O acordo para a desigualdade

June 8, 2017 | Autor: João Pedro Dias | Categoria: Brexit
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O acordo para a desigualdade João Pedro Simões Dias – 2016.02.23

A última semana ficou marcada, no plano europeu, pela celebração do acordo entre a União Europeia e o Reino Unido que, à partida, garantirá o empenho oficial do governo de Londres a favor da manutenção do Reino na União no referendo já agendado para o próximo dia 23 de Junho. Foi um acordo que veio institucionalizar, em letra de forma, a desigualdade entre os Estados membros da União e lançá-la num caminho que se antevê recheado de dúvidas, dificuldades e definitivamente apartado de qualquer caminho de aprofundamento da sua união política. Este episódio recordou-me um outro acontecido há 50 anos, quando a União ainda era uma Comunidade composta por 6 Estados. Centremo-nos e recordemos o que aconteceu há 50 anos antes de nos focarmos no que sucedeu na passada semana. I Corria o ano de 1965 quando se desenrolou uma assinalável e importante crise no plano comunitário que se arrastou por seis longos meses e afectou de sobremaneira o funcionamento normal das Comunidades Europeias. Um dos elementos que justificaram a referida crise, foi a política europeia do general De Gaulle. Partidário acérrimo de uma Europa de pendor predominantemente intergovernamental, estruturada em torno de instituições clássicas e não supraestaduais, o velho general não poderia subscrever a alteração do procedimento deliberativo no seio do Conselho que permitiria que este passasse a deliberar ordinariamente por maioria qualificada e não por unanimi-

dade, o que significaria mais um passo decisivo para a qualificação das Comunidades Europeias como organizações claramente supraestaduais; nem poderia aceitar o desejo de o colégio de Comissários de Bruxelas ver as suas competências acrescidas em desfavor do Conselho que era a instituição onde estavam representados os Estados membros e que era suposto que defendesse os interesses desses mesmos Estados. Por isso, na reunião do Conselho que decorreu em Bruxelas a 30 de Junho de 1965 e que, concomitantemente, servia para encerrar o semestre de presidência francesa do Conselho, quando se discutiam os regulamentos que permitiriam o financiamento da política agrícola comum pelo FEOGA e em face de profundas divergências constatadas entre as posições de alguns Estados membros e da própria Comissão, e quando era suposto que a reunião fosse prolongada pela madrugada do dia seguinte, para surpresa geral de todos os presentes, chegada a meia-noite, coincidindo com o termo da presidência francesa do Conselho, o Ministro francês que presidia aos trabalhos constatou o desacordo exis tente no seio do Conselho e, a pretexto do termo das suas funções de Presidente da instituição, declarou encerrados os trabalhos e retirou-se da sala. A partir deste momento, e até final de 1965, a França deixou de comparecer às reuniões do Conselho. Oficialmente não se retirou das Comunidades. Tão-pouco obstaculizou ao funcionamento mínimo do Conselho dado que nunca se opôs a que o mesmo deliberasse por escrito quando tal se mostrava possível. Mas deixou a sua cadeira vazia — donde a designação deste período como da chaise vide — nas reuniões do Conselho, criando um clima que fez pairar as mais negras nuvens de dúvida e incerteza sobre o futuro comunitário. A pretexto da situação então criada, e na sequência da mesma, logo o governo de Paris aproveitou a oportunidade para estabelecer um conjunto complementar de exigências que não tinham a ver, unica-

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mente, com a questão agrícola que se discutia quando o seu representante abandonou a reunião do Conselho — que ia mais longe e chegava a pôr em causa alguns princípios gerais do funcionamento das próprias Comunidades que se encontravam expressos nos próprios Tratados fundacionais. A solução para esta crise apareceu em Janeiro de 1966 na sequência da reunião que o Conselho realizou entre os dias 28 e 29 de Janeiro. No documento em causa (os chamados “Acordos do Luxemburgo” por terem sido obtidos no Palácio do Luxemburgo em Paris) escreveu-se que: «§1. Sempre que no caso de decisões susceptíveis de serem tomadas por maioria, sob proposta da Comissão, interesses muito importantes de um ou vários Estados membros estejam em causa, os membros do Conselho esforçar-se-ão num prazo razoável por chegar a soluções que possam ser adoptadas por todos os membros do Conselho no respeito dos seus interesses mútuos e dos da Comunidade, na conformidade do artigo 2 do Tratado. §2. Em relação ao parágrafo precedente, a delegação francesa considera que, quando se trate de interesses muito importantes a discussão deverá prosseguir até que se chegue a um acordo unânime. §3. As seis delegações registam que uma divergência subsiste sobre o que se deverá fazer quando não se alcance uma completa conciliação. §4. As seis delegações consideram, no entanto, que tal divergência não impede que se retomem, segundo o procedimento normal, os trabalhos da Comunidade». Quanto ao conteúdo do Acordo, não é por acaso que frequentemente o mesmo é qualificado como um “Acordo para discordar”. De facto, e como resulta do conteúdo do texto transcrito, a crise de 1965 apenas se poderá considerar parcialmente resolvida com o Acordo de Janeiro de 1966. Ou seja, os Acordos do Luxemburgo limitavam-se a 3

prever que sempre que houvesse de ser tomada pelo Conselho uma qualquer deliberação por maioria, capaz de afectar um interesse importante de um Estado membro, todos os Estados comunitários se comprometiam a buscar uma solução capaz de ser aceite por todos os Estados membros – o que significava acolher a noção de “interesse vital” dos Estados membros; sempre que um Estado entendesse que estava em causa um seu interesse vital, as deliberações no seio do Conselho deveriam ser tomadas por unanimidade e não por maioria, como previam os Tratados. Reconheciam, porém, e faziamno expressamente, que subsistiam divergências sobre aquilo que deveria ser feito quando uma tal solução, capaz de ser aceite por todos, se mostrasse inviável ou inalcançável. Como consequência duma crise incidental, alterava-se uma regra estrutural das Comunidades Europeias. As crises incidentais, às vezes, provocam destas consequências. O caso ora ocorrido com o Reino Unido é outro exemplo deste tipo de situações.

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