Novas Guerras Sexuais (Entrevista). Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. Rio de Janeiro, 15/ 07/ 2015.

July 6, 2017 | Autor: Leandro de Oliveira | Categoria: Antropología, Gênero E Sexualidade, Antropologia da religião, Antropologia
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Novas Guerras Sexuais Em “Thinking sex: notes for a radical theory of the poli cs of sexuality”, de 1984, a antropóloga norteamerica Gayle Rubin apontou como os conflitos envolvendo valores e condutas sexuais no final do século XX guardavam semelhanças com as guerras religiosas de séculos anteriores. No século atual, o cenário não parece se distanciar daquele sugerido por Rubin, especialmente quando o fortalecimento social e polí5co de setores cristãos dogmá5cos é cada vez mais notável no horizonte brasileiro, através de uma oposição persistente contra inicia5vas de promoção da diversidade sexual. No livro “As novas guerras sexuais: diferença, poder religiosos e iden5dade LGBT no Brasil” (Garamond, 2013), os antropólogos Marcelo Na5vidade (USP) e Leandro de Oliveira (URCA) descrevem os mecanismos, interesses e discursos de que se valem setores conservadores religiosos para dificultar o avanço de direitos liberdades no campo do gênero e da sexualidade. Eles destacam como noções de perigo e contaminação associadas a indivíduos e prá5cas que não se enquadram nas normas hegemônicas são exploradas por autores conservadores de forma a alimentar pânicos morais. Assim, é comum ouvir ataques às pessoas LGBT, acusando-as de “anormais”, associando-as à pedofilia e ao abuso de menores, à disseminação do HIV/Aids e à desestruturação da família– resgatando fantasmas vitorianosan5gos, do século XIX,como a “imoralidade” e a “degenerescência”.

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Nesse cenário, tais setores têm crescentemente ocupado espaços de poder, impedindo a viabilização de polí5cas públicas e legislações para a garan5a e promoção de direitos da população LGBT. Conforme destacam Marcelo Na5vidade e Leandro de Oliveira, eles inclusive fazem uso de linguagem cienPfica em uma espécie de “sexologia religiosa”,sendo as inicia5vas da chamada “cura gay” exemplos desse entrelaçamento entre religião, polí5ca e ciência. Segundo os autores do livro, tal ofensiva está ligada a um processo de “crescente visibilidade LGBT e às modestas conquistas polí5cas ob5das por esta população junto ao Estado nos úl5mos anos, nas instâncias do Execu5vo e, especialmente, do Judiciário”. O horizonte de guerras sexuais que in5tula a obra, no entanto, é o mesmo em que experiências acolhedoras se desenvolvem. Na entrevista a seguir, os pesquisadores chamam também a atenção para um interessante fenômeno de reinvenção das tradições religiosas que, se não apaga os ataques e radicalizações, ao menos amplia as possibilidades de acolhimento de indivíduos LGBT em meio a homofobia predominante: as igrejas inclusivas. “Elas cons5tuem reivindicações por liberdade religiosa, de gays e lésbicas – pessoas que efe5vamente ocupam os bancos das igrejas. Durante muitos anos, esses fiéis ocultaram suas experiências e iden5dades, temendo as sanções ins5tucionais que incidem sobre quem desafia as normas da congregação. Mas essas pessoas agora ganharam visibilidade na esfera pública – elas reivindicam não apenas o direito de serem gays, lésbicas, traves5s e transexuais, mas tambémde serem cristãos”, afirma Marcelo Na5vidade. Novos conservadorismos A ofensiva de setores religiosos contra a diversidade sexual não é inédita. Nos EUA, o movimento da Moral Majority nos anos 1970-1980 é um exemplo de organização polí+ca cristã que se posicionava contra, entre outras questões, o reconhecimento do desejo e das uniões gays. No Brasil, durante a Cons+tuinte de 1988, setores conservadores pressionaram para que a expressão “orientação sexual” não fosse incluída no texto que tratava sobre discriminações. O que as novas guerras sexuais têm de semelhança e diferença a movimentos similares do passado? Marcelo Na+vidade: O desejo de manutenção de certos privilégios sociais por alguns atores nessa cena é uma das semelhanças. Não é novidade que grupos religiosos atuam no Brasil e em outros contextos de modo a obstruir a plena cidadania de gays, lésbicas,

