“NOVAS TENDÊNCIAS” DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA E AS (IM)POSSIBILIDADES DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA EM TERMOS DE PRESCRIÇÃO CURRICULAR NO INÍCIO DO SÉCULO XXI

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“NOVAS TENDÊNCIAS” DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA E AS (IM)POSSIBILIDADES DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA EM TERMOS DE PRESCRIÇÃO CURRICULAR NO INÍCIO DO SÉCULO XXI1

Itamar Freitas (PPGED/UFS) [email protected]

Jane Semeão janesemeã[email protected] Margarida Oliveira (PPGH/UFRN) [email protected]

Este texto explora as relações entre a historiografia acadêmica e a historiografia escolar, colhida esta última, nas prescrições elaboradas por pesquisadores, gestores e professores sobre os conteúdos da disciplina história no Brasil. No seu título estão implícitas, ao menos, uma hipótese e uma carência: (1) a ideia de que a historiografia acadêmica sofreu modificações significativas nas últimas três décadas do século XX – daí o emprego do adjetivo “novas” – e (2) a incerteza sobre a natureza e a intensidade da transposição dessas modificações para as expectativas de aprendizagem que constituem os currículos prescritos, predominantemente, pelo Estado, em suas instâncias federal, estadual e municipal. Tais carências e ideias são os objetos sobre os quais nos debruçamos de forma sintética, mediante fontes que informam sobre os modos de produção histórica e as propostas curriculares expedidas entre 1996 e 2012. Aqui, portanto, empregamos três balanços historiográficos acerca de pesquisas desenvolvidas em programas de pósgraduação, entre as décadas de 1970 e 2000 e duas investigações sobre os currículos de história no Brasil recente. Sobre as propostas curriculares, trabalhamos com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), expedidos em 1998, e 18 propostas estaduais destinadas ao nível correspondente e, hoje, atualizado como sexto ao nono ano do ensino fundamental. Seguindo esse esquema, o texto ganha a divisão bipartite, relativa ao exame da (2) apropriação das “novas tendências” historiográficas nos anos finais do ensino 1

FREITAS, Itamar; SEMEÃO, Jane; OLIVEIRA, Margarida de. “Novas tendências” da historiografia brasileira e as (im)possibilidades de transposição didática em termos de prescrição curricular, no início do século XXI. In: TOLEDO, Maria Aparecida (org.). Didática no ensino de história. Maringá: Eduem, 2012. p. 37-50. ISBN – 978-85-7628-510-6.

fundamental antecedida por breve comentário sobre (1) a natureza e os problemas enfrentados na coleta dos “novos” objetos da escrita da história brasileira, além das conclusões apresentadas ao final.

1. Problematizando “novas tendências” historiográficas A locução “novas tendências”, obviamente é instrumental. Aqui, ela é empregada, apenas, como ponto de partida para o texto e objeto de problematização. O vocábulo “historiografia”, ao contrário, é bem menos sujeito a polêmicas. Neste trabalho, historiografia tem o sentido de escrita da história tornada pública, ou seja, o resultado do esforço investigativo e retórico do historiador que é apresentado em forma de livro-tese, dissertação acadêmica, artigo, e veiculado em suportes impressos ou digitais. “Novas tendências”, por outro lado, é frequentemente empregado para anunciar os objetos apresentados em primeira mão ou resignificados nos últimos 30 anos sob a iniciativa dos historiadores [profissionais.] Agrupando os termos – novas tendências e historiografia –, visualizamos claramente as duas questões enfrentadas: (1) quais os elementos da experiência – sobretudo, brasileira – que ganharam status de objeto histórico nas últimas três décadas? (2) Em que medida tais objetos são incorporados às expectativas da aprendizagem anunciadas pelas propostas curriculares federais e estaduais de História? Ao pensar na miríade de objetos explorados pela historiografia brasileira, entretanto, percebemos quão gigantesca é a tarefa de dar respostas às indagações acima. Quem se habilita executar esse inventário, que deverá fornecer simétricos elementos de comparação entre historiografia acadêmica e historiografia escolar? A história da historiografia é a mais demandada para esse serviço.1 No entanto – como “história do discurso escrito e que se afirma como verdadeiro e que os homens têm sustentado sobre o seu passado” (CARBONELL, 1981, p. 6) – ela mesma é um “campo” como outros tantos “canteiros”, “domínios”, “territórios” que produzem suas próprias histórias da historiografia. Cada “domínio” ou cada “novo domínio” classifica e até hierarquiza os seus objetos a partir de “escolas”, “olhares”, “perspectivas”, “modelos”, “linhas de força” que são partilhadas e postas em circulação por grupos de pesquisa, anais de congressos “de..”, e periódicos de história “de...” (Cf. FICO, 2000, p.

