NOVOS MODOS DE VESTIR: VESTUÁRIO E PÓS-MODERNISMO

June 16, 2017 | Autor: Francisco Mitraud | Categoria: Consumption Studies, Postmodernism, Vestuario
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NOVOS MODOS DE VESTIR: VESTUÁRIO E PÓS-MODERNISMO1 Francisco Mitraud2

Resumo

Neste artigo, procuramos estabelecer uma relação entre o vestuário e as principais características existentes em distintos períodos da história, a partir da Idade Média. Por meio desse exercício, é possível perceber que as paisagens urbanas e a conformação social estão também refletidas no vestuário dos indivíduos, permitindo estabelecer uma conexão entre estilos estéticos e normas de convivência. Na pós-modernidade, as normas sociais convencionadas e as formas simbólicas que demarcam categorias de gênero, classe, geração e etnia são confrontadas, fazendo com que o hegemônico e as subversões convivam lado a lado. Há um embaralhamento de fronteiras que se reflete também em novas maneiras de se vestir, dando a concluir que o vestuário no estilo do pós-modernismo é caracterizado não em função de sua estética, mas de novas convenções sociais. Palavras-chave: vestuário, pós-modernismo, moda

Introdução

Este artigo guarda uma relação transversal com minha pesquisa no curso de Doutorado no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, em andamento, cujo tema principal é o vestuário e a resistência. Fundamentalmente, pesquiso a relação histórica no uso do vestuário em movimentos de resistência e luta em face de posições da cultura hegemônica, para, a partir daí, pensar como isso se dá na sociedade contemporânea. Entre os diversos prismas sob o qual a roupa pode ser estudada, destacamos dois enfoques distintos, porém inter-relacionados, importantes para os propósitos de nossa investigação: numa perspectiva mais antropológica, ligada ao estudo da cultura material, como proposto por Jules Prown (1982) e Daniel Muller (2013), apenas para citar dois autores, o vestuário fala dos valores, dos costumes, das

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Trabalho apresentado na sessão temática Cultura Visual, por ocasião do IX Congresso SOPCOM, realizado entre os dias 12 e 14 de novembro de 2015, na cidade de Coimbra, Portugal. 2 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing – São Paulo, Brasil, com estágio de Pesquisa na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). Email: [email protected].

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formas de organização de uma sociedade. São documentos que narram aspectos da vida de um determinado grupo e num dado tempo histórico. Um outro aspecto é quando o pensamos na perspectiva da comunicação, como uma forma de linguagem. Simmel (2008), Roland Barthes (2009), Umberto Eco (1989) e Lipovetsky (2011) são apenas alguns dos teóricos que tratam da temática. No Brasil, mais recentemente, Kathia Castilho, pensando a moda como sistema de significação e como forma particular de informações codificadas, afirma que “como texto [...] requer uma leitura analíticointerpretativa” (2004: 133) e que, como uma linguagem, “pode ser lida com um texto” (idem: 34) e está “regrada por uma gramática social que reorganiza o corpo segundo concepções culturais” (idem: 178). Considerando-a como tal, como linguagem, temos que pensá-la então também segundo o conceito de dialogia, como proposto por Mikhail Bakhtin (2002). Nesse sentido, a moda não apenas expressa um conjunto de informações relativas ao seu tempo e a uma classe, como habitus, mas podemos e devemos considerar também que ela tem um efeito de refração sobre a cultura. Podemos, a partir dessas duas perspectivas, a textualidade e o conteúdo documental do vestuário, observar a relação dialética que guarda com os contextos dos tempos que narram, podendo ser articulado ao desenvolvimento de outras estéticas, como a arquitetura. Faremos, a seguir, breves considerações sobre essas conexões, ressaltando nossa opção por analisar especificamente a sociedade ocidental. Devemos ressaltar, no entanto, que não é nossa intenção – e nem o espaço para um artigo permitiria – realizar uma análise da moda de cada época. Primeiro, por reconhecermos que um determinado período não possui uma moda, mas diversas; segundo, pois o que procuramos em cada uma das eras analisadas são os signos que expressem, de maneira coerente e consistente com os demais sistemas simbólicos, as principais características de uma sociedade. O leitmotiv que buscamos destacar no espaço deste artigo é a relação intrínseca entre o vestuário e a arquitetura urbana, relação essa que exprime a conformação de uma determinada sociedade.

