Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000

July 6, 2017 | Autor: Alejandra Estevez | Categoria: Sociologia do Trabalho
Share Embed


Descrição do Produto

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000 Alejandra Estevez

Introdução Este artigo analisará as atividades e redes de relações constituídas pela Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda durante os bispados de dom Waldyr Calheiros de Novaes e dom João Maria Messi nas décadas de 1990 e 2000. Trata-se de uma diocese com uma identidade marcadamente operária, vinculada à proposta da Teologia da Libertação e assentada na ideia da “Igreja dos pobres”. Durante minha pesquisa de campo, pude constatar um consenso mais ou menos consolidado, mesmo entre os não católicos, de que dom Waldyr foi um personagem central para a história da cidade, sobretudo nos anos do regime militar. Sua figura foi, assim, apropriada por diferentes grupos sociais e hoje simboliza a resistência e a luta contra qualquer tipo de opressão e injustiça, como veremos logo adiante. Em contrapartida, o governo episcopal de dom João foi comumente apontado como menos combativo, mais voltado para questões intra-eclesiásticas por assim dizer. Dessa maneira, todos os acontecimentos rememorados, individual ou coletivamente, funcionam como fomentadores de identidades coletivas e garantem a coesão social do corpo católico na cidade, baseado na ideia de uma época de ouro do catolicismo na cidade. Daí decorre outra questão, de caráter mais amplo: se, como Roberto Romano (1979) afirma, a Igreja reflete as demandas e assuntos em debate na sociedade, de que maneira se configura hoje a memória de um passado idealizado de lutas e conquistas, vividas, sobretudo, sob uma conjuntura marcada pelo autoritarismo e perseguições políticas, rememorado apenas em seus atos bem-sucedidos? E por que razão o tempo presente carrega a marca da desarticulação, perda de influência no âmbito político e predominância de um individualismo religioso? O tempo de dom Waldyr parece não permitir fracassos, do ponto de vista da resistência coletiva, nem retrocessos. Veremos, contudo, um período pautado por negociações e concessões, ao mesmo tempo em que marcado pela força política de seu bispo-herói. Observaremos também novas perspectivas de intervenção social, principalmente através de

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

pastorais que surgem ou se desenvolvem com maior fôlego nos anos 2000, gestadas sob o bispado de dom João. Diante da disseminação de uma visão personalista, baseada no carisma atribuído à autoridade episcopal, mas também aos líderes religiosos locais, procurei ficar mais atenta às continuidades do que às rupturas, aos processos de transição do que ao discurso idealizado. É nesse sentido que se impõe uma análise em termos de hegemonias e disputas através das práticas dos atores religiosos em seus múltiplos papéis sociais. Essa postura teórico-metodológica nos permitirá notar os novos espaços, movimentos e maneiras de pensar que surgiram durante a década de 2000. Refletir sobre essas transformações nos conduz necessariamente a uma análise integrada da conjuntura políticoeconômica local, nacional e internacional, do estágio de organização dos movimentos sociais e da posição que os grupos católicos exercem na dinâmica do campo religioso. Novas e velhas formas de enxergar o mundo se mesclam, contrapõem, sobrepõem, para forjar um corpo ideológico mais ou menos consensual capaz de gerar identificações e práticas comuns. Com isso, procuro ir de encontro às interpretações que negam a intervenção religiosa na vida política, tanto local quanto nacional. O embate entre autoridades – eclesiásticas e laicas – bem como o discurso de defesa dos direitos humanos e da justiça social são exemplos de intervenções políticas diretas efetuadas por diversos religiosos e leigos, mas que, vale sempre ressaltar, não encontram uma explicação mais completa apenas na análise dos elementos políticos. Com base em uma pesquisa mais ampla, que remonta à Diocese nos anos 1960 quando da chegada de dom Waldyr à Volta Redonda, identifiquei três momentos distintos na história diocesana. Em primeiro lugar, defendo que durante o regime militar e no contexto de reabertura política do país, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Teologia da Libertação forneceram uma justificativa ideológica forte o suficiente para desenvolver o trabalho pastoral nas comunidades de base e conquistar a aprovação da sociedade civil. Isto é, durante o bispado de dom Waldyr até o final dos anos 1970, setores progressistas ocuparam a hegemonia no interior da CNBB e possuíam o consentimento da maioria da população. Nesse momento, os embates entre a Igreja local e o Estado autoritário foram recorrentes e a perspectiva progressista assumida pela instituição católica começa a ser delineada através sobretudo da figura do bispo diocesano dom Waldyr.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

Já os anos 1980, serão marcados pela reorganização do movimento sindical, capitaneado pelo Novo Sindicalismo que em Volta Redonda experimentou uma especial efervescência política1. Este período pode ser caracterizado pela coexistência dos setores católicos engajados com os novo-sindicalistas, articulados por “afinidades eletivas” (WEBER, 2001), e de cujo convívio se forjam matrizes discursivas que se aproximam em muitos sentidos. Contudo, as décadas de 1990 e 2000 impõem uma realidade completamente distinta tanto para o movimento operário, a partir da implantação do projeto neoliberal no país e do plano de privatização da CSN no caso de Volta Redonda, como para os setores vinculados à Teologia da Libertação. Este último período analisaremos mais detidamente ao longo deste artigo. A crise do movimento sindical afeta em cheio a organização coletiva da classe trabalhadora e, como consequência, emergem renovadas forças políticas que começam a se articular coletivamente com base em outros repertórios identitários. Nesse sentido, Roberto Romano (1979) pode contribuir para a interpretação destas transformações quando coloca que a Igreja católica, de maneira geral, reflete as demandas formuladas pela sociedade civil, sobretudo através dos movimentos sociais. O chamado neoconservadorismo católico, de que fala parte da literatura especializada (MAINWARING, 1989; LOWY, 2000; SERBIN, 2001), mais bem delineado durante o papado de João Paulo II, definiria a ascensão de forças conservadoras na direção da Igreja romana, geralmente organizadas contrariamente ao avanço da Teologia da Libertação na América Latina, evidenciando o reequilíbrio de forças na disputa por hegemonia no interior do campo católico. No entanto, as dioceses particulares respondem de maneira própria às determinações institucionais. Nesse sentido, não parece acertado – para não dizer injusto – desvalorizar uma série de atividades e articulações coletivas protagonizadas por atores católicos no interior da Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nessas profícuas últimas duas décadas de lutas sociais. É preciso, antes, compreender o que se transforma, como se transforma e, em alguns casos, se efetivamente se transforma radicalmente como vem sendo difundido na memória local.

