hierarquia

Disse

Neutro

Status social Status social, apelido e último nome

Said

Neutro Metaproposicional (expressivo)

Described

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A mulher no discurso da imprensa nacional e internacional: uma análise do gênero notícia como prática social e discursiva Laís Gonçalves Natalino

QUEM? 17. Sir John Major, who replaced Lady Thatcher as prime minister in 1990 18. The deputy prime minister, Nick Clegg 19. The former prime minister Tony Blair 20. The Labor party 21. The National Union of Mineworkers 22. The work and pensions secretary, Iain Duncan Smith 23. US President Barack Obama

PARÂMETROS DE ENDEREÇAMENTO Sexo e Status social

COMO A FALA É INTRODUZIDA?

RELATO DA FALA

Called her/Added

Metaproposicional

Said

Neutro

Said

Neutro

Impersonalização

Disagree

Metaproposicional (assertivo)

Impersonalização

Said

Neutro

Status social, primeiro e último nome

Said

Neutro

Status social

Said

Neutro

Status social, apelido e último nome Status social, apelido e último nome

Fonte: Elaborada pela autora (2014).

ANÁLISES E RESULTADOS As análises revelaram que nas notícias brasileiras, de treze ocorrências da nomeação da personagem principal envolvida no fato noticiado, Margaret Thatcher, seis ocorrem por parâmetro se status social, quatro por sexo dentre elas duas combinações por sexo e relações familiares ou intimidade. Nas notícias britânicas, a situação não é muito diferente, de treze ocorrências, apenas três a nomeação é feita, exclusivamente por status social, enquanto em seis ocorrências são feitas nomeações por sexo, sendo dois casos por combinação sexo e relações familiares ou intimidade e dois casos sexo e status social. Quando olhamos para os demais atores, homens, envolvidos na notícia, percebemos outra situação, de vinte e três ocorrências nos textos brasileiros e britânicos, há doze nomeações por status social e apenas quatro por sexo, sendo todas elas feitas por combinação sexo e hierarquia, status social ou último nome. Outra comparação interessante foi a utilização de apelidos sempre combinados a sobrenomes, enquanto, na nomeação de Margaret Thatcher, também utiliza-se nomeação com apelido, entretanto, com a combinação de sexo (ex: Dama de Ferro). É perceptível nos jornais britânicos a quantidade de vozes presente nos textos, há grande número de citações, feitas principalmente por personagens masculinos, pessoas de grande poder em todo o mundo. Já os jornais brasileiros, não utilizam tanto deste recurso. Quando a fala desses atores é inserida no discurso foram utilizados relatos da fala neutra e metaproposicional o que revela, o não comprometimento, apesar da tentativa de legitimação do que está sendo retratado. Espera-se de uma notícia como esta, maior manifestação da figura feminina, tendo em vista a importância da principal personagem envolvida no evento, entretanto, não é isso que observamos, pois, mesmo se tratando de uma grande figura política, a personagem retratada nas notícias, é nomeada e sua fala representada, principalmente, através do seu papel social ou desvio de status, o que evidencia a supremacia da fala masculina nos discursos da imprensa mundial e comprova a proposição inicial sugerida nesta pesquisa, isto é, que mesmo se tratando de uma grande figura política, a personagem retratada nas notícias, seria nomeada e sua fala representada de forma diferente aos demais personagens masculinos envolvidos no fato.

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A mulher no discurso da imprensa nacional e internacional: uma análise do gênero notícia como prática social e discursiva Laís Gonçalves Natalino

REFERÊNCIAS Brandão, H. (2015). Introdução à Análise do Discurso (3 ed.). Campinas, SP: Unicamp. Caldas-Coulthard, C. R. (1997). News as social practice: a study in critical discourse analysis (Advanced research English series, 1). Florianópolis, SC: Pós-Graduação em Inglês/ UFSC. Caldas-Coulthard, C. R. (2008). Da análise do discurso à análise crítica do discurso: Introduzindo conceitos. In. Caldas-Coulthard, C. R. & Scliar-Cabral, L. (Orgs.). Desvendando discursos: conceitos básicos. Florianópolis, SC: UFSC. Ex-Prime Minister Baroness Thatcher dies, aged 87. (2013). BBC London. Retirado 05, 2013, de www.bbc.co.uk/news/uk-politics-22067155?print=true.

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Fora do eixo: o trabalho do jornalista no interior Journalism out of joint: the journalist’s work in Brazilian countryside Ja na ina Vi si b e l i Ba r ros1 Resumo: Frente ao paradigma da acumulação flexível, otimização de recursos e polivalência empreendidas no mundo do trabalho, o presente estudo objetivou conhecer como as transformações no mundo do trabalho afetaram a atividade do comunicador no interior do país, por meio de entrevistas com jornalistas que não são gestores, na cidade de Divinópolis, Minas Gerais, realizado com fomento do PAPq UEMG2 em 2014. Observa-se que a convergência tecnológica e o cenário competitivo contemporâneo das organizações de comunicação alteraram significativamente o mundo do trabalho do jornalista no interior. A exigência e a cobrança por resultados geraram uma sobrecarga para o profissional que para cumprir metas é obrigado a se desdobrar em um período de tempo cada vez menor. Apesar da queixa quanto a desvalorização profissional, dos impactos na atividade gerados pelas mudanças tecnológicas e também pelos modelos de gestão de empresa enxuta, os profissionais não acreditam que a atividade esteja em crise, ou que os veículos de notícia estejam passando por uma crise e, sim, que vivenciam um momento de mudança. Por isso, mesmo não há ação consciente por parte dos profissionais para mudar o cenário profissional. Palavras-Chave: Comunicação, Trabalho, Jornalista, Interior

Abstract: Given the paradigm of flexible accumulation, resource optimization and versatility undertaken in the sphere of work, the present study aims to learn how the transformations of work processes affected the activity of the communicator off the large Brazilian cities, through interviews with journalists who do not are managers, in Divinópolis, Minas Gerais, held in 2014 with development of PAPq UEMG 2014. It is observed that technological convergence and the contemporary competitive landscape of media organizations significantly changed the world of the average journalist’s work and small towns . The requirement and the accountability for results generated a burden on the professional, to meet targets, is bound to unfold multiple activities at a time dwindling. Despite the complaint about the professional devaluation, the impacts on activity generated by technological changes and also the lean enterprise management models, professionals do not believe that the activity is in crisis, or that the news vehicles are going through a crisis, but they experience a moment of change. Therefore, there is no conscious action on the part of professionals to change the professional scene. Keywords: Keywords: Communication, Working, Journalism, Countryside 1.  Doutoranda em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicação e Artes da USP sob a orientação da professora Roseli Fígaro, membro do Centro de pesquisa em Comunicação e Trabalho/ professora da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG - unidade de Divinópolis, e-mail: [email protected]. 2.  Programa de Amparo à Pesquisa da Universidade do Estado de Minas Gerais PAPq UEMG, que custeou a bolsa de iniciação científica de Vanderléia Siqueira, aluna do curso de Publicidade e Propaganda da UEMG, unidade de Divinópolis.

