O abuso do direito de Ação e a Litigância de má-fé: um estudo comparativo entre os ordenamentos Português e Brasileiro
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Relatório apresentado à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no curso do Mestrado Científico em Ciências Jurídicas. Disciplina: O Abuso do Direito Tema: O Abuso do Direito de Ação e a Litigância de máfé: um estudo comparativo entre os ordenamentos Português e Brasileiro. Introdução O direito, na sua acepção mais vulgar e quando toma por referência o indivíduo parte de uma sociedade, pode ser entendido como o conjunto de prerrogativas conferidas a este para exercer ou não determinado ato, recebendo a proteção jurídica do Estado em que se insere. Estes “direitos” se materializam sob as mais diversas formas e contextos. A exemplo disto, temos o direito à vida, a propriedade, o direito da família, do consumo, do processo, entre tantos outros que a ciência jurídica abrange. Tema de estudo que vem sendo desenvolvido gradualmente desde o início da convivência em sociedade até os dias atuais, o direito é a matéria que regula as relações interpessoais e vem sendo aperfeiçoada com o passar dos tempos pelas mais variadas doutrinas, tendo apresentado configurações diversas com base na contemporaneidade de cada sociedade que contribuiu para a evolução da ciência. Não obstante as alternâncias teóricas, é certo que da reunião destas doutrinas resulta o direito atual. Isto porque, as construções teóricas são limitadas e nesse sentido não podem prever as situações cotidianas que surgem na prática, razão pela qual o direito vive em constante mudança evolutiva. Por outro lado, conforme também se verificou ao longo dos anos, estes direitos, apesar de justificados e protegidos pela lex ou normas jurídicas positivadas(a depender do período histórico), por vezes se mostravam adversos ao objetivo que eram destinados. Nesse sentido, apesar daquele direito ser conforme a letra da lei, sua utilização se mostrava contrária ao sentimento moral e ético da sociedade.
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Foi a partir desses casos específicos que nasceu o instituto denominado abuso do direito1. Sua evolução teórica se deu nos últimos dois séculos e, conforme veremos, resultou numa alternância de conceitos até se concretizar na disposição atual. Contudo, vale dizer que essa disposição não é unânime entre os diversos ordenamentos, inclusive os que serão aqui estudados, o Português e o Brasileiro, apesar de apresentarem mais semelhanças que diferenças. Tendo em vista a amplitude que o abuso do direito pode atingir, e em razão do espaço que aqui nos fora destinado, seria impossível trazer ao presente relatório todos os aspectos que a matéria suscitou e suscita, ainda que fosse feita uma abordagem bastante superficial. Por este motivo, mister se faz filtrar o instituto traçando apenas o que nos for conveniente para atingir o ponto principal deste estudo, qual seja, o abuso do direito de ação. Nesse sentido, é imprescindível falar também do instituto da litigância de má fé, já que, conforme veremos, apresenta forte ligação com a doutrina do abuso do direito, embora tenha desenvolvimento distinto. Dessa união surge, então, o nosso tema de pesquisa: O abuso do direito de ação e a litigância de má fé: um estudo comparativo a partir dos ordenamentos Português e Brasileiro. A escolha deste tema tem relevância para ambos os ordenamentos em estudo pelo fato destes enfrentarem atualmente um problema comum: o atolamento e a incapacidade do Poder Judiciário resolver os litígios em tempo útil, principalmente pela imensidão de ações propostas, não raramente, revestidas de abuso ou má fé.
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Transcrevemos aqui as palavras de BONATTI, : "A doutrina do abuso do direito está em sintonia com a mudança da racionalidade jurídica, que se dirige à superação do ideal de completude do ordenamento, ícone do positivismo e da doutrina liberal, que não encontra guarida no direito civil contemporâneo. O reconhecimento de que o direito positivo não pode dar conta de prever exaustivamente todas as condutas antisociais ou indesejadas é o primeiro passo para a construção de um sistema jurídico mais coerente e harmônico", Abuso do Direito , 2010, p.23.
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O Poder Judiciário, vem, ao longo dos anos, perdendo sua credibilidade devido à sua má prestação de serviços. As causas são inúmeras, podendo ser internas ou externas, mas a consequência disto reflete numa única direção: a sociedade. Conforme dados do Instituto Nacional de Estatísticas, para Portugal, e do Conselho Nacional de Justiça, para o Brasil, somente na justiça cível, cada país têm 1,5 milhões e 70 milhões de ações pendentes, respectivamente2. Estes números assustam se formos comparar o número de ações com a quantidade de habitantes de cada país, sendo importante lembrar que, ao menos quanto ao Brasil, grande parcela da população não exerce o seu direito de ação, justamente pela já conhecida morosidade processual. Conforme pontua MENEZES CORDEIRO3, o resultado para se chegar a atual situação se dá por quatro fatores: a complexidade normativa, a inadequação legislativa, o excesso de garantismo processual e a impunidade quanto aos desvios de conduta no processo. Apesar do autor fazer referência exclusivamente ao ordenamento Português, as razões quanto ao ordenamento brasileiro são da mesma ordem, o que não impede de fazer uma análise conjunta. No que se refere a complexidade legislativa, o autor faz menção a Lei da Boa Razão(1769), do Marquês de Pombal, que até tinha um ideal apreciável: acolher no direito interno as leis do estrangeiro que pudessem ser aproveitadas. Todavia, com o passar do tempo, tornouse desvantajosa essa recepção normativa, pois, o corpo legal tornouse muito extenso e incoerente. Relativamente ao Brasil, nossa origem e evolução normativa tem forte influência do direito Português, já que até o início do séc. XVII éramos apenas uma colônia portuguesa. Com base nessa afirmação, veremos os preceitos referentes ao abuso de direito e a litigância de má fé, constatando a 2
Anuário Estatístico de Portugal de 2012(INE); Sumário Executivo de Justiça em números, 2013(CNJ). MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.21 e seg.
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similaridade entre as leis. Já quanto a inadequação legislativa, esta deriva do despreparo e falta de estudo na elaboração das leis e dos bloqueios ideológicos, designadamente quanto aos partidos políticos e a alternância de poderes. No Brasil o problema é ainda mais agravante, já que a política, num panorama atual, tomou outros rumos, onde os mais despreparados são eleitos, resultando numa enxurrada de projeto de leis absurdas e desprovidas de qualquer fundamento jurídico. Quanto ao excesso de garantismo processual, se formos analisar os Códigos de Processo Civil de cada ordenamento, constataremos as inúmeras faculdades processuais conferidas aos sujeitos do processo, tanto na fase inicial quanto na fase recursal ou executória. A consequência disto é uma ação ad infinitum, onde as partes, ainda que cientes da falta de direito, irão protelar sempre o processo já que a lei os permite. Relativamente à impunidade dos desvios de conduta, este motivo tem especial ligação com o nosso tema, já que estes desvios são praticados pelas partes ou pelos advogados, seja através da litigância de má fé ou pelo abuso do direito. A questão que daí resulta consiste na inércia dos Tribunais em não punir esse
tipo de
comportamento. Feitos estes breves comentários, cumpre assinalar nosso esquema de estudo. No capítulo inicial, nos debruçaremos sobre o instituto do abuso do direito, devendo, para isso, traçar sua evolução histórica, sua configuração atual e a relevância para os ordenamentos em questão. Após, cumprenos tratar da modalidade de abuso praticada nas relações processuais. No capítulo seguinte, iremos tratar da litigância de má fé, no mesmo sentido
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que o abuso, percorrendo sua evolução histórica, já que este instituto tem raiz no direito Português, concluindo por uma análise da interpretação atual pelos Tribunais de ambos os países e a problemática em torno da sua aplicação. Ainda neste capítulo, será oportuno apontar os principais pontos de cada instituto, assim como as diferenças, e fazer um apanhado geral da matéria, determinando sua relevância jurídica no direito atual. Para isso, imprescindível será o recurso à jurisprudência de ambos ordenamentos. 1 O Abuso do Direito
1.1) Evolução Histórica Para traçar esta matéria, necessário se fez o recurso ao trajeto percorrido
pela jurisprudência e, na sua maioria, pela doutrina para alcançar a definição atual do abuso do direito. A evolução do instituto se deu em dois momentos: o primeiro corresponde ao período onde se teve a noção do abuso do direito, ou seja, um conhecer primitivo, uma ideia de existência do tema. Já o segundo retrata o início do desenvolvimento da teoria, a partir da proliferação de decisões judiciais e do aumento de dissertações sobre o tema. a) Noção Conforme se retira da doutrina, a noção do abuso do direito deve ser atribuída ao Direito romano4. Foi neste direito, e a partir de brocardos como neminem laedit qui suo jure utitur e Feci, sed iura feci5, que os legisladores viram a necessidade em estabelecer contornos aos direito individuais, que até então eram absolutos, para se
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JORDÃO, Abuso de Direito , 2006, p.55 e s; Fazendo referência a outros autores; “Quem exerce o seu direito a ninguém prejudica”; “Fiz, mas fiz com direito”.