1

Do ponto de vista da Igreja católica, ela experimenta um momento que vai ser denominado de neoconservadorismo (LOWY, 2000). Esta interpretação foi forjada por parte de seus intelectuais orgânicos (GRAMSCI, 1982) mais ativos e incorporada por alguns sociólogos e antropólogos.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013. Não pretendo, portanto, analisar este período em termos de “crise dos movimentos sociais”, mas, partindo das conclusões colocadas por Gohn (2008), definir, antes de tudo, quais seriam estes “novos movimentos sociais”. Para isso, levaremos em consideração, ao mesmo tempo, a herança deixada pelos anos 1980 e a ampliação dos sujeitos sociopolíticos presentes na cena pública. Importante notar que não se pensa em termos de refluxo dos movimentos sociais, mas constata-se alterações nas formas de mobilização e de atuação – hierarquização e ação em rede. As alterações do papel do Estado em suas relações com a sociedade civil dão origem a políticas públicas que, sobretudo no século XXI, priorizam os “pobres e excluídos” – segundo o linguajar herdado dos anos anteriores – através de programas e planos de inclusão social. Na opinião de Gohn, durante esse período: Transformam-se as identidades políticas desses sujeitos (...) em políticas de identidades, pré-estruturadas segundo modelos articulados pelas políticas públicas, arquitetados e controlados por secretarias de Estado, em parceria com organizações civis – tipo organizações não governamentais (ONGs), que desempenham o papel de mediadores. Criam-se, portanto, novos sujeitos sociopolíticos em cena, demarcados por laços de pertencimento territorial, étnico, de gênero etc., como partes de uma estrutura social amorfa e apolítica. (GOHN, 2008: 13)

No meu campo de pesquisa específico, no entanto, estes movimentos de cunho identitário não comportam apenas a carga da cooptação estatal e da despolitização desencadeadas pelas estruturas políticas dominantes, levantada pela autora. Podemos enxergar também criatividade, intervenção política mais ou menos autônoma em assuntos de interesse coletivo e o aproveitamento de um saber fazer advindo de uma experiência e memória vivida e/ou herdada. Conforme argumenta Lima (2010), a existência de uma cultura política bem assentada na experiência local pode desencadear processos de organização coletiva com significativo grau de autonomia frente às instituições tradicionalmente hegemônicas. No caso de Volta Redonda, a Igreja católica da região, principalmente através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), foi responsável pelo desenvolvimento de um ativismo social, ao longo dos anos 1960, 1970 e 1980, que deixou profundas raízes nas formas de organização coletiva nos anos que se seguiram, mesmo quando ela não era mais a única instituição que capitaneava os processos de mobilização coletiva na cidade.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

A aproximação entre as matrizes discursivas católica e sindicalista Eder Sader, em seu clássico estudo Quando Novos Personagens Entraram em Cena, identificou a emergência da imagem do “cotidiano” como fonte de (res)significações para os setores de oposição ao regime militar. Segundo o autor, estes novos movimentos sociais surgidos em finais da década de 1970 e consolidados no imaginário coletivo na década seguinte, enfatizaram em seus discursos e construções ideológicas a importância do “cotidiano”. O cotidiano aparece, assim, como “lugar de resistência, base desde onde se gesta um projeto autônomo das classes subalternas, livres dos discursos elitistas conformados e institucionalizados em agências que lhe são exteriores” (1988: 141). Tomando como referencial esta interpretação, considero que a valorização da realidade cotidiana ajudou a forjar temas, imagens e aspirações que contribuíram para reformular o olhar relativo ao modo de vida dos trabalhadores, até o ponto em que essa gramática discursiva pôde ser experimentada pelos próprios trabalhadores na ressignificação de suas experiências particulares passadas, presentes e futuras. Embora os sujeitos históricos não sejam totalmente livres para produzirem seus discursos e, portanto, o façam a partir de matrizes discursivas já constituídas e institucionalizadas, eles são capazes de expressar práticas de resistência e projetos de ruptura. Desse processo, podem resultar novos “modos de abordagem da realidade”, que implicam a afirmação de valores e significados até então silenciados ou interpretados sob outras chaves de leitura. Esse percurso discursivo, no entanto, depende necessariamente da produção e reprodução de ambientes e práticas objetivas de onde se originam as falas. Os trabalhadores atribuem, dessa maneira, novos significados às suas condições de vida, reelaborando sua realidade e discursos previamente construídos sobre si mesmos. As três matrizes discursivas identificadas por Sader – a católica inspirada pela Teologia da Libertação e atuação das CEBs, a marxista e a sindicalista – compartilham esse “modo de abordagem da realidade”. Todas essas matrizes se encontram e entrecruzam na realidade concreta. Interessa-me aqui particularmente verificar as proximidades e distanciamentos existentes entre as matrizes católica e sindicalista. Nesse sentido, através da análise dos Boletins Diocesanos dos anos 1980, periódico interno da diocese, pretendo sinalizar como a matriz discursiva católica possuía grandes afinidades com a matriz discursiva

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

sindicalista, implicando na construção e defesa de pautas comuns em diversas situações, no caso de Volta Redonda. Hélio da Costa (2007) aponta uma origem bastante heterogênea para o movimento do Novo Sindicalismo, contando com militantes das CEBs, das organizações de esquerda, das oposições sindicais e dos sindicatos que se opunham ao bloco hegemônico que predominava no movimento sindical até então. Verifiquei a publicação de manifestos e matérias veiculadas nos jornais das oposições sindicais e dos sindicalistas vinculados ao bloco contra hegemônico nos Boletins Diocesanos, ao lado de entrevistas e manifestações onde ganhavam destaque a atuação dos militantes católicos, demonstrando uma interpenetração de vivências, a proximidade nos debates e um objetivo último comum, tendo em vista o combate à ditadura militar, muito desgastada em fins dos anos 1970 pela deterioração das condições de vida da população, sobretudo entre as camadas populares. Estes “novos personagens” que entraram em cena, como se referiu Sader (1988), povoariam dali em diante o cenário das lutas populares e sindicais. No meio sindical, os princípios de liberdade e autonomia foram defendidos como estratégia de combate ao modelo corporativista atrelado ao Estado e mobilizaram os trabalhadores de base. Esta faceta do movimento do Novo Sindicalismo se aproximava dos católicos engajados, muitos deles também operários, nos obrigando a pensar em termos de uma via de mão dupla, com o intuito de não condicionar o desenvolvimento dos setores católicos engajados apenas às ações desempenhadas ou animadas pelos militantes sindicais. O deslocamento da militância para espaços extra fabris, como a ocupação dos bairros, ou mesmo a estratégia de conversas e abordagens nos pontos de ônibus, distante dos olhares da polícia política, resultaram no envolvimento das famílias em greves, manifestações e participação política sob diversas formas. Sem dúvida, a experiência acumulada nas CEBs, a formação político-religiosa empreendida pela Igreja nas comunidades e reuniões de pastoral e a ocupação dos espaços religiosos das igrejas locais são responsáveis pelo entrecruzamento das matrizes discursivas que ora se encontravam, ora se distanciavam. Assim, considero que os movimentos sociais se constituem nos anos 1980 recorrendo a essas matrizes, adaptando-as a cada situação objetiva e modificando-as ao longo do tempo. No caso do catolicismo da libertação, este se manifesta em contraposição a um catolicismo centrado na salvação individual e no conformismo político. Assim, a ênfase no cotidiano é