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Fora do eixo: o trabalho do jornalista no interior Janaina Visibeli Barros

INTRODUÇÃO TRABALHO E a comunicação são elementos constitutivos do ser humano. Por meio

O

da transformação da natureza o homem, ser social, cria as condições para atender suas necessidades objetivas. Desenvolve ferramentas como extensão do corpo para facilitar a manipulação da natureza. O que transforma o processo de produção e trabalho, consequentemente, o corpo do homem. Nas últimas décadas a humanidade tem vivenciado o desenvolvimento de tecnologias de comunicação e informação que impactaram no modo de se comunicar e de trabalhar, transformando as relações sociais e a sociedade. Vivenciamos hoje uma aceleração do tempo e o encurtamento dos espaços que foram possibilitados, principalmente, pela internet. Esta realidade gera impactos nas relações de trabalho, que neste artigo serão observadas a partir do estudo do trabalho na comunicação, especificamente do trabalho do jornalista que é um profissional que produz informação, que forma opiniões e gera conhecimento social (HOHLFELDT, 2001; RÜDIGER, 2011, FÍGARO, 2013). Para realizar o estudo, foram feitas entrevistas qualitativas junto a jornalistas da cidade de Divinópolis, que é pólo regional de comunicação no centro-oeste mineiro. O artigo foi organizado em dois momentos: o primeiro apresenta uma reflexão teórica, que embasa a pesquisa, em seguida apresentar-se-á o objeto empírico e as análises realizadas.

COMUNICAÇÃO E TRABALHO A palavra comunicação representa a junção de dois sentidos: a idéia de tornar comum, gerar o entendimento e a idéia de ação possibilitada pela comunhão e definição de acordos que normalizam a vida em sociedade. Desde a era mais remota, o homem, ser social, tem a necessidade de se relacionar para sobreviver ao que Schwartz (2004) denomina de meio infiel. Para isso, fez-se necessário o desenvolvimento de sinais que, compartilhados pelos indivíduos, possibilitou o entendimento coletivo e a ação em beneficio do grupo. Pensar a comunicação por este viés, é pensar a formação do Humano como ser genérico e singular que, historicamente, por meio da atividade de criação sobre a natureza, produziu as condições de gerar o conhecimento e repassá-lo para as futuras gerações, possibilitando a continuação da espécie e sua diferenciação na natureza (MARX, 2001). Entendido exclusivamente como uma atividade humana, o trabalho é o processo que permite ao homem sua mediação com a natureza na medida em que antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas (MARX, 1996).

Na transformação da natureza, o trabalho humano se diferencia, segundo Leontiev (1978), em dois aspectos: primeiro porque o ser humano produz suas ferramentas; segundo porque o trabalho se dá em uma situação coletiva - os indivíduos não só se

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relacionam com a natureza, mas com outros homens, pertencentes a uma dada sociedade: “É apenas por intermédio desta relação a outros homens que o homem se encontra em relação com a natureza” (LEONTIEV 1978, p. 74). A atividade é sempre inovadora e criativa. No cotidiano, o ser humano, por meio da experiência, acumula conhecimentos que o auxiliam no desenvolvimento de novos modos de fazer, para satisfazer uma necessidade objetiva. Nessa medida, a atividade é intelectual e prática, porque entre o trabalho prescrito e o trabalho real, no desenvolvimento de sua atividade, o ser humano utiliza de seu conhecimento para encontrar meios concretos de economizar o seu próprio corpo (SCHWARTZ, 2006). Nas formas de intercâmbio entre homem e natureza existe uma relação dialética, provocadora de metamorfoses mútuas: transformação tanto do homem quanto da natureza. É nesse processo que acontece o desenvolvimento das forças produtivas e o aprofundamento da divisão do trabalho, promovendo-se a diferenciação entre trabalho agrícola e trabalho comercial e industrial. Desse modo torna-se possível a assunção de diferentes modos de produção, desde os mais remotos tempos com o chamado comunismo primitivo, passando pelos modos de produção asiático, antigo, feudal até chegarmos no modo de produção capitalista. Dito de outra maneira, é a partir do trabalho, pensado como uma mediação entre homem e natureza, que ocorreram as transformações da longa jornada histórico-sociais pelas quais a humanidade atravessa (MARX e ENGELS, 2003). Ao desenvolver as tecnologias necessárias para beneficiar os elementos naturais para atender suas necessidades objetivas, o homem modifica o modo de trabalho e realização de sua atividade, a produção. Como a atividade transforma o corpo humano, a transformação do processo produtivo transforma o homem e consequentemente a sociedade.

TRANSFORMAÇÕES DA ATIVIDADE DE COMUNICAÇÃO As empresas jornalísticas no seu percurso histórico, vivenciaram diversas mudanças no modo de produção em função das transformações tecnológicas. Já no século XV a prensa de Gutemberg, que segundo historiadores marca a saída da civilização da idade Média para a Renascença, marca também o surgimento do jornalismo profissional por causa da possibilidade de reprodução e distribuição das informações (BALDESSAR, 2003). Muitas tecnologias foram incorporadas aos fazer jornalísticos, desde a prensa, como a máquina de escrever e a câmara fotográfica, mas nada se compara a revolução social gerada pela utilização da prensa no século XV, como a criação dos computadores e da internet no fim do século XX. No Brasil, a inserção da tecnologia e o processo de informatização das redações brasileiras começaram, segundo Baldessar (2003), em meados dos anos 80. As mudanças físicas da redação trouxeram mais agilidade na produção jornalística. O computador possibilitava, a partir desse momento, uma interação maior com o texto. O profissional passou a ter o poder de editar o conteúdo a qualquer momento, diferente do que acontecia com a máquina de escrever. Com a facilidade na edição dos textos e a possibilidade de compartilhamento de conteúdo, os prazos foram ficando cada vez menores, o profissional teve que trabalhar mais em um período de tempo menor, as redações ganharam novos formatos e começaram a fechar mais cedo, gerando para os gestores maior rentabilidade e pressão sobre os trabalhadores, como discute a autora.