27; CARDOSO e VAINFAS, 1997, 2011; DIEHL, 2008; ARRUDA e TENGARRINHA, 1999; FREITAS, 1998; BARROS, 2005). A seleção é, então, o caminho para vencer a tarefa, uma vez que a proposta exige a comparação2 e, a comparação, a criação de um modelo 3 que a viabilize. Aqui, portanto, comparamos conteúdos conceituais, procedimentais e valores. Esses três elementos são objetos da historiografia acadêmica, ainda que o último somente o seja de forma indireta4. Com isso queremos afirmar que a historiografia brasileira – “nova” ou “velha” – produz e/ou veicula: (1) acontecimentos – macros ou micros, em longa ou breve duração, isolados ou em cadeia; (2) procedimentos – empregados para construir os acontecimentos ou atribuir-lhes um sentido; e (3) valores – que medeiam o julgamento e a tomada de posição em relação ao mundo. Da mesma forma, podemos afirmar que a historiografia escolar é estruturada por acontecimentos – classificados como conteúdos substantivos (conceitos, generalizações, datas tópica e cronológica, causas, desenvolvimento e consequências) e conteúdos metahistóricos (atividades de conhecer ideias e funções da história, identificar e ler fontes, comparar e sequenciar acontecimentos, relacionar passado e presente) –, procedimentos e valores. Como o rol de conteúdos conceituais, procedimentais e valorativos relacionados ao espaço da experiência brasileira e explorados pela historiografia acadêmica é bastante extenso, recortamos quatro temas de grande consumo nos níveis superior que nos auxiliam a medir a incorporação do “novo” ao ensino de história. Os dois primeiros se inserem no âmbito metahistórico, ou seja, estão relacionados às mudanças de paradigma vivenciadas pela corporação de historiadores profissionais no Brasil: definições e funções da ciência da história e história do tempo presente. Os dois últimos são exemplos de conteúdo conceitual/acontecimental/substantivo e expressa as mudanças de ênfase em termos de: dimensão da experiência humana nos estudos sobre a história colonial ou do “Brasil moderno” e abordagem dos indígenas como sujeitos históricos.

2. Ciência da história – do progresso à desrazão

Iniciemos, então, com a pergunta mais geral e abstrata que aborda os sentidos da palavra história na historiografia acadêmica e na historiografia escolar. O que há de novo na historiografia brasileira em termos de teoria do conhecimento e epistemologia? A resposta é simples e foi anunciada de modo consensual entre diferentes balanços historiográficos: “crise” de paradigmas (Cf. CARDOSO, 1997). Apesar das diferenças teóricas entre Carlos Fico (1992, 2000) e Astor Antonio Dihel (2004, 2009), por exemplo, ambos concordam no fato de que a década de 80 do século passado foi marcada por uma crise, desdobrada no decênio seguinte, cujas principais características podem ser sintetizados nesses dois excertos: Até os anos da década de 1980, temos paradigmas teórico-metodológicos otimistas, representados pelo positivismo, marxismo e em parte pela tradição de Max Weber com seus respectivos desdobramentos. Nesse sentido, produzia-se conhecimento numa visão de progresso material, quando o sentido coletivo e o aspecto institucional foram orientações centrais: buscava-se conquistar a modernidade e pautava-se pela história na perspectiva magistra vitae.5 Penso que, atualmente, as tendências historiográficas não buscam mais legitimar a redenção do homem no futuro como um projeto para além de nossa época. Há, em vez disso, um retorno ao passado (das ilhas) e aos indivíduos, ressaltando-se os aspectos etno-antropológicos de certa visão cultural. Há, por outro lado e tudo indica uma carência de projetos estruturais subjacentes a que tenham implícita a perspectiva da mudança social na perspectiva vinda do esclarecimento (DIEHL, 2008, p. 52). O ceticismo quanto às teorizações totalizantes, a opção por objetos discretos, particulares ou mesmo singulares, e a busca por equacionamento conceituais ad hoc seriam os traços que definiriam a maioria dos trabalhos brasileiros recentes, traços estes bastante correlacionados às críticas provenientes da filosofia e da teoria literária acerca da impossibilidade gnoseológica de referência ao real (FICO, 2000).