Moda e arquitetura: breve resgate histórico

A moda como uma instituição estruturada e estruturante da sociedade surge apenas no final da Idade Média (séc. XIV), quando se diferenciam os modos de vestir masculino e feminino. Antes disso, os registros são de que um determinado tipo de traje perdurava por séculos, como no caso do Egito antigo, onde um mesmo tipo de túnica

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manteve-se por mais de mil anos. Porém, mesmo no contexto desses tempos anteriores à moda, é possível estabelecer uma conexão entre as formas como uma população se veste, sua relação com a coletividade e a organização do espaço em que vive, em termos de sua arquitetura. Quando pensamos na Alta Idade Média (séc. V-X) e no triunfo do cristianismo, lembramos que, ao lado da submissão do poder secular ao poder papal, a arquitetura se desenvolve principalmente com a construção das igrejas e mosteiros e na distribuição das cidades no seu entorno. A atividade rural era preponderante e concentrava a maior da população. A estratificação social era bem definida: nobreza, clero, soldados e camponeses. Essa divisão era claramente perceptível na indumentária. Na corte, usava-se seda e também algodão e linho. Predominavam cores fortes. A riqueza era demonstrada principalmente com joias, muitas vezes usadas para prender mantos e capas. Os camponeses usavam tecidos mais rústicos e com cores discretas. No inverno, a nobreza usava lã de esquilos, enquanto os camponeses, de ovelhas e de coelhos. Não havia muita diferença nos cortes. O clero privilegiava a cor roxa, mais difícil e cara de se obter. Contudo, a nobreza e a elite religiosa vestiam-se de forma semelhante, com diferença nas cores e em alguns símbolos exclusivos da igreja. Na Baixa Idade Média (séc. XI-XV), paralelamente ao declínio do poder feudal, novas cidades surgiam por toda parte, e uma classe média urbana, constituída de artesãos e mercadores, estabeleceu-se entre os camponeses e a aristocracia rural. Nesse período, o cristianismo atingia seu apogeu. A construção das grandes catedrais3 e de universidades marcaram o clímax do estilo gótico, que nasce entre os anos de 1137 e 1144 (Janson & Janson, 2009: 132). Alguns dos exemplos mais conhecidos são as catedrais de Saint Denis e Notre Dame, em Paris, e da igreja de Westminster, em Londres. Tendo a religião cristã como principal eixo organizador da vida social e cultural medieva, as edificações, as pinturas, os mosaicos, pisos e mobiliários remetem ao sagrado. Ainda hoje, podemos observar em várias cidades da Europa o testemunho dessa influência. Como aponta Umberto Eco (2010: 22), “as nossas paisagens ainda estão consteladas de abadias românicas e as nossas cidades conservam catedrais góticas onde os devotos ainda hoje vão assistir às cerimónias religiosas”. É também o período das cruzadas e do crescente comércio com o oriente.

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Segundo Schiavi (2010: 558), a palavra catedral passa designar as basílicas cristãs, por ser a cathedra do bispo.