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A introdução dos microcomputadores mudou o cotidiano profissional dos jornalistas, que tiveram de se adaptar a uma outra realidade profissional: a exigência de maior qualificação, a especialização crescente, as modificações nas condições de trabalho e, sobretudo, a intensificação do trabalho (BALDESSAR, 2003, p.16-17).

Nesse processo, algumas profissões desapareceram e muitas mudanças culturais foram vivenciadas pelos profissionais. Na primeira década do século XXI o campo da comunicação foi marcado por duas tendências, segundo Fígaro (2011): a primeira relativa ao monopólio no setor das empresas de telecomunicações e comunicação. A segunda que também diz respeito aos avanços tecnológicos dos sistemas de informação e de comunicação, que permitem à diversidade de acessos e uso de mídias, em especial das mídias móveis e redes sociais. Para a autora, trata-se de um momento oportuno para o exercício profissional do comunicador, pois diferentes tipos de organizações passaram a solicitar a atuação destes profissionais na gestão de diferentes práticas discursivas. Para tanto, os profissionais assumem cada vez mais responsabilidades atuando de forma polivalente e pró-ativa, já que muitas das atividades estão sendo criadas no desenvolvimento da tarefa. Realidade que coloca novos desafios para o profissional no que diz respeito aos modos de fazer, as narrativas e linguagens tecidas na convergência midiática. Concomitante as transformações tecnológicas, as organizações de comunicação tiveram que rever as lógicas de gestão para garantir sua competitividade e a sustentabilidade do negócio, assumindo práticas administrativas modernas baseadas na acumulação flexível para a otimização de recursos (CORIAT, 1994; ANTUNES, 2005). Neste contexto, se por um lado as novas tecnologias se apresentam como um desafio oportuno para que os profissionais repensem o modo de fazer, por outro, apresenta questões dramáticas para o sujeito que deseja continuar exercendo sua atividade, com dignidade e respeito. Isto porque a lógica da acumulação flexível solicita que os profissionais sejam mais inovadores, ao mesmo tempo que devem ser polivalentes, que acumulam atividades e extendem o trabalho, pressionados pelo aumento por produção. O que não necessariamente está acompanhado do reconhecimento social e financeiro (FÍGARO, 2013). Estas transformações criam novas relações de trabalho e consequentemente novas formas de fazer jornalismo, Nos grandes centros, como discute Fígaro (2013) as redações reduziram os postos de trabalho nas últimas décadas e atualmente observa-se que grandes corporações midiáticas tem enfrentado crises econômicas que em alguns casos impedem a continuidade do negócio, mesmo com a precarização do trabalho do jornalista, com o aumento do contingente de “colaboradores” free lancer, ou CNPJ, e da flexibilização dos direitos trabalhistas. Se nos grandes centros urbanos que possuem as melhores condições para o exercício da atividade, com destaque para São Paulo (que é a capital com a maior concentração de veículos de comunicação e agências de publicdiade do país), a precarização do trabalho tem sido um problema cotidiano enfrentado pelos profissionais (FIGARO, 2013); como tem sido o exercício da atividade fora dos grandes centros urbanos? Que desafios se apresentam aos jornalistas no interior do país? Como a atividade tem se sustentado fora dos centros econômicos, que acumulam as maiores verbas publicitárias e possuem as melhores condições de manutenção do jornalismo como negócio?

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Para responder a estas e outras questões, com o objetivo de conhecer como as transformações no mundo do trabalho afetaram a atividade do jornalista e o resultado do que estes profissionais produzem no interior, foi realizada no ano de 2014 pesquisa qualitativa junto a profissionais de jornalismo, no interior do estado de Minas Gerais.

O MÉTODO E O OBJETO Com o objetivo de mapear o campo da comunicação no interior do país, a pesquisa institulada “Trabalho na comunicação: mudanças no mundo do trabalho dos comunicadores na região do Centro-oeste mineiro” vem sendo realizada desde de 2010. Inicialmente, em 2010, a pesquisa realizou uma catalogação de empresas de comunicação na região e houve entrevistas com gestores de empresas de jornalismo e publicidade durante os anos de 2011, 2012 e 2013. Este artigo trata exclusivamente da etapa de pesquisa feita com os jornalistas plenos, que não são gestores de empresas de jornalismo, realizada no ano de 2014, com os profissionais da cidade de Divinópolis-MG. Utilizou-se roteiro semiestruturado e registro do áudio, para posterior transcrição e análise. A amostra foi diversificada. Foram realizadas seis entrevistas com profissionais que se dispuseram a participar. Tentou-se contemplar profissionais de diferentes veículos de comunicação (impresso, rádio, televisão, internet). Também buscou-se diversificar o tempo de atuação e formação dos profissionais: um entrevistado finalizou seu curso no ano de 2014, um entrevistado tem apenas três anos de formado, três entrevistados possuem sete anos de formados e uma entrevistada possui dez anos. Apenas um dos entrevistados não é formado na área e não tem formação superior. A titulação máxima dos entrevistados é especialista e apenas um dos entrevistados tem esta titulação. A cidade de Divinópolis foi escolhida por ser pólo de comunicação da macro região do centro-oeste mineiro. Há no município dois cursos de Comunicação Social (um público e um privado) que desde 2001 formam profissionais nas habilitações em publicidade e propaganda e jornalismo. Dados levantados em pesquisas realizadas anteriormente (BARROS, 2010), mostram que há na região aproximadamente 172 veículos de comunicação, distribuídas nos seguimentos de rádio, jornal impresso, emissoras de televisão, portais de conteúdo, presentes em 49 das 76 cidades da região. O banco de dados também mostra que a maioria das empresas de comunicação se localiza na cidade de Divinópolis. São 22 no número total dos dados coletados via internet. Além disso, em Divinópolis está o maior número de mídias complexas, como a televisão – são três empresas na cidade, sendo que duas delas produzem conteúdos para toda a região. No município também se concentram o maior número de agências de publicidade, assim como a maior quantidade de emissoras de rádio, são oito. A cidade tem ainda, dois jornais impressos com mais de 30 anos de fundação. Estes veículos também fornecem conteúdos para web. Recentemente surgiram cinco revistas impressas bimestrais, duas com conteúdo jovem e distribuição gratuita, uma voltada para moda e o público feminino, uma com foco na área da saúde e outra com conteúdo de eventos sociais. Há dois sites de notícias veiculadas apenas na internet com conteúdo local, sendo um deles exclusivamente de política. O roteiro semiestruturado esteve organizado em temas relativo as informações gerais do entrevistado; a caracterização da atividade de jornalismo; ao processo de

