O abuso do direito de Ação e a Litigância de má-fé: um estudo comparativo entre os ordenamentos Português e Brasileiro

July 18, 2017 | Autor: A. Sales de Melo | Categoria: Direito Processual Civil, Direito Civil, Abuso Del Diritto, Abuso Del Processo
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Relatório apresentado à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no  curso do Mestrado Científico em Ciências Jurídicas.  Disciplina: ​ O Abuso do Direito  Tema:  ​ O  Abuso  do  Direito  de  Ação  e  a  Litigância  de  má­fé:  um  estudo  comparativo  entre os ordenamentos Português e Brasileiro.     Introdução  O  direito,  na  sua  acepção  mais  vulgar  e  quando  toma  por  referência  o  indivíduo parte de uma sociedade, pode ser entendido como o conjunto de prerrogativas  conferidas  a  este  para  exercer  ou  não  determinado  ato,  recebendo  a  proteção  jurídica  do  Estado  em  que  se  insere.  Estes  “direitos”  se  materializam  sob  as  mais  diversas  formas  e  contextos.  A  exemplo  disto,  temos  o  direito  à  vida,  a  propriedade,  o direito da  família, do consumo, do processo, entre tantos outros que a ciência jurídica abrange.     Tema  de  estudo  que  vem  sendo  desenvolvido  gradualmente  desde  o  início  da  convivência  em  sociedade  até  os  dias  atuais,  o  direito  é  a  matéria  que  regula  as  relações  interpessoais  e  vem  sendo  aperfeiçoada  com  o passar dos tempos pelas mais  variadas  doutrinas,  tendo  apresentado  configurações  diversas  com  base  na  contemporaneidade  de  cada  sociedade  que  contribuiu  para  a  evolução  da ciência. Não  obstante  as  alternâncias  teóricas,  é  certo  que  da  reunião  destas  doutrinas  resulta  o  direito  atual.  Isto  porque,  as  construções  teóricas  são  limitadas  e  nesse  sentido  não  podem  prever  as  situações  cotidianas  que  surgem  na  prática,  razão  pela  qual  o  direito  vive em constante mudança evolutiva.     Por  outro  lado,  conforme  também  se  verificou  ao  longo  dos  anos,  estes  direitos,  apesar  de  justificados  e  protegidos  pela  ​ lex  ou  normas  jurídicas  positivadas(a  depender  do  período  histórico), por vezes se mostravam adversos ao objetivo que eram  destinados.  Nesse  sentido,  apesar  daquele  direito  ser  conforme  a  letra  da  lei,  sua  utilização se mostrava contrária ao sentimento moral e ético da sociedade. 



  Foi  a  partir  desses  casos  específicos  que  nasceu  o  instituto  denominado  abuso  do  direito1.  Sua  evolução  teórica  se  deu  nos  últimos  dois  séculos  e,  conforme  veremos,  resultou  numa alternância de conceitos até se concretizar na disposição atual.  Contudo,  vale  dizer  que  essa  disposição  não  é  unânime  entre  os  diversos  ordenamentos,  inclusive  os  que  serão  aqui  estudados,  o  Português  e  o  Brasileiro,  apesar de apresentarem mais semelhanças que diferenças.     Tendo  em  vista  a  amplitude  que  o  abuso  do  direito  pode  atingir,  e  em  razão  do  espaço  que  aqui  nos  fora  destinado,  seria  impossível  trazer  ao  presente  relatório  todos  os  aspectos  que  a  matéria  suscitou  e  suscita,  ainda  que  fosse  feita  uma  abordagem  bastante  superficial.  Por  este  motivo, mister se faz filtrar o instituto traçando  apenas  o  que  nos  for  conveniente  para  atingir o ponto principal deste estudo, qual seja,  o abuso do direito de ação.     Nesse  sentido,  é  imprescindível  falar  também  do  instituto  da litigância de má  fé,  já  que,  conforme  veremos,  apresenta  forte  ligação  com  a  doutrina  do  abuso  do  direito, embora tenha desenvolvimento distinto. Dessa união surge, então, o nosso tema  de  pesquisa:  ​ O  abuso  do  direito de ação e a litigância de má fé: um estudo comparativo  a partir dos ordenamentos Português e Brasileiro.     A  escolha  deste  tema  tem  relevância  para  ambos  os  ordenamentos  em  estudo  pelo  fato  destes  enfrentarem  atualmente um problema comum: o atolamento e a  incapacidade  do  Poder  Judiciário  resolver  os  litígios  em  tempo  útil,  principalmente  pela  imensidão de ações propostas, não raramente, revestidas de abuso ou má fé. 

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  Transcrevemos   aqui  as   palavras   de  BONATTI,  :  "A  doutrina  do  abuso  do  direito  está  em  sintonia com a  mudança  da  racionalidade  jurídica,  que  se  dirige  à  superação  do  ideal  de  completude  do  ordenamento,  ícone  do  positivismo  e  da  doutrina  liberal,  que  não  encontra  guarida  no  direito  civil  contemporâneo.  O  reconhecimento  de  que  o  direito  positivo  não  pode  dar  conta  de  prever  exaustivamente todas  as  condutas   anti­sociais   ou  indesejadas   é  o  primeiro  passo  para  a  construção  de  um  sistema  jurídico  mais   coerente  e  harmônico", ​ Abuso do Direito​ , 2010, p.23. 



    O  Poder  Judiciário,  vem,  ao  longo  dos  anos,  perdendo  sua  credibilidade  devido  à  sua  má  prestação  de  serviços.  As  causas são inúmeras, podendo ser internas  ou externas, mas a consequência disto reflete numa única direção: a sociedade.    Conforme  dados  do  Instituto  Nacional  de  Estatísticas,  para  Portugal,  e  do  Conselho  Nacional  de Justiça, para o Brasil, somente na justiça cível, cada país têm 1,5  milhões  e  70  milhões  de  ações  pendentes,  respectivamente2.  Estes números assustam  se  formos  comparar  o  número  de  ações  com  a  quantidade  de  habitantes de cada país,  sendo  importante  lembrar  que,  ao  menos  quanto  ao  Brasil,  grande  parcela  da  população  não  exerce  o  seu  direito  de  ação,  justamente  pela  já  conhecida  morosidade  processual.     Conforme  pontua  MENEZES  CORDEIRO3,  o  resultado  para  se  chegar  a  atual  situação  se  dá  por  quatro  fatores:  a  complexidade  normativa,  a  inadequação  legislativa,  o  excesso  de  garantismo  processual  e  a  impunidade  quanto  aos desvios de  conduta  no  processo.  Apesar  do  autor fazer referência exclusivamente ao ordenamento  Português,  as  razões  quanto  ao  ordenamento  brasileiro  são  da  mesma  ordem,  o  que  não impede de fazer uma análise conjunta.     No  que  se  refere  a  complexidade  legislativa,  o  autor  faz  menção  a  Lei  da  Boa Razão(1769), do Marquês de Pombal, que até tinha um ideal apreciável: acolher no  direito  interno  as  leis  do  estrangeiro  que  pudessem  ser  aproveitadas.  Todavia,  com  o  passar  do  tempo,  tornou­se  desvantajosa  essa  recepção  normativa,  pois,  o  corpo  legal  tornou­se  muito  extenso  e  incoerente.  Relativamente  ao  Brasil,  nossa  origem  e  evolução  normativa  tem  forte  influência  do  direito  Português,  já  que  até  o início do séc.  XVII  éramos  apenas  uma  colônia  portuguesa.  Com  base  nessa  afirmação,  veremos  os  preceitos  referentes  ao  abuso  de  direito  e  a  litigância  de  má  fé,  constatando  a  2

 Anuário Estatístico de Portugal de 2012(INE); Sumário Executivo de Justiça em números, 2013(CNJ).    MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.21 e seg. 

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similaridade entre as leis.     Já  quanto  a  inadequação  legislativa,  esta  deriva  do  despreparo  e  falta  de  estudo  na  elaboração  das leis e dos bloqueios ideológicos, designadamente quanto aos  partidos  políticos  e  a  alternância  de  poderes.  No  Brasil  o  problema  é  ainda  mais  agravante,  já  que  a  política,  num  panorama  atual,  tomou  outros  rumos,  onde  os  mais  despreparados  são  eleitos,  resultando  numa  enxurrada  de  projeto  de  leis  absurdas  e  desprovidas de qualquer fundamento jurídico.     Quanto  ao  excesso de garantismo processual, se formos analisar os Códigos  de  Processo  Civil  de  cada  ordenamento,  constataremos  as  inúmeras  faculdades  processuais  conferidas  aos  sujeitos  do  processo,  tanto  na  fase  inicial  quanto  na  fase  recursal  ou  executória.  A  consequência  disto  é  uma  ação  ​ ad  infinitum,  ​ onde  as  partes,  ainda  que  cientes  da  falta  de  direito,  irão  protelar  sempre  o  processo  já  que  a  lei  os  permite.     Relativamente  à  impunidade  dos  desvios  de  conduta,  este  motivo  tem  especial  ligação  com o nosso tema, já que estes desvios são praticados pelas partes ou  pelos advogados, seja através da litigância de má fé ou pelo abuso do direito. A questão  que  daí  resulta  consiste  na  inércia  dos  Tribunais  em  não  punir  esse 

tipo  de 

comportamento.     Feitos  estes  breves  comentários,  cumpre  assinalar  nosso  esquema  de  estudo.  No  capítulo  inicial,  nos  debruçaremos  sobre  o  instituto  do  abuso  do  direito,  devendo,  para  isso,  traçar  sua  evolução  histórica, sua configuração atual e a relevância  para  os  ordenamentos  em  questão.  Após,  cumpre­nos  tratar  da  modalidade  de  abuso  praticada nas relações processuais.     No  capítulo  seguinte,  iremos  tratar  da  litigância  de  má  fé,  no  mesmo  sentido 



que  o  abuso,  percorrendo sua evolução histórica, já que este instituto tem raiz no direito  Português,  concluindo  por  uma  análise da interpretação atual pelos Tribunais de ambos  os países e a problemática em torno da sua aplicação.    Ainda  neste  capítulo,  será  oportuno  apontar  os  principais  pontos  de  cada  instituto,  assim  como  as  diferenças,  e  fazer  um  apanhado  geral  da  matéria,  determinando  sua  relevância  jurídica  no  direito  atual.  Para  isso,  imprescindível  será  o  recurso à jurisprudência de ambos ordenamentos.      1 ­ O Abuso do Direito    

  1.1) Evolução Histórica    Para  traçar  esta  matéria,  necessário  se  fez  o  recurso  ao  trajeto  percorrido 

pela  jurisprudência  e,  na  sua  maioria,  pela  doutrina  para  alcançar  a  definição  atual  do  abuso  do  direito.  A  evolução  do  instituto  se  deu  em  dois  momentos:  o  primeiro  corresponde  ao  período  onde  se  teve  a  noção  do  abuso  do  direito,  ou  seja,  um  conhecer  primitivo,  uma  ideia  de  existência  do  tema.  Já  o  segundo  retrata  o  início  do  desenvolvimento  da  teoria,  a  partir  da  proliferação  de  decisões  judiciais  e  do aumento  de dissertações sobre o tema.    a) Noção     Conforme  se  retira  da  doutrina,  a  noção  do  abuso  do  direito  deve  ser  atribuída  ao  Direito  romano4.  Foi  neste  direito,  e  a  partir  de  brocardos  como  ​ neminem  laedit  qui  suo  jure  utitur  ​ e  Feci,  sed  iura  feci5,  que  os  legisladores  viram a necessidade  em  estabelecer contornos aos direito individuais, que até então eram absolutos, para se 

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 JORDÃO, ​ Abuso de Direito​ , 2006, p.55 e s; Fazendo referência a outros autores;     “Quem exerce o seu direito a ninguém prejudica”; “Fiz, mas fiz com direito”. 