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

intimamente acompanhada da primazia dos oprimidos e dominados, incitando-os a se organizarem e entenderem-se enquanto sujeitos capazes de, coletivamente, efetuar a transformação social. Por um lado, é consenso que os setores conservadores perderam espaço dentro do catolicismo brasileiro, sobretudo após 1968, numa tendência inversa ao que ocorria em âmbito político nacional (avanço das linhas mais extremadas no interior das Forças Armadas). Por outro lado, pode-se dizer que uma nova cosmologia foi assumida abertamente pela própria CNBB e esteve presente na maioria dos discursos elaborados por lideranças católicas engajadas, tal qual no caso da diocese de Volta Redonda. Em geral, com relação ao nível de engajamento do operariado brasileiro, percebe-se que reivindicações como reajuste salarial, melhorias nas condições de trabalho e questões objetivas locais foram responsáveis pela mobilização do maior número de trabalhadores. No contexto de abertura política, a luta pelo direito de escolha dos representantes sindicais e também de seus governantes em nível municipal, estadual e nacional também constituíram pontos de unidade no meio operário. Nesse sentido, a matriz discursiva sindicalista que enfatizava um movimento dos trabalhadores construído desde suas bases, fortemente presente na origem da CUT e do PT, revela muitos pontos de contato com a matriz discursiva católica, também presente e voltada para o meio operário, ao utilizar como estratégia de incitamento à ação coletiva questões pragmáticas diretamente ligadas ao cotidiano dos trabalhadores. As questões ideológicas mais gerais em torno do sistema capitalista ou da luta pela democracia pura e simplesmente, apesar de estarem enraizadas em ambas as matrizes discursivas e, portanto, comporem o imaginário das lutas nesse período, parecem ter atraído menos a classe e as comunidades de base, conforme pude constatar. A tendência católica mais recorrente, neste momento, é aquela que se identifica claramente com o PT, participando da constituição das identidades de ambas as entidades: o partido e as comunidades inspiradas na Teologia da Libertação. Assim, a ideia de um partido formado pelo próprio povo se coaduna perfeitamente com o discurso das bases preconizado pelos setores da Igreja. A fala de dom Waldyr deixa claro tal pensamento: Sabemos que muitos usam o nome dos trabalhadores para criar seus partidos. À custa de siglas de operários e trabalhadores conquistam as Câmaras e até a Presidência da República e lá chegando só procuram defender seus interesses na manutenção da situação e nada fazem na defesa dos que lhes deram a sigla. Os

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

trabalhadores são objeto de trampolim. Creio que hoje os operários já não aceitam ser tratados como menores e incapazes. Daí a importância de que os próprios operários tenham seu Partido político, criado e dirigido por eles. O que não aceitamos é este diploma de menores tutelados que querem dar aos operários, como se eles fossem incapazes de participar diretamente da política, dentro de uma sociedade de classe, na defesa de sua classe. Defendemos a criação do PT como lugar natural onde o trabalhador deve defender seus interesses. Isto não exclui que outros que não são operários, mas que notoriamente estão ao seu lado e de sua causa, sejam também do Partido dos Trabalhadores. Sou, portanto, a favor de que os trabalhadores tenham o seu Partido.2

A identidade operária, fortemente enraizada no imaginário coletivo da cidade de Volta Redonda, cuja população economicamente ativa se concentra majoritariamente na Companhia Siderúrgica, contribui para esta afinidade entre partido e Igreja. Essa posição é igualmente expressa na fala do sociólogo Piragibe Castro, em palestra sobre a história dos partidos políticos no Brasil, realizada nos dias 20 e 21 de dezembro de 1980: A formação de um partido a partir do povo, das bases, que identifique suas aspirações, suas lutas, suas necessidades até hoje não aconteceu no Brasil. Atualmente, em meio a todos os partidos que surgem, o PT se forma de modo contrário a todos os outros. Surge da base, é a base que se organiza. É a tentativa do povo, da classe operária, de ter um lugar para manifestar suas reais aspirações, suas necessidades, suas lutas.3

Neste documento, percebe-se como a ação coletiva aparece no discurso católico progressista quase como um elemento teleológico, surgida quase espontaneamente do desejo das massas verem suas reivindicações atendidas. A autonomia e participação reivindicada pela criação e organização de entidades legitimamente constituídas pelos trabalhadores seria na década seguinte desafiada pela nova conjuntura econômica que se impunha ao país com a chegada do projeto neoliberal. Dessas transformações e acomodações trataremos a seguir.

Católicos progressistas e movimentos sociais: uma extrapolação de campos Volta Redonda sofre, nos anos 1990 e 2000, as consequências do avanço da política neoliberal, especialmente após a privatização da CSN, em 1993. A instalação da fábrica da Volkswagen Caminhões e Ônibus na cidade vizinha de Resende, em 1996, caracteriza-se como mais um fator que contribui para a transformação do perfil econômico da cidade de

2 3

Boletim Diocesano – ano XI – nº 195 – jan 1981, p. 3. Boletim Diocesano – ano XI – nº 195 – jan. 1981, p. 4.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

Volta Redonda na região Sul Fluminense e delineia um novo panorama de mercado de trabalho e perspectivas para o futuro. De um momento anterior em que se apresentava como impulsionadora da economia regional, a Cidade do Aço passa a viver uma conjuntura do que vou chamar de desoperariação. Isto é, frente ao dramático quadro de desemprego, ocasionado pelo modelo da “produção enxuta” adotado com mais fôlego após a privatização da usina (em 1993), o serviço público municipal e o setor de serviços passam a absorver a mão-de-obra local, transformando assim o perfil desse trabalhador. Poucos dos operários da CSN, que perderam seus empregos nas diversas ondas de demissão ao longo da década, foram contratados pela empresa da cidade vizinha. Além disso, como chama a atenção Ramalho (2006), estas mudanças vão implicar em profundas modificações no meio sindical da região, com a emergência de novas lideranças oriundas de Resende e a perda de hegemonia do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda, quando deixa de deter a maioria da base sindical da região. Do ponto de vista da Igreja católica, ela enfrenta, em nível nacional, as mudanças advindas tanto do campo religioso como do domínio político. Na década de 1990, mais uma vez, vêm à tona as ambiguidades e a diversidade de discursos no interior do catolicismo. De um lado, a Renovação Carismática Católica (RCC) mobilizou os modernos recursos de marketing e projeção de padres cantores na mídia como estratégia de modernização e adequação aos novos tempos, dentro de uma perspectiva mercadológica. De outro, o grupo organizado em torno da Teologia da Libertação continua procurando formas alternativas para intervir na realidade e colaborar no sentido da transformação social, através de um discurso politizado de esquerda, traduzido, por exemplo, através de seu engajamento nas ações e debates sobre métodos de produção da economia solidária4. Como vimos pouco antes, ao longo dos anos 1980, verifica-se em Volta Redonda uma estreita relação entre o movimento sindical, principalmente o Sindicato dos Metalúrgicos, e os movimentos sociais e católicos. Diante desse contexto, temos a “abertura” do sindicato aos 4