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adaptarem ao bem social6. Isto em razão das situações que surgiam a partir do exercício legal dos direitos se contraporem ao senso comum de justiça. Em razão disso, já naquele tempo, houve uma relativização dos direitos subjetivos, aspecto fundamental para o desenvolvimento do instituto nos anos que sucederiam. No direito romano, não existia um instituto intitulado ‘abuso do direito’’, embora houvessem meios legais, ao tempo, capazes de coibir um ato que fosse considerado abusivo com a finalidade de prejudicar outrem. Tais institutos eram denominados como aemulatio (intenção danosa de prejudicar outrem, sem interesse de agir e motivada pela inveja ou malícia), exceptio doli (utilizada para impedir práticas abusivas no processo) e a temeritas processual. No que pese ao exceptio doli , era subdividida em: specialis ou generalis. A primeira correspondia ao direito que tinha o réu em alegar o dolo do autor logo no início da pretensão, onde, caso fosse constatado o dolo inicial, afetaria todos os atos subsequentes do processo. Já a segunda era mais específica e aplicada aos atos do processo. Quanto a figura da temeritas processual, esta visava combater os atos processuais sem fundamento, com intuito de protelar ou confundir os fatos, mais tarde sendo remetida ao abuso do direito no processo. Posteriormente, esta figura viria a ser substituída pela litigância de má fé7. b) Teoria Já quanto à teorização do instituto, é sabido que os primeiros desenvolvimentos científicos ocorreram na França. Isto, segundo alguns autores, com base em decisões jurisprudenciais que sancionavam exercícios jurídicos inadmissíveis, principalmente nas relações de vizinhança8. Porém, há na doutrina francesa moderna
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JOSSERAND, L’Esprit des Droits… , 1939, p.314. MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.76. 8 CUNHA DE SÁ aponta que, além das relações de vizinhança, houvem decisões direito de família, contratos, obrigações, liberdades individuais e coletivas, etc.; Abuso do Direito, 1973, p.52. 7
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quem atribua relevância à uma lei trabalhista de 18909, sendo essa a propulsora dos trabalhos doutrinários. Independente da dúvida no que refere ao passo inicial na evolução do instituto, sabese que foram os franceses os responsáveis pelos primeiros estudos. Contudo, a título meramente informativo, há de ter em conta que já em 1794, no Código da Prússia, havia previsão expressa contra o “exercício irregular do direito”10. Nesse sentido, esta deveria ter o reconhecimento de ser a primeira disposição sobre um prematuro instituto do abuso do direito. Na França do séc. XIX, o Código Napoleônico, então vigente, não fazia qualquer menção aos institutos criados pelos romanos no combate ao exercício irregular do direito. Apesar disso, a Jurisprudência proporcionou julgados em que combatia a atuação do sujeito por apresentar situações de injustiça gritante. Foi a partir de casos paradigmáticos como o da falsa chaminé(Colmar, 1855) e o dos espigões de ferro(Compiègne, 191311)12, que os trabalhos foram iniciados. Daí ressurge a necessidade da relativização dos direitos subjetivos, em meio ao momento político vivido na França, pósabsolutismo. Há de destacar que a natureza subjetiva da conduta era requisito do ato abusivo. Em sentido oposto, a construção doutrinária não desenhou um corpo jurídico que pudesse estabelecer contornos concretos ao exercício do direitos subjetivos. Por outro lado, a terminologia abus de droit , de autoria do belga Laurent, suscitava dúvidas.
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ANCEL e DIDRY apud JORDÃO, p.61: Segundo aqueles autores, a lei estabelecia que: ao empregador que demitia trabalhadores em massa, com o intuito de inibir a realização de greves, deveria responder por perdas e danos abuso do direito de empregador. 10 “Aquele que exerce o seu direito no interior de seus limites próprios, não está obrigado a reparar o dano que resulte para outro. Mas deve reparálo quando resulta claramente que, dentre vários modos possíveis de exercer seu direito, elegeu o mais danoso, com intenção de prejudicar ” §36 e 37,CALCINI, Abuso do Direito e o Novo Código Civil , 2004, p.33 ; FARIA GÓES, Breves Considerações… , 2003, p.5. 11 Este último caso, apesar de ser destacado pela doutrina, não serviu de base para a doutrina inicial do abuso. Como vemos, o julgamento é de 1913, período posterior aos dos primeiros debates doutrinários e da positivação das regras contra o exercício irregular em dispositivos legais como o BGB(1896) e o Código Suiço(1904). 12 Conforme CUNHA DE SÁ,1973, p.52: “Através de hipóteses concretas que lhes foram sendo submetidas, os tribunais franceses recorreram, umas vezes, à ideia dos limites do próprio direito exercido(...), outras vezes à intenção de prejudicar com que o exercício do direito era efectuado”.
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Apesar do próprio autor já antecipar que no abuso do direito não havia direito13, a expressão foi acolhida pela sua natureza impressiva. Esta desde logo foi alvo de críticas. Segundo PLANIOL, a expressão era de natureza logomáquica, inútil, pois, “o direito cessa onde começa o abuso”, considerando inconciliáveis as palavras “abuso” e “direito”. Este autor, embora contrário a utilização da expressão, era a favor da repressão dos atos abusivos. Na esteira, JOSSERAND apresentou a primeira concepção tradicional do instituto ao afirmar que “os atos abusivos são conformes ao direito subjetivo, mas contrários ao direito objetivo, razão pela qual devem ser reprimidos”14. Cumpre destacar que, apesar dos esforços em estabelecer um subsídio teórico, a utilização do instituto foi exígua, devido à aplicação do conceito de faute , inclusive no exercício formal de um direito. No mais, surgiram ao longo dos tempos várias outras concepções que tentam justificar a natureza do abuso, porém, daremos atenção infra . Simultaneamente e em sentido diverso, no ordenamento alemão, apesar de não haver um instituto denomidado abuso do direito, teve maior desenvolvimento e influência para a configuração atual da matéria. A priori, o §226 previa a chicana, que estabelecia como inadmissível o exercício de um direito quando tivesse unicamente por escopo provocar danos a outrem. Sua interpretação não foi acolhida pelos doutrinadores da época, razão pela qual fora necessário o recurso à outras vias, dando origem ao §82615 que não traduzia a ideia de exercício de direito, mas estabelecia regras de conduta. Sendo assim, a doutrina passou a aplicar em consonância ambos os preceitos, remetendo o exercício dos direitos aos bons costumes(e a boa fé)16, que influenciaria o sistema Português, posteriormente.
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MENEZES CORDEIRO, Tratado… , 2011, p.251. JORDÃO, 2006, p.70. 15 “Aquele que, de uma forma que atente contra os bons costumes, inflija dolosamente um dano a outrem, fica obrigado à indenização do dano.” 16 CUNHA DE SÁ, 1973, p.60; MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.82. 14
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c) Recepção em Portugal Relativamente ao ordenamento Português, devido ao art.13 do Código de Seabra(“Quem exerce o seu direito não faz ilícito a ninguém”), a recepção da teoria do abuso foi obstada por boa parte da doutrina, embora houvessem alguns autores favoráveis, apesar da falta de embasamento jurídicocinetífico17. Foi com Vaz Serra, na confecção do anteprojeto do Código Civil, que o abuso do direito veio a ter previsão legal. No seu estudo, este jurista desenvolveu sistematicamente o abuso do direito em oito artigos, com vários incisos, onde regulava todas as situações abusivas imagináveis, inclusive fora do campo civil, conforme dispõe o art.3 onde o autor tratou das situações de abuso nas relações processuais, designadamente a litigância de má fé. Ocorre que o anteprojeto foi objeto de duas revisões, sendo a primeira resumida a um único artigo: “ O exercício de um direito, com a consciência de lesar outrem através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema, obriga a indenizar os danos directa ou indirectamente causados ”. Este dispositivo tinha sentido diverso do de Vaz Serra, que atribuía uma concepção objetiva, pois impunha a necessidade de um elemento subjetivo, tal como o francês, além de remeter o abuso à responsabilidade civil18. Na segunda revisão, o dispositivo foi modificado e tomou a forma que na sequência seria consagrada no art.334 do Código Civil. Já agora, o artigo não fazia referência a uma conduta intencional maliciosa, bastando um elemento objetivo. Ademais, a alusão aos valores da boa fé e aos costumes remetem ao desenvolvimento alemão19. E assim o é. Apesar da fonte imediata do art.334 do Código Civil Português
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MENEZES CORDEIRO, Tratado… , 2011, 257 e s.. OLIVEIRA ASCENSÃO, O Abuso do Direito…, 2006, p.608. 19 MENEZES CORDEIRO, Tratado… , 2011, p.260. 18
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ser o art.281 do Código Civil Grego20(com redação praticamente idêntica), este tem por base o art.2 do Código Civil Suiço e a influência da doutrina alemã. A partir disto, e tendo em conta que o sistema Português tem propensão a preencher conceitos indeterminados e lacunas da lei, a doutrina do abuso do direito foi se desenvolvendo em Portugal a partir de casos concretos, determinando tipos de comportamentos abusivos. Esta regulação, conforme MENEZES CORDEIRO, “traduz uma forma de solucionar todas ou algumas situações de abuso, dotada de certa unidade linguística e, por vezes, dogmática.”21 É a partir da criação de comportamentos específicos que a doutrina portuguesa se destaca perante outras, conforme veremos infra . d) Recepção no Brasil No que se refere ao ordenamento Brasileiro, diferentemente dos que já foram mencionados, sua recepção legal foi tardia, sendo apenas estabelecida no século corrente. Contudo, há de mencionar que o abuso do direito já se fazia presente neste ordenamento, ainda que implicitamente, desde os primórdios do século passado, conforme veremos. O código Civil de 1916, anterior ao atualmente vigente, influenciado pelo liberalismo e tendo consagrado o absolutismo, coroava o individualismo. Conforme se extrai do art.160, I, "Não constituem atos ilícitos: Ios praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido"22. A amplitude deste preceito resultou na insegurança jurídica social, posto que a definição do que poderia vir a ser um exercício regular do direito era vaga e imprecisa e, sendo assim, não estabelecia limites aos exercício dos direitos subjetivos23. Em razão disto surgiram as injustiças que deram 20
CUNHA DE SÁ, 1973, p.76. MENEZES CORDEIRO, Litigância …, 2011, p.84. 22 Este artigo corresponde ao Art.188 do CC/2002. 23 MIRAGEM, Abuso do Direito: Ilicitude Objetiva , 2005, p.16. 21
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ensejo ao desenvolvimento de uma doutrina repressiva àqueles direitos. Apesar da inexistência de base legal, para a jurisprudência e doutrina daquele tempo, o abuso do direito estaria implícito no conceito do art.160,I. Este raciocínio se deu pela necessidade patente de limitar os direitos subjetivos que na prática demonstravam injustiça gritante, sendo o direito à propriedade, considerado o mais absoluto dos direitos, o primeiro a ser relativizado. Nesse sentido, os juristas e doutrinadores, a partir de uma interpretação contrario sensu , admitiam a existência do abuso do direito, a partir da ideia de que se o exercício regular de um direito era considerado lícito, então, caso o exercício fosse desregular, este seria ilícito24. Não obstante, o Codígo Civil de 1916 já perfilava o instituto em estudo em alguns dos seus dispositivos, reprimindo atuações que constituam verdadeiro "abuso" daquele direito25, conforme se verifica nos seguinte artigos: Art. 526 . A propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e inferior em toda a altura e em toda a profundidade, úteis ao seu exercício, não podendo, todavia, o proprietário oporse aos trabalhos que sejam empreendidos a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse algum em impedilos(Decreto do Poder Legislativo 3.275, de 15.01.1919) Art. 554 . O proprietário, ou inquilino de um prédio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam. Art. 584 . São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar para uso ordinário, a água de poço ou fonte alheia, a elas preexistente. (Entre outros)
Reconhecida a existência de injustiças no campo do exercício dos direitos, o 24
CALCINI, Abuso... , 2004, p.29. BONATTI PERES, Abuso do Direito , 2010, p.9 e seg.; FARIA GOES, 2003, p.14.
