Novas sensações (ou A melindrosa e o transe na moda)

June 6, 2017 | Autor: M. Bonadio | Categoria: Fashion History, Women and Gender Issues in Islam
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Novas Sensações Maria Claudia Bonadio

“Cada mulher, mesmo a mais respeitável, tinha rosas em redomas; lábios feito cinzel; bucles de manequim; havia intenção, arte, por tudo, indubitavelmente, algo havia mudado. (...) Aqueles cinco anos – de 1918 a 1923 – haviam constituído, suspeitava, alguma coisa de muito importante. A gente parecia diversa. Os jornais também. Agora, por exemplo, num dos mais respeitáveis semanários, alguém escrevia abertamente sobre aparelhos sanitários. Coisa que não se podia fazer dez anos antes. (...) E depois, isso de tomar um batom, ou uma esponja, e compor-se em público...” (Mrs. Dalloway, Virginia Wolf, 1925). Peter Walsh (personagem do romance Mrs. Dalloway) tinha razão: no início dos anos 20, as coisas haviam mudado. Nas grandes cidades as pessoas pareciam sentir que a paz era provisória e talvez por esse motivo, o tempo parece ter se acelerado, a tal ponto que para muitos observadores, os novos costumes, e em especial os novos hábitos femininos causavam estranhamento. Os “loucos anos 20” haviam chegado e com eles o jazz, as noites nos music-halls, os passeios de automóvel e a ansiedade de viver intensamente esse novo tempo. Como parte dessa celebração à vida e talvez numa vontade inconsciente de “congelar” os bons tempos, a moda imprime às mulheres ares juvenis, através dos cabelos curtos, “a la garçonne”, vestidos de talhe reto, batom vermelho e bochechas rosadas. Eis a melindrosa. Esse novo tipo feminino parece vir ao encontro da modernidade. Até pouco tempo atrás, as vestes femininas com seus chapéus de abas largas, suas saias compridas e volumosas, ou estreitas em demasia - como a “saia-funil” em voga por volta de 1910 -, dificultavam a circulação feminina nos espaços públicos e podiam ser considerados empecilhos para as mulheres que precisassem fazer uma viagem de trem, subir num automóvel, ou mesmo percorrer um pequeno trecho de bonde. Já as roupas das melindrosas, compostas por saias na altura do joelho, chapéu cloche e sapatos de fivela, eram perfeitamente funcionais e adequadas à vida nas grandes cidades. Em termos de moda, o tempo se acelera na década de 1920. Em menos de 10 anos, a imagem feminina, expressa através das aparências, quase chega a dos anos 1960. As

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garçonnes nos lembram muito as garotas que iriam povoar a Swinging London por volta de 1966. As modas dos anos 20 conferem às mulheres, um ar de independência e liberdade, que parece distanciá-la de seu papel mais tradicional, de mãe-esposa e dona de casa. Entretanto, esse afastamento praticamente se restringe ao campo das aparências, e não é exagero aventar que nos anos 1920, a moda feminina funciona e muitas vezes é também interpretada por seus observadores como uma espécie de “pó de pirlim-pim-pim” que proporciona às mulheres, especialmente às mais abastadas, um novo estado de consciência e - por que não? - certo gostinho de uma nova identidade. “Estado de abstração” ou a sensação de estar sendo “transportado para fora de si e do mundo sensível”, são algumas das definições encontradas no dicionário Houaiss para a palavra transe. Ambas explicam muito bem o efeito da moda sobre as mulheres nesse período, pois pela primeira vez, em séculos, as roupas, deixam de modelar ancas, seios e cinturas e de certa maneira, chegam mesmo a negar essa feminilidade ideal, antes tão ressaltada por espartilhos, crinolinas, caudas, etc. Nesse período mais do que em outros, a moda induz um estado de transe e vestir, é quase travestir, pois essa a nova estética proporciona às mulheres uma nova experiência, ainda que passageira, artificialmente provocada e via de regra restrita aos espaços públicos - uma vez, que na intimidade, vestidas ou não com os novos trajes, as tarefas domésticas e os cuidados com a família continuavam a ser as principais funções femininas. Assim, as temporadas Líricas, as corridas de cavalo, um passeio pela cidade e até mesmo um chá com as amigas podiam funcionar como momentos de transe, nos quais as mulheres despiam-se de suas atividades corriqueiras e transformavam-se em melindrosas. Um dos espaços mais freqüentados por esse novo tipo feminino eram os centros comerciais das grandes cidades. Na São Paulo dos anos 1920, não era diferente, de repente, as tardes citadinhas estavam mais perfumadas e coloridas, pois, no final do dia, as melindrosas invadiam as ruas para fazer o footing no Triângulo formado pelas ruas Direita, São Bento e XV de Novembro para conferir as novidades nas principais casas de moda como O Mundo Elegante, Casa Alemã, ou o Mappin Stores – a primeira loja