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bissexuais, traves5s e transexuais através da rejeição e militância contra o casamento igualitário, a adoção de crianças por casais homossexuais, a expressão pública do afeto. Já na Cons5tuinte de 1988, segmentos religiosos atuaram no sen5do de assegurar que o termo orientação sexual não fosse incluído no texto da Cons5tuição e assim a homofobia não fosse criminalizada como o racismo, a xenofobia e o preconceito de gênero. Apesar da diversidade de correntes no cris5anismo, é digno de nota que – quando o assunto é homossexualidade – sejam muito mais evidentes os posicionamentos de repúdio da diferença. Nesse contexto, os privilégios que detém as hegemonias sexuais são jus5ficados por meio do cul5vo e difusão de representações da homossexualidade que realçam es5gmas e reforçam percepções nega5vas. Os discursos de certas lideranças religiosas constroem homossexuais como pessoas perigosas e ‘em perigo’, que demandam controle, correção e até mesmo “cura”. Mas me chama muita atenção a porção da não religião, nos argumentos sustentados por religiosos. Dito de outro modo, as razões para a não aprovação de legislações que protejam pessoas LGBT nada têm de religiosas, mas são expressões de pânicos morais, de exageros, de exaltações da norma e de reforço de estereó5pos que pretendem reforçar desigualdades sociais entre heterossexuais e homossexuais. Certas lideranças religiosas proclamam que as sexualidades não heterossexuais vivem a espalhar AIDS, a reproduzir abusos e violência sexual. Argumentam que avanços da cidadania LGBT insuflariam a violência contra heterossexuais, o que chamam de “heterofobia”. É por meio de uma virulenta militância para o reforço desses estereó5pos que grupos conservadores jus5ficam a recusa de direitos e impactam a construção da igualdade e da democracia, no caso das pessoas LGBT. Gayle Rubin trata dessas desigualdades ao formular a noção de injus5ça eró5ca. Essas guerras têm como pano de fundo reflexões profundas sobre tais desigualdades e pressões polí5cas para a ampliação de idiomas e instrumentos de jus5ça social. Elas drama5zam disputas pela significação da homossexualidade e por ques5onamento de opressões que eram antes naturalizadas. Prá5cas culturais até então aceitas, começam a ser construídas como inaceitáveis, problema5zadas, ques5onadas, denunciadas e tornadas matéria de ampla discussão pública. É nesse cenário cultural de construção da homofobia como uma categoria significa5va, um problema social, que as desigualdades e preconceito por orientação sexual recebem atenção do Estado e ensejam o engajamento de segmentos da sociedade civil em luta por formas de regulação e proteção. Mas é interessante observar que novos fatos e eventos, levam a redefinições de posições e novos alinhamentos. Evidentemente, os discursos do Papa Francisco têm reverberado de modo rela5vamente posi5vo e têm sido tomado por alguns segmentos da militância como possíveis sinais de abertura para a diversidade, apesar das estruturas de longa duração que sustentam a reprovação da homossexualidade. A Igreja Presbiteriana norte-americana aprovou o casamento gay e há outros movimentos em curso. Há décadas outras igrejas de perfil histórico discutem a ordenação de pastores homossexuais. Tudo isso sinaliza como posições são instáveis e fruto de contextos e situações polí5cas específicas. Leandro de Olveira: Parece-me interessante lembrar que a noção de "Guerras Sexuais" é uma metáfora, que pegamos emprestada dofamoso ar5go de Gayle Rubin, "Pensando o Sexo", que Marcelo citou. No mundo contemporâneo, as iden5dades sexuais se pluralizam do mesmo modo que as iden5dades étnicas. Esta pluralização, em si, não tem nada de ruim – supondo que você acredite que a pluralidade é algo bom, ou que você seja insensível a ela, ou pelo menos que o diferente aceite ocupar uma posição de inferioridade e se mantenha ‘no seu devido lugar’. O conflito ocorre quando porta-vozes de certos setores sociais se sentem ameaçados pela mera existência do diferente, por sua proximidade e visibilidade. Esse sen5mento de alarme parece ser maior quando existe um temor de que o outro possa seduzir, recrutar, converter, contagiar – leia-se, transformar pelo contato as ditas ‘pessoas normais’ em algo dis5nto daquilo que elas supostamente deveriam ser. Nas guerras sexuais do século XIX, os fantasmas eram a “imoralidade” e a “degenerescência”, que ameaçavam contaminar Ysica e moralmente a burguesia e a população em geral. Entre os anos 1970-1980, assis5mos a um recrudescimento de conservadorismos que respondiam à pluralização de es5los de vida representadas pela contracultura e os movimentos feminista e homossexual. Hoje (no Brasil, em todo caso), é provável que estejamos ainda