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próximo passo seria a introdução legal de um dispositivo que limitasse tal conduta. A primeira tentativa foi apresentada por Haroldo Valadão, que no anteprojeto da Lei de Introdução ao Código Civil(denominada por ele de "Lei geral de aplicação das Normas Jurídicas), propôs no Art.11, a "Condenação do Abuso do Direito". Apesar da importante iniciativa, esta não obteve êxito. Todavia, com a publicação do LICC em 1942, designadamente no seu art.5, atingiuse algum progresso com o reconhecimento ao juiz de perseguir e atentar aos fins sociais e o bem comum quando da aplicação da lei. Conforme BONATTI26, este preceito serviu de fundamento para a aproximação entre o direito e a sociedade, que teriam maiores reflexos com o advento da nova Constituição, de 1988. Passado o momento histórico brasileiro do período pósguerra, atravessando a ditadura até meados da década de 80, a atenção é voltada agora para a promulgação da Constituição Federal de 1988. Apesar de fugir a esfera do nosso tema, necessário se faz mencionála. À CF/88 devese a “cristalização” da noção de direito funcionalizado e de solidariedade social. O princípio da solidariedade social altera, em definitivo, o conceito de direito subjetivo, admitindo sua relativização, em razão da função27, ecoando nas leis seguintes, inclusive o novo Código Civil. A partir disso, o novo CC foi consagrado com base em três princípios fundamentais: a eticidade, a socialidade e a operabilidade. Segundo CALCINI28, quanto ao primeiro princípio, este persegue "valorizar a consagração da justiça, primando, pela dignidade da pessoa humana, a probidade, a boa fé, a equidade e os demais funndamentos axiológicos, que caracterizam a justiça, pela ótica material e não simplesmente formal. Em tais condições, para se atribuir justiça, de cunho material, quando da aplicação das normas deste Código Civil, forçosamente cumprirá respeitar e lembrar dos princípios da eticidade, cujo valor ético a todas normas impregnam. Bem
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BONATTI PERES, 2010, p.18 e seg. Idem , p.20. 28 CALCINI, Abuso... , 2004, p.28. 27
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por isso, surge, como consequência natural da adoção do princípio da eticidade, a opção, nesta legislação, por normas genéricas ou cláusulas gerais, que empregam conceitos jurídicos indeterminados, sem quedarse preocupada com um excessivo rigor conceitual, deixando as normas mais maleáveis". Já em relação ao princípio da socialidade, conforme se absorve da nomenclatura, obtêmse uma ideia de social, sociedade. Este princípio tem por objetivo superar o individualismo presente no Código de 1916, ao sedimentar a predominância do direito social, comum, em face ao direito individual. A partir disso, o direito preconizado no CC/2002 deve ser encarado sobre dois enfoques: no interesse juridicamente protegido do titular e no interesse da coletividade, devendo aquele se harmonizar com este. Por fim, quanto ao princípio da operabilidade, o legislador optou por não utilizar de soluções complexas que por vezes impediam a aplicação das normas. Isto resultou na simplicidade da lei. É com base no primeiro princípio mencionado, e tomando por referência o art. 334 do CC/Português29, que o legislador brasileiro introduz o abuso do direito na lei civilista, perpetuado no art.187. 1.2) A construção do Abuso do Direito Consoante vimos no tópico anterior, a aceitação do instituto em questão pelos ordenamentos aqui estudados ocorreu após ficar evidenciada a necessidade de relativizar o direito subjetivo face ao objetivo.Todavia, até alcançar sua concepção atual, o abuso foi matéria de diversas doutrinas que propuseram as mais variadas teorias com o intuito de definir um corpo jurídico àquele instituto. 29
OLIVEIRA ASCENSÃO atribui esta referência ao fato do Anteprojeto do CC/2002 ser de 1973, período em que o CC Português era Código em vigência mais recente. Ao nosso ver, indepentende da proximidade temporal, a lei brasileira teria forte influência da portuguesa, como já ocorre desde a Colônia. Além disso, a semelhança entre as normas levam a essa conclusão.
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Nesse sentido, é possível listar diversas teorias, à exemplo das teorias afirmativas e negativas30, subjetivas e objetivas31 ou internas e externas32. Embora não tenhamos interesse em analisar densamente cada corrente teórica, cumprenos mencionálas, ainda que sem delongas. No que pese as teorias afimartivas e negativas, a primeira admite a existência do abuso do direito, bastanto, para tanto, o surgimento de um dano anormal à outrem, resultante de um direito subjetivo33. Em sentido oposto, a teoria negativista poderia ser dividia numa doutrina que negava a existência do direito subjetivo e, consequentemente, do abuso do direito. Ou então, por outra, que, encabeçada por ROTONDI34 admitia a existência do abuso do direito, mas considerava o instituto metajurídico. A primeira destas teorias serviu de base teórica para o desenvolvimento posterior do instituto, já que, conforme vimos acima, o abuso começou a ser estudado a partir do exercício anormal do direito subjetivo. Noutro lado, não há alternativa senão ignorar a teoria negativista. O instituto em questão já demonstrou estar presente no cotidiano, nas relações interpessoais que, conforme já dissemos, são reguladas pelo direito. Já em relação às teorias subjetiva e objetiva, a sua interpretação é a mais simples possível. Na teoria subjetiva, subdividese em duas vertentes: na primeira, basta o agente agir com culpa para que o abuso do direito seja caracterizado, enquanto, na segunda, a doutrina exige que o agente tenha intenção de prejudicar( aemulatio ). Por outro lado, e mais próxima do conceito atual de abuso, está
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CALCINI, 2004, p.35 e s. BONATTI PERES, 2010, p.41 e s. 32 MENEZES CORDEIRO, Litigância… ,2011, p107 e ss.. 33 CUNHA DE SÁ, 1997, p.349: “haveria abuso sempre que, e só quando, com a sua atuação, o titular acarretasse ao terceiro ou terceiros um prejuízo que não se pudesse considerar o resultado normal ou usual do exercício de tal direito”. 34 Apud JORDÃO, 2006, p.79: Mario Rotondi considerava que o abuso do direito era “um fenômeno social, não um conceito jurídico, pelo contrário [é um] daqueles fenômenos que o direito não poderá jamais disciplinar em todas as suas aplicações que são imprevisíveis: é um estado de ânimo, é a avaliação ética de um período de transição, é aquilo que se queira, mas não é uma categoria jurídica” 31
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a teoria objetiva. Nesta corrente, o ato abusivo é caracterizado independentemente de culpa, sendo determinante o fim atribuído ao direito. Se o exercício deste direito for contrário ao fim que se destina, então há um ato abusivo. Esta é a teoria acolhida no Código Civil brasileiro, conforme veremos infra . Por último, no que tange as teorias, cabenos mencionar as teorias internas e externas ao direito subjetivo. Conforme MENEZES CORDEIRO, a teoria interna consiste em atribuir limites intrínsecos ao conteúdo de cada direito subjetivo, onde, ao ultrapassar tal limite, surgiria o ato abusivo. Esta corrente é dividida em três doutrinas: a dos atos emulativos, funcional e a interpretativa. A primeira corresponde à intenção do titular do direito em prejudicar. A segunda, de autoria de JOSSERAND, estabelece que o direito subjetivo é complementado por uma função. Seria no desrespeito a esta função que surgiria o ato abusivo. Quanto a doutrina interpretativa, posterior à funcional, este autor explica que tendo em conta a necessidade de respeitar as considerações funcionais referentes ao direito, em si, o abuso resultaria então numa questão de interpretação do ato35. Relativamente as teorias externas, ao contrário, o ato abusivo surge a partir do desrespeito as normas jurídicas alheias ao direito subjetivo. Esta teoria é partilhada entre três doutrinas: a das normas específicas, a da contraposição entre a lei e o direito e a da remissão para ordens extrajurídicas. Quanto a primeira, exprime a ideia de que existem regras direcionadas aos titulares do direito subjetivo com proibição de certos exercícios. O ato abusivo reside no desrepeito a estas proibições. Na segunda doutrina, da contraposição entre a lei e o Direito, retirase que o ato abusivo é conforme com a lei, mas contrário ao direito. Já na terceira, da remissão para ordens extrajurídicas, o ato abusivo é de acordo com o direito, mas infringe estas ordens. Entendese por ordem extrajurídica, por exemplo, a moral e o direito natural36. 35
MENEZES CORDEIRO, Litigância… ,2011, p.107 e s. Idem , p.111113.