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Graças a esse comércio, tecidos mais luxuosos passam a compor a indumentária da nobreza e de uma crescente aristocracia, que passa a confeccionar suas roupas em alfaiates. Roupas multicoloridas, feitas com tecidos contrastantes são introduzidas, principalmente na corte inglesa. O vestuário passa a ser visto como ornamento. Os camponeses, por sua vez, continuam a usar cores discretas. Sobretudo os trajes femininos procuravam destacar figuras longilíneas, assim como as linhas arquitetônicas da época. Uma característica também importante da época é o início de uma maior diferenciação entre o vestuário masculino e o feminino. Os vestidos femininos continuaram longos, enquanto o comprimento dos masculinos diminuiu. De maneira geral, apesar das diferenças entre as cortes de cada nação, a nobreza, a aristocracia e o clero vestem-se de maneira a destacar sua riqueza e proeminência, enquanto os pobres vestem-se de maneira utilitária. O Renascimento vê surgir nomes como Botticelli, Bellini, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, Ticiano, El Greco, Velázques, Rubens, entre outros (Janson & Janson, 2009). O barroco se torna o estilo arquitetônico predominante em toda a Europa, e, segundo vários teóricos, está ligado à reação da igreja católica à reforma protestante (contrarreforma) e ao absolutismo monárquico. Exemplos da arquitetura barroca são a Basílica de São Pedro e a praça com o mesmo nome, do arquiteto Bernini, na Itália, Vaticano, e o Palácio de Versalhes, mandado construir na França por Luiz XIV, que, conforme ensina Peter Burke (1994), soube muito bem usar as artes, a arquitetura e mesmo seu vestuário, para construir a imagem do Rei Sol. O barroco tinha claramente a intenção de impressionar. Ressaltava o poder da igreja e do clero, atraindo os fiéis e a grandiosidade dos reis. Diz-se mesmo que “Subordinar todas as artes a um único objetivo – no caso, a glorificação de Luiz XIV – era, em si, barroco” (Janson & Janson, 2009: 280). Em Portugal, embora tenha se instalado mais tardiamente, o Palácio Nacional de Mafra e o aqueduto das Águas livres são belos exemplos de construções desse gênero. No Brasil, cidades como Ouro Preto e Diamantina, em Minas Gerais, São Luiz, no Maranhão, Rio de Janeiro e Parati são apenas alguns exemplos de como o estilo foi marcante no cenário do Brasil colônia. É na transição entre o final da Idade Média e o início do Renascimento que nasce a moda. Florença é o berço dessa nova era caracterizada por importantes alterações na conformação das sociedades europeias: a concentração do poder nas mãos dos reis (o absolutismo), o fortalecimento da burguesia, que com o declínio do feudalismo enriquece, o ideal humanista. Nesse efervescente período, os nobres ligados

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às cortes, para se diferenciarem da burguesia, que os imitava nos modos de vestir, começam a criar novos cortes, cores e arranjos para dela se diferenciarem. As diferenças entre os estados-nação também se acentuam, procurando cada um desenvolver identidade própria. O luxo e a sofisticação passam a ser a marca, uma obsessão das cortes. A partir de Luiz XIV, que foi o primeiro a criar uma escola de moda, a França passa a ser uma referência, como destaca o historiador de moda João Braga:

No reinado de Luis XIV, a ideia de lançar modos e modas já havia sido pensada, e o Castelo de Versalhes foi o epicentro divulgador das sutilezas do requinte, da sofisticação exacerbada, do fausto e do esplendor para todas as cortes europeias. Nesse período, a França foi pioneira em ditar a moda para toda a Europa através da corte de Versalhes. (2007: 84) Uma característica dessa época são os grandes volumes, especialmente para as mulheres. Vestidos, perucas, adereços, tudo era tão exagerado que dificultava o próprio andar. Os homens igualmente se vestiam com opulência e exagero, muitas vezes mais do que as mulheres. Também usavam cabelos longos ou perucas. Com o surgimento do Rococó, o exagero e o luxo do Barroco tornaram-se ainda mais evidentes. Graças ao crescimento do comércio, vieram tecidos cada vez mais elaborados, como o veludo e o brocado, bem como a renda e o cetim, sem detalhes como punhos e rufos. Mas, mesmo ao lado da opulência da nobreza e dos novos ricos, o ideal humanista visto nas obras de Thomas More, Erasmus de Roterdã, Mirandola, entre outros, que destacavam a dignidade humana e a importância do individual no coletivo, não afetava a vida real das pessoas comuns, dos pobres, das classes que ficavam à margem da nobreza e de uma classe burguesa que se fortalecia. Pelo contrário, o fosso que separava os ricos dos pobres aumentou (Delumeau, 1994). A esse propósito, inclusive, é relevante salientar que os códigos ou leis suntuárias são um exemplo marcante dos sistemas regulatórios dos consumos, inclusive da indumentária. Até o final do século XVIII, eles se relacionavam, sobretudo, às classes sociais, hierarquizando-as e prescrevendo seu acesso ao mundo dos bens (Lipovetsky, 2011).