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produção; a relação com a tecnologia; as transformações da atividade; as perspectivas para o futuro e as relações de trabalho. Durante a realização das entrevistas, na busca por profissionais de diferentes veículos e com experiências distintas no campo, procurou-se elencar profissionais a partir do banco de dados previamente construído, por meio do levantamento de jornalistas que assinavam matérias nos veículos de circulação local. Mas o contato com os profissionais também foi feito a partir das indicações dos próprios entrevistados, que eram convidados a indicar um colega respeitado por ele para participar da entrevista. Ao final, apesar da busca diversificada, dos seis entrevistados, três trabalhavam para a mesma organização de comunicação, que é a organização modelo no campo do jornalismo na cidade, e é a aspiração profissional dos jornalistas locais. Ou seja, os profissionais respeitados pelos colegas do campo, em geral, atuam na mesma organização que representa um grande conglomerado midiático nacional. Esta organização, distribui conteúdo para a região por meio da televisão e da internet. Dos três profissionais da grande empresa, um é produtor, outro atua com o jornalismo para o portal da internet, outro é repórter televisivo. Um dos entrevistados no dia da entrevista estava em seu primeiro dia de trabalho na organização e foi contatado por sua experiência no jornal impresso e não por sua atuação na nova empresa. Este profissional também atua com jornalismo para o radio. A ele daremos o nome de Douglas. Um segundo entrevistado já é mais experiente e atuou em diferentes veículos (rádio, televisão, impresso) tanto na cidade quanto em grandes centros urbanos, seu condinome será Eduarda. O terceiro entrevistado migrou da emissora de televisão que ocupa o segundo lugar na produção de conteúdo regional para a líder no ramo, será identificada como Milena. Há ainda um entrevistado que trabalha para o rádio e o impresso com apenas três anos de formado, codinome Ronan. O entrevistado com mais tempo na profissão, trabalha com o rádio e o impresso, é o único sem formação profissional, será identificado como Carlos. Por último, uma jornalista que atua com televisão, formou há quatro anos, atua na área há sete, será Soraia. Os entrevistados são em sua maioria jovens, com idades que variam entre 24 e 38 anos. Quatro entrevistados com media de 25 anos, um entrevistados com 30 e outro com 38 anos.

COM A PALAVRA OS JORNALISTAS De acordo com as entevistas, a opção pela profissão se deu pela aptidão e afinidade com a atividade de escrita e leitura. Um encantamento pela atividade os motivou. Buscavam sucesso pessoal e a realização profissional, como acontece em qualquer profissão. Na, na escola eu escrevia bem, assim, então foi uma coisa natural, eu não decidi ter uma profissão, assim, eu fui pelo o que eu gostava mais, a única coisa que eu posso fazer é jornalismo (Ronan) eu achava que eu era super criativa e tal, ai eu fiz o curso de, comecei com o curso de publicidade, mas todo mundo sempre falou que eu tinha que fazer jornalismo, e eu “não gente que jornalismo o que, nada a ver”, e ai acabou que assisti uma aula de jornalismo porque era junto a faculdade começava junto, depois separava, então assisti uma aula que era voltada pro jornalismo e ai na primeira aula que eu assisti já não tive dúvidas do que eu queria... (Milena)

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eu fui mais pela aptidão mesmo que eu sempre tive facilidade e interpretação, em português, gostava muito de história ai eu fui mais pela aptidão da escola, mas eu não tinha tanta certeza se era realmente o que eu queria, ser jornalista (Eduarda)

A otimização produtiva Em relação ao perfil dos profissionais entrevistados, todos trabalham e residem em Divinópolis, apenas Carlos não tem formação superior e este já atua no campo há 15 anos. Todos os entrevistados disseram ter pelo menos um vínculo empregatício formal com carteira assinada. Douglas possui mais de um vínculo empregatício tendo a carteira assinada pelas duas organizações. Todos os entrevistados, inclusive Douglas, prestam serviço de free lancer regularmente. Dois destes chamam a atenção porque são free lancer fixos: Ronan há mais de três anos, Carlos há mais de 10 anos para a mesma organização. ... atualizo o site com as notícias (...), coloco as notícias todo dia eu ajeito lá no site, mas eu, isso eu faço em casa não tenho vínculo com eles não (Ronan) também, faço textos para revistas... é... faço texto pra agência de publicidade que pedem,... (Eduarda) Sim, Acho que todo jornalista né, a maioria. Sim presto. já fiz pra shopping de Divinópolis, texto pra jornal, texto para divulgação de eventos, e faço também já saiu a sétima edição, eu sou assim a pessoa que escreve os textos, o jornalista mesmo da revista... (Milena) Me convidaram a muito tempo para cobrir esporte, faço isso há 15 anos, mas tenho carteira assinada é com a rádio (Carlos)

Para manter a rentabilidade da empresa, a rotina de trabalho nas redações é estressante e cansativa. O profissional, em tese, tem um horário de trabalho a cumprir, porém na prática ele sempre extrapola esse horário pré-determinado, esgotando física e emocionalmente o jornalista. As mídias móveis e sociais, como relatam, agilizaram a atividade, mas também o aumento da pressão em relação ao tempo de produção. Além disso, tem gerado a extensão dos espaços de trabalho já que o profissional, deve estar alerta a todo momento. o que eu tenho que fazer de manhã eu faço a noite, o que eu tenho que fazer de tarde na rádio, eu meio que preparo na parte da manhã aqui em casa, então eu trabalho o dia inteiro... (Ronan) Trabalho de 8 às 13h30, para uma organização e de 14h às 20h para outra. Faço os textos como “freela” de madrugada e nas horas em que dá para escrever (Douglas) Lá é assim é a corda no pescoço, então a produtividade lá não é assim quantas matérias você vai produzir por dia não, é o que você vai fazer de melhor nesse dia, se você tem duas horas pra você vai fazer uma reportagem, você tem as duas horas pra fazer, se você passar essas duas horas você tem que ter uma explicação pra isso (...) eles fazem muito isso, eles cobram muito, e tem as metas que a empresa tem (...), a gente tem avaliação de desempenho. (Eduarda) ... por exemplo, ontem eu fui parar era dez e quinze, anteontem era meia noite... (Soraia)

Os profissionais têm consciência da pressão sobre seu trabalho e se queixam do ritmo de produção, diante a desvalorização, principalmente econômica, como foi relatado. Todavia, ao serem questionados sobre o que é ser jornalista, observa-se que há