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Sabese que abuso do direito é resultado da conjugação destas teorias, em razão da insuficiência construtivoteórica quando aplicadas individualmente. Com efeito, se formos analisar a atual concepção do instituto, verificaremos elementos das teorias acima mencionadas, uns com maior abragência do que outros. Superada esta fase, ainda que de maneira não uniforme, o abuso do direito deve ser entendido como o exercício disfuncional de posições jurídicas. Nas palavras de MENEZES CORDEIRO, “um concreto exercício de posições jurídicas que, embora corretas entre si, seja inadmissível por contundir com o sistema jurídico na sua globalidade37. Portanto, nesse sentido, no abuso do direito não há nem um “abuso”, nem um direito subjetivo. Por outro lado, há quem conceitue o abuso como sendo “o simples descompasso entre o exercício de um direito subjetivo, aparentemente regular, mas que, em verdade, descumpre o fundamento axiológico inscrito na norma”38. A distinção ocorre justamente na interpretação do ato abusivo. No primeiro, o abuso nasce da desconformidade com o exterior, o sistema jurídico no geral, ao passo que, no segundo, o abuso deriva da inobservância dos seus valores internos. Isto se dá pelo fato do pilar fundamental do instituto do abuso em Portugal ser a boa fé, enquanto que, no ordenamento brasileiro, priorizouse a função social do direito. 1.3) A previsão legal e a violação aos limites como causa do abuso do direito A materialização do instituto se retira dos artigos 334 e 187, das leis civis de Portugal e Brasil, respectivamente: Art. 334 . É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito.
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MENEZES CORDEIRO, Litigância… ,2011, p,75 CALCINI, 2004, p.37.
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Art. 187 . Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercêlo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes.
De acordo com a redação verificamos a semelhança entre os preceitos. A influência do artigo português sobre o brasileiro é patente. O legislador brasileiro atribui, inclusive, os mesmo limites. Contudo, o abuso do direito português vem sedimentado na seção do exercício e tutela dos direitos, ao passo que o brasileiro está presente na seção dos atos ilícitos. A doutrina portuguesa predominante considera equivocada a denominação de ato ilegítimo, isto em razão da já tradicional acepção deste termo, considerando ser ato ilícito o vocábulo mais apropriado39. Apesar disso, ao nosso ver, o ato abusivo não constitui ato ilícito. Isto porque, no ato ilícito o agente confronta a lei frontalmente(revestido de culpa), ao passo que, no abuso, o agente ultrapassa os limites no exercício do direito. É o que consolidou JOSÉ DE AGUIAR DIAS40, ainda em 1944, ao afirmar que “nos moldes clássicos, não caberia, com efeito, considerar como agente de abuso senão aquele que procede culposamente. Mas a doutrina do abuso do direito é, por definição, inconciliável com o princípio da culpa e os que a propugnam partem exatamente dessa premissa, porque, quando encaramos um fato culposo, a responsabilidade emerge dele, nos termos do direito comum, não havendo necessidade de cogitar o abuso do direito”. A consagração desse entendimento vem no Enunciado nº37 da Jornada de Direito Civil41, onde sedimentouse entendimento relativo ao art.187. 39
MENEZES CORDEIRO, Tratado… , 2011, p.239 e seg.;: OLIVEIRA ASCENSÃO, Abuso… , 2006, p.620. Apud MIRAGEM, Abuso do Direito… , 2005, p.20. 41 Evento promovido pelo Superior Tribunal de Justiça, que reuniu estudiosos civilistas de todo o país com a finalidade de examer o novo Código Civil, derivando daí uma série de enunciados interpretativos da nova lei. 40
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Art.187: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe
de
culpa e fundamentase somente no critério
objetivofinalístico.
Quanto à aplicação do abuso do direito, necessário se faz o preenchimento dos requisitos. Na legislação brasileira, são dois: o exercício do direito(subjetivo) e a violação aos limites objetivos. Por outro lado, no direito português, com aplicação prática indubitavelmente superior, já não se faz referência ao exercício de um direito subjetivo, em razão de já se ter provado que o abuso poder surgir de qualquer situação jurídica42. Brevemente, para se aplicar o abuso no ordenamento brasileiro, mister se faz, parcialmente, o exercício do direito pelo seu titular ou por representação. Esta exercício corresponde à liberdade jurídica conferida aos indivíduos através de um direito, subjetivo. Essa prerrogativa implica numa atuação positiva, correspondente a uma ação, ou negativa, no caso de omissão. Há de ter em conta que ambas caracterizam exercício de um direito subjetivo, na interpretação do art.18743. Quanto aos limites impostos, já expusemos que a semelhança entre os preceitos reside justamente aí. A cópia, quase fiel, do art.187 em relação ao art.334 se dá pelo emprego da boa fé, bons costumes e fim econômico e social, além do termo “manifestamente”. Vale dizer que os dois primeiros limites são gerais devendo sempre ser analisados, enquanto que os dois últimos são específicos, em razão dos direitos apresentarem, geralmente, ou um fim econômico ou social. Relativamente à boa fé, princípio geral do direito, presente não só na lei civil, mas em todas as outras codificações, foi o limite que obteve o maior apreço na doutrina
42
MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.118119. MIRAGEM, 2005, p.29.
43
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portuguesa. Para o abuso do direito, somente releva a boa fé objetiva. Conforme CUNHA DE SÁ44 doutrinava, a boa fé tem dois sentidos: o primeiro seria um estado de espírito, de onde se retiram consequências favoráveis e que corresponderia ao aspecto subjetivo; em sentido diverso, a boa fé seria o princípio pelo qual o sujeito de direito deve atuar como pessoa de bem, honesta. Este segundo sentido, objetivo, destinase a duas
utilizações,
sendo
a
primeira
como
fonte
de
deveres jurídicos
secundários(relativamente aos deveres que derivam da boa fé), e o segundo como interpretador dos negócios jurídico ou limitador dos direitos subjetivos45. Apesar de limitar a interpretação da boa fé ao aspecto objetivo, esta ainda é a cláusula geral mais extensa do ordenamento português46 e apresenta um conceito um tanto vago, pois, "exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé" poderia abranger inúmeras situações. A solução para uma aplicação objetiva da boa fé, presente em tantos outros dispositivos do Código Civil Português, seria feita pela utilização dos “vetores próprios do manuseio da boa fé”, sendo concretizada a partir da determinação de comportamentos abusivos típicos47, que iremos mencionar infra . No que pese ao ordenamento brasileiro, dentre os limites estabelecidos no art.187, é a boa fé que tem sido tema de maior aprofundamento pela doutrina atual, mas não obteve, ao tempo da publicação do CC/2002, a importância conferida pelo ordenamento luso. Isto em razão da prevalência a finalidade social do direito, conforme se retirou do enunciado nº37. Quanto aos bons costumes, esta concepção é geralmente associada as regras de moral, conduta sexual e resguardo social reiteradamente praticadas no seio 44
CUNHAS DE SÁ, 1997, p.164 e seg. MIRAGEM, 2005, p.3233. 46 OLIVEIRA ASCENSÃO, 2006,p.613. 47 MENEZES CORDEIRO, Tratado… ,2011, p.241,372. 45
20
da sociedade. Ultrapassar os limites impostos pelos bons costumes é dizer que o agente age contrariamente aos critérios éticosociais estabelecidos a partir do comportamento daquela sociedade ao longo dos tempos. A boa fé e os bons costumes apresentam certa relação, em razão de ambos terem por referência a proteção de valores éticos e morais. Contudo, a proteção aos bons costumes é maior, já que se aplica a todo e qualquer exercício de direito subjetivo48. Para MENEZES CORDEIRO, a utilização desse limite no art.334 é desnecessária, já que equivale aos “bons costumes” presente no art.280/2 e que resultaria numa solução já alcançada49. Ao nosso ver, neste caso, o legislador opta por especificar a obediência aos bons costumes no que tange ao exercício dos direitos, enquanto que, no outro dispositivo, essa obediência era determinada na prática dos objetos negociais. Aquela é bem mais extensa que essa e, assim sendo, desnecessária seria a previsão no art.280/2. Por último, o instituto do abuso é aplicável quando da violação dos limites impostos pelo fim social ou econômico. Esta cláusula geral encontra guarida no ordenamento brasileiro e desde 1942, com o advento da Lei de Introdução ao Codigo Civil, no art.5 já se fazia referência à observância dos fins socias na aplicação da lei. Cumpre recordar que o fim social está diretamente relacionado a teoria da função social do direito, de JOSSERAND, de onde se retira que todo direito vem acompanhado de uma função social, devendo o agente atuar neste sentido, caso contrário, resultaria em abuso. Sendo assim, apesar dos preceitos não fazerem referência à função social, mas sim ao fim, e, tendo em conta que não existe no direito um fim subjetivo, restará o fim objetivo. Quanto ao fim objetivo do direito, este é exercido com respeito à esfera 48
MIRAGEM, 2005, p.35. MENEZES CORDEIRO, Tratado… ,2001, p.241.