Prova disso é a presença da Igreja Progressista brasileira na concepção e evolução do Fórum Social Mundial (FSM). Dos atores que participaram da criação do FSM, metade deles estiveram direta ou indiretamente envolvidos com a Teologia da Libertação ou com organizações conduzidas pela Igreja católica, tais como Comissão Brasileira Justiça e Paz, Associação Brasileira de ONGs (ABONG), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para maiores informações, consultar: LEVY, Charmain. “Influência e Contribuição: a Igreja Católica Progressistas Brasileira e o Fórum Social Mundial” in Religião e Sociedade, vol. 29, n°2, Rio de Janeiro, 2009.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

demais movimentos sociais surgidos, em sua maioria, sob a iniciativa da Igreja Católica e a liderança do bispo dom Waldyr (SANTANA, 2006). Por sua vez, muitas das lideranças mais combativas que ajudariam a reestruturar o Sindicato surgem de entidades católicas, tais como a JOC e ACO com grande capilaridade no meio sindical, e as CEBs nos bairros (MANGABEIRA, 1993). Nesse sentido, remontando ainda para os anos anteriores à experiência do Novo Sindicalismo na cidade, é importante destacar a constituição de um habitus que se desenhava em Volta Redonda através do trabalho de base desenvolvido pela Diocese local na figura principalmente das CEBs. Tal como Lima (2007), destaco a continuidade na participação política da população local, herança de um acúmulo de experiências adquiridas no âmbito da Igreja católica. Deparamo-nos, então, com um habitus político5, por assim dizer, que se assenta nas ações coletivas vivenciadas no âmbito dos bairros e das comunidades e que é capaz, posteriormente, de manter certo grau de autonomia, tanto frente à instituição católica como frente aos sindicatos, após a desestruturação do modelo de intervenção social baseado na ação das bases. Assistimos assim, no caso brasileiro, a confluência de propostas e posicionamentos entre atores católicos e sindicalistas. Do ponto de vista institucional, são diversos os exemplos de pronunciamentos da CNBB em que as críticas ao modelo econômico nacional, às políticas sociais e trabalhistas, convergem em muitos casos com aquelas formuladas pelas instituições sindicais, ao ponto de construir seus discursos nos mesmos termos e expressões. No plano do tecido social, a múltipla participação em tipos diferentes de movimentos – católico, sindical, político-partidário etc. – já seria um indício dessa afinidade eletiva6. Juntamente a isso, ainda podemos lembrar a composição de lideranças católicas nas direções dos sindicatos, centrais sindicais e partidos políticos, a formação política no âmbito das CEBs onde se afirmava abertamente a opção pelo PT e pela CUT, na conjuntura dos anos 1980, bem como a incorporação de lutas sociais identitárias em torno dos negros, mulheres, sem-teto, sem-terra etc., nas décadas seguintes. Em Volta Redonda, a trajetória da última década do bispado de dom Waldyr Calheiros é afetada pelas transformações neoliberais que impactam sensivelmente o meio operário. 5

O conceito de habitus político se inspira na categoria de habitus cunhada por Norbert Elias para expressar um saber social incorporado ao longo da vida (política) de um indivíduo em sociedade (ELIAS, 1994). 6 Utilizo aqui um conceito de Weber capaz de dar conta da interpenetração de visões de mundo entre os grupos sociais, ora entendidos como dois grupos com suas especificidades – um religioso, outro político – ora difícil de discernir as diferenças na formulação de discursos e planejamento de atividades a curto prazo

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

Contudo, sua imagem continua nos anos 1990 associada a uma época de ouro na história do catolicismo na cidade. Identificado como o “bispo dos trabalhadores”, defensor da justiça social e intransigente na luta pela transformação das condições injustas de vida a partir da opção preferencial pelos pobres, dom Waldyr se converte na imagem abstrata de todos aqueles que lutam pela construção de um mundo menos opressivo e mais igualitário. Embora muitos entrevistados, em tom de confidência, relatassem uma completa ruptura na condução dos trabalhos pastorais entre dom Waldyr e dom João, pretendo enfatizar certa continuidade do ponto de vista da organização dos movimentos sociais na região. Isto é, argumento que as transformações colocadas pela “década neoliberal”, ao imporem uma reformulação nas relações entre movimento sindical e os movimentos sociais, não são suficientes para frear a ação de grupos dotados de uma coesão interna que remonta às experiências vividas no interior das comunidades ao longo do período anterior. Nos limites deste artigo, privilegiarei a análise do papel das CEBs na diocese, por entender que se trata da experiência mais duradoura e também com maior capilaridade na vida eclesial da diocese. As análises acadêmicas, oriundas, sobretudo, das Ciências Sociais produzidas nos próprios anos 1990, são caracterizadas pela ruptura com uma sociologia engajada, interessada na proposta da Teologia da Libertação e marcada pelo compromisso da Igreja com as classes populares. Nesse âmbito, as experiências das CEBs, que haviam angariado o interesse desses pesquisadores, agora, diante da nova configuração do campo religioso, vão ser ofuscadas frente à emergência dos grupos e instituições protestantes, especialmente os pentecostais e neopentecostais, colocando assim o campo católico numa momentânea zona de penumbra nos estudos acadêmicos. Essa “invisibilidade” do catolicismo seria tão somente rompida pelo interesse da academia em relação ao aparecimento da RCC na cena pública e religiosa no decorrer desta década. No caso específico de Volta Redonda, pude verificar o aumento de atividades desenvolvidas no âmbito das CEBs, que pulam de 43 referências ao longo dos anos 1980 para 53 matérias publicadas no Boletim Diocesano sobre as ações das comunidades de base na década seguinte. Esse dado é interessante justamente por ocorrer em um período apontado pela literatura como de crise nas CEBs7. Esta perspectiva interpretativa está obviamente relacionada à derrota do projeto socialista e à perseguição que o papado de João Paulo II 7

Os Boletins Diocesanos trazem nesse período uma seção exclusiva intitulada Notícias das Comunidades, onde diversas CEBs são chamadas a compartilharem sua trajetória, em tom memorialístico.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013. moveu contra os teólogos da libertação e as bases da chamada “Igreja da Libertação”. Somado a isso, tem lugar uma série de intervenções nas dioceses comandadas pelos bispos mais ativos nas décadas anteriores, como o desmembramento ocorrido na diocese de São Paulo, do cardeal dom Evaristo Arns. Em Volta Redonda, contudo, as CEBs parecem representar, ao lado das pastorais sociais e de atividades mais tímidas implantadas pelos movimentos católicos do meio operário, a permanência do projeto pastoral da Igreja progressista. Aqueles que pensam que o eventual enquadramento institucional se limita a enfatizar a dependência da comunidade em relação ao corpo religioso, tornando inoperante a capacidade organizativa desses indivíduos coletivamente, sem a liderança de um desses agentes, se enganam. Esse repertório organizativo adquirido pelos membros da comunidade pode dar mostras de autonomia no processo mesmo de formação política empreendida pela experiência de decisões comunitárias. Se esses grupos continuam vinculados às normas institucionais da Igreja local, eles se caracterizam como agentes no processo de transformação quanto mais estiverem em contato com atores situados fora da esfera religiosa. Se passarem a ter uma identidade mais política do que religiosa, levando ao engajamento em movimentos sociais de caráter identitário (negros, mulheres, índios etc.), ainda assim essa experiência deixará suas marcas na condução da maneira de se “fazer política”. O crescimento das CEBs na Diocese vem reforçar o que sinalizei pouco antes com relação ao recrudescimento de ações coletivas elaboradas através da mobilização de elementos identitários formulados pela própria comunidade e não mais nos espaços fabris. Ou seja, essa rede de experiências diversificada e dotada de certa abertura permitiu/permite a incorporação de demandas formuladas pela sociedade civil de maneira mais ampla. Em cada comunidade de base observaremos um arranjo de demandas sociais e pastorais específicos, que dependerá de sua história, composição social e rede de relações estabelecidas. Contudo, devido ao seu caráter aberto, estas comunidades têm tido menor visibilidade, provavelmente devido aos múltiplos pertencimentos institucionais de seus atores.