lidando com reações à crescente visibilidade LGBT e às modestas conquistas polí5cas ob5das por esta população junto ao Estado nos úl5mos anos, nas instâncias do Execu5vo e, especialmente, do Judiciário. Tornou-se ro+na assis+r a ações de parlamentares da bancada religiosa atuando para impedir a promoção de direitos da população LGBT no Brasil. Por que a predileção por essa população? Por que, no final das contas, desejos e condutas sexuais, bem como o marcador social de gênero, são mobilizados com tamanha intensidade? Leandro de Oliveira: Essa é uma pergunta bem interessante. Em parte, alguns acidentes históricos podem ter ajudado a configurar essa predileção. Retomando um pouco o tema da pergunta anterior, convém sublinhar que a Assembleia Nacional Cons5tuinte ocorreu em um período no qual os discursos

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sobre a epidemia de HIV ainda associavam homossexualidade e AIDS (representando os homossexuais como "culpados" pela difusão de uma doença 5da como letal e incurável, capazes inclusive de transmi5-la por via não-sexual para "ví5mas inocentes", como as crianças hemoYlicas). Não me parece que essa conjuntura, por si só, tenha sido um fator que explica porque, a despeito das pressões exercidas pelo movimento homossexual na época, a proteção à discriminação por orientação sexual deixou de ser incluída no texto cons5tucional. Mas não deixa de ser curioso que o mesmo texto tenha contemplado formas de reconhecimento a mulheres, populações negras e indígenas (extremamente significa5vas, enquanto conquistas simbólicas e polí5cas, para os respec5vos movimentos sociais). Em um cenário em que medos cole5vos eram insuflados e manipulados por setores conservadores para tentar obstruir processos de mudança, é possível que os homossexuais tenham servido como um bode expiatório disponível e par5cularmente conveniente, um símbolo para diferenças "indesejáveis" em nossa nova ordem polí5ca democrá5ca e pluralista. Dez anos depois, com as paradas do orgulho, temos uma intensificação da visibilidade daquelas pessoas hoje referidas pela sigla “LGBT”. Pessoas que desafiam as convenções de gênero – traves5s, transexuais e que transitem entre masculino e feminino – podem ser par5cularmente perturbadoras, sob perspec5vas que se vêem como ‘conservadoras’, devido à visibilidade da diferença que está inscrita em seus corpos, roupas e gestos. Claro, convém lembrar que este dito conservadorismo, pra nós, não implica preservação ou resgate do passado, mas uma resistência a5va a mudanças, que recorre com frequência a imagens de um passado imaginário (por exemplo, ideais sobre a ‘família tradicional’). A diversidade (nas formas de expressão de gênero e nos gostos sexuais, assim como nas iden5dades cons5tuídas a par5r destes jeitos e gostos) acaba sendo retratada como a grande ameaça a esse passado idílico. Penso que, em parte, o incômodo com as pessoas LGBT tenha relação com uma representação sobre sua proximidade e rela5va ‘onipresença’ no mundo contemporâneo, que a visibilidade massiva das úl5mas duas décadas teve o poder de realçar. Quem imagina as pessoas LGBT como seres ‘distantes’ de modo geral não se preocupa muito com eles – a não ser, talvez, que se descubra subitamente vinculado a algum. Está se falando, evidentemente, de certas fantasias culturais (formas de construir e imaginar o outro, que confirmam a imagem que tenho de mim mesmo). Não se trata aqui de um ‘outro’ considerado distante ou isolado em territórios espaciais específicos. Ele aparece em telenovelas e no5ciários, pode ser meu vizinho, pode ser o filho de um vizinho, o colega de escola ou professor ou amigo de um de meus filhos, etc. Ele não está apenas nas ruas e na mídia – está nas igrejas, nos estabelecimentos de ensino, nos estabelecimentos comerciais. Talvez, mesmo, esteja infiltrado no Estado (este outro representante do Mal no mundo) e nos meios de comunicação de massa, conspirando para minar e destruir a moral e os bons costumes. Este sen5do de onipresença, se combinado com a crença cultural de que estes gostos sexuais podem ser par5cularmente sedutores e infectantes (quiçá capazes de contagiar minha casa, meus filhos ou minha congregação), fornece ingredientes par5cularmente explosivos para o embate. Marcelo Na+vidade: Penso que o incômodo é com todas as expressões das iden5dades e sexualidades que se encontram às margens da família reprodutora e dos modelos de gênero hegemônicos. As putas e os homossexuais são os principais alvos de uma