49
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social. Nesse sentido, fim social é função social50. Apesar de analisadas sob o mesmo prisma, a finalidade social e econômica não se confundem. Os limites impostos pelos fins sociais abrange todos os direitos, ao passo que o fim econômico somente incide em direitos específicos. Os fins sociais do direito remetem “a ideia da razão de ser do direito, de uma concepção socialmente adequada dos direitos subjetivos frente aos diversos interesses em curso na comunidade”51. Neste caso, o abuso do direito consiste na violação dos limites estabelecidos com natureza objetivofinalística52. Por outro lado, a interpretação do abuso de um direito com base na violação dos fins econômicos deve ultrapassar o enunciado legal. Não se pode aferir esta cláusula geral com base apenas no direito subjetivo do agente, mas, ao contrário, deve, além disto, ter em conta os interesses econômicos da sociedade e a repercussão do exercício deste direito em relação a ela53. 1.4) A concretização do Abuso através da jurisprudência e os comportamentos abusivos típicos Ainda que nosso tema seja relativo ao abuso do direito de ação, é necessário fazer menção aos comportamentos típicos desenvolvidos ao longo do desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial. Isto porque, conforme se demonstrará por via de casos julgados, o exercício abusivo no direito de ação pode ser de ordem substancial, quando se constate algum dos comportamentos típicos, ou no plano técnico, quando contrário aos parâmetros estabelecidos pelo princípio da boa fé54.
50
OLIVEIRA ASCENÇÃO, p.612. MIRAGEM, 2005, p.32. 52 Conforme Enunciado n.37, s upra mencionado. 53 MIRAGEM, 2005, p.31 54 MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.131. 51
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Sendo assim, há de falar no venire contra factum proprium , inalegalibidades formais, suppressio , tu quoque e desequilíbrio no exercício de posições jurídicas. Antes de mais, cumpre assinalar que esta parte do estudo tem base unicamente na doutrina portuguesa. O desenvolvimento do abuso no Brasil tomou outro rumo, não havendo na doutrina um quadro semelhante, relativamente aos comportamentos típicos. Não obstante, a jurisprudência brasileira tem aumentado a referência a estes comportamentos. A expressão venire contra factum proprium , de origem canónica, é o principal e mais utilizado dos comportamentos abusivos. Consiste em duas condutas( factum proprium , correspondente a primeira conduta e o venire , relativamente a segunda conduta) praticadas por uma mesma pessoa, lícitas em si, diferidas no tempo e contraditórias55. A explicação para este tipo abusivo tem eco na doutrina da confiança, segundo o qual o venire deve ser proibido em razão de ser contrário à primeira conduta assumida e que gerou uma situação de confiança legítima na outra parte, devendo esta ser protegida da arbitrariedade daquela. Para tanto, a proteção da confiança se dá pela constatação das proposições desenvolvidas pela doutrina e jurisprudência56, quais sejam, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da situação de confiança57. Dentre alguns casos julgados, destacamos em cada ordenamento: RLx 22/05/2012: Constitui abuso do direito, na modalidade v enire, a invocação pelos réus da nulidade do contrato de mediação, já após a conclusão do negócio visado pelo exercício da mediação, numa altura em que já se tinham aproveitado 55
MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.92. Idem , p.93. 57 Ver MENEZES CORDEIRO, Tratado… , Parte Geral, Tomo V, p.275 e seg. 56
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das vantagens do trabalho desenvolvido pela mediadora, para não terem que pagar a remuneração contratualmente estabelecida, em contraste com a sua anterior atitude. STJ REsp. 13/11/2012: Recurso Especial. Direito Cambiário. Ação Declaratória de nulidade de Título de Crédito. Assinatura escaneada. Descabimento. Invocação do vício por quem deu a causa. Ofensa ao princípio da boa fé objetiva. Aplicação da teoria dos atos própriossintetizada nos brocardos latinos “ v enire contra factum proprium” e “tu quoque” . (Brasil)
Quanto à inalegabilidade formal, esta visa a coibir o abuso do direito praticado na alegação de uma nulidade formal pela parte que, ao saber da existência do defeito, não invocou quando deveria, se prevalecendo deste para depois suscitála, verificando assim um comportamento contrário a boa fé. É composto por duas condutas contraditórias conforme o venire , porém, especificamente na formação do negócio jurídico, razão pela qual recebe tratamento específico58. É o que se retira dos seguintes acórdãos: RP 10/07/2013: I – A invocação da nulidade do contrato de arrendamento após a cessação do mesmo e depois de se ter usado o local durante algum tempo integra uma situação de abuso de direito. II – Caso o contrato cesse por acordo das partes não é devido o pagamento das rendas correspondentes ao período de préaviso em falta (Porto). TJMG 19/03/2014 : APELAÇÃO AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DIVERSAS
EMPRESAS DE UM MESMO GRUPO ECONÔMICO
INOBSERVÂNCIA DE FORMALIDADE DE CONVOCAÇÃO VÍCIO MATERIAL DEVER DE LEALDADE E BOAFÉ PRINCÍPIO DA CONFIANÇA VEDAÇÃO AO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM (AC 10702100537456006 MG)
Ainda que a decisão brasileira faça referência ao venire, tratase de um caso de inalegabilidade formal. A semelhança entre os tipos se torna ainda mais clara quando se verifica os pressupostos para que seja aplicada. Conforme MENEZES 58
Idem , p.299 e seg.
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CORDEIRO59, este tipo requer os pressupostos da confiança que referimos quanto ao venire , além de introduzir outros três: devem estar em jogo somente os interesses das partes envolvidas, a situação de confiança deve ser imputável à pessoas a responsabilizar e o investimento de confiança de apresentarse sensível. No que se refere a supressio (supressão), segundo CUNHA DE SÁ60, “tratase de proibir que, no âmbito de uma relação préexistente, o titular de um direito o venha fazer valer em contradição com a própria conduta anterior, por tal se afigurar inadmissível perante os deveres de correcção e de boa fé vigentes na relação, que seriam violados por tal exercício nomeadamente, se a conduta anterior do titular, objectivamente interpretada, legitimava a convicção de que o direito já não seria exercido”. A supressio também é pautada na tutela da confiança e seus pressupostos, embora seja individualizada pelo fator temporal. A supressio consiste, então, na perda de um direito por aquele que não o exerce durante certo lapso temporal e, ao mesmo tempo, nasce um direito na esfera do confiante de boa fé, denominado surrectio (surgimento). Quanto às jurisprudências, destacamos: STJ 11/12/2013: I – A inércia, omissão ou nãoexercício do direito por um período prolongado, sem que possa sêlo tardiamente se contundir com os limites impostos pela boa fé, constitui uma expressão ou modalidade especial do ‘venire
contra
factum
proprium’ ,
conhecida
por
supressio .
( 629/10.9TTBRG.P2.S1) TJDF 07/03/2012 : 1. Não merece properar o pleito de herdeiro que impugna esboço de partilha apresentado pelo inventariante somente após a sentença de procedência, quando, durante o invetário, que tramitou por quase duas décadas, o insurgente, mesmo instado, não se manifestou em sentido contrário. 3.
59
MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.98. CUNHA DE SÁ, 1997, p.65: Este autor deu outro nome ao instituto, denominandoo de “exercício inadmissível do direito”. 60
25
Incidência da teoria da s urrectio. ( APL 195052220118070001)
Outro comportamento abusivo que tem sido evitado no direito é o tu quoque . Este consiste na proibição, por ser abusiva, de um sujeito violar uma norma jurídica e depois se prevalecer da situação jurídica decorrente, ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio ou exigir a outrem que acate a situação já violada61. Diferentemente dos tipos acima, o tu quoque não caracteriza um abuso do direito a partir da quebra da confiança do sujeito de boa fé. O exercício de posições jurídicas pode alterar a relação substancial entre as partes e retroceder ao status quo nessa relação, apesar de conforme à previsão legal, mostrase contrária à boa fé. Daí surge o outro princípio concretizador da boa: o da materialidade subjacente, onde se busca respeitar e manter a situação jurídica alterada pelo comportamento anterior e indevido62. TJDF 26/02/2014 : Configura violação ao princípio da boa fé objetiva, na modalidade específica do “tu quoque”, a conduta da parte que pleiteia a resolução do contrato, quando sequer cumpriu sua obrigação contratual.