Dom João Maria Messi e as novas diretrizes evangelizadoras Ao analisar os anos 2000, me deparei com uma grande surpresa. Não foram raros os depoimentos orais que apontaram o novo bispo, dom João Maria Messi, como alheio às questões políticas e pouco afeito aos movimentos e pastorais mais engajados. Alegava-se

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

então um governo eclesiástico mais voltado para a formação litúrgica e a ênfase em pastorais e movimentos sem maiores implicações com uma dimensão coletiva mais ampla. Após o início de meu trabalho de campo, me deparei, primeiramente, com o fato de que a maioria dos líderes leigos à frente das pastorais e entidades católicas eram os mesmos que uma década atrás ou mais já haviam ocupado uma posição dentro da dinâmica do campo religioso católico. Isto me levou a questionar essa alegada ruptura entre os dois governos episcopais, uma vez que as lideranças continuavam personificadas mais ou menos nos mesmos atores sociais. Sendo assim, novamente com base nas edições do jornal O Diocesano, pude verificar inúmeros exemplos quanto ao posicionamento e interferência do bispo diocesano dom João em assuntos inquestionavelmente de cunho político. Ao mesmo tempo, a emergência de novas pastorais e movimentos de leigos no interior da diocese não devem ser interpretados como abandono à perspectiva da transformação social. Antes, estas experiências estão em pleno diálogo com as demandas e aspirações de setores da sociedade civil laica ou com as orientações que emanam da CNBB ou da Igreja romana. Gostaria de destacar, ainda, um fenômeno verificado com a chegada de dom João à diocese: a ocorrência de um processo que poderíamos caracterizar como de intelectualização na maneira de abordar as temáticas a serem aprofundadas nos trabalhos pastorais. O grande investimento na formação política e doutrinária, sobretudo dos leigos envolvidos, representa um mergulho na doutrina católica. Além disso, pode ser entendido como um desdobramento da autocrítica efetuada por parte dos militantes católicos mais engajados que julgaram ter privilegiado a participação nos assuntos políticos descuidando-se, por conseguinte, das questões teológicas propriamente ditas. Este processo já havia se iniciado, em verdade, em fins do governo episcopal de dom Waldyr com a criação do Instituto Diocesano Teológico (IDT), em 1996, na cidade de Barra Mansa. O maior investimento na formação teológica de seu laicato, no entanto, não implica necessariamente o abandono do que os próprios diocesanos vão chamar de uma práxis pastoral. Ou seja, é possível constatar a permanência de um pensamento pós-Concílio Vaticano II que inspira as práticas pastorais, buscando, ao mesmo tempo, que seus leigos tenham um maior domínio do cabedal intelectual no campo religioso. Essa orientação não deixa de representar, por outro lado, certo nível de enquadramento e controle por parte da Igreja diocesana, que passa a incentivar e mesmo impelir leigos que já

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

trabalhavam junto às comunidades de base a buscarem uma formação mais reflexiva para desempenhar suas tarefas. Como desdobramento dessa iniciativa, a religiosidade popular, por exemplo, vai sendo assim submetida gradativamente aos rituais institucionalizados pela Igreja diocesana, com espaços mais delimitados e maior presença de sacerdotes, religiosas e do próprio bispo local. Essas transformações no caso específico da Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda estão relacionadas a um contexto mais amplo de mudanças empreendidas pela própria CNBB. No mesmo ano de fundação do IDT, a CNBB lançava, em nível nacional, um novo projeto de evangelização e novas estratégias de intervenção pastoral na sociedade, com vistas ao novo milênio que se aproximava. O imaginário compartilhado à época era de um período de grande incerteza quanto ao futuro, acompanhado de profundas transformações nas relações materiais e simbólicas, como o avanço de um grave individualismo religioso e a conjuntura de precarização das condições de trabalho e instabilidade do emprego8. As CEBs continuam compondo o campo prioritário de ação pastoral. Visando à adaptação da Igreja às transformações em curso no mundo contemporâneo, elas experimentam uma reorientação em relação às questões ecológicas, de gênero, da comunicação, do corpo e das emoções. Teólogos importantes como Leonardo Boff e Frei Betto, muito presentes na mídia e conhecidos do grande público, têm promovido a revalorização da mística, onde a corporeidade, a celebração dançante e as atividades místicoespirituais parecem ganhar terreno ao lado da militância política. O discurso renovado assumido por estes teólogos procuram aliar a questão dos pobres aos temas da ecologia, da mística e do holismo, numa tentativa de aproximação com os ditos “novos movimentos religiosos” (neo-esoterismos e „orientalismos‟ pós-modernos) (CAMURÇA, 2008). É o próprio dom Waldyr, bispo emérito da diocese à época que traduz o olhar da diocese sobre os novos tempos: “É preciso comprometer-se com a democracia, ter a abertura ao ecumenismo e estar recheado de mística”9. Como maneira de ilustrar a abordagem dada pela CNBB ao catolicismo do novo milênio, gostaria de analisar um de seus pronunciamentos públicos. Nas páginas de O Diocesano, podemos ter acesso à publicação da Carta dos Bispos em Apoio às CEBs, onde 8

Este projeto pastoral formulado pela CNBB resultaria na preparação do Ano Jubilar de 2000, na elaboração do Projeto de Evangelização Rumo ao Novo Milênio e no projeto Ser Igreja no Novo Milênio. 9 O Diocesano – ano 31 – nº 441 – junho 2001, p. 6.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

será possível verificar novas categorias presentes no discurso do catolicismo para os novos tempos, suas prioridades e os atores sociais que surgem como interlocutores privilegiados no desenvolvimento do trabalho pastoral. A carta está formulada nos seguintes termos: Exortamos as CEBs a perseverarem em sua vivência comunitária, na leitura orante e popular da Bíblia, no amor à Eucaristia e no compromisso social e político. Estamos conscientes das mudanças e dos novos desafios que exigem transformações nas expressões concretas das CEBs. Queremos acompanhá-las no esforço para intensificar o trabalho de formação dos cristãos e cristãs leigos, conforme as linhas dadas pelo documento 62 da CNBB (Missão e Ministérios dos Leigos e Leigas Cristãos), para: lutar pelo reconhecimento da dignidade e igualdade da mulher, nos diversos âmbitos da vida da Igreja e da sociedade; consolidar a floração dos novos ministérios assumidos igualmente por homens e mulheres, adultos e jovens; manter o fecundo método de trabalho baseado no „ver, julgar, agir, celebrar e rever‟; aprofundar sua espiritualidade e prática ecumênica e de diálogo inter-religioso, a dimensão missionária e de presença transformadora na sociedade, assim como expressão inculturada de suas celebrações e de sua reflexão bíblica, teológica e pastoral. Queremos apoiar as CEBs em nossas Dioceses, com uma maior presença nossa nas bases, assim como a de padres e seminaristas, religiosos e religiosas; dar o melhor de nós mesmos e dos recursos de nossas Igrejas para que continuem desabrochando como comunidades de fé, de anúncio, de testemunho, de comunhão, de diálogo e de serviço entre os mais pobres (cfr. Diretrizes da Ação Evangelizadora do Brasil). As CEBs são herdeiras do sonho de Jesus e de sua missão libertadora, pela qual Ele entregou a sua vida e para a qual nos convocou, dando-nos seu Espírito e sua graça. Que Maria, presente em Pentecostes com os apóstolos, discípulos e discípulas, invocada entre nós como a N. S. Aparecida e, na América Latina, como a Virgem de Guadalupe, acompanhe e inspire, fortaleça e anime nossa caminhada. Bispos católicos do Brasil e da América Latina presentes no X Intereclesial de CEBs10.