Evidentemente, não há como verificar a presença desse debate – com tal nível de sofisticação e detalhamento – nos enunciados das expectativas. Mas é possível colher indícios a partir da apropriação dos nomes das “correntes” – Marxismo, Annales, Hermenêutica – e dos autores que representam o “novo”: E. Hobsbawm, E. P. Thompson, R. Chartier, R. Darton, W. Benjamin, N. Elias, P. Ricoeur, M. Foucault. Eles estão, principalmente, nas introduções de cada proposta curricular. Nas propostas nacionais, ou seja, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de 1997 e 1997 é forte o alinhamento aos novos problemas, objetos e abordagens anunciados na década de 1970 na França e difundidos fortemente no Brasil duas décadas depois, como também a tentativa de manter a ênfase na experiência coletiva, herdada do marxismo anterior, inclusive, aos anos 1980 no Brasil. Assim, a despeito de

demonstrar as singularidades entre “saber histórico” e “saber histórico escolar” – no fundo, percebemos aí os influxos da categoria “cultura escolar” – a seleção de conteúdos – conceituais, procedimentais e atitudinais – é permeada por proposições marxistas (sujeito histórico), proposições debitarias da micro-história italiana (escalas), como também da primeira, segunda e terceira gerações da escola dos Annales – respectivamente A noção ampliada de fonte e interdisciplinaridade, os novos tempos ritmos e durações, e a história do cotidiano. Nas propostas estaduais, a tônica, diferentemente do que imaginávamos, é a indefinição ou, pelo menos, a não explicitação desse ou daquele paradigma, corrente ou escola. Dois terços das propostas não indicam orientação. Traçam panorama da historiografia europeia do século XX, criticam a “história positivista”, mas, ao contrário das propostas da década de 1980, não fundam as escolhas sobre um ou outro autor. Mesmo entre os projetos que partem de uma definição de ciência histórica, as afirmações são gerais. Há referências aos historiadores Eric Hobsbawm – a defesa do exame da relação presente-passado-futuro –, March Bloch – a história como fornecedora de prazer – e Jörn Rüsen – o estudo das formas de superação das carências humanas. A história também é definida metaforicamente, a exemplo de termos como “espelhos do tempo” e “expressão de humanidade”. Apesar de anunciadas em algumas propostas, as definições não chegam (solitariamente) a determinar a escolha de habilidades, a seleção e a distribuição dos conhecimentos. Isso ocorre por um motivo óbvio, embora pouco compreendido: nenhum historiador/corrente fornece o suporte necessário a todas as demandas do ensino. Observemos, por exemplo, a proposta do estado do Paraná. Ela está centrada na “perspectiva da formação da consciência histórica”, debitária da nova história social alemã, que tem Rüsen como figura de proa. No entanto, para a eleição dos “conteúdos estruturantes” (relações de trabalho, relações de poder e relações culturais), os autores das expectativas reivindicam a contribuição de Eric Hobsbawm e Edward Thompson (trabalho), Norberto Bobbio e Michel Foucault (poder), Raymond Williams, Roger Chartier e Carlo Ginzburg (cultura). (Cf. Oliveira, Freitas, 2012).