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uma naturalização relativa à exploração do trabalho e a conformação. Eles entendem que o sacrifício faz parte da atividade. Ser jornalista é cumprir uma missão pública que solicita abrir mão da vida particular e social, um ato de heroísmo. ... ser jornalista é abrir mão assim de muita coisa né, fim de semana a gente tem plantão, então... Se abre mão da família, tem um churrasco ai você não pode ir, até porque no outro dia você tem que trabalhar, ou então você ta trabalhando no dia, então assim acho que é abrir mão... (Milena)

Em relação aos equipamentos disponíveis nas redações e números de funcionários, podemos perceber que, no interior, ainda se tem uma defasagem de equipamentos imprescindíveis atualmente para o exercício do jornalismo. Dificuldade vivenciada em todas as organizações, mesmo naquelas que representam grandes grupos midiáticos e que possuem a melhor infraestrutura local. Os jornalistas relatam que as redações possuem equipamentos antigos, que aos poucos estão sendo trocados, mas observa-se pelos relatos que o investimento em maquinário tem se dado por força das mudanças de regulamentação das organizações de radiodifusão3 e não como investimento da organização na melhoria das condições de produção em busca da excelência. são duas, três pessoas no máximo trabalhando juntos, num turno assim, de manhã são duas, três, na parte da tarde são duas pessoas, um locutor que de dia ele faz a locução... (Ronan) Equipamentos são duas câmeras, é, uma câmera comprou agora, depois de muito custo. Uma câmera muito cara, muito boa e muito mais leve, a outra câmera é muito pesada, muito robusta, e é muito difícil, e como ela é muito velha, ela deve ter mais de 20 anos, ela apresenta problemas com facilidade... (Soraia).

Quanto ao quadro de funcionários, as empresas do interior apresentam um quadro enxuto e polivalente, os profissionais assumem mais de uma função no processo produtivo por falta de profissionais na equipe. Por este motivo, o exercício profissional tem mudado. Com exceção dos jornalistas televisivos, poucos saem da redação para realizar uma entrevista, ou apurar um fato. Em geral, buscam material em pesquisas na internet, requentando matérias dadas. Selecionam conteúdos enviados por assessoria de imprensa. Realizam entrevistas por meio do facebook, telefone ou wathsapp. O interesse dos profissionais e parece ser também o das redações, é de que no menor tempo possível, consigam cumprir com a missão de informar. A notícia tem pressa para ser anunciada. Com as tecnologias o instantâneo acelerou o ritmo de produção, é preciso dar a notícia em tempo real. O que o rádio inaugurou e ainda se esforça para conseguir desempenhar, forçando suas equipes a trabalhar cada vez mais rápido, o que não significa que é cada vez melhor. O critério de qualidade, da isenção na produção da matéria, deixa de ser levado em consideração por causa do tempo de validade da notícia. Nessa medida, as mesmas tecnologias que auxiliam nas pesquisas e buscas necessárias para a produção jornalítica, foram também a justificativa pela precarização da profissão. 3.  Até 2016 as empresas radiodifusoras precisam realizar as transmissões em sinal digital, o que solicita a substituição dos equipamentos analógicos por digitais.

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O que a gente faz geralmente é diferente do que a gente aprende na faculdade, que tem um pauteiro, que vai chegar seu chefe vai falar: “oh, você vai fazer a matéria tal, ai vai ter uma reunião de pauta” isso ai não existe isso é só no sonho. (...) você tem que se virar, (…) a maior fonte é a internet, você vai pesquisando os sites, já tem contato com a assessoria, recebe release do Brasil inteiro (...) uma hora você acha alguma coisa e você vai entrar numa rotina de notícias então (…) você já sabe o que vai fazer, na rádio, por exemplo, a gente trabalha muito com polícia, e... (…) prestação de serviço, à gente não faz um jornalismo assim de entrevista, de ah! Você tem que ouvir uma fonte, ouvir outra, os dois lados... (Ronan). trabalhar jornalismo no interior que a gente vê (…) muito veículo que é correto, que segue as regras, que segue as conduta de ética e tal, mas tem muita coisa que passa dos limites, por exemplo, ainda mais com Whatsaap todo mundo agora é jornalista né, todo mundo consegue registrar tudo no whatsapp, mas ai você vê coisas que são publicadas que cê pensa assim, peraí cadê o código de ética, cadê tudo aquilo que a gente estudou, tem coisas que não precisam ser expostas, coisas que não precisam ser mostradas, cadê o respeito com as pessoas, então eu acho que esse é um desafio que a gente não vê tanto na capital, apesar de que você vê também, um sensacionalismo na capital, mas você vê que isso é filtrado né, agora aqui no interior acho que o desafio muito é esse né, por não ter uma fiscalização, (Milena)

As falas em destaque mostram o embate vivencido pelos profissionais. Produzir conteúdo não se equivale ao fazer jornalístico, na visão dos entrevistados. Todavia, as condições estruturais podem dificultar muito o exercício da atividade. Ronan enfrenta uma realidade organizacional distinta da realidade de Milena que trabalha na organização modelo. Em seu relato, Ronan revela que não se sente valorizado e não acredita que os proprietários da organização vejam o jornalismo como algo importante, mas apenas como entretenimento. Tá ótimo desse jeito e se reclamar demais a gente fecha aqui, porque o jornalismo (...) nessas empresas, por exemplo, na rádio, ele da despesa, ele é despesa, porque (...) o patrão, que é o dono da empresa, ele vai falar “(...) vocês tem três funcionários, tão aqui o dia inteiro recebe o salário, e me bota notícias no ar”, e no máximo ele vai vender o patrocínio do jornalismo, porque, tem música tocando, tem comercial, tem um locutor lá falando, mandando um testemunhal, ah propaganda (…) Então jornalismo dentro da empresa ele tá ocupando 3 minutos do seu, da sua programação, então o dono fala assim “esses 3 minutos eu poderia colocar comercial”, então a estrutura é essa (...). Você não pode tirar o jornalismo da rádio porque senão você perde credibilidade de uma opção de preencher o conteúdo, mas se for cortar um departamento, o jornalismo deve ser o primeiro, porque você não, não tem como mostrar “a gente ta rendendo isso aqui pra empresa”(...) Deve ser o departamento mais enxuto possível e eles querem um departamento enxuto da melhor qualidade, (…), a gente tem que fazer coisas para aparecer, (…), mas eles não preocupam com o conteúdo, é complicado (Ronan)

Quanto aos desafios da atividade, em especial de seu exercício no interior, os entrevistados relatam que o jornalismo do interior é diferente do jornalismo praticado nos grandes centros, que as oportunidades são menores, que a aproximação com o público