campanha moralista que tem sido reinventada e alimentada por tais segmentos, que se percebem ameaçados nas suas fantasias de iden5dade de que seus valores e visões de mundo são universais. Contudo, no rol dos pecados sexuais, é evidente que as pessoas LGBT são preferencialmente objeto de discursos e formas de controle, afinal, não se criam grupos de ex-masturbadores nem programas governamentais dedicados a resgatar pessoas do vício da masturbação ou das experiências extraconjugais, embora essas condutas também sejam objeto das pastorais sexuais. Também não se conjectura que pros5tutas ou “viciados sexuais” tenham um plano maligno de contaminação da humanidade. Mas isso acontece com os homossexuais, a par5r da percepção de que eles pretendem homossexualizar a sociedade e obrigar pessoas heterossexuais a serem homossexuais. Esse é um excelente exemplo do pânico moral que já mencionamos, que opera pelo exagero e deturpação das legí5mas reivindicações por direitos civis. Talvez essas virulentas reações morais de desqualificação configurem um certo 5po nega5vo de resposta das igrejas à epidemia de HIV/ AIDS, uma vez que elas reciclam todo o imaginário da epidemia dos anos 1980, especialmente, insuflando discursos de medo que ensejam a proteção das famílias, das crianças e das ditas pessoas comuns, como observou Leandro. Elas reforçam as divisões entre nós e eles, e alimentam posturas de hos5lidade que podem amparar certas formas de violência mais explícitas, incluindo a violência Ysica. A homossexualidade é construída como a alteridade, por excelência, contaminadora e que exige retração da esfera pública. É curioso que a agenda da militância conservadora contra o casamento igualitário acabe por se encontrar com a militância contra as novas famílias e contra a doação de sangue pelos homossexuais, todas amparadas na percepção de LGBTs como sexualidades ameaçadoras, que não devem ter respaldo e proteção do Estado e, em úl5ma instância, não devem nem mesmo exis5r. A recusa dos direitos civis dos homossexuais é uma recusa, em úl5ma instância, de sua existência. Acho que esses argumentos têm impactado até mesmo as polí5cas públicas, em episódios – como já foi dito – da proibição do kit-an5-homofobia pelo Governo ou do veto das campanhas do Ministério da Saúde de prevenção ao HIV/AIDS que apresentavam casais homoafe5vos, no Carnaval de 2012. O medo da contaminação pela homossexualidade é a força motora do temor de “fazer propaganda da diversidade sexual”, sustentada por agentes da Governança Pública, em razão das pressões de segmentos religiosos. O grande desafio é que tudo o que discu5mos impacta o modo como pessoas

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LGBT têm acesso a serviços e beneYcios dos sistemas de saúde, de segurança, de educação e outros. Tenho observado de perto como o campo da polí5ca pública é impactado por adesões e pertenças religiosas de técnicos, gestores e outros agentes, que acabam por intervir ou mesmo ex5nguir ações que beneficiam populações não heterossexuais. Vocês analisam no livro o que chamam de novos conservadorismos e discursos fundamentalistas. Um aspecto que tem chamado a atenção é o uso da ciência por grupos religiosos para legi+mar suas visões de mundo, do que é exemplo o projeto de lei da “cura gay”, que propunha terapia para converter homossexuais em heterossexuais baseada nos saberes psi. Como vocês avaliam tal interface entre campos de saber dis+ntos, que tem como palco privilegiado espaços polí+cos ins+tucionais como o Congresso? Estamos diante de mais de um fundamentalismo, isto é, não apenas de natureza religiosa, mas também de teor cien?fico e polí+co? Marcelo Na+vidade:Acho importante deixar claro que entendemos tanto a religião como a laicidade como construções sociais. Desse modo, as líquidas e móveis fronteiras entre o que é laico e religioso em nossa sociedade indicam apenas a ficção sociológica de que tais esferas sociais são apartadas. Nesse sen5do, o surgimento de uma sexologia religiosa, como discu5mos no livro, exemplifica como tais fronteiras são atualizadas e as ambições civilizatórias de tais grupos religiosos, empenhados em colocar em prá5ca pastorais sexuais e certas formas de gestão da vida ín5ma. Semelhante aos sexólogos do início do século passado, eles ins5tuem mecanismos de correção que exaltam a heterossexualidade como a única sexualidade legí5ma e saudável e constroem a homossexualidade como patologia. Esses novos militantes da pureza sexual se apropriam de certas