O trecho da carta acima transcrito expressa, de um lado, a continuidade do projeto das CEBs, do método criado pela Ação Católica – o ver-julgar-agir – e a dimensão transformadora assumida como missão pela religião católica. De outra parte, o documento revela novas preocupações como a prática ecumênica e o diálogo inter-religioso, além da ideia de evangelização inculturada ou inculturação do Evangelho. Isto é, a categoria “inculturação” denota, nessa cosmologia, a valorização da dimensão cultural neste processo de renovação, marcando em certa medida uma ruptura com a dimensão material enfatizada nos discursos de Medellín a Puebla. Constata-se aqui a consolidação de uma perspectiva multiculturalista nessa nova “maneira de ser igreja”. Dela decorre a presença do ecumenismo religioso e da abertura a diversos sujeitos sociais por parte desse catolicismo renovado dos anos 2000.

10

O Diocesano – ano 31 – nº 441 – junho 2001, p. 7.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

Assim como a História insiste em provar, a aplicação das determinações estruturais vai depender do estágio de desenvolvimento material de dada comunidade aliado ao habitus desenvolvido ao longo do tempo, com implicações simbólicas, culturais e éticas duradouras. Os documentos oficiais vão ter uma particular interpretação de acordo com esse habitus previamente desenvolvido em cada comunidade, paróquia ou diocese, com as experiências em curso no campo religioso, não apenas católico mas em relação com outras experiências do religioso, bem como com as representações identitárias capazes de mobilizar os indivíduos. Na realidade local, práticas tradicionais do catolicismo popular buscam entrar em diálogo com a perspectiva preconizada pela nova evangelização. A devoção a Maria é um bom exemplo dessa tensão entre dois modelos de catolicismo: aquele que Cândido Procópio Camargo vai chamar de santorial, próprio do catolicismo popular, e o chamado catolicismo oficial, conforme definido por Marcelo Camurça. Em matéria sobre o mês mariano do ano de 2001, um artigo busca justificar a pertinência de tal devoção, mesmo diante da proposta da evangelização inculturada da CNBB: Tal devoção, sempre atual e constante do povo fiel está superada? Poderá comprometer a Nova Evangelização, o apostolado inserido, o amor pela justiça, o interesse pelas causas sociais, a opção preferencial pelos pobres? Certamente não! Poderá contribuir para promover a unidade eclesial, a comunhão e a participação na comunidade, alimentar a fé, a esperança e a caridade? Certamente sim!11

Muitos estudiosos vêm apontando uma ruptura entre um modelo de Igreja desenvolvido nos anos 1970 e 1980, marcado pelo comprometimento com os pobres, e um outro tipo de Igreja, mais institucionalizada, que sofre as consequências do processo de restauração romana da Igreja internacional nos anos subsequentes. Faustino Teixeira (2005) vê o abandono da atuação crítica da Igreja oficial nos dias atuais, explicitada em termos de sua inadequação a uma modernidade religiosa tecida pelas experiências pessoais, definida por indivíduos desterritorializados, conforme vai chamar a atenção Brenda Carranza (2011). Nisto consiste a vantagem dos estudos de caso. Eles nos permitem “testar” elaborações teóricas gerais sobre os processos históricos. No caso específico da Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda, defendo a ideia de que as redes de sociabilidade e a legitimidade alcançada pela Igreja local perante a sociedade civil, sobretudo a relação desenvolvida entre os líderes comunitários católicos e outros atores que se encontram fora deste campo, 11

O Diocesano – ano 31 – nº 440 – maio 2001, p. 2.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

imprimem uma dinâmica de intervenção política na vida da região sul-fluminense e articula de maneira criativa as determinações institucionais com a perspectiva de transformação social pós-conciliar. O que a literatura especializada quase sempre tem interpretado como acomodações e refluxo do campo católico, em Volta Redonda parece traduzirem-se na persistência da diocese como ator político poderoso nas disputas locais. Ao longo dos 10 anos do jornal O Diocesano, pude constatar a presença ativa não apenas do bispo dom João como de uma série de movimentos gestados no seio da Igreja local. O espaço do Editorial, intitulado Ave, Cheia de Graça!, na maioria das vezes trazendo temáticas em torno da espiritualidade e do aprofundamento religioso, mencionava também, vez ou outra, situações conflituosas locais, exortando a comunidade a participar ativamente de processos políticos em disputa na cidade. Este é o caso publicado no jornal em julho de 2001. (...) Por causa destas santas palavras, estamos convocando nossas comunidades para tomarem conhecimento dos fatos e se solidarizarem com os posseiros da Califórnia. São 88 famílias, incluindo 11 gestantes e 58 crianças. São cidadãos, filhos e filhas de Deus sem terra, sem teto, sem trabalho e não têm lugar para viver. No dia 23 de abril ocuparam um terreno do DNER, à beira da BR e no mesmo dia foram expulsos. Por sugestão do prefeito municipal acamparam no pátio do CIEP da Califórnia. O Governo do Estado prometeu financiar a construção das suas casas, desde que a prefeitura doe o terreno. O prefeito ofereceu uma terra a 7 quilômetro de Dorândia, na estrada São José do Turvo. Os posseiros não puderam aceitar pois o lugar não oferece as mínimas condições de habitação. O bispo diocesano, preocupado com a situação, agendou um encontro com o Sr. Prefeito, que não apareceu, nem justificou a ausência. Outras tentativas de audiência fracassaram. Esta incapacidade (ou má vontade) do Governo Municipal de resolver a questão vai agravando ainda mais a situação dos posseiros acampados em barracos improvisados de plástico e papelão, além de prejudicar os alunos do Colégio. (...) Diante desta triste realidade, exortamos fiéis, pastores e lideranças das comunidades eclesiais a assumir juntos os seguintes compromissos: - Exigir do Governo Municipal, a partir do conceito de cidadania, que assuma suas responsabilidades e encontre logo uma terra habitável para as famílias de posseiros. - Visitar em grupos e caravanas aquelas famílias acampadas. - Oferecer alimentos não perecíveis, sobretudo leite para as crianças e agasalhos. - Estes serão recolhidos pelas comunidades e enviados diretamente para a Comissão dos Posseiros. (...) Dom João Maria Messi – OSB Bispo Diocesano12.