Cidades modernas: a destruição criativa

A modernidade, muito embora tenha suas origens por volta do século XVI, jamais teria adquirido seus contornos e alcance sem o que Eric Hobsbawm (2007b)

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intitulou de “revolução dual”: as Revoluções Francesa e Industrial. Juntos, esses dois movimentos provocaram “a maior transformação da história da humanidade desde os tempos remotos, quando o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado” (idem: 19). Eles fazem emergir uma nova economia – o capitalismo industrial –, uma nova classe – a burguesia – e uma nova forma de trabalho – o assalariamento. Hobsbawm (2007b: 271-273) percebe outras grandes transformações entre os séculos XVIII e XIX: a explosão demográfica, o crescimento das formas de comunicação, por meio de ferrovias, dos navios a vapor e das estradas, e o crescimento do comércio. A partir da segunda metade do século XIX, com esses processos já em fase adiantada, vai também se consolidando um novo estilo de vida dos representantes da classe hegemônica, agora representada por aqueles que possuem os bens de produção, industriais, banqueiros, grandes comerciantes e outros tipos de empresários: o estilo de vida do mundo burguês (Hobsbawm, 2007a). Na medida em que os espaços públicos e privados foram se transformando, entre os séculos XIX e XX, como resultado das mencionadas revoluções (Berman, 2008), uma nova ecologia das imagens se instaura na sociedade. Segundo Argan (2010: 185-199), o urbanismo como ciência surge exatamente nesse período e se divide em duas vertentes: uma conservadora, compromissada com os interesses ligados aos aspectos quantitativos da produção e da circulação de bens, e uma outra reformadora, preocupada em resolver os problemas estruturais e que busca soluções rigorosas. Owen e Fourier são urbanistas reformistas, identificados com a nascente ideologia socialista, e propõem a construção de unidades residenciais para os operários, com gestão cooperativa (ibidem: 186). Suas propostas caem no esquecimento das grandes utopias. Em seu lugar, propostas conservadoras se mantêm ligadas aos interesses dos governantes. Por conta disso, as grandes capitais da Europa praticamente foram destruídas para serem reconstruídas como cenários de um novo ideário de vida. Ferro, aço, vidro e novos transportes criam as condições sem precedentes para que a indústria se desenvolva. Em Paris, sob a coordenação de seu prefeito, Georges Eugène Haussmann, as ruas, vielas, prédios antigos, bairros inteiros são removidos para dar lugar às largas vias e avenidas, monumentos, bulevares etc. (Argan, 2010: 186), o que Harvey (2009: 27) designou como “destruição criativa (...) uma condição essencial da modernidade”. Já Walter Benjamin (1991: 41) diz que ele (Haussmann) dera a si mesmo o nome de

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“artiste démolisseur”4, sendo responsável por tornar a cidade estranha para os próprios parisienses. Ainda sobre essa intervenção urbana, Marshall Berman assim se refere: Pondo abaixo as velhas e miseráveis habitações medievais, Haussmann, de maneira involuntária, rompeu a crosta do mundo até́ então hermeticamente selado da tradicional pobreza. Os bulevares, abrindo formidáveis buracos nos bairros pobres, permitiram aos pobres caminhar através desses mesmos buracos, afastando-se de suas vizinhas arruinadas, para descobrir, pela primeira vez em suas vidas, como era o resto da cidade e como era a outra espécie de vida que aí existia. (2008: 147-148) O Art Nouveau se institui como estilo típico da sociedade moderna (Argan, 2010: 199). Com temática naturalista e certa influência da arte japonesa, busca linhas e figuras arredondadas, ondulantes, escapando do equilíbrio simétrico. Seu efeito acresce a um objeto útil um elemento hedonista (idem: 202). Com propriedade, Argan salienta que: “(...) o Art Nouveau, enquanto estilo ‘moderno’, corresponde ao que, na história econômica da civilização industrial, é chamado de ‘o fetichismo da mercadoria’”. Ele ornamenta as cidades, mas somente até o limite com os subúrbios. É uma época de contradições. Progresso da ciência e dos meios de comunicação, explosão da vida urbana, senso de urgência e velocidade; mas, de outro lado, desigualdade, pobreza, fome e doenças. Na moda, os rumos têm uma influência direta dos resultados da dupla revolução. A partir da Revolução Francesa, os exageros e opulência característicos dos reis absolutistas desaparecem. As roupas tornam-se práticas e confortáveis, com influência da Inglaterra campestre. O traje masculino adquiri o caráter de sobriedade. O casaco inglês de caça, a calça justa de casimira, botas e golas altas adornadas por lenços amarrados garantiam um visual austero e sofisticado. O desenvolvimento da indústria têxtil, que aliás inaugura a Revolução Industrial, produz tecidos mais leves e práticos. Ao período neoclássico 5 , sucede-se o Romantismo, que retoma parte da ostentação do período clássico, principalmente nas vestes femininas, e produz o estilo Dandi para os homens, o qual, segundo Braga, Era na realidade uma espécie de distinção e uma maneira diferente de ser e, consequentemente, de se vestir. Não foi a suntuosidade que ditou a regra dândi, e sim a distinção e a sobriedade, que se tornaram a marca registrada da 4