teorias do campo psiem rela5vo desuso, ultrapassadas, que operam por uma lógica patologizante, procurando definir o bom e o mau sexo. Suas representações entram em choque com o conhecimento cienPfico contemporâneo que não compreende a homossexualidade como doença, mas assinala que condutas e iden5dades sexuais são complexas e fruto de experiências e interações. Com efeito, tanto a homossexualidade, como a bissexualidade e a heterossexualidade são construções sociais, em um leque de iden5dades sexuais possíveis que tem se pluralizado, a par5r do surgimento de novos sujeitos de direitos. A militância religiosa, contudo, insiste em que a heterossexualidade é natural, enquanto a diversidade sexual é fruto de traumas, abusos, portanto, patológica. Observamos uma verdadeira explosão discursiva que cul5va uma obsessão com a suposta gênese da homossexualidade. Mas se trata de uma “psicologia” a serviço da religião, como discu5u o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, ins5tuindo didá5cas para uma “vida cristã”. Com efeito, essa didá5ca defende que se a homossexualidade é um comportamento apreendido, pode ser passível de cura e transformação. A cura apregoada nada mais faz do que ins5tuir pedagogias do gênero, alguns modos de tornar certos homens mais masculinos e certas mulheres mais femininas. Certamente, um dos alvos desse discurso é a transformação de traves5s e transexuais em “ex-traves5s” e “ex-transexuais”. Existem hoje no Brasil pequenos ministérios empenhados em converter essa população e reforçar todo 5po de preconceito contra pessoas transgêneros. Eles recomendam e ins5tuem mecanismos de controle que passam pela re5rada de próteses e silicones e alimentam as fantasias de iden5dade de que todas as pessoas devem ser heterossexuais e adequar-se aos modelos de gênero dominantes. Contudo, não devemos achar que esses discursos estão restritos a ambientes religiosos, mas entender que ele possui um alcance capilar. Basta lembrar o modo como é recorrente a apresentação de projetos de lei, tanto em nível federal como nos estados e municípios, que pretendem criar programas governamentais de cura gay. A outra face dessa militância religiosa é o esforço para obstruir ações governamentais que procuram desestabilizar certas formas de opressão nos sistemas de educação, de segurança pública, de saúde e outros serviços sociais. Nesse momento, essa discussão é muito oportuna, pois setores religiosos vêm atuando de modo a obstruir polí5cas públicas no campo da educação empenhadas em discu5r gênero e orientação sexual nas escolas como uma forma de combate à violência contra a mulher e a homofobia. Esse a5vismo religioso e conservador, amparado na palavra de ordem “gênero não”, como foi no5ciado na mídia nos úl5mos dias, tem como pressuposto que as discussões sobre igualdade, liberdade e equidade não devem ser feitas na escola e muito menos na sociedade brasileira. Esse é um exemplo vivo sobre como as guerras que descrevemos se atualizam o tempo todo na esfera pública e indicam os enlaces entre ciência, religião e polí5ca. Leandro de Oliveira: Bem, a separação entre ciência, polí5ca e religião não é um fenômeno universal, mas uma construção ar5ficial do pensamento moderno. Uma dis5nção ar5ficial que, como diz Bruno Latour (em “Jamais Fomos Modernos”), faz coisas híbridas proliferarem por toda a parte. Então, eu não acho nada especialmente espantoso no fato que se produzam discursos híbridos que misturem ciência, polí5ca e religião. As próprias igrejas inclusivas produzem certas misturas entre religião e polí5ca, talvez mesmo entre religião e ciência (estou pensando no fato de exis5rem lideranças inclusivas com formação em áreas como psicologia e que consomem literatura acadêmica sobre temas ligados a sexualidade). Um aspecto que chama nossa atenção, nas controvérsias públicas sobre a cura gay, é o fato de que a “ciência” que comparece nessa encruzilhada é desprovida de qualquer respaldo nos consensos correntes da comunidade cienPfica – creio que Marcelo já sinalizou para este ponto. Mas há outra coisa: no caso do projeto de lei da cura gay havia uma tenta5va explícita de controle do campo cienPfico-terapêu5co a par5r de uma ação situada no campo jurídico-polí5co (a qual pode, por sua vez, ter ressonâncias com valores religiosos). O caso, no fundo, é bem simples: médicos e psicólogos