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por sua vez é maior, o que pode ser bom enquanto manutenção de fontes, mas também gerar autocensura dos profissionais. O reconhecimento social, em especial de repórteres que atuam com a televisão, segundo os entrevistados, é maior, o que gera orgulho por ser reconhecido. Mas em relação ao reconhecimento das organizações de comunicação e da valorização econômica do trabalho destes profissionais, os entrevistados mostram descontentamento, já que trata-se de uma profissão que solicita disciplina e privações, como visto em relatos anteriores, que não é remunerada a contento, indicando que a permanência se dá por afinidade com a atividade e em alguns casos, por falta de opções. Por isto mesmo, para se manterem têm que assumir mais de um vínculo profissional, nem sempre com os direitos trabalhistas garantidos. São cobrados para serem inovadores, devem estar bem informados, precisam manter-se bem formados, mas a jornada de trabalho e a realidade local os impede de buscar a qualificação e se tornam operários da infomação. eu acho que o jornalista é o profissional que trabalha com informação, tem gente que tem uma ideia meio desvirtuada do que é ser jornalista acho que o jornalista é um artista, é uma pessoa que vai aparecer na televisão, que vai ter contato com gente que tem poder e tal, mas jornalista é o cara que é o operário da informação você tem que produzir conteúdo de informação pro, pro seu público, então eu tenho uma visão assim muito, muito realista da profissão é uma profissão como qualquer outra (Ronan)

Apesar de relatarem que é uma profissão desgastante e não reconhecida economicamente, os profissionais quando questionados se há ou não uma crise do jornalismo, demonstram estranhamento sobre a questão. Não relacionam as transformações do mundo do trabalho, com as transformações da atividade; as transformações no mundo do trabalho com a desvalorização deste profissional e as dificuldades também relativas ao jornalismo como negócio. Não percebem a crise da profissão, mas ao aconselhar o iniciante deixam claro que não é uma carreira fácil, que demanda muito esforço e dedicação. Então eu acho que eu ser jornalista no interior, as dificuldades assim, primeiro: salário eu acho que é uma dificuldade, eu não gosto de reclamar, porque a gente entra numa empresa a gente já sabe o quanto a gente vai ganhar, então pra que ficar reclamando? (Milena) Uma crise?... eu acho crise no sentido de mudança, não é uma crise no sentido o que tá perdendo alguma coisa (Carlos) É preciso muita dedicação, é preciso muita paciência, é preciso finais de semana que você não vai tá com a sua família com seus amigos, é feriado que você não vai, pra você tem um feriado você tem que dobrar uma semana antes, (...) mas é apaixonante você se envolve tanto com aquilo que você às vezes tem que tomar cuidado (Eduarda)

Uma questão a ser destacada, diz respeito a organização dos trabalhadores como categoria. Dentre todos os entrevistados somente a entrevistada Milena era sindicalizada. E apesar de ser sindicalizada, a profissional não acredita que esta associação possa apoiar o profissional no cotidiano. Assim como ela, os demais entrevistados mostraram-se descrentes quanto a representatividade sindical e a garantia dos direitos trabalhistas.

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Acho que não tem um sindicato, eu sou sindicalizada, mas aqui não tem sindicato né, o sindicato fica em Belo Horizonte, por exemplo, entãoo não tem ninguém que cobre o piso, por exemplo, mas eu acho assim que a gente não recebe abaixo do piso, mas assim acho que falta essa questão da fiscalização e dessa cobrança (Milena) ... a gente quando é contratado, é contratado pelos termos do sindicato dos radialistas (Ronan)

Como mostra o relato de Ronan, sobre a descrição de sua atividade na carteira de trabalho, apenas aqueles vinculados a organizações televisivas, que representam grandes conglomerados midiáticos, disseram ter o registro de jornalista e isso chama a atenção. Por meio das entrevistas foi possível apurar que as organizações para burlar os acordos sindicais da atividade não registram os profissionais do campo como jornalistas, mas como técnicos gráficos ou radialistas que possuem um piso salarial inferior ao da categoria de jornalismo e não tem as mesmas garantias trabalhistas. Esta medida administrativa que permite aos donos de veículos manterem uma margem de lucro satisfatória para a manutenção do negócio, tem gerado a desvalorização profissional e consequente migração destes profissionais para outras empresas, como agências de publicidade e assessorias de comunicação, em especial de organizações privadas. Que além de oferecer uma remuneração mais interessante, não solicitam as mesmas privações aos jornalistas que as empresas de notícia solicitam. Desse modo, a precarização do trabalho do jornalista é um problema dialético para o empreendedor do ramo. O que parece ser a alternativa viável para o negócio de comunicação, é também o propulsor de vários problemas relativos a qualidade dos conteúdos jornalísticos e ao cumprimento de sua missão. O que gera perda de credibilidade junto a opinião pública e a desvalorização do jornalismo pela sociedade, que hoje possui condições de buscar a informação por vias que nem sempre são as vias da imprensa comercial oficial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio das pesquisas realizadas observa-se que a convergência tecnológica e o cenário competitivo contemporâneo das organizações de comunicação alteraram significativamente o mundo do trabalho do jornalista no interior. A exigência e a cobrança por resultados geraram uma sobrecarga para o profissional que para responder as demandas de trabalho é obrigado a se desdobrar em um período de tempo cada vez menor. O enxugamento no quadro de funcionários das redações gera acúmulo de funções, sobrecarga e perda na qualidade do material produzido. O profissional deve ser polivalente e deve se capacitar cada vez mais, apesar de não haver incentivo real das organizações para essa qualificação. Segundo as informações dos entrevistados apenas uma das organizações de comunicação da cidade tem treinamentos continuados específicos para qualificação dos profissionais e oferta cursos de pós-graduação, que permitem a mobilidade dos profissionais nas empresas conveniadas do grupo. Apesar da queixa quanto a desvalorização profissional, dos impactos na atividade gerados pelas mudanças tecnológicas e também pelos modelos de gestão de empresa enxuta, os profissionais não acreditam que a atividade esteja em crise, ou que os veículos de notícia estejam passando por uma crise e sim, que vivenciam um momento de mudança. Por isso mesmo não há ação consciente por parte dos profissionais para mudar

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Fora do eixo: o trabalho do jornalista no interior Janaina Visibeli Barros

o cenário de exploração do trabalho que também diz respeito as condições estruturais que são imprescindíveis para a atividade e para que seja possível atuar com qualidade na construção de conteúdos para a opinião pública. Naturalizam a extensão do trabalho provocada pelas mídias móveis, que não são vistas como problema. Por fim, observa-se que há um desafio que solicita a articulação da categoria e a discussão sobre o fazer jornalístico, recordando os pressupostos relativos a verdade, ao interesse público e a isenção do profissional para tartar os fatos. Recordar que a atividade do jornalista solicita o contato pessoal e face-a-face com as fontes, o que altera completamente o discurso e o conteúdo do que é relatado por quem conta a história. Ou seja, as tecnologias ajudam o trabalho de pesquisa e apuração, mas não substituem o contato humano quando se produz o jornalismo responsável, comprometido com a democracia e o bem comum. Pelos motivos listados, é preemente a realização de estudos que permitam compreender melhor a atividade para que seja possível encontrar caminhos de valorização da profissão e da atividade de jornalismo.