Artista demolidor. O neoclassicismo foi um movimento cultural que reagia à estética do Barroco e do Rococó entre os séculos XVIII e XIX (Argan, 2010). 5

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moda masculina. A magia criada por esse estilo tornou-se, a partir daí, referência em toda a moda masculina do século XIX. (2007: 59) A partir de 1837, a Era Vitoriana produz uma grande diferenciação entre homens e mulheres. Enquanto a moda feminina se estabelecia com amplos vestidos e o uso da crinolina, os homens usavam roupas escuras, sóbrias, sem ornamentação, o que marcava uma posição antagônica entre a frivolidade do universo feminino e a seriedade e o propósito do mundo masculino. O vestuário passa ser um produto de consumo massivo, graças à Revolução Industrial, tanto como consequência da maior disponibilidade de produtos (principalmente os têxteis) como pela nova conformação de trabalho e do urbanismo. Segundo Hobsbawm (2007b),

[...] a certa altura da década de 1780, e pela primeira vez na história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços. (p. 20) A Primeira Guerra Mundial fez com que as mulheres passassem a assumir papéis antes tradicionalmente exclusivos dos homens, como no transporte, na saúde, nas indústrias etc. O corpo feminino, antes envolto em inúmeros e pesados tecidos, rendas, chapéus e espartilho, precisava se libertar para o mundo do trabalho. Os tecidos ficam mais leves, as saias encurtam. Chanel, antes uma estilista de chapéus, desenha e passa a produzir, em Paris, calças femininas. Elas já existiam desde 1909, idealizadas pelo estilista Paul Poiret (que também havia eliminado os desconfortáveis espartilhos do figurino feminino). Mas, foi o modelo produzido por Coco Chanel, por volta de 1920, que ganhou notoriedade e passou a ser sinônimo de elegância. Como bem pontua Braga (2007), a roupa mais funcional caminhava ao lado de outras características: uma mulher que trabalhava, ganhava seu dinheiro, divertia-se nos salões de dança. Mesmo não tendo se firmado como a moda predominante na década seguinte, o traje outrora tipicamente masculino antecipava mudanças culturais. Simmel, no início do século, teoriza sobre a dupla função da moda: o universal e o individual; o esforço do indivíduo para ser aprovado e se integrar a um grupo social, ao mesmo tempo em que se diferencia (2008). Apesar da crise de 1929, o século XX, principalmente após a Primeira Guerra, pode ser visto como um período a partir do qual a moda se universaliza. Tecidos mais baratos e máquinas de costura com preços acessíveis permitem que as roupas possam ser produzidas domesticamente. A moda

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também se acelera na velocidade em que o capitalismo se desenvolve, e impõe uma “vida nervosa”, no conceito de Simmel (2009), passando a ser classificada, a partir daí, por décadas. A moda prática, muito decorrente das exigências do mundo voltado para o trabalho; a moda acelerada, mutável e mutante, como o progresso; a moda coletiva e individualizante, como os tempos modernos.