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só podem ‘tratar’ algo que seja definido como “doença”; quem hoje detém autoridade pra discu5r e definir o que é ou não uma “doença” é a comunidade cienPfica; um projeto de lei que vise implementar a “cura” gay tenta usurpar esta autoridade. Aqui, não se trata simplesmente de hibridização, mas de uma tenta5va de encompassar um campo por outro, de subordinar um destes campos a outros. São notórias as ar+culações entre setores evangélicos e setores católicos e espíritas contrários aos direitos sexuais. Como vocês avaliam esse “ecumenismo” no contexto dos novos conservadorismos e discursos fundamentalistas apontados no livro? Leandro de Oliveira:Creio que daria pra resumir minha visão sobre este tema em uma frase: em situações de confronto polí5co, ‘o inimigo de meu inimigo é meu amigo’. Enfrentamentos deste 5po podem gerar alianças que a princípio pareceriam improváveis. Então, a aliança em si faz parte dos jogos da polí5ca, e não tem nada de surpreendente. O que é, talvez, um pouco surpreendente é o idioma mais ou menos consensual por meio do qual essas ar5culações são formuladas. Com freqüência, elas são jus5ficadas como em defesa da ‘família’ ou de tradições e valores que seriam ‘comuns’ a todos. As teorias sobre os pânicos morais, mencionadas por Marcelo há pouco, oferecem algumas pistas pra gente refle5r sobre este 5po de consenso. Tudo se passa como se a variação sexual servisse enquanto um símbolo que focaliza múl5plas ansiedades cole5vas diante de mudanças culturais; um alvo polí5co que suscita coalizões e propicia a superação de dissensos entre facções na esfera pública. Nós refle5mos um pouco sobre este 5po de processo no livro. Os homossexuais não são meramente vistos como indivíduos com gostos pessoais moralmente controversos. Eles são pessoas supostamente geradas em famílias desestruturadas e inves5das do poder de desestruturar as famílias alheias; responsabilizados pela difusão da AIDS e da pedofilia; acusados de tentar ‘converter’ as gerações mais jovens em homossexuais (basta lembrar as controvérsias em torno do kit an5-homofobia), etc. A construção de um inimigo comum acaba sendo uma estratégia poderosa e eficiente neste processo de formação de coalizões polí5cas. Que +po de impacto tais discursos podem exercer na vida pessoal e familiar de indivíduos ligados a grupos religiosos fundamentalistas? Qual o papel de pastores na mediação de tais discursos e como isso afeta as relações pessoais no âmbito privado? Marcelo Na+vidade:A experiência religiosa de pessoas LGBT é marcada por es5gmas e múl5plas perspec5vas de exclusão nas congregações cristãs em que boa parte delas foi socializada, mas também existem possibilidades de negociação, é claro. Chamou-nos atenção o modo como o desejo de autoextermínio diante da percepção de si como objeto do ódio de Deus pode ser uma recorrência sociológica. Nos bancos das igrejas, as ameaças de danação eterna parecem exercer forte impacto sobre a subje5vidade, instaurando conflitos dilacerantes para os quais a morte parece, em um dado momento das biografias, a solução. Nunca perguntamos especificamente sobre essa temá5ca, mas ela aparecia espontaneamente, em alguns relatos, materializadas em declarações de intenções suicidas ou de prá5cas nesse sen5do. Por outro lado, discriminação na família e discriminação no ambiente religioso se interseccionam em algumas narra5vas, pois as redes religiosas e familiares se sobrepõem no cul5vo de certas formas de hos5lidade da diversidade sexual. Nesse sen5do, a socialização em contextos pentecostais se revelou o mais dramá5co, do ponto de vista das tensões vivenciadas. Mas existem formas de punição plurais, quando a homossexualidade do fiel é revelada. Quando esse fiel encontra uma igreja inclusiva, um ambiente social que prescreve a conciliação entre cris5anismo e homossexualidade, a experiência é de ressignificação dos dogmas da igreja de origem. As lideranças inclusivas desempenham um importante papel na oferta de relatos compar5lhados do amor de Deus pelos homossexuais, sem exigência de mudança ou abs5nência sexual. Em outras palavras, esses líderes exercem uma pedagogia da aceitação, que leva a construção de imagens posi5vas de si e a remoção de es5gmas, uma verdadeira descoberta de aprendizado de ser evangélico e ser homossexual, algo anteriormente inimaginável. É claro que essa é uma experiência que envolve conflitos, ambivalências e mediações entre as igrejas de origem e a nova religião. É muito interessante, por exemplo, como categorias como cura, pecadoou demônio são apropriadas, em alguns contextos, e inves5das de novos significados e sen5dos. Por