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adaptarem  ao  bem  social6.  Isto  em  razão  das  situações  que  surgiam  a  partir  do  exercício  legal  dos  direitos  se  contraporem  ao  senso  comum  de  justiça.  Em  razão  disso,  já  naquele  tempo,  houve  uma  relativização  dos  direitos  subjetivos,  aspecto  fundamental para o desenvolvimento do instituto nos anos que sucederiam.     No  direito  romano,  não  existia  um  instituto  intitulado  ‘abuso  do  direito’’,  embora  houvessem  meios  legais,  ao  tempo,  capazes  de  coibir  um  ato  que  fosse  considerado  abusivo  com  a  finalidade  de  prejudicar  outrem.  Tais  institutos  eram  denominados  como  ​ aemulatio​ (intenção  danosa  de  prejudicar  outrem,  sem interesse de  agir  e  motivada  pela  inveja  ou  malícia),  ​ exceptio  doli  (utilizada  para  impedir  práticas  abusivas  no  processo)  e  a  ​ temeritas  processual.  No  que  pese  ao  ​ exceptio  doli​ ,  era  sub­dividida  em:  ​ specialis  ​ ou  ​ generalis.  A  primeira  correspondia  ao  direito  que  tinha  o  réu  em  alegar  o  dolo  do  autor logo no início da pretensão, onde, caso fosse constatado  o  dolo  inicial,  afetaria  todos  os  atos  subsequentes  do  processo. Já a segunda era mais  específica  e  aplicada  aos  atos  do  processo.  Quanto  a  figura  da  ​ temeritas  ​ processual,  esta  visava  combater  os  atos  processuais  sem  fundamento,  com  intuito  de  protelar  ou  confundir  os  fatos,  mais  tarde  sendo  remetida  ao  abuso  do  direito  no  processo.  Posteriormente, esta figura viria a ser substituída pela litigância de má fé7.    b) Teoria     Já  quanto  à  teorização  do  instituto,  é  sabido  que  os  primeiros  desenvolvimentos  científicos  ocorreram  na  França.  Isto,  segundo  alguns  autores,  com  base  em  decisões  jurisprudenciais  que  sancionavam  exercícios jurídicos inadmissíveis,  principalmente  nas  relações  de  vizinhança8.  Porém,  há  na  doutrina  francesa  moderna 

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 JOSSERAND, ​ L’Esprit des Droits…​ , 1939, p.314.   MENEZES CORDEIRO,​  Litigância…​ , 2011, p.76.  8   CUNHA  DE  SÁ  aponta  que,  além  das   relações   de  vizinhança,  houvem  decisões   direito  de  família,  contratos, obrigações, liberdades individuais e coletivas, etc.; ​ Abuso do Direito,​  1973, p.52.  7



quem  atribua  relevância  à  uma  lei  trabalhista  de  18909,  sendo  essa  a  propulsora  dos  trabalhos  doutrinários.  Independente  da  dúvida  no  que  refere  ao  passo  inicial  na  evolução  do  instituto,  sabe­se  que  foram  os  franceses  os  responsáveis pelos primeiros  estudos.  Contudo,  a  título  meramente  informativo,  há  de  ter  em  conta  que  já  em  1794,  no Código da Prússia, havia previsão expressa contra o “exercício irregular do direito”10.  Nesse  sentido,  esta  deveria  ter  o  reconhecimento  de  ser  a  primeira  disposição  sobre  um prematuro instituto do abuso do direito.     Na  França  do  séc.  XIX,  o  Código  Napoleônico,  então  vigente,  não  fazia  qualquer  menção  aos  institutos  criados  pelos  romanos  no  combate  ao  exercício  irregular  do  direito.  Apesar  disso,  a  Jurisprudência  proporcionou  julgados  em  que  combatia  a  atuação  do  sujeito  por apresentar situações de injustiça gritante. Foi a partir  de  casos  paradigmáticos  como  o  da  falsa  chaminé(Colmar,  1855)  e  o  dos  espigões de  ferro(Compiègne,  191311)12,  que  os  trabalhos  foram  iniciados.  Daí  ressurge  a  necessidade  da  relativização  dos  direitos  subjetivos,  em  meio  ao  momento  político  vivido  na  França,  pós­absolutismo. Há de destacar que a natureza subjetiva da conduta  era requisito do ato abusivo.    Em  sentido  oposto,  a  construção  doutrinária não desenhou um corpo jurídico  que  pudesse  estabelecer  contornos  concretos  ao  exercício  do  direitos  subjetivos.  Por  outro  lado,  a  terminologia  ​ abus de droit​ , de autoria do belga Laurent, suscitava dúvidas. 

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  ANCEL  e  DIDRY  ​ apud  JORDÃO,  p.61:  Segundo  aqueles   autores,  a  lei  estabelecia  que:  ao  empregador  que  demitia  trabalhadores   em  massa,  com  o  intuito  de  inibir  a  realização  de greves, deveria responder por  perdas e danos ­ abuso do direito de empregador.   10   “Aquele  que  exerce  o  seu  direito  no  interior  de  seus   limites   próprios,  não  está  obrigado a reparar o dano  que  resulte  para  outro.  ​ Mas   deve  repará­lo  quando  resulta  claramente  que,  dentre  vários   modos  possíveis   de  exercer  seu  direito,  elegeu  o  mais   danoso,  com  intenção  de  prejudicar​ ”  §36  e  37,CALCINI,  ​ Abuso  do  Direito e o Novo Código Civil​ , 2004, p.33 ; FARIA GÓES, ​ Breves Considerações…​ , 2003, p.5.  11   Este  último  caso,  apesar  de  ser  destacado  pela  doutrina,  não  serviu  de  base  para  a  doutrina  inicial  do  abuso.  Como vemos, o julgamento é de 1913, período posterior aos  dos  primeiros  debates  doutrinários  e da  positivação  das   regras   contra  o  exercício  irregular  em  dispositivos   legais   como  o  BGB(1896)  e  o  Código  Suiço(1904).  12  Conforme CUNHA DE SÁ,1973, p.52: “Através  de hipóteses  concretas  que lhes  foram sendo submetidas,  os   tribunais   franceses   recorreram,  umas   vezes,  à  ideia  dos   limites   do  próprio  direito  exercido(...),  outras   vezes à intenção de prejudicar com que o exercício do direito era efectuado”.  



Apesar  do  próprio  autor  já  antecipar  que  no  abuso  do  direito  não  havia  direito13,  a  expressão  foi  acolhida  pela  sua  natureza  impressiva.  Esta  desde  logo  foi  alvo  de  críticas.  Segundo  PLANIOL,  a  expressão  era  de  natureza  logomáquica,  inútil,  pois,  “o  direito  cessa  onde  começa  o  abuso”,  considerando inconciliáveis as palavras “abuso” e  “direito”.  Este  autor,  embora  contrário  a  utilização  da  expressão,  era  a  favor  da  repressão dos atos abusivos.    Na  esteira,  JOSSERAND  apresentou  a  primeira  concepção  tradicional  do  instituto  ao  afirmar  que  “os  atos  abusivos  são  conformes  ao  direito  subjetivo,  mas  contrários ao direito objetivo, razão pela qual devem ser reprimidos”14. Cumpre destacar  que,  apesar  dos  esforços  em  estabelecer  um  subsídio  teórico,  a  utilização  do  instituto  foi  exígua,  devido  à  aplicação  do  conceito  de ​ faute​ , inclusive no exercício formal de um  direito.  No  mais,  surgiram  ao  longo  dos  tempos  várias  outras  concepções  que  tentam  justificar a natureza do abuso, porém, daremos atenção ​ infra​ .    Simultaneamente  e  em  sentido  diverso,  no  ordenamento  alemão,  apesar  de  não  haver  um  instituto  denomidado  abuso  do  direito,  teve  maior  desenvolvimento  e  influência  para  a  configuração  atual  da  matéria.  A  priori,  o  §226  previa  a  chicana,  que  estabelecia  como  inadmissível  o exercício de um direito quando tivesse unicamente por  escopo  provocar  danos  a  outrem.  Sua  interpretação  não  foi  acolhida  pelos  doutrinadores  da  época,  razão  pela  qual  fora necessário o recurso à outras vias, dando  origem  ao  §82615  que  não  traduzia  a  ideia  de  exercício  de  direito,  mas  estabelecia  regras  de  conduta.  Sendo  assim,  a  doutrina  passou  a  aplicar  em  consonância  ambos  os  preceitos,  remetendo  o  exercício  dos  direitos  aos  bons  costumes(e  a  boa  fé)16,  que  influenciaria o sistema Português, posteriormente.   

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 MENEZES CORDEIRO, ​ Tratado…​ , 2011, p.251.   JORDÃO, 2006, p.70.   15  “Aquele que, de uma forma que atente contra os bons costumes, inflija dolosamente um dano a outrem,  fica obrigado à indenização do dano.”  16  CUNHA DE SÁ, 1973, p.60; MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.82.  14



c) Recepção em Portugal    Relativamente  ao  ordenamento  Português,  devido  ao  art.13  do  Código  de  Seabra(“Quem  exerce  o  seu  direito  não  faz  ilícito  a  ninguém”),  a  recepção da teoria do  abuso  foi  obstada  por  boa  parte  da  doutrina,  embora  houvessem  alguns  autores  favoráveis, apesar da falta de embasamento jurídico­cinetífico17.     Foi  com  Vaz  Serra,  na  confecção  do  anteprojeto  do  Código  Civil,  que  o  abuso  do  direito  veio  a  ter  previsão  legal.  No  seu  estudo,  este  jurista  desenvolveu  sistematicamente  o  abuso  do  direito  em  oito  artigos,  com  vários  incisos, onde regulava  todas  as situações abusivas imagináveis, inclusive fora do campo civil, conforme dispõe  o  art.3  onde  o  autor  tratou  das  situações  de  abuso  nas  relações  processuais,  designadamente a litigância de má fé.     Ocorre  que  o  anteprojeto  foi  objeto  de  duas  revisões,  sendo  a  primeira  resumida  a  um  único  artigo:  “​ O  exercício  de  um  direito,  com  a  consciência  de  lesar  outrem  através  de  factos  que  contrariem  os  princípios  éticos  fundamentais  do  sistema,  obriga  a  indenizar  os  danos  directa  ou  indirectamente causados​ ”. Este dispositivo tinha  sentido  diverso  do  de  Vaz  Serra,  que  atribuía  uma  concepção  objetiva, pois impunha a  necessidade  de  um  elemento  subjetivo,  tal  como  o  francês,  além de remeter o abuso à  responsabilidade civil18.     Na  segunda  revisão,  o  dispositivo  foi  modificado  e  tomou  a  forma  que  na  sequência  seria  consagrada  no  art.334  do  Código  Civil.  Já  agora,  o  artigo  não  fazia  referência  a  uma  conduta  intencional  maliciosa,  bastando  um  elemento  objetivo.  Ademais,  a  alusão  aos  valores  da  boa fé e aos costumes remetem ao desenvolvimento  alemão19.  E  assim  o  é.  Apesar  da  fonte  imediata  do  art.334  do  Código  Civil  Português 

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 MENEZES CORDEIRO, ​ Tratado…​ , 2011, 257 e s..   OLIVEIRA ASCENSÃO, O Abuso do Direito…, 2006, p.608.  19  MENEZES CORDEIRO, ​ Tratado…​ , 2011, p.260.  18

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ser  o  art.281  do  Código  Civil Grego20(com redação praticamente idêntica), este tem por  base o art.2 do Código Civil Suiço e a influência da doutrina alemã.     A  partir  disto,  e  tendo  em  conta  que  o  sistema  Português  tem  propensão  a  preencher  conceitos  indeterminados  e  lacunas  da  lei,  a  doutrina  do  abuso do direito foi  se  desenvolvendo  em  Portugal  a  partir  de  casos  concretos,  determinando  tipos  de  comportamentos  abusivos.  Esta  regulação,  conforme  MENEZES  CORDEIRO,  “traduz  uma  forma  de  solucionar  todas  ou  algumas  situações  de  abuso,  dotada  de  certa  unidade  linguística  e,  por vezes, dogmática.”21 É a partir da criação de comportamentos  específicos  que  a  doutrina  portuguesa  se  destaca  perante  outras,  conforme  veremos  infra​ .    d) Recepção no Brasil    No  que se refere ao ordenamento Brasileiro, diferentemente dos que já foram  mencionados,  sua  recepção  legal  foi  tardia,  sendo  apenas  estabelecida  no  século  corrente.  Contudo,  há  de  mencionar  que  o  abuso  do  direito  já  se  fazia  presente  neste  ordenamento,  ainda  que  implicitamente,  desde  os  primórdios  do  século  passado,  conforme veremos.     O  código  Civil  de  1916,  anterior  ao  atualmente  vigente,  influenciado  pelo  liberalismo  e  tendo  consagrado  o  absolutismo,  coroava  o  individualismo.  Conforme  se  extrai  do  art.160,  I,  "Não  constituem  atos  ilícitos:  I­os  praticados  em  legítima  defesa ou  no  exercício  regular  de  um  direito  reconhecido"22.  A  amplitude  deste  preceito  resultou  na  insegurança  jurídica  social,  posto  que  a  definição  do  que  poderia  vir  a  ser  um  exercício  regular do direito era vaga e imprecisa e, sendo assim, não estabelecia limites  aos  exercício  dos  direitos subjetivos23. Em razão disto surgiram as injustiças que deram  20

 CUNHA DE SÁ, 1973, p.76.   MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância​ …, 2011, p.84.  22  Este artigo corresponde ao Art.188 do CC/2002.   23  MIRAGEM, ​ Abuso do Direito: Ilicitude Objetiva​ , 2005, p.16.  21