3. Tempo presente x tempo vivido pelo aluno

Se em termos de ideias de história a tônica das propostas é a incorporação difusa e não explícita de referenciais da nova história e do marxismo, que poderemos dizer acerca de questões e conceitos tão recentes que ainda nem foram alvo de balanços historiográficos, como a história do tempo presente? Nas últimas décadas do século passado, assistimos ao crescente interesse dos historiadores pela história do seu próprio tempo. A institucionalização de centros dedicados à pesquisa e discussão de acontecimentos recentes – cujo mais renomado é o Institut d’Histoire du Temps Présent, criado em Paris no final da década de 70 do século passado –, publicação de livros, revistas, artigos e a realização de eventos acadêmicos em torno da temática do tempo presente são indícios da gradual afirmação, no campo da história, de uma preocupação em “historicizar” o tempo vivido (Cf. Aróstegui, 2004). O “retorno” da história política e do acontecimento, a renovação historiográfica e as transformações econômicas, tecnológicas, culturais, políticas e sociais que marcaram o final do século passado explicam, em grande medida, a construção do entendimento do presente como objeto da pesquisa histórica e, consequentemente, da constituição da denominada história do tempo presente (Cf. Demoulin, 1993; Chauveau, Tétard, 1997). Por se tratar de uma tendência recente – as primeiras revistas do gênero datam da primeira década deste século – não poderíamos encontrar referências nos PCN, que foram elaborados 10 anos antes. No entanto, examinamos as propostas estaduais, coetâneas à expansão da temática no Brasil (Cf. Semeão, Freitas, 2012). Os resultados indicam que, majoritariamente, os currículos escolares para os anos finais do ensino fundamental, produzidos entre 2007 e 2012, são estruturados de acordo com os quatro períodos clássicos. Ainda que busquem incorporar a perspectiva da multiplicidade temporal e espacial, cada ano de ensino corresponde a acontecimentos/temáticas de pelo menos duas das divisões: Pré-história e Antiga para o sexto ano, Idade Média e Moderna para o sétimo, Moderna e Contemporânea para o oitavo. A exceção está presente no nono ano que, normalmente, concentra os eventos relacionados à transição do século XIX para o XX, até princípios do século XXI. É justamente nesse último período onde a história do presente está “diluída”. Observamos que, apesar da preocupação em incorporar as experiências do presente, demonstrada, por exemplo, em alguns dos objetivos do ensino de história – como o de

possibilitar aos escolares compreenderem a realidade do mundo em que vivem – e da utilização, em alguns casos, da expressão “tempo presente dos alunos”, os currículos não definem a história do presente nem a diferenciam do contemporâneo. Embora alguns currículos empreguem os vocábulos “contemporâneo” e/ou “atual” para nomear uma temporalidade (MS, MG, RJ e PB) – ou, pelo menos, a ideia de um tempo próximo –, uma diferenciação temporal em relação ao último período da história também não é discutida nesses documentos. Os conteúdos que constituem o “Mundo contemporâneo” e o “Brasil atual” foram selecionados sem qualquer informação que justificasse tal recorte, dando-nos a impressão de constituírem subperíodos do Contemporâneo. Apesar de o tempo presente ocupar grande espaço nas propostas curriculares, considerando tanto as balizas temporais do pós-guerra e da queda do muro de Berlim, constatamos que as discussões da historiografia sobre esse campo de investigação não são levadas para os currículos. O que prevalece é o entendimento do diálogo entre as épocas, ou seja, a exigência historiográfica e pedagógica de partir do presente do aluno para a compreensão do passado e historicização de sua realidade. Paradoxalmente, a “época contemporânea”, que para nós já não é mais tão contemporânea, prolonga-se até os “nossos dias”.

4. Experiência colonial brasileira: do socio-econômico ao socio-cultural

O cotejo das apropriações em termos metahistóricos, ou seja, em termos de conceitos e procedimentos caros ao ofício do historiador – a exemplo da ideia de história e de tempo presente – são importantes indicadoras da relação entre historiografia e currículos de história. Mas é importante entender que a história ensinada, dominantemente, mobiliza outro tipo de conteúdo, aqui chamado de substantivo. Para a maioria dos professores, tal conteúdo é constituído por um conjunto de acontecimentos. Na impossibilidade de examinar todos os conteúdos substantivos, vejamos então, a título de exemplo, como foi narrada a experiência colonial brasileira nos últimos 30 anos e quais os traços mais relevantes das mudanças ocorridas na historiografia produzida no Brasil para, em seguida, verificar os níveis de apropriação dessa historiografia nas expectativas de aprendizagem histórica nacionais e estaduais.