REFERÊNCIAS ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2005. BALDESSAR, Maria José. A mudança anunciada: cotidiano dos jornalistas com o computador na redação. Florianópolis: Editora Insular, 2003.104p. BARROS, Janaina Visibeli. Trabalho na comunicação: mudanças no mundo do trabalho dos comunicadores na região do Centro-oeste mineiro. Relatório de pesquisa para a Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais. Divinópolis, Minas Gerais, 2010. ______ . Trabalho na comunicação: mudanças no mundo do trabalho dos jornalistas de Divinópolis. Relatório de pesquisa para o Programa de Pesquisa da Universidade do Estado de Minas Gerais. Divinópolis, Minas Gerais, 2014. CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994. FIGARO, R. Comunicação no mundo do trabalho: instrumentalizando a razão comunicativa. In: ______ (Org). Gestão da Comunicação: no mundo do trabalho, educação, terceiro setor e cooperativismo. São Paulo: Atlas, 2005. ______. Perfis e discursos de jornalistas no mundo do trabalho. In: ______ (Org) As mudanças no mundo do trabalho do jornalista. São Paulo: Salta, 2013, pg. 7-143. HOHLFELDT, A . As Origens antigas: a comunicação e as civilizações. In. HOHLFELDT, A; MARTINO, L. C.; FRANÇA, V. V. Teorias da comunicação. Editora Vozes. Petropólis, 2001. p.61-98. LEONTIEV, Alex. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I. São Paulo: Nova Cultural, 1996. ______ ; ENGELS, F. O manifesto comunista. São Paulo: Ed. Sundermann, 2003. RÜDIGER, F. As teorias da comunicação. Porto Alegre. Editora Penso, 2011. SCHWARTZ, Y. Entrevista. Revista Trabalho, Educação e Saúde. Rio de Janeiro, v. 4. n. 2, set. 2006.

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A abordagem do público e privado no jornalismo J o a n a R i ba s B e r n a r d e s L i m a 1

Resumo: Conforme os autores Nelson Traquina e Cremilda Medina, existe a necessidade de uma reflexão a respeito dos sentidos da notícia, compreender que o jornalismo não retrata nem é espelho da realidade, e sim, a construção dessa realidade. Os jornais têm um papel social: de informar a população, papel realizado hegemonicamente por empresas privadas que possuem os seus interesses políticos e financeiros. É a partir da reflexão dessas idéias, e por meio da análise dos conceitos de público e privado no objeto de pesquisa, a Folha de S. Paulo online, que se desenvolveu este trabalho. Foram analisadas 88 matérias sobre o tema “transporte” na editoria “Cotidiano”, entre 2005 e 2012, para verificar como o jornal construiu as ideias de público e privado a respeito do tema, por meio do estudo de itens como a noticiabilidade e o enquadramento. As análises mostraram que há uma simplificação na abordagem do público e privado. A abordagem das questões relacionadas ao transporte é simplificadora, a utilização de enquadramentos e valores notícia são feitos de modo que os problemas verificados em relação ao transporte se deram de forma pouco aprofundada, impossibiltando um diálogo plural com o público.

Palavras-chave: teorias do jornalismo, noticiabilidade, público e privado. Abstact: As the authors Nelson Traquina and Cremilda Medina, there is a need of a reflection on the sense of the news, understand that journalism does not portray, or is the mirror of reality, but the construction of that reality. Newspapers have a social role: to inform the public, hegemonic role held by private companies that have their political and financial interests. It is from the reflection of these ideas, and by analyzing the concepts of public and private sectors in the research object, the Folha de S. Paulo online, which was developed this work. We analyzed 88 articles on the theme “transport” in publishing “Cotidiano”, between 2005 and 2012, to see how the newspaper constructed the ideas of public and private on the subject, through the study of items such as newsmaking and framing. The analysis showed that there is a simplification in the approach of public and private. The approach of the issues related to transportation is simplistic, the use of frameworks and news values are made in a way so that the problems verified in relation to the transportation were treated superficial, disabling a plural dialogue with the public.

Keywords: theories of journalism, newswmaking, public and private.

1.  Formada em jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestranda em comunicação na Faculdade Cásper Líbero ([email protected]).

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A abordagem do público e privado no jornalismo Joana Ribas Bernardes Lima

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STE ARTIGO apresenta uma pesquisa sobre como o jornalismo trabalha as ideias

de público e privado, através de um estudo sobre a construção da notícia. Partimos da idéia de que os limites entre o público e o privado são tênues e que embora as ações de responsabilidade social se voltem para a valorização do bem público e dos interesses sociais, nas páginas dos jornais vemos a grande presença dos ideais e interesses privados, pois a voz dos personagens que participam dos fatos publicados acaba filtrada por uma visão: a de uma cultura profissional jornalística. Que também é atravessada pelos valores da indústria jornalística e, mais, pelo pensamento liberal que, enfim e apesar de seu discurso democrático, favorece a concentração do poder nas mãos dos proprietários do capital. Existe a necessidade de compreender o papel do jornalismo na sociedade, e a questão que se coloca é a compreensão dos papéis da profissão, o entedimento de sua prática para obter uma maior participação do público no que envolve a teoria e papel do jornalismo. Os jornais tentam, mas não têm a capacidade de manter o olhar sob toda a humanidade. Eles têm observadores, os repórteres. Num primeiro contato, as notícias são vistas e dadas como um relato de algum aspecto cotidiano que se destaca: como um reflexo das condições sociais, e de fatos que se destacam do habitual, por assim dizer. Mas na construção da notícia é necessario pensar em como aquela informação irá chegar ao leitor, ou seja, lembrar-se que deve-se haver uma aproximação com o público de forma que não prevaleça a relação do jornal com o público apenas como audiência. É muito importante principalmente para nós jornalistas, e também para a sociedade como um todo, entender as complexidades e influências da prática da profissão. Pois essa reflexão ajuda a entender melhor como a prática jornalística afeta uma interação mais profunda entre público e privado. Ou seja, entender de que forma são trabalhados esses conceitos é uma forma de entender onde entra o papel social do jornalista, e de que forma os interesses sociais estão sendo trabalhados no jornalismo. Sendo o direito um ordenamento de relações sociais, a grande dicotomia público/privado duplica-se primeiramente na distinção de dois tipos de relações sociais: entre iguais e entre desiguais. O Estado, ou qualquer outra sociedade organizada onde existe uma esfera pública, não importa se total ou parcial, é caracterizado por relações de subordinação entre governantes e governados, ou melhor, entre detentores do poder de comando e destinatários do dever de obediência, que são relações entre desiguais; a sociedade natural tal como descrita pelos justanalistas, ou a sociedade de mercado na idealização dos economistas clássicos, na medida que são elevadas a modelo de uma esfera privada contraposta à esfera pública, são caracterizadas por relações entre iguais ou de coordenação. A distinção entre sociedade de iguais e sociedade de desiguais não é menos clássica do que a distinção entre esfera privada e esfera pública. Entre as primeiras a estão a família, o Estado, a sociedade entre Deus e os homens; entre as segundas, a sociedade entre irmãos, parentes, amigos, cidadãos, hóspedes, inimigos (BOBBIO, 1986, p.15)