( APC
20130110941769)
Por último, fazemos referência ao desequilíbrio no exercício de posições jurídica. Segundo MENEZES CORDEIRO, este tipo residual e mais extenso está na origem do abuso do direito, pois engloba vários subtipos, do qual o autor faz menção a três: o exercício danoso inútil, o dolo agit e a desproporção grave entre o benefício do títular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem63. Também releva na materialidade subjacente. O exemplo mais corrente é o da desporporção grave, geralmente nas relações de arrendamento:
61
MENEZES CORDEIRO, Tratado …, 2011, p.327 e seg. Idem, p.336. 63 Ibidem, p.341. 62
26
RLx 06/12/2012: 2) Existe manifesta desproporcionalidade entre o valor das obras exigidas pelo inquilino e os rendimentos obtidos pelos senhorios, respeitantes a rendimento habitacional com mais de 30 anos, sendo o valor da renda de 321,26 euros, sendo o valor das obras 270.000 euros. ( 5687/10.3T2SNT.L18)
Findo o exame, ainda que rapidamente, dos comportamentos e antes de nos debruçarmos sobre o abuso do direito de ação, há de finalizar fazendo menção as consequências do abuso do direito para que, no momento oportuno, possamos fazer um comparativo com as da litigância de má fé. Sendo assim, as consequências, ou sanções, variam de acordo com o tipo de abuso. Como consequência direta, podemos elencar: a supressão do direito, o desfazimento do ato abusivo ou a anulação do ato lesivo, a cessação do exercício abusivo e a manutenção da posição jurídica. No que pese as consequências indiretas: o dever de restituir, seja em espécie ou equivalente, e o dever de indenizar, quando houver dano. No que pese ao dano, na doutrina brasileira há debate acerca da necessidade ou não deste requisito para configurar o abuso, isto em razão da tradição doutrinária proveniente do CC/16 que associava o instituto com o conceito de culpa e, consequentemente, ao dever de reparar64. Todavia, essa questão deve ser superada em razão da evolução do instituto e dos motivos já referidos. 1.5) O Abuso do Direito de Ação Com base nas Constituições65 dos respectivos ordenamentos, vemos
64
DAHINTEN, Abuso do Direito… , 2013, p.149. Constituição da República Portuguesa, de 2005, consagra no art.20º o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva; Constituição Federal do Brasil, de 1988, consagra no art.5º, LIV e LV. 65
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consagrada a garantia fundamental do direito de ação. Esta prerrogativa permite ao sujeito o acesso à Justiça quando para reclamar ou defender o seu direito. Para tanto, esperase que a provocação ao judiciário seja feita com fundamento jurídico e em respeito aos valores fundamentais do sistema, a exemplo da boa fé. Quanto à boa fé, este princípio, do qual tratamos supra, é fundamental e onipresente em qualquer ordenamento jurídico atual, inclusive os em estudo. Não se limita apenas ao direito civil e as relações privatísticas, mas se impõe a todas as outras ramificações do direito positivo, inclusive, no direito processual. Coincidências à parte, conforme doutrina Menezes Cordeiro, foi justamente no processo civil que a boa fé teve seus primeiros reflexos extracivis66. Não somente na jurisprudência, que foi onde se iniciaram os debates sobre a aceitação ou não deste princípio, mas posteriormente pela doutrina e, ao fim, na positivação. Segundo CUNHA DE SÁ, a jurisprudência portuguesa começou por recorrer as ideias de abuso do direito no âmbito do direito de ação67. O autor corrobora tal afirmação ao dizer que, historicamente, a ação precede o direito subjetivo, exemplificando as actiones in rem e in personam do direito romano que deram origem a classificação dos direitos. Hoje, sua aceitação é inquestionável. Ademais, conforme se retira do art. 8 da lei processual Portuguesa em vigência, intitulado “dever de boa fé processual”, dispensa explicação. No mesmo sentido, dispõe o art. 14, II, do CPC Brasileiro, que as partes devem proceder com lealdade e boa fé. Nesse sentido, o exercício de direito de ação também se encontra subordinado ao princípio da boa fé e, consequentemente, a proibição do abuso do direito68. Isto porque já ficou comprovado que os exercícios processuais também podem ser disfuncionais.
66
MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.125. CUNHA DE SÁ, 1997, p.268. 68 ALBUQUERQUE, Responsabilidade… , 2006, p.66 e seg. 67
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Fruto do desenvolvimento da doutrina alemã que, no início do séc. XX, já fazia referência a comportamentos abusivos no âmbito do processo, viuse evidente a necessidade de impor limites pautados na boa fé e o fez a partir de quatro casos de aplicação daquele princípio no processo: a proibição de consubstanciar dolosamente posições processuais, a proibição do venire, a proibição de abuso de poderes processuais e a supressio69. Assim como o abuso do direito nas relações privadas, no campo processual o instituto é determinado pelos mesmos requisitos(atuação contrária ao sistema) e resulta nas mesmas consequências(cessação do exercício abusivo e dever de reparar) Ademais, sua base legal, ainda que no processo, é o art.334 do CC/PT. No mesmo sentido, encontramse diversas decisões na justiça brasileira com menção ao art.187 fazendo referência ao “abuso do direito de ação”. Apesar da terminologia fazer referência ao “direito de ação”, entendido como sendo o praticado pelo autor da ação, abrange também o réu, e não somente ao direito de defesa, mas a qualquer ato processual. Outrossim, cumpre destacar que este abuso engloba tanto os aspectos subjetivos, quanto técnicos da ação70. Relativamente aos aspectos substantivos, o abuso do direito de ação se materializa a partir da conjugação com os comportamentos típicos referenciados no tópico anterior. Por exemplo, nas ações judiciais onde o autor alega uma nulidade formal após ter se aproveitado desta, ou então, nas ações com patente desequilíbrio de posições jurídicas. Noutro sentido, quando o abuso tem base em aspectos técnicos do processo, caracterizase pelo desvio de finalidade da “norma jurídica que atribua 69
MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.127128. Idem , p.131.
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objetivamente o direito do sujeito processual a praticar determinado ato processual, em certo momento do trâmite processual”71. Para tanto, esse desvio tem quer ultrapassar os limites da boa fé. Em termos práticos, o abuso do direito de ação é um mecanismo para impedir a prática de atos processuais desconformes com o exercício da ação, mas não é o único. Há nas leis processuais, portuguesa e brasileira, várias outras disposições com a finalidade de combater os atos temerários, protelatórios e sem qualquer base jurídica. Entre outros, há a litigância de máfé, tema do próximo capítulo, que, embora se confunda com o abuso no processo, não coincide. 2 A Litigância de má fé Conforme já adiantamos no tópico anterior, existem outros meios legais destinados a policiar a conduta das partes no processo visando a correta aplicação da justiça. Dentre eles, figura o instituto da litigância de má fé. Primeiramente, cumpre destacar que esse é um instituto tipicamente português72. Sendo assim, há de mencionar, ainda que rapidamente, a evolução deste que hoje é consagrado nos ordenamentos em estudo. 2.1) Evolução Histórica Assim como o abuso do direito, já havia no direito romano uma doutrina que reprimia a má fé processual, denominada temeritas processual, ou lide temerária. Traçar o caminho percorrido detalhadamente desde a origem romana até a definição atual não seria conveniente. O avanço do instituto foi gradualmente lento passando por
71
SENNA, O abuso de Direito… , 2009, p.19. COSTA E SILVA, A litigância de má fé, 2008, p.131 e ss..; MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.37. 72
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vários momentos, desde as Ordenações(Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), pelas Reformas Judiciárias73 até aos Códigos. O legislador português importou de Roma o instituto processual do juramentum calumniae, no vernáculo, juramento de calúnia74. Consistia numa declaração feita por autor e réu, em que alegavam atuar no processo com justa razão e boa fé, sem tenção maliciosa. Este juramento era obrigatório. Se o autor não o fizesse, acarretaria a perda da ação. Quanto ao réu, se este recusasse prestar o juramento, implicaria na confissão do pedido. Este juramento esteve presente nas leis anteriores às Ordenações até a Novíssima Reforma Judicária, que antecedeu o primeiro Código de Processo Civil, de 1876. Todavia, num primeiro momento, ao tempo das Ordenações, o juramento de calúnia era geral, aplicável a qualquer ação, ordinária ou sumária. Já no período das Reformas, sua aplicação passou a ser especial, sendo somente utilizado nas situações tipificadas em lei75. Insta destacar que já nesse período, o litigante que fosse pego atuando com dolo poderia ser condenado ao dobro ou tresdobro sobre o valor das custas pessoais do litigante vencendor. Outro dado importante, presente nas O. Filipinas, é a responsabilidade dos Advogados e procuradores. A lei da Boa Razão, de 1769, impunha sanções severas para os mandatários que atuavam de maneira frívola: a) se fosse pego atuando de má fé pela primeira vez, caia numa multa de 50 mil réis para a Relação, mais seis meses de suspensão; b) numa segunda, perda dos graus obtidos na Universidade; e c) na terceira, 5 anos de reclusão na Angola. Entretanto, o requisito do dolo obstava a 73
Idem , p.186190; A primeira em 1832; a segunda, denominada “A nova Reforma judiciária”, em 1837; e a última, “ A novíssima Reforma Judiciária”, sem data informada; 74 ALBUQUERQUE, Responsabilidade… , 2006, p.30. 75 COSTA E SILVA, 2008, p.189.