Para Stuart Schwartz, as décadas de 30 e 70 do século passado, o Brasil moderno – anterior a 1808 – era explicado a partir de teses marxistas ou estruturalistas que vinculavam a experiência local à expansão do capitalismo e aos seus desdobramentos, sobretudo exportação de escravos. A disputa centrava-se em torno das potencialidades dos conceitos de feudalismo, escravismo, patriarcalismo e capitalismo. Nos anos 80, verificou-se, entretanto, uma “guinada para a História Social”, perceptível a partir do aparecimento de novos temas como a “resistência, a rebeldia, a família, a demografia e a alforria”. Nos anos noventa, temas como a “infância, corpo, sexualidades, linguagem, representações e identidades” foram introduzidos no curso dos problemas e abordagens da nova história que aportaram no Brasil, ao final dos anos 80. Apesar das mudanças, ressalta o autor, a História Cultural no estudo do Brasil dos primeiros tempos não foi, verdadeiramente, objeto de uma “guinada cultural”: ela se manteve estreitamente ligada à História Social, e ambas permaneceram na sombra, ou pelo menos sob a influência das visões estruturalistas do passado brasileiro. Assim, mesmo quando se trata de derrubar aspectos dessas interpretações, os termos e agendas dos debates continuam sendo aqueles que foram desenvolvidos em meados do século XX, ou seja, o lugar da colônia em um sistema global mercantil, o papel do Estado e sua relação com o poder local, a assimetria das relações sociais, bem como a forma e a função da escravidão enquanto sistema econômico, e um fator determinante das atitudes e dos relacionamentos humanos. Entretanto, a preocupação com a esfera privada e a vida íntima se desenvolveu ao lado da preocupação mais tradicional com a esfera pública, e ambas tenderam a se juntar analiticamente (SCHWARTZ, 2009, p. 183).

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais, a experiência do Brasil moderno é abordada no terceiro ciclo – 5º e 6º anos do ensino fundamental (de oito anos) mediante recortes por eixos temáticos. A novidade da organização curricular – os eixos temáticos –, todavia, não faz desaparecer a clássica progressão, no caso da história do Brasil, em pré-história/colônia/império/república. Tal disposição, inclusive, facilita a identificação de questões e temas cultivados pela historiografia anterior aos anos 70, como também a incorporação de algumas preocupações da historiografia dos anos 80 e 90. A distribuição dos conteúdos por eixos já é indiciária, pois conserva os conceitos estruturantes de relações sociais, natureza e trabalho. O corte marxista, porém, é atenuado com breves inserções que estimulam a discussão sobre “corpo”, “sexualidade”, “meio ambiente”, “mitos de origem”, “imaginário do mar” e o protagonismo de negros, indígenas e agregados. Um exemplo dessa mescla entre o novo

e o mais novo na historiografia brasileira pode ser acompanhado neste conjunto temas elencado pelos PCN. escravização, trabalho e resistência indígena na sociedade colonial; tráfico de escravos e mercantilismo; escravidão africana na agricultura de exportação, na mineração, produção de alimentos e nos espaços urbanos; lutas e resistências de escravos africanos e o processo de emancipação; trabalho livre no campo e na cidade após a abolição; o trabalhador negro no mercado de trabalho livre; imigração e migrações internas em busca de trabalho; grandes proprietários, administradores coloniais, clérigos, agregados e trabalhadores livres (BRASIL, 1998, p. 60-61. Grifos nossos).

Nas propostas estaduais a contribuição difusa das três tendências apontadas por Schwartz se repete e como um agravante: há expectativas de aprendizagem que prescrevem temáticas anteriores à historiografia estrutural e/ou marxista: bandeirantismo, contribuições do negro, do índio e do europeu para a formação cultural brasileira, domínio da União Ibérica, invasões holandesas e sistema de capitanias hereditárias. Das matrizes dominantes até os anos 1970 são exemplos as proposições sobre os modelos de colonização – povoamento e exploração –, implantação, características, contradições e crise do sistema colonial, contradições de classe, causas, características e consequências das economias do açúcar e do ouro, características da empresa colonial, da escravidão e da monocultura do açúcar, características da administração portuguesa colonial, consequências do escravismo para o sistema político nacional, contribuições de negros, europeus e indígenas para a formação da identidade nacional, protagonismo da Igreja Católica e do colonizador europeu. Por fim, das temáticas aventadas pela historiografia recente, são discutidos os processos de acumulação e de abastecimento interno, o sertão como região não submetida ao domínio colonial, a relação entre economia aurífera e arquitetura e urbanismo das cidades, as consequências da ocupação da terra para os domínios indígenas e o meio ambiente, condições sociais dos afrodescendentes e indígenas, modos de vida indígena, encontros entre portugueses e indígenas, plurietnicidade e multiculturalismo dos grupos sociais, trocas culturais, resistências ao escravismo entre indígenas, africanos e afrodescendentes. É necessário destacar que tais apropriações renovadas raramente exploram o local como produtor de experiências inauditas, sendo comum a sua interpretação como

caixa de ressonância da experiência, digamos, metropolitana. Por isso, recortamos um sujeito histórico – povos indígenas – recentemente alçado à categoria de protagonista para refinar o exame sobre a incorporação do novo, em termos historiográficos, nas prescrições curriculares do novo milênio.