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ensejo ao desenvolvimento de uma doutrina repressiva àqueles direitos.       Apesar  da  inexistência  de  base  legal,  para  a  jurisprudência  e  doutrina  daquele  tempo,  o  abuso  do  direito  estaria  implícito  no  conceito  do  art.160,I.  Este  raciocínio  se  deu  pela  necessidade  patente  de  limitar  os  direitos  subjetivos  que  na  prática  demonstravam  injustiça  gritante,  sendo  o  direito  à  propriedade,  considerado  o  mais  absoluto  dos  direitos,  o  primeiro  a  ser  relativizado.  Nesse  sentido,  os  juristas  e  doutrinadores,  a  partir  de  uma  interpretação  ​ contrario  sensu​ ,  admitiam  a existência do  abuso  do  direito,  a  partir  da  ideia  de  que  se  o  exercício  regular  de  um  direito  era  considerado lícito, então, caso o exercício fosse desregular, este seria ilícito24.     Não  obstante,  o  Codígo  Civil  de  1916  já  perfilava  o  instituto  em  estudo  em  alguns  dos  seus  dispositivos,  reprimindo  atuações  que  constituam  verdadeiro  "abuso"  daquele direito25, conforme se verifica nos seguinte artigos:     Art.  526​ .  A  propriedade  do  solo  abrange  a  do  que  lhe  está  superior  e  inferior  em  toda  a  altura  e  em  toda  a  profundidade,  úteis   ao  seu  exercício, não podendo, todavia, o proprietário opor­se aos  trabalhos  que  sejam  empreendidos   a  uma  altura  ou  profundidade  tais,  que  não  tenha  ele  interesse  algum  em  impedi­los(Decreto  do  Poder  Legislativo  3.275,  de 15.01.1919)  Art.  554​ .  O  proprietário,  ou  inquilino  de um prédio tem o direito de impedir  que  o  mau  uso  da  propriedade  vizinha  possa  prejudicar  a  segurança,  o  sossego e a saúde dos que o habitam.  Art.  584​ .  São  proibidas   construções   capazes   de  poluir,  ou  inutilizar  para  uso ordinário, a água de poço ou fonte alheia, a elas preexistente.  (Entre outros) 

  Reconhecida  a  existência  de  injustiças  no  campo  do exercício dos direitos, o  24

 CALCINI, ​ Abuso...​ , 2004, p.29.   BONATTI PERES,​  Abuso do Direito​ , 2010, p.9 e seg.; FARIA GOES, 2003, p.14.  

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próximo  passo  seria  a  introdução  legal  de  um  dispositivo  que  limitasse  tal  conduta.  A  primeira  tentativa  foi  apresentada  por  Haroldo  Valadão,  que  no  anteprojeto  da  Lei  de  Introdução  ao  Código  Civil(denominada  por  ele  de  "Lei  geral  de  aplicação  das  Normas  Jurídicas),  propôs  no  Art.11,  a  "Condenação  do  Abuso  do  Direito".  Apesar  da  importante  iniciativa,  esta  não  obteve  êxito.  Todavia,  com  a  publicação  do  LICC  em  1942,  designadamente  no  seu  art.5,  atingiu­se  algum progresso com o reconhecimento  ao  juiz  de  perseguir  e  atentar  aos  fins  sociais  e  o  bem  comum quando da aplicação da  lei.  Conforme  BONATTI26,  este  preceito  serviu  de  fundamento  para  a  aproximação  entre  o  direito  e  a  sociedade,  que  teriam  maiores  reflexos  com  o  advento  da  nova  Constituição, de 1988.     Passado  o  momento  histórico  brasileiro do período pós­guerra, atravessando  a  ditadura  até meados da década de 80, a atenção é voltada agora para a promulgação  da  Constituição  Federal  de  1988.  Apesar  de  fugir  a  esfera  do  nosso  tema,  necessário  se  faz  mencioná­la.  À  CF/88  deve­se  a  “cristalização”  da  noção  de  direito  funcionalizado  e  de  solidariedade  social.  O  princípio  da  solidariedade  social  altera,  em  definitivo,  o  conceito  de  direito  subjetivo,  admitindo  sua  relativização,  em  razão  da  função27, ecoando nas leis seguintes, inclusive o novo Código Civil.     A  partir  disso,  o  novo  CC  foi  consagrado  com  base  em  três  princípios  fundamentais:  a  eticidade,  a socialidade e a operabilidade. Segundo CALCINI28, quanto  ao  primeiro  princípio,  este persegue "valorizar a consagração da justiça, primando, pela  dignidade  da  pessoa  humana,  a  probidade,  a  boa  fé,  a  equidade  e  os  demais  funndamentos  axiológicos,  que  caracterizam  a  justiça,  pela  ótica  material  e  não  simplesmente  formal.  Em  tais  condições,  para  se  atribuir  justiça,  de  cunho  material,  quando  da  aplicação  das  normas deste Código Civil, forçosamente cumprirá respeitar e  lembrar  dos  princípios  da  eticidade,  cujo  valor  ético  a  todas  normas  impregnam.  Bem 

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 BONATTI PERES, 2010, p.18 e seg.   Idem​ , p.20.  28  CALCINI, ​ Abuso...​ , 2004, p.28.  27

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por  isso,  surge,  como  consequência  natural  da  adoção  do  princípio  da  eticidade,  a  opção,  nesta  legislação,  por  normas  genéricas  ou  cláusulas  gerais,  que  empregam  conceitos  jurídicos  indeterminados,  sem quedar­se preocupada com um excessivo rigor  conceitual, deixando as normas mais maleáveis".    Já  em  relação  ao  princípio  da  socialidade,  conforme  se  absorve  da  nomenclatura,  obtêm­se  uma  ideia  de  social,  sociedade. Este princípio tem por objetivo  superar  o  individualismo  presente  no  Código  de  1916,  ao  sedimentar  a  predominância  do  direito  social,  comum,  em  face  ao  direito  individual.  A  partir  disso,  o  direito  preconizado  no  CC/2002  deve  ser  encarado  sobre  dois  enfoques:  no  interesse  juridicamente  protegido  do  titular  e  no  interesse  da  coletividade,  devendo  aquele  se  harmonizar  com  este.  Por  fim,  quanto  ao  princípio  da  operabilidade,  o  legislador  optou  por  não  utilizar  de  soluções  complexas  que  por  vezes  impediam  a  aplicação  das  normas. Isto resultou na simplicidade da lei.     É  com  base  no  primeiro  princípio  mencionado,  e  tomando  por  referência  o  art.  334  do  CC/Português29,  que  o legislador brasileiro introduz o abuso do direito na lei  civilista, perpetuado no art.187.    1.2) A construção do Abuso do Direito     Consoante  vimos  no  tópico  anterior,  a  aceitação  do  instituto  em  questão  pelos  ordenamentos  aqui  estudados  ocorreu  após  ficar  evidenciada  a  necessidade  de  relativizar  o  direito  subjetivo  face  ao  objetivo.Todavia,  até  alcançar  sua  concepção  atual,  o  abuso  foi  matéria  de  diversas  doutrinas  que  propuseram  as  mais  variadas  teorias com o intuito de definir um corpo jurídico àquele instituto.     29

  OLIVEIRA  ASCENSÃO  atribui  esta  referência  ao  fato  do  Anteprojeto  do  CC/2002  ser  de  1973,  período  em  que  o  CC  Português   era  Código em vigência mais  recente. Ao nosso ver, indepentende da proximidade  temporal,  a  lei  brasileira  teria  forte influência da portuguesa, como já ocorre desde a Colônia. Além disso, a  semelhança entre as normas levam a essa conclusão. 

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Nesse  sentido,  é  possível  listar  diversas  teorias,  à  exemplo  das  teorias  afirmativas  e  negativas30,  subjetivas  e  objetivas31  ou internas e externas32. Embora não  tenhamos  interesse  em  analisar  densamente  cada  corrente  teórica,  cumpre­nos  mencioná­las, ainda que sem delongas.      No  que  pese  as  teorias  afimartivas  e  negativas,  a  primeira  admite  a  existência  do  abuso  do  direito,  bastanto,  para  tanto,  o  surgimento  de um dano anormal  à  outrem,  resultante  de  um  direito  subjetivo33.  Em  sentido  oposto,  a  teoria  negativista  poderia  ser  dividia  numa  doutrina  que  negava  a  existência  do  direito  subjetivo  e,  consequentemente,  do  abuso  do  direito.  Ou  então,  por  outra,  que,  encabeçada  por  ROTONDI34  admitia  a  existência  do  abuso  do  direito,  mas  considerava  o  instituto  metajurídico.  A  primeira  destas  teorias  serviu  de  base  teórica  para  o  desenvolvimento  posterior  do instituto, já que, conforme vimos acima, o abuso começou a ser estudado a  partir  do  exercício  anormal  do  direito  subjetivo.  Noutro  lado,  não  há  alternativa  senão  ignorar  a  teoria  negativista.  O  instituto  em  questão  já  demonstrou  estar  presente  no  cotidiano,  nas  relações  interpessoais  que,  conforme  já  dissemos,  são  reguladas  pelo  direito.    Já  em  relação  às  teorias  subjetiva  e  objetiva,  a  sua  interpretação  é  a  mais  simples  possível.  Na  teoria  subjetiva,  subdivide­se  em  duas  vertentes:  na  primeira,  basta  o  agente  agir  com  culpa  para  que  o  abuso  do  direito  seja  caracterizado,  enquanto,  na  segunda,  a  doutrina  exige  que  o  agente  tenha  intenção  de  prejudicar(​ aemulatio​ ).  Por  outro  lado,  e  mais  próxima  do  conceito atual de abuso, está 

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 CALCINI, 2004, p.35 e s.   BONATTI PERES, 2010, p.41 e s.  32  MENEZES CORDEIRO,​  Litigância…​ ,2011, p107 e ss..  33   CUNHA  DE  SÁ,  1997,  p.349:  “haveria  abuso  sempre  que,  e  só  quando,  com  a  sua  atuação,  o  titular  acarretasse ao terceiro ou terceiros  um prejuízo que não se pudesse considerar o resultado normal ou usual  do exercício de tal direito”.  34   Apud  JORDÃO,  2006,  p.79:  Mario  Rotondi  considerava  que  o  abuso  do  direito era “um fenômeno social,  não  um  conceito  jurídico,  pelo  contrário  [é  um]  daqueles   fenômenos   que  o  direito  não  poderá  jamais   disciplinar  em  todas   as   suas   aplicações   que  são  imprevisíveis:  é um estado de ânimo, é a avaliação ética  de um período de transição, é aquilo que se queira, mas não é uma categoria jurídica”  31

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a  teoria  objetiva.  Nesta  corrente,  o  ato  abusivo  é  caracterizado  independentemente  de  culpa,  sendo  determinante  o  fim  atribuído  ao  direito.  Se  o  exercício  deste  direito  for  contrário  ao  fim  que  se  destina,  então  há  um  ato  abusivo.  Esta  é  a  teoria  acolhida  no  Código Civil brasileiro, conforme veremos ​ infra​ .    Por  último,  no  que  tange  as  teorias,  cabe­nos  mencionar  as  teorias  internas  e  externas  ao  direito  subjetivo.  Conforme  MENEZES  CORDEIRO,  a  teoria  interna  consiste  em  atribuir  limites  intrínsecos  ao  conteúdo  de  cada  direito  subjetivo,  onde,  ao  ultrapassar tal limite, surgiria o ato abusivo. Esta corrente é dividida em três doutrinas: a  dos  atos  emulativos,  funcional  e  a  interpretativa.  A  primeira  corresponde  à  intenção  do  titular  do  direito  em  prejudicar.  A  segunda,  de autoria de JOSSERAND, estabelece que  o  direito  subjetivo  é  complementado  por  uma  função.  Seria  no  desrespeito  a  esta  função  que  surgiria  o  ato  abusivo.  Quanto  a  doutrina  interpretativa,  posterior  à  funcional,  este  autor  explica  que  tendo  em  conta  a  necessidade  de  respeitar  as  considerações  funcionais  referentes  ao  direito,  em  si,  o  abuso  resultaria  então  numa  questão de interpretação do ato35.     Relativamente  as  teorias  externas,  ao  contrário,  o  ato  abusivo  surge  a  partir  do  desrespeito  as  normas  jurídicas  alheias  ao  direito  subjetivo.  Esta  teoria  é partilhada  entre  três  doutrinas:  a  das normas específicas, a da contraposição entre a lei e o direito  e  a  da  remissão  para  ordens  extrajurídicas.  Quanto  a  primeira,  exprime  a  ideia  de  que  existem  regras  direcionadas  aos  titulares  do  direito  subjetivo  com  proibição  de  certos  exercícios.  O ato abusivo reside no desrepeito a estas proibições. Na segunda doutrina,  da  contraposição  entre  a  lei  e  o  Direito,  retira­se  que  o  ato  abusivo  é  conforme  com  a  lei,  mas  contrário  ao  direito.  Já  na  terceira,  da  remissão  para  ordens  extrajurídicas,  o  ato  abusivo  é  de  acordo  com  o  direito,  mas  infringe  estas  ordens.  Entende­se  por  ordem extrajurídica, por exemplo, a moral e o direito natural36.    35

 MENEZES CORDEIRO,​  Litigância…​ ,2011, p.107 e s.   ​ Idem​ , p.111­113.  