exemplo, quando lideranças ou fiéis, gays e lésbicas, inclusivos, compreendem a discriminação por orientação sexual sofrida na família como fruto da interferência do demônio, sendo o diabo o autor de gestos e a5tudes homofóbicas. Ou quando se emprega a categoria cura, não da homossexualidade, mas das feridas emocionais deixadas pelo preconceito e rejeição familiar. Ou quando se busca deslocar o pecado da homossexualidade para experiências sexuais que prescindem do consen5mento (a violência sexual seria pecado) ou para todas as formas de relacionamento afe5vo-sexuais que contrariam o modelo do amor monogâmico cristão. Em todo caso, estamos diante de invenções de novos vínculos entre religião e sexualidade que certamente o livro coloca em discussão. Igrejas inclusivas O que o surgimento de igrejas cristãs inclusivas, que adotam uma linguagem mais acolhedora em relação aos homossexuais, representa neste cenário “bélico” que o ?tulo do livro sugere? Marcelo Na+vidade:Eu penso que elas representam brechas, fissuras, tenta5vas de tomada do poder, protagonizadas por pessoas LGBT, a exemplo do que ocorreu com as mulheres e a emergência das

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teologias feministas. Elas cons5tuem reivindicações por liberdade religiosa, de gays e lésbicas – pessoas que efe5vamente ocupam os bancos das igrejas. Durante muitos anos, esses fiéis ocultaram suas experiências e iden5dades, temendo as sanções ins5tucionais que incidem sobre quem desafia as normas da congregação. Mas, essas pessoas agora ganharam visibilidade na esfera pública – elas reivindicam não apenas o direito de serem gays, lésbicas, traves5s e transexuais, mas tambémde serem cristãos. É claro que este é um movimento polí5co minoritário, em meio a um cenário religioso em que a homofobia predomina. Apesar disso, a atuação destas pessoas pode ser vista como agência e protagonismo daqueles que se encontram à margem da religião, em luta por reconhecimento. A emergência das igrejas inclusivas evidencia como tradições religiosas podem ser reinventadas. Nesse sen5do, é importante compreender igrejas não como ins5tuições está5cas, sem movimento: elas são redes e ar5culações nas quais existem dissonâncias, polissemias, disputas. Então, igrejas inclusivas são inicia5vas dissidentes em relação às hegemonias doutrinárias, cul5vadas pelas religiões cristãs, especialmente, àquelas ar5culadas ao interdito da homossexualidade e à rejeição das iden5dades LGBT. Elas encenam certos modos contemporâneos de construção da religião em que se concilia cris5anismo e diversidade sexual. Representam também inovações Ppicas das dinâmicas de criação e diversificação do protestan5smo, que se amparam na livre interpretação do texto bíblico, por exemplo, proclamando que a homossexualidade é bênção divina e promovendo leituras e interpretações gays e lésbicas da Palavra. Ao invés de sustentar e propagar discursos de repúdio, como fazem algumas correntes religiosas católicas ou evangélicas, nas igrejas inclusivas não é preciso deixar de ser homossexual. Uma pessoa gay, lésbica, traves5 ou transexual pode se tornar pastor ou pastora, presbítero ou presbítera, diácono ou diaconisa, enfim, exercer uma vida eclesial. As experiências de rejeição nas religiões levam a rupturas e à busca por soluções não apenas individuais, mas cole5vas, ins5tucionais, mo5vando a criação de espaços específicos. Nos Estados Unidos, existem igrejas gays desde 1968, mas no Brasil, o movimento tem pouco mais de uma década de existência, apesar das anteriores inicia5vas isoladas. Esses grupos têm se dedicado a produzir falas posi5vas sobre a diversidade sexual, legi5mando a experiência religiosa dessas pessoas, amparando-se nos ideias de igualdade, autonomia e liberdade - que cons5tuem valores laicos de nossa sociedade contemporânea. Certamente, seus discursos produzem deslocamentos importantes no cenário religioso, especialmente, ao reposicionar a homossexualidade no campo das sexualidades legí5mas, recorrendo a representações naturalizantes sobre a orientação sexual. As igrejas inclusivas nos ajudam a descongelar imagens do religioso como essencialmente homofóbico (ou conservador) e perceber os muitos vínculos entre a5vismo, polí5ca e religião. Ilustram a pluralidade das trajetórias, movimentos e sen5dos da religião no mundo contemporâneo. Também alargam nossa visão, demonstrando que não são apenas as religiões de matriz africana que acolhem a diversidade sexual no Brasil, ao conceber certos lugares sociais