5. Indígenas - de vítimas a protagonistas

Durante séculos e até, aproximadamente, os anos 1970, predominou entre os cronistas e historiadores a tese da extinção, ou seja, os povos indígenas tendiam ao desaparecimento total (Cf. Monteiro, 1995). Indígenas também eram considerados ingênuos, bestas, bárbaros (Cf. Bittencourt, 2005) e até incapazes de conviver com o trabalho agrícola europeu (Cf. Coelho, 2009). Todavia, entre meados da década de 1980 e os anos 1990 a escrita da história sobre os indígenas modificou-se bastante. De homogêneos, exóticos, anônimos, despersonalizados, vítimas e não evoluídos passaram, em muitos casos, a protagonistas, ou seja, agentes históricos capazes de agir e de reagir com autonomia, capazes de inventar e reinventar suas práticas sociais e culturais, suas identidades ao longo do tempo, enfim, indígenas como seres que compreendem, acompanham e interagem com as mudanças do seu entorno. No que diz respeito ao período colonial, por exemplo, os estudos de tradição antiga, tiveram uma espécie de renascimento neste período, com a exploração de arquivos antes inexplorados (como dos cartórios e das dioceses) e com um novo aproveitamento dos ricos acervos portugueses, com certo destaque para os processos do Santo Ofício. O resultado foi uma verdadeira explosão de estudos sobre os escravos e a escravidão, sobre os cristãos novos e a Inquisição, sobre as mulheres, sobre os pobres, sobre os “desclassificados”, enfim sobre um vasto elenco de novas personagens que passaram a desfilar no palco da história brasileira, junto com novas perspectivas sobre a história social, demográfica, econômica e cultural (Monteiro, 2001, p. 7).

Os estudos recentes ampliaram o período de análise, incorporando a experiência indígena do século XX. Hoje, denunciam o não cumprimento de direitos por parte do Estado – que resultou em práticas de etnocídio, genocídio e expulsão da terra – e exploram, sobretudo, a capacidade de os indígenas modificarem suas formas de representar a si próprios e aos não indígenas, de transformarem e recriarem suas identidades (Cf. Almeida, 2003).

Nos PCN, entretanto, tais perspectivas inovadoras parecem não ter se concretizado como prescrição curricular, se considerarmos as críticas desferidas por Aracy Lopes da Silva (2001). Para esta especialista, os Parâmetros contemplaram perspectivas antropológicas e históricas não sem algum ruído. Além disso, incluíram conceitos opostos, como sociedade indígena e comunidade indígena, mantiveram expressões incompatíveis como “lendas” e “mitos” indígenas, estimularam o conhecimento histórico sobre os indígenas a partir de fora, pela via do contato, e legitimaram classificações evolucionistas (Cf. Silva, 2001, p. 122-127). Nas expectativas de aprendizagem da última década, os estados incluem a experiência indígena local, em contraposição à ideia de índio genérico, difundida pela historiografia anterior aos anos 1970. Também exploram diferentes aspectos dos modos de vida, a exemplo de ritos de passagem, práticas religiosas, econômicas e políticas, funções sociais de homens, mulheres e crianças, representações de si e dos outros – em alguns casos, postos em comparação com os modos de vida europeus e africanos e outros sujeitos coloniais. Os objetivos educacionais mantém o tom de denúncia aos direitos indígenas, sobretudo em relação à terra e à diversidade cultural, associando condições indígenas, quilombolas em alguns estados. São enfatizadas as marcas deixadas pelo trabalho escravo na organização social e política brasileira. Em paralelo, as expectativas informam sobre situações de protagonismo, expresso pelo conceito de “resistência”, sobretudo, “cultural”. No entanto, o apelo ao reconhecimento da “contribuição dos índios” para a “cultura brasileira” ou “formação cultural e étnica brasileira” – dentro da tríade: africanos, indígenas e europeus – ainda convive com objetivos academicamente aceitáveis, a exemplo da “importância indígena na história nacional”.