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Sabe­se  que  abuso  do  direito  é  resultado  da  conjugação  destas  teorias,  em  razão da insuficiência construtivo­teórica quando aplicadas individualmente. Com efeito,  se  formos  analisar  a  atual  concepção  do  instituto,  verificaremos  elementos  das  teorias  acima mencionadas, uns com maior abragência do que outros.    Superada  esta  fase,  ainda  que  de  maneira  não  uniforme,  o  abuso  do  direito  deve  ser  entendido  como  o  exercício  disfuncional  de  posições  jurídicas.  Nas  palavras  de  MENEZES  CORDEIRO,  “um  concreto  exercício  de  posições  jurídicas  que,  embora  corretas  entre  si,  seja  inadmissível  por  contundir  com  o  sistema  jurídico  na  sua  globalidade37.  Portanto,  nesse  sentido,  no  abuso  do  direito  não  há  nem  um  “abuso”,  nem  um  direito  subjetivo.  Por  outro  lado,  há  quem  conceitue  o  abuso  como  sendo  “o  simples  descompasso  entre  o  exercício  de  um direito subjetivo, aparentemente regular,  mas que, em verdade, descumpre o fundamento axiológico inscrito na norma”38.     A  distinção ocorre justamente na interpretação do ato abusivo. No primeiro, o  abuso  nasce  da  desconformidade  com  o  exterior,  o  sistema  jurídico  no geral, ao passo  que,  no  segundo,  o abuso deriva da inobservância dos seus valores internos. Isto se dá  pelo  fato  do  pilar  fundamental  do  instituto  do abuso em Portugal ser a boa fé, enquanto  que, no ordenamento brasileiro, priorizou­se a função social do direito.    1.3) A previsão legal e a violação aos limites como causa do abuso do direito    A  materialização  do  instituto  se  retira  dos  artigos  334 e 187, das leis civis de  Portugal e Brasil, respectivamente:     Art.  334​ .  É  ilegítimo  o  exercício  de  um  direito,  quando  o  titular  exceda  manifestamente  os  limites  impostos  pela boa fé, pelos  bons  costumes  ou  pelo fim social ou econômico desse direito. 

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 MENEZES CORDEIRO,​  Litigância…​ ,2011, p,75   CALCINI, 2004, p.37. 

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Art.  187​ .  Também  comete  ato  ilícito  o  titular  de  um  direito  que,  ao  exercê­lo,  excede  manifestamente  os   limites   impostos   pelo  seu  fim  econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes.   

De  acordo  com  a  redação  verificamos  a  semelhança  entre  os  preceitos.  A  influência  do artigo português sobre o brasileiro é patente. O legislador brasileiro atribui,  inclusive,  os  mesmo  limites.  Contudo,  o  abuso  do  direito  português  vem  sedimentado  na  seção  do  exercício  e  tutela  dos  direitos,  ao  passo  que  o  brasileiro  está  presente  na  seção dos atos ilícitos.     A  doutrina  portuguesa  predominante  considera  equivocada  a  denominação  de  ato  ilegítimo,  isto  em  razão  da  já  tradicional  acepção  deste termo, considerando ser  ato  ilícito  o  vocábulo  mais  apropriado39.  Apesar  disso,  ao  nosso  ver,  o  ato abusivo não  constitui  ato  ilícito.  Isto  porque,  no  ato  ilícito  o  agente  confronta  a  lei  frontalmente(revestido  de  culpa),  ao  passo  que,  no  abuso,  o  agente  ultrapassa  os  limites no exercício do direito.     É  o  que  consolidou  JOSÉ  DE  AGUIAR  DIAS40,  ainda  em  1944,  ao  afirmar  que  “nos  moldes  clássicos,  não  caberia,  com  efeito,  considerar  como  agente  de  abuso  senão  aquele  que  procede  culposamente.  Mas  a  doutrina  do  abuso  do  direito  é,  por  definição,  inconciliável  com  o  princípio  da  culpa  e  os  que  a  propugnam  partem  exatamente  dessa  premissa,  porque,  quando  encaramos  um  fato  culposo,  a  responsabilidade emerge dele, nos termos do direito comum, não havendo necessidade  de cogitar o abuso do direito”.    A  consagração  desse  entendimento  vem  no  Enunciado  nº37  da  Jornada  de  Direito Civil41, onde sedimentou­se entendimento relativo ao art.187.   39

 MENEZES CORDEIRO, ​ Tratado…​ , 2011, p.239 e seg.;: OLIVEIRA ASCENSÃO, ​ Abuso…​ , 2006, p.620.   Apud​  ​ MIRAGEM, ​ Abuso do Direito…​ , 2005, p.20.  41   Evento  promovido  pelo  Superior  Tribunal  de  Justiça,  que  reuniu estudiosos  civilistas  de todo o país  com  a  finalidade  de  examer  o  novo  Código  Civil,  derivando daí uma série de enunciados  interpretativos  da nova  lei.  40

18 

  Art.187:  A  responsabilidade  civil  decorrente  do  abuso  do  direito  independe 

de 

culpa  e  fundamenta­se  somente  no  critério 

objetivo­finalístico. 

  Quanto  à  aplicação  do  abuso  do  direito,  necessário  se  faz  o  preenchimento  dos  requisitos.  Na  legislação  brasileira,  são  dois:  o  exercício  do  direito(subjetivo)  e  a  violação  aos  limites  objetivos.  Por  outro  lado,  no  direito  português,  com  aplicação  prática  indubitavelmente  superior,  já  não  se  faz  referência  ao  exercício  de  um  direito  subjetivo,  em  razão  de  já  se  ter provado que o abuso poder surgir de qualquer situação  jurídica42.    Brevemente,  para  se  aplicar  o  abuso  no  ordenamento  brasileiro,  mister  se  faz,  parcialmente,  o  exercício  do  direito  pelo  seu  titular  ou  por  representação.  Esta  exercício  corresponde  à  liberdade  jurídica  conferida  aos  indivíduos  através  de  um  direito,  subjetivo.  Essa  prerrogativa  implica  numa  atuação  positiva,  correspondente  a  uma  ação,  ou  negativa,  no  caso  de  omissão.  Há  de  ter  em  conta  que  ambas  caracterizam exercício de um direito subjetivo, na interpretação do art.18743.     Quanto  aos  limites  impostos,  já  expusemos  que  a  semelhança  entre  os  preceitos  reside  justamente  aí.  A  cópia,  quase fiel, do art.187 em relação ao art.334  se  dá  pelo  emprego  da  boa  fé,  bons  costumes  e  fim  econômico  e  social,  além  do  termo  “manifestamente”.  Vale  dizer  que  os  dois  primeiros  limites  são  gerais  devendo  sempre  ser  analisados,  enquanto  que  os  dois  últimos  são  específicos,  em  razão  dos  direitos  apresentarem, geralmente, ou um fim econômico ou social.     Relativamente  à  boa  fé,  princípio  geral do direito, presente não só na lei civil,  mas  em  todas as outras codificações, foi o limite que obteve o maior apreço na doutrina 

42

 MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.118­119.   MIRAGEM, 2005, p.29. 

43

19 

portuguesa.  Para  o  abuso  do  direito,  somente  releva  a  boa  fé  objetiva.  Conforme  CUNHA  DE  SÁ44  doutrinava,  a  boa  fé  tem  dois  sentidos: o primeiro seria um estado de  espírito,  de  onde  se  retiram consequências favoráveis e que corresponderia ao aspecto  subjetivo;  em  sentido  diverso,  a  boa  fé  seria  o  princípio  pelo  qual  o  sujeito  de  direito  deve  atuar  como  pessoa  de bem, honesta. Este segundo sentido, objetivo, destina­se a  duas 

utilizações, 

sendo 



primeira 

como 

fonte 

de 

deveres  jurídicos 

secundários(relativamente  aos  deveres  que  derivam  da  boa  fé),  e  o  segundo  como  interpretador dos negócios jurídico ou limitador dos direitos subjetivos45.     Apesar  de  limitar  a  interpretação  da  boa  fé  ao  aspecto  objetivo,  esta ainda é  a cláusula geral mais extensa do ordenamento português46 e apresenta um conceito um  tanto  vago,  pois,  "exceder  manifestamente  os  limites  impostos  pela  boa  fé"  poderia  abranger inúmeras situações.    A  solução  para  uma  aplicação  objetiva  da  boa  fé,  presente  em  tantos  outros  dispositivos  do  Código  Civil  Português,  seria  feita  pela  utilização  dos  “vetores  próprios  do  manuseio  da  boa  fé”,  sendo  concretizada  a  partir  da  determinação  de  comportamentos abusivos típicos47, que iremos mencionar ​ infra​ .     No  que  pese  ao  ordenamento  brasileiro,  dentre  os  limites  estabelecidos  no  art.187,  é  a  boa  fé  que  tem  sido  tema  de  maior  aprofundamento  pela  doutrina  atual,  mas  não  obteve,  ao  tempo  da  publicação  do  CC/2002,  a  importância  conferida  pelo  ordenamento  luso.  Isto  em  razão  da  prevalência a finalidade social do direito, conforme  se retirou do enunciado nº37.     Quanto  aos  bons  costumes,  esta  concepção  é  geralmente  associada  as  regras  de  moral,  conduta  sexual  e  resguardo  social  reiteradamente  praticadas  no  seio  44

 CUNHAS DE SÁ, 1997, p.164 e seg.   MIRAGEM, 2005, p.32­33.   46  OLIVEIRA ASCENSÃO, 2006,p.613.  47  MENEZES CORDEIRO, ​ Tratado…​ ,2011, p.241,372.   45

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da  sociedade.  Ultrapassar  os  limites  impostos  pelos  bons  costumes  é  dizer  que  o  agente  age  contrariamente  aos  critérios  ético­sociais  estabelecidos  a  partir  do  comportamento  daquela  sociedade  ao  longo  dos  tempos.  A boa fé e os bons costumes  apresentam  certa  relação,  em  razão  de  ambos  terem  por  referência  a  proteção  de  valores  éticos  e  morais.  Contudo,  a  proteção  aos  bons  costumes  é  maior,  já  que  se  aplica  a  todo  e qualquer exercício de direito subjetivo48. Para MENEZES CORDEIRO, a  utilização  desse  limite  no art.334 é desnecessária, já que equivale aos “bons costumes”  presente no art.280/2 e que resultaria numa solução já alcançada49.    Ao  nosso  ver,  neste  caso,  o  legislador  opta  por  especificar  a  obediência  aos  bons  costumes  no  que  tange  ao  exercício  dos  direitos,  enquanto  que,  no  outro  dispositivo, essa obediência era determinada na prática dos objetos negociais. Aquela é  bem  mais  extensa  que  essa  e,  assim  sendo,  desnecessária  seria  a  previsão  no  art.280/2.     Por  último,  o  instituto  do  abuso  é  aplicável  quando  da  violação  dos  limites  impostos  pelo  fim  social  ou  econômico.  Esta  cláusula  geral  encontra  guarida  no  ordenamento  brasileiro  e  desde  1942,  com  o  advento  da  Lei  de  Introdução  ao  Codigo  Civil, no art.5 já se fazia referência à observância dos fins socias na aplicação da lei.     Cumpre  recordar  que  o  fim  social  está  diretamente  relacionado  a  teoria  da  função  social  do  direito,  de  JOSSERAND,  de  onde  se  retira  que  todo  direito  vem  acompanhado  de  uma  função  social,  devendo  o  agente  atuar  neste  sentido,  caso  contrário, resultaria em abuso.     Sendo  assim,  apesar  dos  preceitos  não  fazerem  referência  à  função  social,  mas  sim  ao  fim,  e,  tendo  em  conta  que  não  existe no direito um fim subjetivo, restará o  fim  objetivo.  Quanto  ao  fim  objetivo  do  direito,  este  é  exercido  com  respeito  à  esfera  48

 MIRAGEM, 2005, p.35.   MENEZES CORDEIRO, ​ Tratado…​ ,2001, p.241. 