Este pronunciamento demonstra a mesma estratégia de incitamento do apostolado que era adotada por dom Waldyr desde o período do regime militar, além de evidenciar a coexistência de práticas incisivas contra as autoridades locais e ações de cunho assistencialista 12

O Diocesano – ano 31 – nº 442 – junho 2001, p. 2.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

ou caritativo. Mais uma vez a divisão entre religião e política soa artificial quando analisamos os casos concretos em que diferentes agentes religiosos ocupam um espaço ativo no campo político. Aqui entra em jogo novamente a questão do habitus desenvolvido durante os anos 1970 e 1980 e que se encontra enraizado em certa maneira de organização coletiva e de análise da realidade social. De acordo com esta perspectiva, o mérito do processo de politização de dom João é, em última instância, reservado à agência dos movimentos e comunidades diocesanas, conforme fica evidente na fala de uma entrevistada: Quando o Dom João chegou, a gente achou que ele fosse só preocupado com a parte espiritual. Logo que ele chegou, porque depois a gente percebeu que Dom João é o equilíbrio. Ele é o equilíbrio que talvez Dom Waldyr não tenha tido até porque Dom João não pegou Volta Redonda na mesma situação que Dom Waldyr. Mas a gente viu Dom João nas ruas protestando contra a violência. (...) Ele tem um equilíbrio. Ele reza mas ele também age. Entrou um Dom João e saiu outro. O movimento que nós já tínhamos de política em Volta Redonda mexeu com Dom João. (...) Ele tem uma veia política forte mas que não sobrepõe ao pastor. Ele consegue fazer as duas coisas mais equilibradinho talvez que o Dom Waldyr. Dom Waldyr tem mais o sangue quente13.

Tal como sugeriu a entrevistada, talvez de fato dom João tenha chegado muito mais fechado em suas concepções teológico-políticas, mas parece não poder furtar-se a se posicionar em assuntos que suas pastorais, movimentos e fieis lhe impõem. Neste ponto, a realidade empírica parece colocar em xeque a visão estruturalista que reflete sobre a relação agente-estrutura: não é apenas a instituição que estabelece os termos de ação, que dita as “regras do jogo”. As comunidades de base, o conjunto de movimentos atuantes no interior da instituição católica, orientam a ação de seu chefe religioso para a vida política da comunidade, exigem de seu líder espiritual uma solução para seus problemas sociais, tal qual haviam aprendido a fazer no episcopado anterior. As diretrizes gerais estabelecidas pelo corpo institucional da Igreja no Brasil permitem certa maleabilidade na escolha da abordagem de cada uma das temáticas a serem desenvolvidas por cada diocese e mesmo em cada paróquia e comunidade. Assim, os grupos atuantes na diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda apropriam-se dos trechos e ideais afirmados nos documentos, para legitimarem e embasarem suas ações, totalmente integrados a um saber fazer adquirido desde os tempos da Ação Católica. 13

Entrevista concedida a autora por Lucileia em 27.11.2011.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

Sendo assim, na fala do então vigário-geral, padre Bernardo Thus, a dimensão política é apresentada como nexo indispensável para a plena vivência da ação evangelizadora, em consonância com o habitus católico experimentado pela diocese desde os anos 1960. Munido da tarefa de informar seu apostolado e, ao mesmo tempo, facilitar o acesso ao documento 76 da CNBB – Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil/2003-2006 – padre Bernardo Thus destaca o trecho “É preciso continuar incentivando a participação política de todos os cidadãos e cidadãs e, particularmente, dos cristãos (n° 168)” com o intuito de definir a política como campo de missão. Assim finaliza o vigário-geral: A ação evangelizadora da Igreja tem o desafio de considerar as necessidades que interpelam a sensibilidade cristã, a colaborar para a superação das contradições do crescimento econômico, cultural e tecnológico contra a miséria, a fome e a exclusão. Por uma participação política efetiva dos cristãos, como ato de fé, atentos aos apelos de Cristo na dinâmica de uma nova fantasia da caridade14.

Com base nesse conjunto de diretrizes, foi definido um Planejamento Participativo de Ação Evangelizadora, com o objetivo de aproximar aqueles que se encontravam afastados da Igreja. Tratava-se, em última instância, de um projeto externo traçado pela diocese para a conquista de novos fieis. Este planejamento priorizou a Pastoral Familiar, da Comunicação, Vocacional e do Dízimo, bem como investiu em grupos de evangelização, ações sociais e políticas para superar a miséria e a fome e ações missionárias (visita às famílias e acolhida dos jovens) 15. Mais recentemente, têm se destacado na cidade movimentos em torno da luta pela qualidade de vida ou pela preservação do meio ambiente, dando origem este último ao que Leite Lopes (2004) vai denominar de “ambientalização” dos conflitos sociais. Assistimos então a uma acentuação do engajamento das camadas populares, que implica na substituição de uma lógica baseada na tutela e submissão ao aparato estatal por formas alternativas de organização coletiva onde verificamos a emergência de uma sociedade civil mais atuante e autônoma, da qual emergem novos interesses coletivos, para além daqueles exclusivamente econômico-salariais agregados pelos sindicatos. As discussões em torno da ecologia, sobretudo no que se refere aos impactos ambientais causados pela poluição gerada pela CSN em Volta Redonda e marcada pela luta pela preservação do rio Paraíba do Sul, principal fonte abastecedora de água de toda a região 14 15

O Diocesano – ano 34 – nº 473 – maio 2004, p. 8. O Diocesano – ano 34 – nº 479 – novembro 2004, p. 15.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

sul-fluminense, são objetos de grandes e acalorados debates entre as esferas pública e os movimentos sociais, entre eles o católico. A questão do meio ambiente, conforme já sinalizei, é identificada por parte da literatura acadêmica como a nova frente assumida pelos teólogos da libertação como forma de se adequar aos debates que emergem com o advento do novo milênio. Esta dimensão vai ganhar tamanha centralidade para a diocese, que desde o ano 2001, o jornal O Diocesano reservará uma coluna exclusivamente para o debate de temáticas associadas ao meio ambiente. A coluna intitulada Formação Ecológica, a cargo do biólogo Ângelo José Rodrigues Lima, da UFRRJ, será responsável por elaborar uma crítica social a partir das questões ambientais, tocando em pontos nevrálgicos como a desigualdade social, os problemas de saúde em decorrência das transformações do meio ambiente, o saneamento básico etc. Nem todas as atividades desenvolvidas pelas comunidades, entretanto, estão plenamente de acordo com as orientações pastorais voltadas para a transformação das estruturas sociais que reproduzem a injustiça social. Nota-se, em verdade, a coexistência de modelos tradicionais de catolicismo popular, no qual as práticas caritativas, de ajuda aos doentes etc. convivem com pastorais e movimentos que buscam implementar um trabalho mais adaptado às diretrizes pós-conciliares. Dessa maneira, a Igreja católica dos anos 2000, em Volta Redonda, não se apresenta mais como a instituição privilegiada na organização dessas lutas, tal como havia se constituído nos anos 1960 e 1970 e mesmo nos anos 1980 ao lado do movimento sindical. O que não quer dizer, por outro lado, que ela não continue caracterizando-se como um ator político importante no cenário regional e sendo chamada a posicionar-se nos debates públicos. A Igreja católica de Volta Redonda, na figura de seus agentes pastorais, militantes leigos, sacerdotes e bispo, constitui uma presença ativa na vida política da cidade e, no interior dos mais diversos movimentos sociais, participa na construção de um novo cenário no universo político do sul-fluminense.