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aplicação desta lei76. Até este período as sanções impostas aos que litigassem de má fé resultavam unicamente no agravamento das custas processuais. Esta tinha apenas caráter punitivo77. O Código de Processo Civil Português, de 1876, trouxe significativas mudanças em relação a responsabilidade processual. À priori, destacase a supressão do juramento de calúnia78. Nessa legislação, criouse um sistema especial para o litigante de má fé. Tal disposição é prevista nos arts. 121, 122 e 126. O artigo 121 estabelecia que a parte vencida e maliciosa pagaria 10%, a título de multa, sobre o valor da causa, não podendo exceder a 1000 réis. Já o art.122 punia a litigância no decorrer das ações executórias, nomeadamente nos embargos de terceiro e execução. Já o Art.126, §1, estabelecia que a indenização não poderia exceder o dobro das custas. Este foi um dos avanços na nova legislação. Anteriormente, nenhum corpo jurídico fez referência a uma indenização em prol da parte prejudicada pela malícia. Para tanto, a indenização estava sujeita ao entendimento do juiz e independia de estar conexo ao dano sofrido, nem era necessária a ocorrência deste79. Por último, foi neste Código que se introduziu o termo “litigância de má fé”. Porém, a cumulação de multa e indenização só poderia ser devida pela parte sucumbente. Sendo assim, caso o vencedor da ação tivesse litigado de má fé, este não seria condenado por litigância80. Apesar da relevante mudança, a aplicação do instituto ainda era escassa e, quando aplicada, tinha caráter compensatório. No momento seguinte, o da vigência do CPC de 1939, houveram significativas mudanças a começar, em seu art.465, na definição de má fé processual,
76
MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.41. FERNANDES DE SOUZA, Abuso do Direito Processual , 2005, p.85. 78 COSTA E SILVA, 2008, p.199. 79 ALBUQUERQUE, 2006, p.40. 80 COSTA E SILVA. 2008, p.200. 77
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conceituando o o tipo central que seria o instituto. Isto acabou por limitar a aplicação do instituto. Um primeiro ponto a ser alterado foi a supressão do requisito de somente aplicar a litigância de má fé a parte vencida, como constava do CPC/39, conforme o §único. Todavia, para condenar o vencedor por litigância de má fé, somente seria possível quando este agisse com dolo instrumental, ou seja, uso reprovável do processo ou dos meios processuais, não sendo possível na hipótese de dolo substancial81. Consistia em litigar de má fé o exercício processual, revestido de dolo, quando deduzida pretensão ou oposição sem fundamento do qual não se poderia desconhecer, como também alterar a verdade dos fatos ou omitir fatos essenciais, ou fazer do processo uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objetivo ilegal ou de entorpecer a ação da justiça ou impedir a descoberta da verdade. Outro dado a reter, no que pese ao conteúdo da indenização, é que esta era arbitrada com base na conduta do lesante e não no prejuízo sofrido pelo lesado82. Na esteira veio o CPC/61 que nada alterou relativamente ao instituto, exceto pela redação. A má fé que era constatada pela “pretensão ou oposição cuja falta de fundamento o agente não podia razoavelmente desconhecer”, passou a ser “cuja falta de fundamento ele não ignorava”. A aplicação do instituto era escassa, pois, o juízo de dolo, seja quanto a matéria em causa ou quanto ao ato processual, era difícil de ser aplicado83. Verificase a acentuação do dolo sobre a conduta, dificultando ainda mais a sua aplicação prática. Todavia, relevante mudança ocorreu na Reforma de 1995. Com esta reforma, a litigância de má fé passaria a ser aplicada, também, nas condutas negligentemente graves, ampliando o campo de incidência do instituto. Além disso,
81
ALBUQUERQUE, 2006, p.43. Idem , p.44. 83 MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.4950. 82
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uma novo tipo de conduta foi inserido como sendo de má fé processual: a omissão do dever de cooperação(boa fé processual)84. Quanto ao ordenamento brasileiro, na época do Império, por ser colônia de Portugal, tinha o seu corpo legal regrado pelas Ordenações Filipinas. Com a sua indepêndencia, manteve as O.Filipinas em vigor, exceto pelas cláusulas que fossem contrárias à sua soberania. Em 1850, com a publicação do Código Comercial, o legislador da época editou o Regulamento n.373, que versava sobre o processo comercial85. Em 1871, o Governo Imperial pediu ao Conselheiro Antonio Joaquim Ribas, que reunisse as leis vigentes ao tempo, O.F. e leis complementares, num só corpo, resultando na Consolidação das Leis de Processo Civil, que tinha peso de lei86. Este regerem o processo civil até a proclamação da república, quando o decreto n.763, impôs a aplicação do Regulamento n.737 ao processo civil87. Com a publicação da Constituição de 1891, o Art.34, n.23, dispôs a dualidade do processo, cabendo tanto a União quanto aos Estados, lesgilar sobre o processo. Nos códigos estudais, embora inconsistentes, já se constatavam óbices a prática processual maliciosa, variando a pena de estado para estado. Com o advento da Constituição de 1934, a unidade processual foi reestabelecida. Em 1939, surge o primeiro CPC Brasileiro, que previa no seu art.63 a repressão a litigância maliciosa, condenando em custas. Previa também a condenação ao advogado/procurador. Já em 1973, editouse um no código de Processo Civil que está em vigor até hoje, mas com os dias contados, já que tramina no Congresso Nacional o projeto do novo Código de Processo Civil, passando por retoques finais para ser publicado. 84
COSTA E SILVA, 2008, p.264. GOUVEIA, A litigância de má fé… , 2002, p.84 e ss.. 86 FERNANDES DE SOUZA, Abuso do Direito Processual , 2005, p.88. 87 GOUVEIA, A litigância de má fé... , 2002, p.84 e ss.. 85
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2.2) Regime e características A litigância de má fé é um instituto consagrado nos ordenamentos em estudo. Sua previsão legal se retira dos arts. 542 a 545 e arts.16 a 18, dos CPC’s português e brasileiro, respectivamente. E, assim como no abuso, a redação é bastante parecida. Sendo assim, preconizam: Art.542 Noção de litigância de má fé 1) Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indenização à parte, se esta pedir. 2) Dizse litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos fatos ou omitido fatos relevantes para a decisão da causa; c ) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da Justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Art.16 Responde por perdas e danos aquele que pleitear de máfé como autor, réu ou interveniente. Art.17 Reputase litigante de máfé aquele que: I deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II alterar a verdade dos fatos; III usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI provocar incidentes manifestamente infundados; VII interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
Comparando os dispositivos, é patente a semelhança normativa, inclusive no que respeita aos comportamentos tipificados. Desta definição retiramos os aspectos que caracterizam o instituto.
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A litigância de má fé é, nos dizeres de PEDRO ALBUQUERQUE, o instrumento utilizado para policiar o processo resultante da “violação dos deveres e posições jurídicas sentidos exclusivamente ao nível do processo, com independência e autonomia relativamente às posições de direito material”88. Os deveres que o autor menciona são os decorrentes do respeito aos princípios da cooperação, boa fé e correção jurídica89. O princípio da cooperação consiste no dever que os intervenientes processuais têm em prestar sua cooperação ativa com vista a obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. Já a boa fé, além do que já fora mencionado neste estudo, deve ser pautada no respeito aos deveres estabelecidos no princípio de cooperação. Quanto à correção recíproca, devem as partes ter atenção ao dever de urbanidade. No que pese a má fé no processo, esta pode ser através de uma atuação substancial ou processual. Segundo MENEZES CORDEIRO90, as alíneas a, b e c correspondem à atuação substancial, enquanto a alínea d seria uma atuação processual, dividida em três subcondutas: conseguir um objetivo ilegal; impedir a descoberta da verdade; e protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Noutro sentido, há quem entenda ser a alínea c hipótese de atuação processual91. Isto porque, da redação do princípio(art.8), extraise deveres instrumentais(inciso I) e materiais(incisos II e III). Quanto a sua natureza jurídica, a litigância de má fé é um instrumento processual público. Nesse sentido, opera oficiosamente e podendo ser suscitado a 88
ALBUQUERQUE, 2006, p.59. Cf. artigos 7, 8 e 9 do CPC Português e Art.14 do CPC Brasileiro. 90 MENEZES CORDEIRO, Litigância , 2011, p.55. 91 ALBUQUERQUE, p.49; ALMEIDA, Direito Processul Civil , 2010, p.299. 89
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qualquer momento no processo. Tem como requisito a violação de conduta processual a partir de um dos comportamentos tipificados nos artigos acima mencionados. Para tanto, além da conduta préestabelecida, é requisito a existência de dolo ou negligência grave. Quanto à negiligência grave, a jurisprudência portuguesa restringe às situações de má fé substancial. No caso de ma fé processual somente importará a atuação dolosa92. Ademais, este instituto visa punir unicamente a conduta processual, não sendo pressuposto a existência de resultado93. A má fé processual desencadeia dois efeitos: a sanção penal, consistente numa multa arbitrada de ofício à parte maliciosa, tomando por base o valor das custas; e uma indenização, a pedido da contraparte. No direito brasileiro, a indenização também pode ser atribuída de ofício, conforme art.18. Além da sanção destinada às partes, o instituto, no direito português, ainda faz referência aos representantes e procuradores que também podem agir com má fé. Quanto aos representantes, segundo critica de MENEZES CORDEIRO94, o instituto “quebra os nexos de organicidade” contrariando as regras presentes no código civil e o das sociedades comerciais, ao punir somente o representante, ao invés da pessoa coletiva. Quanto ao procurador, o julgador não poderá condenálo pela má fé, sendo esta competência do órgão de ética da Ordem dos Advogados, conforme art.545. A título exemplificativo, o litigância maliciosa pode ser identificada nas seguintes condutas: negação intencional de fatos pessoais que venham a ser provados; autor que demanda condenação do réu ao pagamento de quantia superior ao que é devida; autor que ação que reinvidica do réu a passo de imóvel, quando existia nessa
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MENEZES CORDEIRO, Litigância, 2011, p.56. Conforme ALBUQUERQUE: “Decisivo não é nunca o atingir de posições jurídicas subjetivas materiais. Tratase, como sempre sucedeu desde Roma, de uma ilicitude baseada na violação de posições e deveres processuais que, a serem atingidos, geram de imediato uma ilicitude sancionável independentemente da existência ou lesão de qualquer ilícito de direito substantivo”, 2006, p.52. 94 MENEZES CORDEIRO, Litigância, 2011, p.60. 93
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relação um contrato de arrendamento; etc. Conforme destacamos, a inexistência de resultado não obsta a condenação da parte, inclusive na situação desta desistir da ação, conforme o acórdão a seguir: STJ 20/03/2014 I A desistência do pedido não obsta à condenação da parte como litigante de má fé. II A lide temerária pode ser hoje sancionada como litigância de má fé visto que, desde a revisão de 1995/1996 do Código de Processo Civil (artigo 456.º do C.P.C./61), passou a ser possível a condenação como litigante de má fé do litigante que agiu com negligência grave. (Processo 1063/11.9TVLSB.L1.S1).