49

21 

social. Nesse sentido, fim social é função social50.     Apesar  de  analisadas  sob  o  mesmo  prisma,  a  finalidade  social  e  econômica  não  se  confundem.  Os  limites  impostos  pelos  fins  sociais  abrange  todos os direitos, ao  passo  que  o  fim  econômico  somente  incide  em  direitos  específicos.  Os  fins  sociais  do  direito  remetem  “a  ideia  da  razão  de  ser  do  direito,  de  uma  concepção  socialmente  adequada  dos  direitos  subjetivos  frente  aos  diversos  interesses  em  curso  na  comunidade”51.  Neste  caso,  o  abuso  do  direito  consiste  na  violação  dos  limites  estabelecidos com natureza objetivo­finalística52.     Por  outro  lado,  a  interpretação  do  abuso  de  um  direito com base na violação  dos  fins  econômicos  deve  ultrapassar  o  enunciado  legal.  Não  se  pode  aferir  esta  cláusula  geral  com base apenas no direito subjetivo do agente, mas, ao contrário, deve,  além  disto,  ter  em  conta  os  interesses  econômicos  da  sociedade  e  a  repercussão  do  exercício deste direito em relação a ela53.    1.4)  A  concretização  do  Abuso  através  da  jurisprudência  e  os  comportamentos abusivos típicos    Ainda  que  nosso  tema  seja  relativo  ao  abuso  do  direito  de  ação,  é  necessário  fazer  menção  aos  comportamentos  típicos  desenvolvidos  ao  longo  do  desenvolvimento  doutrinário  e  jurisprudencial.  Isto  porque,  conforme  se  demonstrará  por  via  de  casos  julgados,  o  exercício  abusivo  no  direito  de  ação  pode  ser  de  ordem  substancial,  quando  se  constate  algum  dos  comportamentos  típicos,  ou  no  plano  técnico, quando contrário aos parâmetros estabelecidos pelo princípio da boa fé54.   

50

 OLIVEIRA ASCENÇÃO, p.612.    MIRAGEM, 2005, p.32.  52  Conforme Enunciado n.37, ​ s upra​  mencionado.  53  MIRAGEM, 2005, p.31  54  MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.131.  51

22 

Sendo  assim,  há  de  falar  no  ​ venire  contra  factum  proprium​ ,  inalegalibidades  formais, ​ suppressio​ , ​ tu quoque​  e desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.    Antes  de  mais,  cumpre  assinalar  que  esta  parte  do  estudo  tem  base  unicamente  na doutrina portuguesa. O desenvolvimento do abuso no Brasil tomou outro  rumo,  não  havendo  na  doutrina  um  quadro  semelhante,  relativamente  aos  comportamentos  típicos.  Não  obstante,  a  jurisprudência  brasileira  tem  aumentado  a  referência a estes comportamentos.    A expressão ​ venire contra factum proprium​ , de origem canónica, é o principal  e  mais  utilizado  dos  comportamentos  abusivos.  Consiste  em  duas  condutas(​ factum  proprium​ ,  correspondente  a  primeira  conduta  e  o  ​ venire​ ,  relativamente  a  segunda  conduta)  praticadas  por  uma  mesma  pessoa,  lícitas  em  si,  diferidas  no  tempo  e  contraditórias55.     A  explicação  para  este  tipo  abusivo  tem  eco  na  doutrina  da  confiança,  segundo  o  qual  o  ​ venire deve ser proibido em razão de ser contrário à primeira conduta  assumida  e  que  gerou uma situação de confiança legítima na outra parte, devendo esta  ser  protegida  da  arbitrariedade  daquela.  Para tanto, a proteção da confiança se dá pela  constatação  das  proposições  desenvolvidas  pela  doutrina  e  jurisprudência56,  quais  sejam,  ​ uma  situação  de  confiança,  uma  justificação  para  essa  confiança,  um  investimento de confiança ​ e a​  imputação da situação de confiança57.    Dentre alguns casos julgados, destacamos em cada ordenamento:    RLx   22/05/2012:  ​ Constitui  abuso  do  direito,  na  modalidade  ​ v enire,  ​ a  invocação  pelos   réus   da  nulidade  do  contrato  de mediação, já após  a conclusão do negócio  visado  pelo  exercício  da  mediação, numa altura em que já se tinham aproveitado  55

 MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.92.   Idem​ , p.93.  57  Ver MENEZES CORDEIRO, ​ Tratado…​ , Parte Geral, Tomo V, p.275 e seg.  56

23 

das   vantagens   do  trabalho  desenvolvido  pela  mediadora,  para  não  terem  que  pagar  a  remuneração  contratualmente  estabelecida,  em  contraste  com  a  sua  anterior atitude.  STJ   ­  REsp.  13/11/2012:  Recurso  Especial.  Direito Cambiário. Ação Declaratória  de  nulidade  de  Título  de  Crédito.  Assinatura  escaneada.  Descabimento.  Invocação  do  vício  por  quem  deu  a  causa.  Ofensa  ao  princípio  da  boa  fé  objetiva.  Aplicação  da  teoria  dos   atos   própriossintetizada  nos   brocardos   latinos   “​ v enire contra factum proprium” e “tu quoque”​ . (Brasil)   

Quanto  à  inalegabilidade  formal,  esta  visa  a  coibir  o  abuso  do  direito  praticado  na  alegação  de  uma  nulidade  formal  pela  parte  que,  ao  saber  da  existência  do  defeito,  não  invocou  quando  deveria,  se  prevalecendo  deste  para  depois  suscitá­la,  verificando  assim um comportamento contrário a boa fé. É composto por duas condutas  contraditórias  conforme  o  ​ venire​ ,  porém,  especificamente  na  formação  do  negócio  jurídico, razão pela qual recebe tratamento específico58.     É o que se retira dos seguintes acórdãos:     RP  10/07/2013:  I  –  A  invocação  da nulidade do contrato de arrendamento após  a  cessação  do  mesmo  e  depois   de  se  ter  usado  o  local  durante  algum  tempo  integra uma situação de abuso de direito.  II  –  Caso  o  contrato  cesse  por  acordo  das  partes  não é devido o pagamento das   rendas correspondentes ao período de pré­aviso em falta (Porto).  TJ­MG  19/03/2014​ :  APELAÇÃO  ­  AÇÃO  DECLARATÓRIA  DE  NULIDADE  ­  DIVERSAS 

EMPRESAS  DE  UM  MESMO  GRUPO  ECONÔMICO  ­ 

INOBSERVÂNCIA  DE FORMALIDADE DE CONVOCAÇÃO ­ VÍCIO MATERIAL ­  DEVER  DE  LEALDADE  E  BOA­FÉ  ­  PRINCÍPIO  DA  CONFIANÇA  ­  VEDAÇÃO  AO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM (AC 10702100537456006 MG)   

Ainda  que  a  decisão  brasileira faça referência ao ​ venire, trata­se de um caso  de  inalegabilidade  formal.  A  semelhança  entre  os  tipos  se  torna  ainda  mais  clara  quando  se  verifica  os  pressupostos  para  que  seja  aplicada.  Conforme  MENEZES  58

 ​ Idem​ , p.299 e seg. 

24 

CORDEIRO59,  este  tipo  requer  os  pressupostos  da  confiança  que  referimos  quanto  ao  venire​ ,  além  de  introduzir  outros  três:  devem  estar  em  jogo  somente  os  interesses  das  partes  envolvidas,  a  situação  de  confiança  deve  ser  imputável  à  pessoas  a  responsabilizar e o investimento de confiança de apresentar­se sensível.    No  que  se  refere  a  ​ supressio​ (supressão),  segundo  CUNHA  DE  SÁ60,  “trata­se  de proibir que, no âmbito de uma relação pré­existente, o titular de um direito o  venha  fazer  valer  em  contradição  com  a  própria  conduta  anterior,  por  tal  se  afigurar  inadmissível  perante  os  deveres  de  correcção  e  de  boa  fé  vigentes  na  relação,  que  seriam  violados  por  tal  exercício  ­  nomeadamente,  se  a  conduta  anterior  do  titular,  objectivamente  interpretada,  legitimava  a  convicção  de  que  o  direito  já  não  seria  exercido”.    A  ​ supressio  também  é  pautada  na  tutela  da  confiança  e  seus  pressupostos,  embora  seja  individualizada  pelo  fator  temporal.  A  ​ supressio  consiste,  então,  na  perda  de  um  direito  por  aquele  que  não  o  exerce  durante  certo  lapso  temporal  e,  ao  mesmo  tempo,  nasce  um  direito  na  esfera  do  confiante  de  boa  fé,  denominado  surrectio​ (surgimento). Quanto às jurisprudências, destacamos:     STJ   11/12/2013:  I  –  A  inércia,  omissão  ou  não­exercício  do  direito  por  um  período  prolongado,  sem  que  possa  sê­lo  tardiamente  se  contundir  com  os   limites   impostos   pela  boa fé, constitui uma expressão ou modalidade especial do  ‘venire 

contra 

factum 

proprium’​ , 

conhecida 

por 

supressio​ ​ . 

(​ 629/10.9TTBRG.P2.S1)  TJ­DF  07/03/2012​ :  1.  Não  merece  properar  o  pleito  de  herdeiro  que  impugna  esboço  de  partilha  apresentado  pelo  inventariante  somente  após   a  sentença  de  procedência,  quando,  durante  o  invetário,  que  tramitou  por  quase  duas  décadas,  o  insurgente,  mesmo  instado,  não  se  manifestou  em  sentido  contrário.  3. 

59

 MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.98.    CUNHA  DE  SÁ,  1997,  p.65:  Este  autor  deu  outro  nome  ao  instituto,  denominando­o  de  “exercício  inadmissível do direito”.  60

25 

Incidência da teoria da ​ s urrectio. ​ (​ APL 195052220118070001)   

Outro  comportamento  abusivo  que  tem  sido evitado no direito é o ​ tu quoque​ .  Este  consiste  na  proibição,  por  ser  abusiva,  de  um  sujeito  violar  uma  norma  jurídica  e  depois  se  prevalecer  da  situação  jurídica  decorrente,  ou  exercer  a  posição  jurídica  violada pelo próprio ou exigir a outrem que acate a situação já violada61.     Diferentemente  dos  tipos  acima,  o  ​ tu  quoque  não  caracteriza  um  abuso  do  direito  a  partir  da  quebra  da  confiança  do  sujeito  de  boa  fé.  O  exercício  de  posições  jurídicas  pode  alterar  a  relação  substancial  entre  as  partes  e  retroceder  ao  ​ status  quo  nessa  relação,  apesar  de  conforme  à  previsão  legal,  mostra­se  contrária  à  boa  fé.  Daí  surge  o  outro  princípio  concretizador  da  boa:  o  da  materialidade  subjacente,  onde  se  busca  respeitar  e  manter  a  situação  jurídica  alterada  pelo  comportamento  anterior  e  indevido62.      TJ­DF  26/02/2014​ :  Configura  violação  ao  princípio  da  boa  fé  objetiva,  na  modalidade específica do “tu quoque”, a conduta da parte que pleiteia a resolução  do  contrato,  quando  sequer  cumpriu  sua  obrigação  contratual. 

(​ APC 

20130110941769) 

  Por  último,  fazemos  referência  ao  desequilíbrio  no  exercício  de  posições  jurídica.  Segundo  MENEZES  CORDEIRO,  este  tipo  residual  e  mais  extenso  está  na  origem  do  abuso  do  direito,  pois  engloba  vários  subtipos,  do qual o autor faz menção a  três:  o  exercício  danoso  inútil,  o  ​ dolo  agit  e  a  desproporção  grave  entre  o  benefício  do  títular  exercente  e  o  sacrifício  por  ele  imposto  a  outrem63.  Também  releva  na  materialidade  subjacente.  O  exemplo  mais  corrente  é  o  da  desporporção  grave,  geralmente nas relações de arrendamento: 

61

 MENEZES CORDEIRO,​  Tratado​ …, 2011, p.327 e seg.   ​ Idem, ​ p.336.  63  ​ Ibidem, ​ p.341.  62

26 

  RLx   06/12/2012:  ​ 2)  Existe  manifesta  desproporcionalidade  entre  o  valor  das   obras   exigidas   pelo  inquilino  e  os   rendimentos   obtidos   pelos   senhorios,  respeitantes   a  rendimento  habitacional  com  mais   de  30  anos,  sendo  o  valor  da  renda  de  321,26  euros,  sendo  o  valor  das   obras   270.000  euros.  (  5687/10.3T2SNT.L1­8)   

Findo  o  exame,  ainda que rapidamente, dos comportamentos e antes de nos  debruçarmos  sobre  o  abuso  do  direito  de  ação,  há  de  finalizar  fazendo  menção  as  consequências  do  abuso  do  direito  para  que,  no  momento  oportuno,  possamos  fazer  um comparativo com as da litigância de má fé.     Sendo  assim,  as  consequências,  ou  sanções,  variam  de  acordo  com  o  tipo  de  abuso.  Como  consequência  direta,  podemos  elencar:  a  supressão  do  direito,  o  desfazimento  do  ato  abusivo  ou  a  anulação  do  ato  lesivo,  a  cessação  do  exercício  abusivo  e  a  manutenção  da  posição  jurídica.  No  que  pese  as  consequências  indiretas:  o  dever  de  restituir,  seja  em  espécie  ou  equivalente,  e  o  dever  de  indenizar,  quando  houver dano.     No  que  pese  ao  dano,  na  doutrina  brasileira  há  debate  acerca  da  necessidade  ou  não  deste  requisito  para  configurar  o  abuso,  isto  em  razão  da tradição  doutrinária  proveniente  do  CC/16  que  associava  o  instituto  com  o  conceito  de  culpa  e,  consequentemente,  ao  dever  de  reparar64.  Todavia,  essa  questão  deve  ser  superada  em razão da evolução do instituto e dos motivos já referidos.    1.5) O Abuso do Direito de Ação    Com  base  nas  Constituições65  dos  respectivos  ordenamentos,  vemos 