Pós-modernidade e pós-modernismo: cenários pós-modernos O mundo após a Segunda Guerra Mundial passa por enormes transformações. Consequência do reordenamento internacional, da globalização, de crises econômicas, como a de 1973, e dos muitos movimentos sociais a partir da década de 1960, tais transformações começam a ser pensadas em termos teóricos. Conforme nos informa Perry Anderson (1999), Jean François Lyotard, atendendo a uma solicitação do governo canadense, produz, em 1979, A condição Pósmoderna. Nela, defende a ideia de que o projeto da modernidade falira. A certeza de que o mundo caminharia, graças à racionalidade e ao cientificismo, para um futuro melhor foi uma hipótese que não se cumpriu. Lyotard proclama o fim das grandes narrativas, vãs tentativas de se explicar o mundo. Vários outros autores, cada um com sua especificidade e à sua maneira, vislumbram na produção cultural – artes, arquitetura, cinema –, nas grandes transformações sociais, no fim do comunismo e em novas conformações do consumo as marcas de uma sociedade pós-moderna, que se configura como decorrência de um capitalismo globalizado, sustentado por grandes conglomerados, estruturado em torno de novas formas de relações de trabalho e da acumulação flexível (Harvey, 2009), e também numa cultura de consumo. A pósmodernidade é, por isso mesmo, o tempo-espaço do domínio das imagens, o que conduz à estetização da vida e ao império das representações. A produção cultural que se estabeleceu como representação estética desse momento histórico se consolidou, tanto na academia quanto na sociedade, como um estilo pós-moderno, ou pós-modernismo. Ele, enquanto intervenção estética, está presente nas artes, na dança, no teatro, no cinema e na música. Mas é na arquitetura e no planejamento urbano que esse estilo é mais visível no cotidiano. As rupturas foram sentidas, literalmente, nas ruas, praças e avenidas. A arquitetura pós-moderna prioriza o valor estético no lugar de propósitos sociais. Segundo Harvey (2009),

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No campo da arquitetura e do projeto urbano, considero o pósmodernismo no sentido amplo como uma ruptura com a ideia modernista de que o planejamento e o desenvolvimento devem concentrar-se em planos urbanos de larga escala, de alcance metropolitano, tecnologicamente racionais e eficientes, sustentados por uma arquitetura absolutamente despojada (as superfícies “funcionalistas” austeras do modernismo de “estilo internacional”). O pós-modernismo cultiva, em vez disso, um conceito do tecido urbano como algo necessariamente fragmentado, um “palimpsesto” de formas passadas superpostas umas às outras e uma “colagem” e usos correntes, muitos dos quais podem ser efêmeros. (p. 69) Para Harvey (2009), esse novo estilo era tão marcante que ele chega mesmo a identificar o momento de passagem de um modelo arquitetônico do modernismo para um outro modelo, o pós-modernista. Trata-se da implosão de um o conjunto de prédios na cidade de Saint Louis, Missouri, nos Estados Unidos, em 15 de julho de 1972 (2009: 45). Esse condomínio, chamado Pruitt-Igoe, fora projetado e construído nos anos de 1950 e destinava-se a abrigar uma população de baixa-renda, muitos dos quais imigrantes. A intenção era evitar que esse contingente e suas favelas chegassem muito perto do centro da cidade. Por falta de manutenção e cuidado das autoridades, as condições de vida do condomínio se tornaram inadequadas: doenças, criminalidade e violência inviabilizaram o projeto, mais tarde demolido. A nova arquitetura faz uma crítica à certa austeridade do modernismo (Arantes, 1995), e coloca a estética em primeiro lugar. As novas formas devem não somente embelezar, mas ser objeto de uma experimentação visual dos sujeitos. O que importa “é que os ambientes sejam fruídos” (Argan, 2010: 513). A arquitetura não mais é definida pelas ideias de funcionalidade e racionalidade das cidades, mas, ao contrário, ela é que determina suas formas, que define seus traçados. Graças à tecnologia industrial, a arquitetura ganha novos limites criativos. Produz estruturas que desafiam a gravidade e que lembram cenários futurísticos e de ficção científica. Na verdade, esses cenários não são meras aparências, pois, como destaca Paul Virilio, a cidade contemporânea é, sobretudo, uma cidade tecnológica, não mais regulada pelo dia ou noite, nem pelo controle de quem entra ou sai, como ocorria nas cidades fortificadas medievais. Para ele, a representação da cidade contemporânea “(...) não é mais determinada pelo cerimonial da abertura das portas, o ritual das procissões, dos desfiles, a sucessão de ruas e das avenidas; a arquitetura urbana deve, a partir de agora, relacionar-se com a abertura de um espaço-tempo tecnológico” (1993: 10). É uma arquitetura fantástica, representada por cidades como Dubai, ou por construções