para gays e lésbicas no culto. Apesar da diversidade interna e das nuances discursivas, grupos inclusivos tomam como parte de sua missão religiosa desenvolver projetos e a5vidades de apoio emocional e assistencial às pessoas soroposi5vas e de prevenção da AIDS, além de atuar em defesa do casamento igualitário e do direito à homoparentalidade. Também é comum o incen5vo e amparo para que fiéis atravessem o processo transexualizador. Em suma, a agenda religiosa e a agenda da ampliação dos direitos civis das populações homossexuais são entrelaçadas. No livro, vocês observam que alguns grupos inclusivos empreendem esforços no sen+do de definir uma homossexualidade san+ficada (cristã, monogâmica e discreta). Outros grupos estão comprome+dos com um discurso mais afastado das normas hegemônicas de regulação da sexualidade. Até que ponto a inclusão é referendada no paradigma dos direitos humanos? Leandro de Oliveira: Bem, primeiramente, acho que a gente precisa ter em mente que os “direitos humanos” não são um todo homogêneo, mas um campo de disputas. Por exemplo, pode haver certa tensão entre, de um lado, o projeto universalizante intrínseco aos discursos sobre direitos humanos e, de outro lado, a incorporação dos direitos culturais, o direito à diferença, como parte deste mesmo projeto. Do mesmo modo, pode haver divergências na definição do que deve ou não ser compreendido como inerente ao “humano” e passível de proteção. As igrejas inclusivas possuem vertentes dis5ntas – algumas com um es5lo de culto mais próximo do protestan5smo histórico, outras que incorporam elementos da fé e do ritual pentecostais. No campo que realizamos, a gente observou inicialmente, nessas igrejas de es5lo protestante histórico, uma maior afinidade com um discurso mais universalista sobre os direitos sexuais na esfera pública. Este é, sem dúvida, o caso da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM). As igrejas inclusivas mais pentecostalizadas pareciam estar preocupadas com outro 5po de coisa, tocantes mais estritamente ao bem estar espiritual dos fieis, à restauração de um sen5mento de san5dade entre seus integrantes, à cura do sofrimento e das feridas espirituais, a projetos de felicidade envolvendo a parceria conjugal monogâmica e a reestruturação dos laços com a família de origem. E menos preocupadas com a militância pelos direitos sexuais na esfera pública. Então, olhando de relance, poderia parecer que as primeiras estariam em sintonia com a defesa um projeto de direitos humanos universais, enquanto as úl5mas estariam simplesmente exercendo o direito cultural de exis5r na sua diferença. Contudo, à medida que ganhamos mais in5midade com esses mundos sociais, percebemos que havia processos mais complexos em jogo. Os membros de uma igreja inclusiva carregam, com frequência, uma trajetória de passagem por

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diversos outros grupos religiosos, podendo inclusive migrar de uma igreja inclusiva para outra igreja inclusiva, ou frequentar concomitantemente uma igreja inclusiva e igrejas mais convencionais. Esta circulação de fiéis, por si só, torna cada grupo um espaço de negociação e produção de mediações entre perspec5vas e visões de mundo bastante plurais. Além disto, constatamos, especialmente em comunidades que expressam um ethos marcadamente pentecostal entre lideranças e membros (como a Igreja Cristã Contemporânea e a Comunidade Cristã Nova Esperança, que exercem um par5cular apelo sobre pessoas oriundas de setores economicamente desprivilegiados), a existência de formas capilares de atuação religioso-polí5ca, com extensa penetração. Os integrantes destes grupos se apropriam cria5vamente de categorias dos discursos de defesa dos direitos humanos. Isto se dá, por exemplo, através de discursos que iden5ficam o “preconceito” como a causa das feridas espirituais e que promovem a “cura da homofobia”. Por meio da linguagem religiosa e de rituais religiosos, estes grupos fazem circular um discurso sobre direitos sexuais com um sotaque local par5cular, mas bastante afinado com a agenda global de defesa das minorias sexuais. Justamente por ser ver5do nesse idioma religioso, esse discurso inclusivo pode ter uma eficácia e alcance bastante amplo, penetrando em espaços que talvez fossem menos permeáveis às estratégias discursivas mais convencionais do movimento LGBT. Publicada em: 15/07/2015 Curtir 4.356 pessoas curtiram isso. Seja o primeiro entre seus amigos.

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