64

 DAHINTEN, ​ Abuso do Direito…​ ,​  ​ 2013, p.149.    Constituição  da  República  Portuguesa,  de  2005,  consagra  no  art.20º  o  acesso  ao  direito  e  tutela  jurisdicional efectiva; Constituição Federal do Brasil, de 1988, consagra no art.5º, LIV e LV.  65

27 

consagrada  a  garantia  fundamental  do  direito  de  ação.  Esta  prerrogativa  permite  ao  sujeito  o  acesso  à  Justiça  quando  para  reclamar  ou  defender  o  seu  direito.  Para  tanto,  espera­se  que  a  provocação  ao  judiciário  seja  feita  com  fundamento  jurídico  e  em  respeito aos valores fundamentais do sistema, a exemplo da boa fé.    Quanto  à  boa  fé,  este  princípio,  do  qual  tratamos  ​ supra,  é  fundamental  e  onipresente  em  qualquer  ordenamento  jurídico  atual,  inclusive  os  em  estudo.  Não  se  limita  apenas  ao  direito  civil  e  as  relações  privatísticas, mas se impõe a todas as outras  ramificações  do  direito  positivo,  inclusive,  no  direito  processual.  Coincidências  à  parte,  conforme  doutrina  Menezes  Cordeiro,  foi justamente no processo civil que a boa fé teve  seus  primeiros  reflexos  extracivis66.  Não  somente  na  jurisprudência,  que  foi  onde  se  iniciaram  os  debates  sobre a aceitação ou não deste princípio, mas posteriormente pela  doutrina e, ao fim, na positivação.    Segundo  CUNHA  DE  SÁ,  a  jurisprudência  portuguesa  começou  por  recorrer  as  ideias  de  abuso  do  direito  no  âmbito  do  direito  de  ação67.  O  autor  corrobora  tal  afirmação  ao  dizer  que,  historicamente,  a  ação  precede  o  direito  subjetivo,  exemplificando  as  ​ actiones  in  rem ​ e in personam do direito romano que deram origem a  classificação dos direitos.     Hoje,  sua  aceitação  é  inquestionável.  Ademais,  conforme  se  retira  do  art.  8  da  lei  processual  Portuguesa  em  vigência,  intitulado  “dever  de  boa  fé  processual”,  dispensa  explicação.  No  mesmo  sentido,  dispõe  o  art.  14,  II,  do  CPC Brasileiro, que as  partes  devem  proceder  com  lealdade  e  boa  fé.  Nesse  sentido,  o  exercício  de direito de  ação  também  se  encontra  subordinado  ao  princípio  da  boa  fé  e,  consequentemente,  a  proibição  do  abuso  do  direito68.  Isto  porque  já  ficou  comprovado  que  os  exercícios  processuais também podem ser disfuncionais. 

66

 MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.125.   CUNHA DE SÁ, 1997, p.268.  68  ALBUQUERQUE, ​ Responsabilidade…​ , 2006, p.66 e seg.  67

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  Fruto  do  desenvolvimento  da  doutrina  alemã  que,  no  início  do  séc.  XX,  já  fazia  referência  a  comportamentos  abusivos  no  âmbito  do  processo,  viu­se  evidente  a  necessidade  de  impor  limites  pautados  na  boa  fé  e  o  fez  a  partir  de  quatro  casos  de  aplicação  daquele  princípio  no  processo:  a  proibição  de  consubstanciar  dolosamente  posições  processuais,  a  proibição  do  ​ venire,  a  proibição  de  abuso  de  poderes  processuais e a ​ supressio69.     Assim  como  o  abuso  do  direito  nas  relações  privadas,  no  campo  processual  o  instituto  é  determinado  pelos  mesmos  requisitos(atuação  contrária  ao  sistema)  e  resulta  nas  mesmas  consequências(cessação  do  exercício  abusivo  e  dever  de reparar)  Ademais,  sua  base  legal,  ainda  que  no  processo,  é  o  art.334  do  CC/PT.  No  mesmo  sentido,  encontram­se  diversas  decisões  na  justiça  brasileira  com  menção  ao  art.187  fazendo referência ao “abuso do direito de ação”.    Apesar  da  terminologia  fazer  referência  ao  “direito de ação”, entendido como  sendo  o  praticado  pelo  autor  da  ação,  abrange  também o réu, e não somente ao direito  de  defesa,  mas  a  qualquer  ato  processual. Outrossim, cumpre destacar que este abuso  engloba tanto os aspectos subjetivos, quanto técnicos da ação70.     Relativamente  aos  aspectos  substantivos,  o  abuso  do  direito  de  ação  se  materializa  a  partir  da  conjugação  com  os  comportamentos  típicos  referenciados  no  tópico  anterior.  Por  exemplo,  nas  ações  judiciais  onde  o  autor  alega  uma  nulidade  formal  após  ter  se  aproveitado  desta, ou então, nas ações com patente desequilíbrio de  posições jurídicas.    Noutro  sentido,  quando  o  abuso  tem  base  em  aspectos  técnicos  do  processo,  caracteriza­se  pelo  desvio  de  finalidade  da  “norma  jurídica  que  atribua  69

 MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.127­128.   ​ Idem​ , p.131. 

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objetivamente  o  direito  do  sujeito  processual  a  praticar  determinado ato processual, em  certo  momento  do  trâmite  processual”71.  Para  tanto,  esse  desvio  tem  quer  ultrapassar  os limites da boa fé.     Em  termos  práticos,  o  abuso  do  direito  de  ação  é  um  mecanismo  para  impedir  a  prática  de  atos  processuais  desconformes  com  o  exercício da ação, mas não  é  o  único.  Há  nas  leis  processuais,  portuguesa  e  brasileira,  várias  outras  disposições  com  a  finalidade  de  combater  os  atos  temerários,  protelatórios  e  sem  qualquer  base  jurídica.  Entre  outros,  há  a  litigância  de  má­fé,  tema  do  próximo  capítulo,  que,  embora  se confunda com o abuso no processo, não coincide.     2 ­ A Litigância de má fé    Conforme  já  adiantamos  no  tópico  anterior,  existem  outros  meios  legais  destinados  a  policiar  a  conduta  das  partes  no  processo  visando  a  correta  aplicação  da  justiça. Dentre eles, figura o instituto da litigância de má fé.    Primeiramente,  cumpre  destacar  que  esse  é  um  instituto  tipicamente  português72.  Sendo  assim,  há  de  mencionar,  ainda  que  rapidamente,  a  evolução  deste  que hoje é consagrado nos ordenamentos em estudo.     2.1) Evolução Histórica    Assim  como  o  abuso  do  direito,  já  havia  no  direito  romano  uma doutrina que  reprimia  a  má  fé  processual,  denominada  ​ temeritas  processual,  ou  lide  temerária.  Traçar  o  caminho  percorrido  detalhadamente  desde  a  origem  romana  até  a  definição  atual  não  seria  conveniente.  O  avanço  do instituto foi gradualmente lento passando por 

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 SENNA, ​ O abuso de Direito…​ , 2009, p.19.    COSTA  E  SILVA,  A  litigância  de  má  fé,  2008,  p.131  e  ss..;  MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011,  p.37.  72

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vários  momentos,  desde  as  Ordenações(Afonsinas,  Manuelinas  e  Filipinas),  pelas  Reformas Judiciárias73 até aos Códigos.     O  legislador  português  importou  de  Roma  o  instituto  processual  do  juramentum  calumniae,  no  vernáculo,  juramento  de  calúnia74.  Consistia  numa  declaração  feita  por  autor  e réu, em que alegavam atuar no processo com justa razão e  boa  fé,  sem  tenção  maliciosa.  Este  juramento  era  obrigatório. Se o autor não o fizesse,  acarretaria  a  perda  da  ação.  Quanto  ao  réu,  se  este  recusasse  prestar  o  juramento,  implicaria na confissão do pedido.    Este  juramento  esteve  presente  nas  leis  anteriores  às  Ordenações  até  a  Novíssima  Reforma  Judicária,  que  antecedeu  o  primeiro  Código  de  Processo  Civil,  de  1876.  Todavia,  num  primeiro  momento,  ao  tempo  das  Ordenações,  o  juramento  de  calúnia  era  geral,  aplicável  a  qualquer  ação,  ordinária  ou  sumária.  Já  no  período  das  Reformas,  sua  aplicação  passou  a  ser  especial, sendo somente utilizado nas situações  tipificadas em lei75.    Insta  destacar  que  já  nesse  período,  o  litigante  que  fosse pego atuando com  dolo  poderia  ser  condenado  ao  dobro  ou  tresdobro  sobre  o  valor  das  custas  pessoais  do litigante vencendor.     Outro  dado  importante,  presente  nas  O.  Filipinas,  é  a  responsabilidade  dos  Advogados  e  procuradores.  A  lei  da  Boa  Razão,  de  1769,  impunha  sanções  severas  para  os  mandatários  que  atuavam  de  maneira  frívola:  a)  se  fosse  pego  atuando de má  fé  pela  primeira  vez,  caia  numa  multa  de  50  mil  réis  para  a  Relação,  mais  seis  meses  de  suspensão;  b)  numa  segunda,  perda  dos  graus  obtidos  na  Universidade;  e  c)  na  terceira,  5  anos  de  reclusão  na  Angola.  Entretanto,  o  requisito  do  dolo  obstava  a  73

 ​ Idem​ , p.186­190; A primeira em 1832; a segunda, denominada “A nova Reforma judiciária”, em 1837; e a  última, “ A novíssima Reforma Judiciária”, sem data informada;   74  ALBUQUERQUE, ​ Responsabilidade…​ , 2006, p.30.  75  COSTA E SILVA, 2008, p.189. 

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aplicação  desta  lei76.  Até  este  período  as  sanções  impostas  aos  que  litigassem  de  má  fé  resultavam  unicamente  no  agravamento  das  custas  processuais.  Esta  tinha  apenas  caráter punitivo77.     O  Código  de  Processo  Civil  Português,  de  1876,  trouxe  significativas  mudanças  em  relação  a  responsabilidade  processual.  À  priori,  destaca­se  a supressão  do  juramento  de  calúnia78.  Nessa  legislação,  criou­se  um  sistema  especial  para  o  litigante  de  má  fé.  Tal  disposição  é  prevista  nos  arts.  121,  122  e  126.  O  artigo  121  estabelecia  que  a  parte  vencida  e  maliciosa  pagaria  10%,  a  título  de  multa,  sobre  o  valor  da  causa,  não  podendo  exceder  a  1000  réis.  Já  o  art.122  punia  a  litigância  no  decorrer das ações executórias, nomeadamente nos embargos de terceiro e execução.    Já  o  Art.126,  §1, estabelecia que a indenização não poderia exceder o dobro  das  custas.  Este  foi  um  dos  avanços  na  nova legislação. Anteriormente, nenhum corpo  jurídico  fez  referência  a  uma  indenização  em  prol  da  parte  prejudicada  pela  malícia.  Para  tanto,  a  indenização  estava  sujeita  ao  entendimento  do  juiz e independia de estar  conexo ao dano sofrido, nem era necessária a ocorrência deste79.     Por  último,  foi  neste  Código  que  se  introduziu  o  termo  “litigância  de  má  fé”.  Porém,  a  cumulação  de  multa  e  indenização  só  poderia  ser  devida  pela  parte  sucumbente.  Sendo  assim,  caso o vencedor da ação tivesse litigado de má fé, este não  seria  condenado  por  litigância80.  Apesar  da  relevante  mudança, a aplicação do instituto  ainda era escassa e, quando aplicada, tinha caráter compensatório.    No  momento  seguinte,  o  da  vigência  do  CPC  de  1939,  houveram  significativas  mudanças  a  começar,  em  seu  art.465,  na  definição  de  má  fé  processual, 

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 MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.41.   FERNANDES DE SOUZA, ​ Abuso do Direito Processual​ , 2005, p.85.  78  COSTA E SILVA, 2008, p.199.  79  ALBUQUERQUE, 2006, p.40.  80  COSTA E SILVA. 2008, p.200.  77