Considerações Finais Formulada nestes termos, a questão do radicalismo de dom Waldyr e do conservadorismo de dom João perdem sua centralidade. No lugar da crise, enxergamos transformações conjunturais e a emergência de novos atores sociais, matizamos a importância

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

atribuída à dom Waldyr e iluminamos as iniciativas que tiveram lugar sob o bispado de dom João. A dicotomia percebida no campo passa a interessar apenas no que se refere aos mecanismos de construção dessa memória coletiva. Vista como um momento de refluxo do movimento sindical, a década de 1990 não poderia, na memória coletiva, ser associada à imagem do “bispo dos trabalhadores”. Cabia a dom João, figura tímida, estrangeiro, o ônus não só da crise de setores católicos, mas também da crise que o campo religioso evangélico e o individualismo moderno trouxeram para a instituição e que se aprofundou na primeira década do século XXI. Se levarmos em consideração neste ponto o ensinamento de Michael Pollak (1992) com relação às disputas da memória, poderíamos concluir uma vitória da memória que não é exatamente a de dom Waldyr, mas dos setores católicos ligados à Teologia da Libertação, do qual ele é depositário. Apesar de não mais hegemônica na Igreja católica a partir dos anos 1990, esta corrente ainda exerce forte influência no imaginário da cidade, ao evocar um passado de lutas e conquistas. Novos setores católicos, gestados durante o bispado de dom João ou nele mais plenamente desenvolvidos, constituem hoje uma realidade na diocese. Estes, através do principal veículo de comunicação da diocese, o jornal O Diocesano, têm buscado dar visibilidade às suas ações, encontros e atividades recentes, participando do jogo de disputa por hegemonia, no qual a memória é elemento privilegiado na persuasão da sociedade civil. Ao percebermos estagnações no passado, no bispado de dom Waldyr, e permanências no presente, com dom João, pretendi identificar e analisar, de maneira breve, os elementos externos e as dinâmicas internas de disputas por hegemonia e intervenção na vida pública. Verifica-se, assim, que a sociedade civil até os anos 2010, limite temporal deste trabalho, manteve seu dinamismo, a despeito das transformações conjunturais em nível governamental, sindical ou religioso. A meu ver, a descentralização das atividades da Igreja 16, 16

Em 1969, dom Waldyr criou o modelo de Paróquia Única, iniciativa pioneira da cidade de Volta Redonda, onde a antiga organização paroquial passou a ser substituída pela articulação e união das cinco paróquias então existentes, reunidas em uma mesma estrutura e pulverizadas, ao mesmo tempo, em 105 pequenas comunidades. Esta iniciativa resulta em um processo de democratização no âmbito eclesiástico a partir da formação de um Conselho Diocesano, responsável pelas atividades e decisões pertinentes à Diocese. Se, segundo o Código de Direito Canônico, a paróquia consiste em “uma determinada comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, e seu cuidado pastoral é confiado ao pároco como a seu pastor próprio, sob a autoridade do Bispo diocesano” (http://www.vatican.va/archive/cod-iuris-canonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf Cap. 6 Das Paróquias, p. 95), esta experiência visava, sobretudo, a descentralizar a direção da diocese, substituindo a autoridade episcopal e dos párocos por um Conselho formado igualmente por leigos.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

promovida por dom Waldyr em fins dos anos 1960, indica o desenvolvimento de uma maior autonomia das populações dos bairros na dinâmica social, possibilitando o alcance de uma maior representatividade por parte das comunidades perante a esfera estatal e mesmo sindical e religiosa. Dessa experiência, como demonstra Santana (2006), resultou grupos dotados de uma coesão interna que se mantêm atuantes no cenário local 17. Ao longo desses anos, “velhos” e “novos” atores sociais têm interagido e negociado coletivamente o foco de suas atuações. Novos tipos de movimentos sociais (GOHN, 2008) têm procurado capitanear a organização popular ao lado do movimento sindical e dos grupos católicos progressistas, trazendo uma diversificação das demandas sociais perante o Estado.

Referências Bibliográficas CAMURÇA, Marcelo. “Cosmologia e estudo de longo curso do catolicismo na dinâmica da modernidade” in Anais da 26a Reunião Brasileira de Antropologia. Porto Seguro, Bahia: junho 2008. CARRANZA, Brenda. Catolicismo Midiático. Aparecida: Ideias & Letras, 2011. COSTA, Hélio. “O novo sindicalismo e a CUT: entre continuidades e rupturas”. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel Aarão (orgs). As esquerdas no Brasil. Vol. 3. Revolução e Democracia. 1964... Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2007. GOHN, Maria da Glória. Novas teorias dos movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 2008. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. LEITE LOPES, José Sérgio (coord.). A Ambientalização dos Conflitos Sociais: participação e controle público da poluição industrial. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004. LIMA, Raphael Jonathas. “Política e Movimentos Sociais no Sul Fluminense: a construção do MEP de Volta Redonda” In: Anais do II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia. Florianópolis, UFSC, abril 2007. LOWY, Michel. A Guerra de Deuses – Religião e Política na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2000. MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil-1916-1985. São Paulo, Brasiliense, 1989. MANGABEIRA, W. Os dilemas do novo sindicalismo: democracia e política em Volta Redonda. Rio de Janeiro, Anpocs/Relume Dumará, 1993. POLLAK, Michael. “Memória e Identidade Social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, n. 10, 1992, p. 200-212. ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja Contra Estado – Uma Crítica ao Populismo Católico. São Paulo: Kairós, 1979.

17

Como exemplos, podemos citar o caso do Movimento Ética na Política (MEP/VR), que se destaca desde fins da década de 1990, da Pastoral da Terra ou de uma série de movimentos reunidos em torno das questões de moradia, posseiros, direitos humanos, associações de moradores etc, todos eles com uma origem que remonta à experiência de atuação nas CEBs ou em alguma organização da Igreja.

ESTEVEZ, Alejandra. “Novos arranjos entre Igreja e Trabalhadores: a Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda nos anos 1990 e 2000” in OLIVEIRA, Roberto Véras de e SANTANA, Marco Aurélio (orgs.) Trabalho em Territórios Produtivos Reconfigurados no Brasil. João Pessoa: EdUFPB, 2013.

SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entraram em Cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SANTANA, Marco Aurélio. “Trabalhadores e política no Sul fluminense: a experiência de Volta Redonda nos anos 1980” in Trabalho e Desenvolvimento Regional. Rio de Janeiro: Mauad, UFRJ/PPGSA; Brasília: CAPES, 2006. SERBIN, Kenneth P. Diálogos na Sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. SERBIN, Kenneth; PANDOLFI, Dulce P. e COSTA, Celia Maria L. (orgs.). O Bispo de Volta Redonda: memórias de Dom Waldyr Calheiros. Rio de Janeiro: FGV, 2001. TEIXEIRA, Faustino. “Faces do Catolicismo Brasileiro Contemporâneo” in Revista USP, n. 67, set-out 2005. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Lisboa: Editorial Presença, 2001.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.