Conclusões

Iniciamos este texto anunciando uma hipótese e uma carência que esperamos tenham sido comprovadas no curso das nossas argumentações. Em primeiro lugar, é fato que a historiografia acadêmica sofreu modificações significativas nas últimas três décadas do século XX, justificando, em muitos casos, o emprego do qualificativo “novas”. Com tempos e espaços diferenciados, evidentemente, a ideia de história – ciência e processo – migrou do sentido de progresso para a desconfiança no mesmo progresso ou até a perspectiva da desrazão, o tempo presente foi incorporado como objeto de estudo dos historiadores, a colônia deixou de ser apenas o espaço da experiência econômica estrutural e os indígenas, de vítimas, transformaram-se em protagonistas. Com relação à carência anunciada, espero que tenhamos demonstrado que nem sempre a mudança na historiografia acadêmica significou mudança nas propostas curriculares destinadas aos anos finais do ensino fundamental. Essa discrepância tem suas razões. Uma delas é a constatação – tornada lugar comum entre os docentes – de que nem toda a pesquisa acadêmica tem uma função, digamos, didática, isto é, serve para fazer cumprir os objetivos educacionais prescritos numa cadeia de dispositivos nacionais e locais. Além disso, não há no Brasil uma política centralizadora de prescrição dos conteúdos históricos, como costumamos, em alguns casos – irresponsavelmente – afirmar. Consequentemente, as diferenças em termos de autoria das propostas – efetuadas por professores do ensino básico, técnicos das secretarias, comissão de especialistas historiadores, entre outras –, de maior ou menor proximidade entre os cursos de licenciatura em história e os corpos docentes do ensino fundamental e médio, força ou fragilidade das instâncias de organização desses mesmos docentes, e do espaço ocupado no imaginário local pelos exames nacionais que definem o acesso ao ensino superior, pautando, efetivamente, o que deve ser apresentado ao aluno como conteúdo, entre outras nos aconselham a refletir sobre o que não migra, por que não migra, o que é possível migrar e o que é relevante migrar da historiografia acadêmica para a historiografia escolar. Tais diferenças nos estimulam, enfim, a pensar sobre as limitações da historiografia acadêmica como determinadora da historiografia escolar e, ainda mais importante, as limitações do discurso sobre a diversidade de conteúdos em um país que almeja, ao mesmo tempo, igualdade de direitos e oportunidades e

manutenção do espaço conquistado nos últimos 10 anos de 6ª potência econômica no mundo. Pensemos sobre essas questões.

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Ela se ocupa, entre outros objetos, dos modelos de interpretação, métodos, ideias, problemas, funções (Cf. BLANKE, 2006). Isso quer dizer que a apresentação das mudanças poderia ganhar o corpo de uma lista dos – novos ou resignificados – modelos, métodos, ideias problemas e funções da história-ciência. 2 Comparar é por em paralelo dois ou mais elementos (discursos, modelos, acontecimentos, representações) com o objetivo de examinar semelhanças e diferenças, aproximações e distanciamentos (Cf. HOUAISS, 2007). Esse sentido geral é empregado desde o século XIX, com a intenção de verificar especificidades e regularidades que possibilitassem a previsão de problemas e até mesmo a criação de modelos de excelência (Cf. NÓVOA, 2009), que não é o nosso intento. Aqui, a comparação entre objetos da historiografia acadêmica e objetos da historiografia escolar tem a finalidade de examinar os sentidos atribuídos por diferentes autores (Cf. FERREIRA, 2009) – no caso, os elaboradores das propostas curriculares – às “novas tendências” historiográficas cultivadas no Brasil (Cf. FREITAS, 2012).

Modelo é “uma construção intelectual que simplifica a realidade com o objetivo de entendê-la”. Um modelo omite elementos do real e transforma alguns outros (variáveis) “em um coerente sistema interno de partes interdependentes” (BURKE, 2002, p. 47). Aqui, empregamos o tipo monotético, ou seja, o modelo em que a presença de “um conjunto único de atributos é suficiente e necessária para configurar a participação” (BURKE, 2002, p. 52). 4 Afinal, dificilmente o professor de história ou o autor de livro de história considera, por exemplo, conceito de “solidariedade” como um “assunto” autônomo no currículo de história. 5 O fato de citarmos não significa que concordemos com tais balanços. Entretanto, não é a posição dos historiadores da historiografia aqui citados que está em questão e sim a relação entre o que eles apontam como significativo e o que os elaboradores de currículos entendem como digno de frequentar as expectativas de aprendizagem destinadas aos alunos da escolarização básica. 3

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