Embora o instituto tenha relevo teórico, sendo o mais desenvolvido no CPC, quanto à obstar as condutas processuais disfuncionais, na prática não tem apresentado boa aplicação. Por um lado, os requisitos do dolo ou negligência grave são muito rigorosos. Noutro, as condenações pelo instituto tem caráter unicamente compensatório, quanto deveriam ser indenizatório. Tomemos por exemplo a justiça no Brasil. Atualmente, uma ação dura em média quatro anos. Se o autor intenta ação com intuito único que prejudicar o réu, este passará os próximos quatro anos sofrendo com a angústia de poder vir a ser condenado. Ao passo que o autor, exercerdo seu direito de ação, fará mal uso do processo e, ao fim, caso perca, pagará somente as custas e honorários do réu e, se vier a ser condenado por má fé, será sancionado com multa e indenização com base no valor das custas processuais, sendo geralmente um valor irrisório. As mudanças evolutivas que ocorreram ao longo dos tempos com o abuso devem agora atingir a litigância de má fé e o principal ator nesse processo é o juiz. Atualmente, sua aplicação é restritiva e se mostra cada vez menos frequente na praxis judiciária, sendo talvez por isso, que o abuso do direito de ação tem relevado como uma nova forma de impedir os atos abusivos(infudados, protelatórios, etc.).
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3 O abuso do direito de ação e a litigância de má fé: comparativo entre os institutos. A partir do que já traçamos durante este estudo, podemos agora comparar os institutos que nos propusemos a estudar. Já dissemos que, apesar das semelhanças, estes não se confundem. Contudo, já se confundiram. No período anterior à vigência do Código Civil de Vaz Serra(1966), o abuso do direito ainda não tinha previsão legal, não obstante a doutrina e jurisprudência já apresentarem aversão ao direito subjetivo absoluto. Nesse momento, o abuso que consistia no exercício do direito com intenção maliciosa se confundia com a litigância de má fé95, até a entrada em vigor do referido código, onde os estudos são direcionados em sentido oposto. É certo que hoje essa confusão é superada. O abuso do direito, conforme vimos, é um instituto privado de conceito indeterminado, mas presente em todo o direito, surgindo sempre que uma atuação seja contrária ao sistema, nomeadamente da boa fé, consagrada pelos princípios da tutela da confiança e da materialidade subjacente, tendo sua previsão legal no art.334 do CC/PT e no art.187 do CC/BR. Independe de culpa, ou seja, para se materializar basta uma análise objetiva da atuação do sujeito de direito. Ademais, é requisito a existência de dano, qual seja, o investimento de confiança e outros. Além disso, opera oficiosamente, desde que dentro do pedido da ação96. Quanto às consequências do ato abusivo, buscase, imediatamente, a cessação da conduta abusiva e a manutenção da posição jurídica. E mediatamente o 95
COSTA E SILVA, 2008, p.618619. MENEZES CORDEIRO, Litigância… , 2011, p.190191.
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dever de restituir, seja em espécie ou equivalente, e o dever de indenizar, quando houver dano. Em sentido oposto, temse a litigância de má fé que consiste num instituto de direito público, no âmbito do processo, que surge como ferramenta para policiar o processo, nomeadamente, na atuação das partes. Por ter natureza pública, seu conhecimento é oficioso, podendo o ser a qualquer momento no processo. Sua base legal, os artigos 542 a 545 e 16 a 18 dos Códigos de Processo Civil Português e brasileiro, impõe um rol exaustivo, limitando a aplicação do instituto somente naquelas situações, além de requisitar a existência de dolo ou negligência grave. Por outro lado, dispensa a existência de danos, bastando a conduta do sujeito processual. A litigância de má fé tem como consequência uma sanção penal que consistirá numa multa. Com base no que vimos, esta já se faz presente desde o tempo das Ordenações, porém, já que a lei impõe que o quantum sancionatório tem como base nas custas, geralmente os valores são insignificantes, o que não intimida a parte maliciosa a deixar de agir com intenção diversa daquela que se espera. Além, há a sanção civil que consiste na indenização, todavia, esta depende do pedido do lesado(no caso do ordenamento Português). No Brasil, esta pode ser reconhecida de ofício. Nesse sentido, extraímos que, apesar da litigância ser limitada pelos motivos já expostos, o abuso do direito complementa e engloba as situações que não recaiam na incidência do instituto, seja pela ausência do elemento subjetivo ou por não coincidir com alguma das hipóteses do arts. 542 ou 17. Conclusões
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Tendo vista toda a abordagem feita e o alcance do espaço que nos fora permitido, cumprenos agora concluir este estudo, fazendoo por meio de um apanhado geral da matéria e o nosso ponto de vista. Primeiramente, insta destacar a importância do abuso do direito. Este instituto determina a relativização dos direitos subjetivos, antes absolutos, a partir da constatação da disfuncionalidade perante valores éticos, sociais e morais. Hoje está consagrado nos mais variados ordenamentos, alguns com mais preponderância que outros. Sua evolução mais recente deve ser creditada aos ordenamentos que desenvolveram e aplicam até os dias atuais os comportamentos típicos abusivos, a exemplo da Alemanha, que tem forte influência no sistema romanogermânico, e Portugal, que viu na sua doutrina e jurisprudência o alargamento do instituto. O quadro de comportamentos típicos e a sua sistematização com base no princípio da boa fé serve como uma “válvula de escape”, termo tão utilizado nos debates do Curso de Mestrado. Isso significa que, onde a lei não prever uma determinada situação, caberá ali uma sindicância pautada na boa fé, admitindo ou reprimindo o ato jurídico. Nesse sentido, o direito mantém o equilíbrio nas relações sociais. Em relação ao Brasil, apesar da recente inclusão legal do abuso, sua utilização já é antiga, desde o CC/1916 quando já se fazia uma aplicação contrario sensu . O dispositivo influenciado pelo art.334 do CC/PT apresenta os mesmo limites, embora a interpretação seja distinta. O ordenamento Português prioriza a boa fé, ao passo que o Brasileiro dá maior atenção à função social do direito.
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Independente disso, os requisitos são praticamente os mesmo, surgindo o abuso da violação aos limites impostos, quais sejam, a boa fé, os bons costumes, o fim econômico e o social. No que pese ao direito de ação, ao nosso ver, este deve ter sua aplicação ampliada. A litigância de má fé é um instituto obsoleto. Sua aplicação é escassa e já ficou demonstrada a ineficiência. Por um lado sua limitação legal dificulta a aplicação de uma sanção pelo julgador. O campo processual é cenário de atuação, onde as partes e procuradores perseguem mais do que a verdade, a vitória. Para tanto, irão mentir, difamar e fazer mal uso do processo. Isso é uma cultura que não se muda. O que deve mudar é o instituto. Por outro lado, os julgadores são inertes em aplicar uma multa que resulte numa verdadeira sanção, o que dificulta num bom resultado. Por estes motivos, o abuso do direito deve ser ampliado, tendo em vista que aí não há limite de condutas ou necessidade de culpa, pelo contrário, basta a violação dos limites ou cláusulas gerais, o que seria mais fácil de demonstrar. Diferenças à parte, ambos podem incidir no processo como meio para impedir a prática processual inútil e protelatória. Ainda mais num cenário como o atual, em que ambos os Poderes Judiciários sofrem com a imensidão de ações, o que resulta na prestação ineficaz e morosa da Justiça.
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