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como o teatro de Sidney, na Austrália, o museu da IBM em Munique, Alemanha, e o Museu Guggenheim em Bilbao, Espanha, apenas para citar alguns exemplos. Lipovetsky e Serroy (2015) constatam que essa configuração da arquitetura urbana se insere num contexto maior, por eles chamado de “estetização do mundo”, e que decorre de um estágio do capitalismo: “o capitalismo artista”. De acordo com os autores, “nada mais escapa às operações de design-decoração; tudo é pensado e realizado para parecer ‘tendência’, seduzir, ser imagem e novo, produzir efeitos visuais e emocionais” (ibidem: 51). Outros exemplos marcantes do “capitalismo artista” são os shoppings centers. Beatriz Sarlo (2013), ao escrever sobre as “Cenas da vida pósmoderna”, demonstra como esses espaços são concebidos para funcionarem como “cápsula espacial” (ibidem: 25), que isolam os consumidores do mundo exterior. Lá dentro, não existe dia ou noite, frio ou quente e perdem-se os referenciais de direção. Um mundo feito para consumir. Nesse cenário, há também novas configurações identitárias e de subjetividade. Bauman (2001) e Hall (2006), entre vários outros autores, visualizam essas mudanças. As identidades, antes fixas, rígidas, ligadas a tradições, laços comunitários e familiares, fortemente conectadas também ao trabalho dos sujeitos, passam a ser móveis, deslizantes, ao sabor dos contextos, dos acontecimentos, de uma aparente autonomia. Nesse sentido, percebemos que há sinais de embaralhamento de fronteiras quanto aos marcos simbólicos que demarcam as questões de gênero, geração, classe e etnia. E, dentro desse contexto, compreendemos que novas maneiras de vestir o corpo se inserem. Se, como diz Baitello (2005), a partir das ideias de Pross, o corpo é a mídia primária, nele, corpo, também se reflete todo o embaralhamento de fronteiras pós-modernas. A forma como alguns sujeitos se vestem na pós-modernidade fala das marcas da pluralidade, da multiculturalidade, do cruzamento de fronteiras, que antes eram estabelecidas por padrões de vestir da modernidade. Se tomarmos, por exemplo, registros fotográficos da cidade de São Paulo, ou de Lisboa, na década de 1940, veremos que as variações em termos de vestuário eram muito poucas. Homens de terno e chapéu; mulheres de vestido e bolsa de mão. Se avançarmos no tempo, veremos que paulatinamente as variações aumentam ao longo do século XX, principalmente em função da multiplicação das chamadas modas jovens, que surgem num primeiro momento como contestação da moda hegemônica, mas que são reapropriadas pela sociedade e denotam o fim de um consenso das aparências, como bem observou Lipovetsky (2011). Para esse autor,

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No momento em que se eclipsa o imperativo do vestuário dispendioso, todas as formas, todos os estilos, todos os materiais ganham uma legitimidade de moda: o descuidado, o tosco, o rasgado, o descosturado, o desmazelado, o gasto, o desfiado, o esgarçado, até então rigorosamente excluídos, veem-se incorporados no campo da moda. Reciclando os signos “inferiores”, a moda prossegue sua dinâmica democrática, como o fizeram, depois da metade do século XIX, a arte moderna e as vanguardas. (pp. 146-147) As ruas das grandes cidades, mas também das pequenas, são hoje passarelas de uma expressiva diversidade de tipos, modelos, cores, estilos que contrariam de algum modo aquilo que revistas especializadas indicam como tendências ou prevalências de modelos. Mas não se trata apenas de uma questão de estilo, de cortes, de estética. Trata-se, sobretudo, de uma confrontação das convenções sociais das formas de vestir. Essa constatação está de acordo com o que Hoff afirma quanto aos regimes de visibilidade na cena urbana. Para essa autora,