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de departamentos da cidade, onde dentre outras coisas era possível se entreter com os disputados desfiles de “ models vivant”. Ainda que os produtos mais elegantes fossem reservados a uma pequena parcela da população, para as operárias, costureiras e mesmo donas de casa de famílias com menor poder aquisitivo, essa parcela da população também tinha lojas que lhes atendiam. Mas se isso não bastasse, as democráticas vitrines e seus cenários exuberantes, ou as liquidações semestrais realizadas pelas grandes lojas permitam a essas, consumir um cadinho do sonho da “vida moderna”. Os esportes eram outra novidade que começava a se popularizar na metrópole movida pela economia e ritmo estimulante do café. Tênis, regatas, ginástica e para os dias de calor, a natação, que era praticada na piscina do Club Atlhetico Paulistano, ou nas águas dos rios Pinheiros e Tietê. Novos hábitos, novas roupas, novas sensações. Até o final da década de 1910, senhoras e senhoritas que quisessem desfrutar das estações balneárias precisavam trajar uma espécie de vestidinho em sarja com saias até os joelhos e mangas curtas; mas em meados dos anos 1920 tudo havia ficado mais funcional e os “costumes” femininos para banho passam a ser confeccionados em “jérsei pura lã”, com decote canoa, sem mangas e shorts (coberto por uma pequena saia) que agora não ultrapassavam a metade das coxas, exibindo os corpos e permitindo às mulheres desfrutar “as inefáveis carícias das praias e das piscinas”, como destaca um anúncio do Mappin Stores em novembro de 1927. É o transe através do esportes. Entretanto eram as festas e os music-halls, os espaços privilegiados para o transe provocado pela moda, pois o som do jazz, conjugado às saias de tecidos leves, muitas vezes franjados e aos colares de pérolas (mesmo falsas) certamente proporcionava uma experiência nova e transcendental. Na Paulicéia, moças e rapazes logo lotavam as aulas de Mme. Poças Leitão – que aconteciam no Salão de Baile do Trianon – a fim de aprender as novas danças, como o fox-trot, o maxixe, o catwalk ou o indecoroso tango. Os ritmos nunca haviam sido tão acelerados (ou sensuais!); pela primeira vez em muitos séculos, as roupas femininas não eram mais barreira para a aproximação dos corpos e se

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tudo isso não bastasse, também era possível (ainda que não fosse recomendável) dançar sozinha. A versão cinematográfica de Francis Ford Coppola para “O Grande Gatsby” (The Great Gatsby, 1974), conseguiu captar esse estado de suspensão através das cenas de dança que mostram homens e mulheres entorpecidos com o som do jazz. As mais significativas dessas imagens focam apenas a parte inferior dos corpos dos dançarinos, especialmente suas pernas – que se agitam freneticamente e vez ou outra deixam entrever a pele das coxas femininas desnudas, pois muitas meias cediam com os movimentos. É o transe se aproximando da transgressão. Os novos hábitos e modas, não foram bem recebidos por todos e acabaram gerando protestos entre os mais conservadores. Em São Paulo, por exemplo, a imprensa, diária e as revistas femininas, ao mesmo tempo em que veiculavam as novas modas, também as criticavam: “As modistas de Paris, estão desde a passada estação predizendo que as saias e as mangas estão destinadas a encurtar-se ainda mais. É uma profecia falha. Como se sabe, as mangas se encurtaram tanto que desapareceram, e as saias chegaram a roçar a barra pelos joelhos; encurtar mais aquelas e estas equivale a desvestir a mulher.” (A Cigarra, janeiro de 1922). É, porém, um livreto publicado em 1920 pela escritora e educadora campineira Amélia Rezende Martins, que traz uma das falas mais contundentes em relação às novas modas. Nele, a autora denuncia as novas formas dos vestidos, que perderam as mangas e os rodados e os associa à imoralidade. Esta, segundo ela, “existiu desde sempre, mas bem distintas eram as classes antigamente, e não se expunha a família honesta a ser confrontada com a parte censurada da sociedade: hoje a platéia do Municipal apresenta toaletes mais indecorosos que os das próprias atrizes e as poses, que assumem algumas elegantes, passam todos os limites do bom senso”. As referencias à perda do juízo aparecem em todo o texto. Em outro trecho, se assinala que as modas dos anos 20 pretendiam reunir “o desvario de todas as épocas passadas”. Em outras palavras: deve-se assinalar que, para os mais conservadores, a permissividade “excessiva”, a confusão visual que dificultava a distinção entre mulheres de “boa família” e atrizes e a “perda de consciência”, proporcionados pela moda, distanciavam

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as mulheres de suas funções e papéis tradicionais, o que além de imoral, era sem dúvida alguma, um ato de insanidade. Dentre os críticos dos costumes, entretanto, nada chamava mais atenção do que a “masculinização” das mulheres ocasionada pela moda. Cabelos curtos; corpos esguios muitas vezes moldados por cintas que escondiam as formas; ousados pijamas e, para as mais audaciosas até mesmo calças (!); o hábito de fumar, o gosto e a pratica de esportes, tudo isso sugeria que as moças daquele período ousavam em excesso. Ilustradores e cronistas da época registraram (muitas vezes com bom-humor) os novos costumes e especialmente o temor de que a proximidade nas aparências se transformasse em igualdade de direitos, ou em inversão de papéis. O transe atinge seu ápice. A despeito dos discursos conservadores, as modas e a sensação de euforia, se prolongariam pelo menos até 1929, quando a crise econômica começava a indicar que os novos tempos, na verdade eram apenas um pequeno intervalo entre um conflito e outro. A 2ª. Guerra teria início apenas em 1939, mas o clima de instabilidade já voltara a se instalar. Sintomaticamente na virada dos anos 30, as saias e cabelos voltam a ganhar comprimento, os vestidos voltam a acentuar as formas femininas e ainda que as mulheres continuem a se maquiar nos espaços públicos (em pouco tempo, isso também irá mudar, pois o clima pré-guerra, não combina com as cores das maquiagens), ela já não é mais melindrosa.

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