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conceituando  o  o  tipo  central que seria o instituto. Isto acabou por limitar a aplicação do  instituto.  Um  primeiro  ponto  a  ser  alterado  foi  a  supressão  do  requisito  de  somente  aplicar  a  litigância  de  má  fé  a  parte  vencida,  como  constava  do  CPC/39,  conforme  o  §único.  Todavia,  para  condenar  o  vencedor  por  litigância  de  má  fé,  somente  seria  possível  quando  este  agisse  com  dolo  instrumental,  ou  seja,  uso  reprovável  do  processo  ou  dos  meios  processuais,  não  sendo  possível  na  hipótese  de  dolo  substancial81.     Consistia  em  litigar  de  má  fé  o  exercício  processual,  revestido  de  dolo,  quando  deduzida  pretensão  ou  oposição  sem  fundamento  do  qual  não  se  poderia  desconhecer,  como  também  alterar  a  verdade  dos  fatos  ou  omitir  fatos  essenciais,  ou  fazer  do  processo  uso  manifestamente  reprovável,  com  o  fim  de  conseguir  objetivo  ilegal  ou  de  entorpecer  a  ação  da  justiça  ou  impedir  a  descoberta  da  verdade.  Outro  dado  a  reter,  no  que  pese  ao  conteúdo  da  indenização,  é  que  esta  era  arbitrada  com  base na conduta do lesante e não no prejuízo sofrido pelo lesado82.    Na  esteira  veio  o  CPC/61  que  nada  alterou  relativamente ao instituto, exceto  pela  redação.  A  má  fé  que  era  constatada  pela  “pretensão  ou  oposição  cuja  falta  de  fundamento  o  agente  não  podia  razoavelmente  desconhecer”,  passou  a  ser  “cuja  falta  de  fundamento  ele  não  ignorava”.  A  aplicação  do  instituto  era  escassa, pois, o juízo de  dolo,  seja  quanto  a  matéria  em  causa  ou  quanto  ao  ato  processual,  era  difícil  de  ser  aplicado83.  Verifica­se  a  acentuação  do  dolo  sobre  a  conduta, dificultando ainda mais a  sua aplicação prática.    Todavia,  relevante  mudança  ocorreu  na  Reforma  de  1995.  Com  esta  reforma,  a  litigância  de  má  fé  passaria  a  ser  aplicada,  também,  nas  condutas  negligentemente  graves,  ampliando  o  campo  de  incidência  do  instituto.  Além  disso, 

81

 ALBUQUERQUE, 2006, p.43.   ​ Idem​ , p.44.  83  MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.49­50.  82

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uma  novo  tipo  de  conduta  foi  inserido  como  sendo  de  má  fé  processual:  a  omissão  do  dever de cooperação(boa fé processual)84.     Quanto  ao  ordenamento  brasileiro,  na  época  do  Império,  por  ser  colônia  de  Portugal,  tinha  o  seu  corpo  legal  regrado  pelas  Ordenações  Filipinas.  Com  a  sua  indepêndencia,  manteve  as  O.Filipinas  em  vigor,  exceto  pelas  cláusulas  que  fossem  contrárias  à  sua  soberania.  Em  1850,  com  a  publicação  do  Código  Comercial,  o  legislador  da  época  editou  o  Regulamento  n.373,  que  versava  sobre  o  processo  comercial85.     Em  1871,  o  Governo  Imperial  pediu  ao  Conselheiro  Antonio  Joaquim  Ribas,  que  reunisse  as  leis  vigentes  ao  tempo,  O.F.  e  leis  complementares,  num  só  corpo,  resultando  na  Consolidação  das  Leis  de  Processo  Civil,  que  tinha  peso  de  lei86.  Este  regerem  o  processo  civil  até  a  proclamação  da  república,  quando  o  decreto  n.763,  impôs a aplicação do Regulamento n.737 ao processo civil87.     Com  a  publicação  da  Constituição  de  1891,  o  Art.34,  n.23,  dispôs  a  dualidade  do  processo,  cabendo  tanto  a  União  quanto  aos  Estados,  lesgilar  sobre  o  processo.  Nos  códigos  estudais,  embora  inconsistentes,  já  se  constatavam  óbices  a  prática processual maliciosa, variando a pena de estado para estado. Com o advento da  Constituição  de  1934,  a  unidade  processual  foi  reestabelecida.  Em  1939,  surge  o  primeiro  CPC  Brasileiro,  que  previa  no  seu  art.63  a  repressão  a  litigância  maliciosa,  condenando em custas. Previa também a condenação ao advogado/procurador.     Já  em  1973,  editou­se  um  no  código de Processo Civil que está em vigor até  hoje,  mas  com  os  dias  contados,  já  que  tramina  no  Congresso  Nacional  o  projeto  do  novo Código de Processo Civil, passando por retoques finais para ser publicado.   84

 COSTA E SILVA, 2008, p.264.   GOUVEIA, ​ A litigância de má fé…​ , 2002, p.84 e ss..  86  FERNANDES DE SOUZA, ​ Abuso do Direito Processual​ , 2005, p.88.  87  GOUVEIA, ​ A litigância de má fé...​ , 2002, p.84 e ss..  85

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  2.2) Regime e características     A  litigância  de  má  fé  é  um  instituto  consagrado  nos  ordenamentos  em  estudo.  Sua  previsão  legal  se  retira  dos  arts.  542  a  545  e  arts.16  a  18,  dos  CPC’s  português  e  brasileiro,  respectivamente.  E, assim como no abuso, a redação é bastante  parecida. Sendo assim, preconizam:     Art.542​  Noção de litigância de má fé  1)  Tendo  litigado  de  má  fé, a parte será condenada em multa e numa indenização  à parte, se esta pedir.  2) Diz­se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:   a)  tiver  deduzido  pretensão  ou  oposição  cuja  falta  de  fundamento  não  devia  ignorar;  ​ b)  tiver  alterado  a  verdade  dos   fatos   ou  omitido  fatos   relevantes   para  a  decisão  da  causa;  ​ c )  tiver  praticado  omissão  grave  do  dever  de  cooperação;  ​ d)  tiver  feito  do  processo  ou  dos   meios   processuais   um  uso  manifestamente  reprovável,  com  o  fim  de  conseguir  um  objetivo  ilegal,  impedir  a  descoberta  da  verdade,  entorpecer  a  ação  da  Justiça  ou  protelar,  sem  fundamento  sério,  o  trânsito em julgado da decisão.    Art.16 ​ Responde por perdas  e danos  aquele que pleitear de má­fé como autor, réu  ou interveniente.   Art.17​  Reputa­se litigante de má­fé aquele que:  I­  deduzir  pretensão  ou  defesa  contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;  II­  alterar  a  verdade  dos   fatos; III​ ­usar do processo para conseguir objetivo ilegal;  IV​ ­  opuser  resistência  injustificada  ao  andamento  do  processo;  ​ V­  proceder  de  modo  temerário  em  qualquer  incidente  ou  ato  do  processo;  ​ VI­  provocar  incidentes   manifestamente  infundados;  VII­  interpuser  recurso  com  intuito  manifestamente protelatório.   

Comparando  os  dispositivos,  é patente a semelhança normativa, inclusive no  que  respeita  aos  comportamentos  tipificados.  Desta  definição  retiramos  os  aspectos  que caracterizam o instituto.  

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  A  litigância  de  má  fé  é,  nos  dizeres  de  PEDRO  ALBUQUERQUE,  o  instrumento  utilizado  para  policiar  o  processo  resultante  da  “violação  dos  deveres  e  posições  jurídicas  sentidos  exclusivamente  ao  nível  do processo, com independência e  autonomia relativamente às posições de direito material”88.     Os  deveres  que  o  autor  menciona  são  os  decorrentes  do  respeito  aos  princípios  da  cooperação,  boa  fé  e  correção  jurídica89.  O  princípio  da  cooperação  consiste  no  dever  que  os  intervenientes  processuais  têm  em  prestar  sua  cooperação  ativa  com  vista  a  obter,  com  brevidade  e  eficácia,  a  justa  composição  do  litígio.  Já  a  boa  fé, além do que já fora mencionado neste estudo, deve ser pautada no respeito aos  deveres  estabelecidos  no  princípio  de  cooperação.  Quanto  à  correção  recíproca,  devem as partes ter atenção ao dever de urbanidade.    No  que  pese  a  má  fé  no  processo,  esta  pode  ser  através  de  uma  atuação  substancial  ou  processual.  Segundo  MENEZES  CORDEIRO90,  as  alíneas  ​ a,  b  ​ e  c  correspondem  à  atuação  substancial,  enquanto  a  alínea  ​ d  seria  uma  atuação  processual,  dividida  em  três  subcondutas:  conseguir  um  objetivo  ilegal;  impedir  a  descoberta  da  verdade;  e  protelar,  sem  fundamento  sério,  o  trânsito  em  julgado  da  decisão.     Noutro  sentido,  há  quem  entenda  ser  a  alínea  ​ c  ​ hipótese  de  atuação  processual91.  Isto  porque,  da  redação  do  princípio(art.8),  extrai­se  deveres  instrumentais(inciso I) e materiais(incisos II e III).     Quanto  a  sua  natureza  jurídica,  a  litigância  de  má  fé  é  um  instrumento  processual  público.  Nesse  sentido,  opera  oficiosamente  e  podendo  ser  suscitado  a  88

 ALBUQUERQUE, 2006, p.59.   Cf. artigos 7, 8 e 9 do CPC Português e Art.14 do CPC Brasileiro.  90  MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância​ , 2011, p.55.  91  ALBUQUERQUE, p.49; ALMEIDA, ​ Direito Processul Civil​ , 2010, p.299.  89

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qualquer  momento  no  processo.  Tem  como  requisito  a  violação  de conduta processual  a  partir  de  um  dos  comportamentos  tipificados  nos  artigos  acima  mencionados.  Para  tanto,  além  da  conduta  pré­estabelecida, é requisito a existência de dolo ou negligência  grave.  Quanto  à  negiligência  grave,  a  jurisprudência  portuguesa  restringe  às  situações  de  má  fé  substancial.  No  caso  de  ma  fé  processual  somente  importará  a  atuação  dolosa92.    Ademais,  este  instituto  visa  punir  unicamente  a  conduta  processual,  não  sendo  pressuposto  a  existência  de  resultado93.  A  má  fé  processual  desencadeia  dois  efeitos:  a  sanção  penal,  consistente  numa  multa  arbitrada  de  ofício  à  parte  maliciosa,  tomando  por  base  o  valor  das  custas;  e  uma  indenização,  a  pedido  da  contraparte. No  direito brasileiro, a indenização também pode ser atribuída de ofício, conforme art.18.    Além  da  sanção  destinada  às  partes,  o  instituto,  no  direito  português,  ainda  faz  referência  aos  representantes  e  procuradores  que  também  podem  agir  com  má  fé.  Quanto  aos  representantes,  segundo  critica  de  MENEZES  CORDEIRO94,  o  instituto  “quebra  os  nexos  de  organicidade”  contrariando  as  regras presentes no código civil e o  das  sociedades  comerciais,  ao  punir  somente  o  representante,  ao  invés  da  pessoa  coletiva.  Quanto  ao  procurador,  o  julgador  não  poderá  condená­lo  pela  má  fé,  sendo  esta competência do órgão de ética da Ordem dos Advogados, conforme art.545.     A  título  exemplificativo,  o  litigância  maliciosa  pode  ser  identificada  nas  seguintes condutas: negação intencional de fatos pessoais que venham a ser provados;  autor  que  demanda  condenação  do  réu  ao  pagamento  de  quantia  superior  ao  que  é  devida;  autor  que  ação  que  reinvidica  do  réu  a  passo  de  imóvel,  quando  existia  nessa 

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 MENEZES CORDEIRO, Litigância, 2011, p.56.    Conforme  ALBUQUERQUE:  “Decisivo  não  é  nunca  o  atingir  de  posições   jurídicas   subjetivas   materiais.  Trata­se,  como  sempre  sucedeu  desde Roma, de uma ilicitude baseada na violação de posições  e deveres   processuais   que,  a  serem  atingidos,  geram  de  imediato  uma  ilicitude  sancionável  independentemente  da  existência ou lesão de qualquer ilícito de direito substantivo”, 2006, p.52.   94  MENEZES CORDEIRO, Litigância, 2011, p.60.  93

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relação um contrato de arrendamento; etc.     Conforme  destacamos,  a  inexistência  de  resultado  não  obsta  a  condenação  da parte, inclusive na situação desta desistir da ação, conforme o acórdão a seguir:    STJ   20/03/2014  I­  A  desistência  do  pedido  não  obsta  à  condenação  da  parte  como  litigante  de  má  fé.  II­  A  lide  temerária  pode  ser  hoje  sancionada  como  litigância  de  má  fé  visto  que,  desde  a  revisão  de  1995/1996  do  Código  de  Processo  Civil  (artigo  456.º  do  C.P.C./61),  passou  a  ser  possível  a  condenação  como  litigante  de  má  fé  do  litigante  que  agiu  com  negligência  grave.  (Processo  1063/11.9TVLSB.L1.S1).   