No século XXI, o sujeito contemporâneo transita pelos muitos espaços e ambientes das metrópoles, cujas práticas cotidianas comportam novos modos de ver e ser visto, de estar e de consumir, material e simbolicamente, sejam mercadorias, as marcas, o universo urbano ou as estéticas corporais. Mutante e ambígua, a metrópole abriga, ao mesmo tempo, o semelhante e o diferente, o próximo e o distante, o local e o global. (2015: 139) Assim, ao lado da arquitetura, das artes plásticas, das experimentações possíveis da pós-modernidade, encontramos corpos masculinos em trajes femininos, e vice-versa; uso de roupas rasgadas, principalmente calças, e chinelos de dedo, por parte de jovens das classes A e B; jovens da periferia trajando roupas de marcas caras, cordões de ouro, tênis importados. Encontramos também uma moda dita étnica fora do seu contexto local, pessoas da terceira idade em roupas tipicamente jovens e crianças adultizadas, compondo um mosaico que se incorpora à paisagem. Essas novas possibilidades convivem com padrões estabelecidos, mas começam a fazê-lo sem tanto estranhamento e objeção. Incorporam-se ao cotidiano. Temos aqui um desafio para os pesquisadores das Ciências Sociais, pois as palavras utilizadas ao longo desse artigo para caracterizar essas novas formas de vestir estão eivadas de significados que precisam ser pensados com cuidado. Confrontação e subversão das formas simbólicas já não dão conta de representar atitudes contrahegemônicas. Lado a lado convivem sujeitos que reflexivamente adotam o vestuário

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como bandeiras de suas causas, com outros que passivamente adotam estilos que o mercado incorpora quando ressignificam signos de resistência. O fato, no entanto, é que esse quadro reflete muito bem os cenários contemporâneos. Se, como bem resumiu Harvey (2009: 49), a principal característica da pós-modernidade é “sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico que formavam uma metade do conceito baudelairiano de modernidade”, então, a pluralidade estampada nas formas transgressoras de se vestir está compondo o cenário pós-moderno.

Considerações finais

Ao longo deste texto, buscamos refletir sobre a relação entre os modos de se vestir da Idade Média aos dias atuais. Como dissemos no início, o objetivo não foi o de narrar a história da moda, o que, aliás, não seria possível para o espaço de um artigo. Reconhecemos que a moda de cada uma das etapas que aqui tratamos é muito mais diversificada e complexa do que abordamos. Contudo, o que pretendíamos tencionar era certo Zeitgeist de cada contexto, com as normas gerais do vestuário. Assim, na Idade Média, a divisão da sociedade em nobreza, clero e camponeses podia claramente ser identificada na indumentária; no Renascimento, o barroco e o rococó ficaram estampados nos excessos das roupas, cabelos, perucas e joias; e a Idade Moderna tem sobretudo as injunções do mundo do trabalho caracterizadas nas roupas. Diferentemente das eras anteriores, na pós-modernidade não é um estilo estético que marca o vestuário. Não são os tecidos, as cores, os cortes. O Pós-modernismo das roupas encontra-se na maneira como elas confrontam as normas hegemônicas que demarcavam fronteiras simbólicas de gênero, classe, geração e etnia, mesmo quando não decorrem de atitudes reflexivas dos sujeitos, mas de mera reprodução. Na contemporaneidade, onde tudo é permitido, tudo é fragmento, tudo é difuso, o vestuário pós-moderno integra o sujeito à paisagem, fazendo dele parte do cenário. Como diz Perry Anderson, “(...) o universo pós-moderno não é de delimitação, mas de mistura, de celebração do cruzamento, do híbrido, do pot-pourri” (1999: 110). Nas paisagens urbanas, o sujeito encontra nos modos de se vestir uma experiência da própria pósmodernidade.

REFERÊNCIAS

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