A ideia de público remete ao que pode ser chamado de um direito coletivo, de acesso à todos. Já o privado faz pensar em algo que pertence a um indivíduo ou um grupo de indivíduos que defendem direitos particulares, ou seja, de acesso limitado.

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A abordagem do público e privado no jornalismo Joana Ribas Bernardes Lima

A grosso modo, algo concreto que exemplifique o conceito de público: vias públicas, onde qualquer um tem o direito de transitar. Já o automóvel, é um exemplo concreto do conceito de privado. Somente com a autorização do proprietário deste bem, outro indivíduo poderia utilizar-se dele, caso contrário isso pode ser considerado um crime, ou um ato de má fé. Esse mesmo automóvel ocupa o espaço das vias públicas, o que dá uma rápida ideia da natureza conflituosa das relações entre público e privado. Este artigo não trata somente de discorrer sobre o conflito entre os dois conceitos, mas de entender onde está sendo trabalhada a responsabilidade social no jornalismo, que hoje está inserido em um ambiente mercadológico, de lucro empresarial, pois se sabe que o jornalismo é feito hegemonicamente por empresas privadas. Essa verificação ajudará a encontrar um caminho de mediação entre ambos os interesses, da sobrevivência e lucratividade financeira, e o principal, de defender o papel de responsabilidade social da profissão. Um jornalista, além de talento, precisa de muito trabalho. O talento só não basta. Ele precisa de muita vivência, ele tem de mergulhar realmente na vida, para poder transmiti-la, porque o jornalista não é um criador de fatos, ele é um transmissor e precisa saber ver. E saber ver é só vivendo. Muitas vezes no mesmo lugar em que há três pessoas, acontece algo e só o jornalista vê. Além do talento, paixão. (WAINER apud MEDINA, 1982, p. 190)

A questão aqui colocada é verificar como o jornalismo representa esses conceitos através da notícia, se o público é desvalorizado por enaltecimento do privado, vice-versa, ou nenhuma das duas coisas. Esta reflexão tem como finalidade sondar a existência dessas concepções paradoxais no jornalismo, verificando os valores principais da profissão: como uma atividade de mercado, a serviço de interesses particulares, ou se trabalha a favor dos seus principais valores, como a liberdade de expressão com vínculo social. O estudo ajuda na verificação da importância que a cultura jornalística dá, em relação ao seu papel social, ou seja, Imagine-se que um jornalista, para cobrir um problema de saúde da população tivesse de aprender, em um curso de Saúde Pública, todo o repertório técnico da área de um médico. Agora, se o jornalista tem consciência do seu papel intermediário, tradutor de linguagens específicas e comunicador que vai levar esses conteúdos à maior audiência possível, seu comportamento muda. Não precisa saber discutir no mesmo nível do entrevistado, precisa saber questionar, perguntar, exigir explicações compreensíveis a todos, chamar à realidade social uma fonte que por sua profissão, está condicionada a um universo fechado (MEDINA,1982, p.156)

Os conceitos de público e privado foram escolhidos, pois o jornalismo é um exemplo prático do direito à informação, que é também um direito público. Entender como esse direito é respeitado ou não na notícia ajuda a entender de que forma a notícia é construída. “Ao povo brasileiro sempre faltou acesso à informação, então o jornal é um instrumento de informação e orientação” (WEINER apud MEDINA, 1982, p.190) Cabe aqui incentivar a reflexão a respeito destes conceitos: a construção da realidade pelo jornalismo, e a compreensão de como os conceitos de público e privado são trabalhados na notícia, para tanto, é preciso uma análise do conteúdo das matérias jornalisticas.

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A abordagem do público e privado no jornalismo Joana Ribas Bernardes Lima

Quanto ao aspecto da construção da notícia, se questiona a ideia do jornalismo como um agente reprodutor dos fatos, partindo da ideia de que na realidade o jornalismo não reproduz, mas constrói uma realidade simbólica a partir dos fatos. E esta construção não é um espelho da realidade. (TRAQUINA, 2008, p.17).

O filão de investigação que concebe as notícias como construção rejeita as noticias como espelho por diversas razões. Em primeiro lugar, argumenta que é impossível estabelecer uma distinção radical entre a realidade e os media noticiosos que devem “refletir” essa realidade. Em segundo lugar, defende a posição de que a própria linguagem não pode funcionar como transmissora direta do significado inerente aos acontecimentos, porque a linguagem neutral é impossível. Em terceiro lugar, é da opinião de que os media noticiosos estruturam inevitavelmente a sua representação dos acontecimentos, devido a diversos fatores, incluindo os aspectos organizativos do trabalho jornalístico (Altheide, 1976), as limitações orçamentais (Epstein,1973), a própria maneira como a rede noticiosa é colocada para responder à imprevisibilidade dos fatos (TUCHMAN apud TRAQUINA 2012, p.170). A maior dificuldade é viabilizar um contato de entendimento equilibrado entre as duas esferas em vista de um objetivo: que é atender ao interesse público, muitas vezes ofuscado pelo poder do interesse privado, que não leva a igualdade em consideração. A mídia, como detentora do poder, frequentemente valoriza interesses individuais em genuína defesa de sua privacidade, em detrimento do interesse social democrático.

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