Embora  o  instituto  tenha  relevo  teórico,  sendo  o  mais  desenvolvido no CPC,  quanto  à  obstar as condutas processuais disfuncionais, na prática não tem apresentado  boa  aplicação.  Por  um  lado,  os  requisitos  do  dolo  ou  negligência  grave  são  muito  rigorosos.  Noutro,  as  condenações  pelo  instituto  tem  caráter  unicamente  compensatório, quanto deveriam ser indenizatório.     Tomemos  por  exemplo  a  justiça  no  Brasil.  Atualmente,  uma  ação  dura  em  média  quatro  anos.  Se  o  autor  intenta  ação  com intuito único que prejudicar o réu, este  passará  os  próximos  quatro  anos  sofrendo  com  a  angústia  de  poder  vir  a  ser  condenado.  Ao  passo  que  o  autor,  exercerdo  seu  direito  de  ação,  fará  mal  uso  do  processo  e,  ao  fim,  caso  perca,  pagará  somente  as  custas  e  honorários  do  réu  e,  se  vier a ser condenado por má fé, será sancionado com multa e indenização com base no  valor das custas processuais, sendo geralmente um valor irrisório.    As  mudanças  evolutivas  que  ocorreram  ao  longo  dos  tempos  com  o  abuso  devem  agora  atingir  a  litigância  de  má  fé  e  o  principal  ator  nesse  processo  é  o  juiz.  Atualmente,  sua  aplicação  é  restritiva  e  se  mostra  cada  vez menos frequente na ​ praxis  judiciária,  sendo  talvez  por  isso,  que  o  abuso  do  direito  de  ação  tem  relevado  como  uma nova forma de impedir os atos abusivos(infudados, protelatórios, etc.).  

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  3  ­  O  abuso  do  direito  de  ação  e  a  litigância  de  má  fé:  comparativo  entre  os  institutos.    A  partir  do  que  já  traçamos  durante  este  estudo,  podemos  agora  comparar  os  institutos  que  nos  propusemos  a  estudar.  Já  dissemos  que,  apesar  das  semelhanças, estes não se confundem. Contudo, já se confundiram.     No  período  anterior  à  vigência  do  Código  Civil  de  Vaz  Serra(1966),  o  abuso  do  direito  ainda  não  tinha  previsão  legal,  não  obstante  a  doutrina  e  jurisprudência  já  apresentarem  aversão  ao  direito  subjetivo  absoluto.  Nesse  momento,  o  abuso  que  consistia  no  exercício  do  direito  com  intenção  maliciosa  se  confundia  com  a  litigância  de  má  fé95,  até  a  entrada  em  vigor  do  referido  código,  onde  os  estudos  são  direcionados em sentido oposto.    É  certo  que  hoje  essa  confusão  é  superada.  O  abuso  do  direito,  conforme  vimos,  é  um  instituto  privado  de  conceito  indeterminado,  mas  presente  em  todo  o  direito,  surgindo sempre que uma atuação seja contrária ao sistema, nomeadamente da  boa  fé,  consagrada  pelos  princípios  da  tutela  da  confiança  e  da  materialidade  subjacente, tendo sua previsão legal no art.334 do CC/PT e no art.187 do CC/BR.     Independe  de  culpa,  ou  seja,  para se materializar basta uma análise objetiva  da  atuação  do  sujeito  de  direito.  Ademais,  é requisito a existência de dano, qual seja, o  investimento  de  confiança  e  outros.  Além disso, opera oficiosamente, desde que dentro  do pedido da ação96.     Quanto  às  consequências  do  ato  abusivo,  busca­se,  imediatamente,  a  cessação  da  conduta  abusiva  e  a  manutenção  da  posição  jurídica.  E  mediatamente  o  95

 COSTA E SILVA, 2008, p.618­619.   MENEZES CORDEIRO, ​ Litigância…​ , 2011, p.190­191.  

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dever  de  restituir,  seja  em  espécie  ou  equivalente,  e  o  dever  de  indenizar,  quando  houver dano.     Em  sentido oposto, tem­se a litigância de má fé que consiste num instituto de  direito  público,  no  âmbito  do  processo,  que  surge  como  ferramenta  para  policiar  o  processo,  nomeadamente,  na  atuação  das  partes.  Por  ter  natureza  pública,  seu  conhecimento é oficioso, podendo o ser a qualquer momento no processo.      Sua  base  legal,  os  artigos  542  a  545  e  16  a  18  dos  Códigos  de  Processo  Civil  Português  e  brasileiro,  impõe  um  rol  exaustivo,  limitando  a  aplicação  do  instituto  somente  naquelas  situações,  além  de  requisitar  a  existência  de  dolo  ou  negligência  grave.  Por  outro  lado,  dispensa  a  existência  de  danos,  bastando  a  conduta  do  sujeito  processual.     A  litigância  de  má  fé  tem  como  consequência  uma  sanção  penal  que  consistirá  numa  multa.  Com  base  no  que  vimos,  esta já se faz presente desde o tempo  das  Ordenações,  porém,  já  que  a  lei  impõe  que  o  ​ quantum  ​ sancionatório  tem  como  base  nas  custas,  geralmente  os  valores  são  insignificantes,  o  que  não  intimida  a  parte  maliciosa  a  deixar  de  agir  com  intenção  diversa  daquela  que  se  espera.  Além,  há  a  sanção  civil  que  consiste  na  indenização,  todavia,  esta  depende  do  pedido  do  lesado(no  caso  do  ordenamento  Português).  No  Brasil,  esta  pode  ser  reconhecida  de  ofício.    Nesse  sentido,  extraímos  que, apesar da litigância ser limitada pelos motivos  já  expostos,  o  abuso  do  direito  complementa  e  engloba  as  situações  que  não  recaiam  na  incidência  do  instituto,  seja  pela ausência do elemento subjetivo ou por não coincidir  com alguma das hipóteses do arts. 542 ou 17.     Conclusões 

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  Tendo  vista  toda  a  abordagem  feita  e  o  alcance  do  espaço  que  nos  fora  permitido,  cumpre­nos  agora  concluir este estudo, fazendo­o por meio de um apanhado  geral da matéria e o nosso ponto de vista.    Primeiramente,  insta  destacar  a  importância  do  abuso  do  direito.  Este  instituto  determina  a  relativização  dos  direitos  subjetivos,  antes  absolutos,  a  partir  da  constatação  da  disfuncionalidade  perante  valores  éticos,  sociais  e  morais.  Hoje  está  consagrado  nos  mais  variados  ordenamentos,  alguns  com  mais  preponderância  que  outros.     Sua  evolução  mais  recente  deve  ser  creditada  aos  ordenamentos  que  desenvolveram  e  aplicam  até  os  dias  atuais  os  comportamentos  típicos  abusivos,  a  exemplo  da  Alemanha,  que  tem  forte  influência  no  sistema  romano­germânico,  e  Portugal, que viu na sua doutrina e jurisprudência o alargamento do instituto.     O  quadro  de  comportamentos  típicos  e  a  sua  sistematização  com  base  no  princípio  da  boa  fé  serve  como  uma  “válvula  de  escape”,  termo  tão  utilizado  nos  debates  do  Curso  de  Mestrado.  Isso  significa  que,  onde  a  lei  não  prever  uma  determinada  situação,  caberá  ali  uma  sindicância  pautada  na  boa  fé,  admitindo  ou  reprimindo  o  ato  jurídico.  Nesse  sentido,  o  direito  mantém  o  equilíbrio  nas  relações  sociais.     Em  relação  ao  Brasil,  apesar  da  recente  inclusão  legal  do  abuso,  sua  utilização  já  é  antiga,  desde  o  CC/1916  quando  já  se  fazia  uma  aplicação  ​ contrario  sensu​ .  O  dispositivo  influenciado  pelo  art.334  do  CC/PT  apresenta  os  mesmo  limites,  embora  a  interpretação  seja  distinta.  O  ordenamento  Português  prioriza  a  boa  fé,  ao  passo que o Brasileiro dá maior atenção à função social do direito.    

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Independente  disso,  os  requisitos  são  praticamente  os  mesmo,  surgindo  o  abuso  da  violação  aos  limites  impostos,  quais sejam, a boa fé, os bons costumes, o fim  econômico e o social.     No  que  pese  ao  direito  de  ação,  ao  nosso  ver,  este  deve  ter  sua  aplicação  ampliada.  A  litigância  de  má  fé  é  um  instituto  obsoleto.  Sua  aplicação  é  escassa  e  já  ficou  demonstrada  a  ineficiência.  Por  um  lado  sua  limitação  legal  dificulta  a  aplicação  de  uma  sanção  pelo  julgador.  O  campo  processual  é  cenário  de  atuação,  onde  as  partes  e  procuradores  perseguem  mais  do  que  a  verdade,  a  vitória.  Para  tanto,  irão  mentir,  difamar  e  fazer  mal  uso  do  processo.  Isso  é  uma  cultura  que  não  se  muda.  O  que  deve  mudar  é  o  instituto.  Por  outro  lado,  os  julgadores  são  inertes  em  aplicar uma  multa que resulte numa verdadeira sanção, o que dificulta num bom resultado.    Por  estes  motivos,  o  abuso  do  direito  deve ser ampliado, tendo em vista que  aí  não  há  limite  de  condutas  ou  necessidade  de  culpa,  pelo  contrário,  basta  a  violação  dos limites ou cláusulas gerais, o que seria mais fácil de demonstrar.     Diferenças  à  parte,  ambos  podem  incidir  no  processo  como  meio  para  impedir  a  prática  processual  inútil  e  protelatória.  Ainda  mais  num cenário como o atual,  em  que  ambos  os  Poderes  Judiciários sofrem com a imensidão de ações, o que resulta  na prestação ineficaz e morosa da Justiça.                  

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        Bibliografia:    ALBUQUERQUE,  Pedro  de.  ​ Responsabilidade  processual  por  litigância  de  má  fé,  abuso  de  direito  e  responsabilidade  civil  em virtude de actos praticados no processo : a  responsabilidade  por  pedido  infundado  de  declaração  da  situação  de  insolvência  ou  indevida apresentação por parte do devedor, ​ 2006, Almedina.     ALMEIDA, Francisco Manuel Pereira de. ​ Direito Processual Civil​ , vol.I, 2010, Almedina.    ASCENSÃO,  José  de  Oliveira.  ​ O  abuso  do  direito  e  o  art.  334  do  código  civil  :  uma  recepção transviada​ , 2006, Coimbra Editora.    BONATTI  PERES,  Tatiana.  ​ Abuso  do  Direito​ ,  2010,  Revista  de  Direito  Privado  nº43,  Editora Revista dos Tribunais.    CALCINI,  Fábio  Pallaretti.  ​ Abuso  do  Direito  e  o  Novo  Código  Civil​ ,  2004,  Revista  de  Direito Privado nº830, Editora Revista dos Tribunais.    CUNHA DE SÁ, Fernando. ​ Abuso do Direito​ , Reimpressão 1997, Almedina.    DAHINTEN,  Bernardo  Franke.  ​ Abuso  do  direito:  radiografia  do  instituto  e  panorama  jurisprudencial  após  10  anos  de  sua positivação​ , 2013, Revista de Direito Privado nº55,  Editora Revista dos Tribunais.   

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GÓES,  Maria  Cláudia  Chaves  de  Faria.  ​ Breves  considerações  sobre  a  doutrina  do  abuso  do  direito​ ,  2003,  Relatório  de  mestrado  para  a  cadeira  de  Direitos  Subjectivos  apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.    GOUVEIA,  Lúcio  Grassi  de.  A  litigância  de  má  fé  no  processo  civil  Brasileiro,  2002,  Dissertação  de  doutorado  em  Ciências  Jurídicas  apresentada  na  Faculdade  de  Direito  da Universidade de Lisboa.    JORDÃO, Eduardo. ​ Abuso de Direito​ , 2006 *completar     JOSSERAND, Louis. ​ De l'esprit des droits et de leur relativité : théorie dite de l'Abus des  Droits​ , 1939, 2ªEd., Dalloz Librarie.    MENEZES  CORDEIRO,  Litigância  de  má­fé,  Abuso  do  direito  de  ação  e  Culpa  “in  Agendo”​ , 2ª Ed., 2011, Almedina.                                         ​  Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Tomo V,​  2011, Almedina.      MIRAGEM,  Bruno.  ​ Abuso  do  direito:  ilicitude  objetiva no direito privado brasileiro​ , 2005,  Revista de Direito Privado nº842, Editora Revista dos Tribunais.    SENNA,  Andressa  Paula.  ​ O  abuso  de  direito  e a litigância de má­fé como impeditivos à  marcha  processual  e  ao  resultado  justo  da  prestação  jurisdicional​ ,  2009,  Revista  de  Direito Privado nº40, Editora Revista dos Tribunais.    SILVA, Paula Costa e. ​ A litigância de má fé​ , 2008, Coimbra Editora.    SOUZA,  Luiz  Sergio  Fernandes  de.  ​ Abuso  de  Direito  Processual:  Uma  teoria  Pragmática,​  2005, Editora Revista dos Tribunais.   

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