O Acre como caricatura: imagens e imaginações no início do século XX através das charges

May 27, 2017 | Autor: F. da Silva | Categoria: Acre, Caricatura, Desterro
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O Acre como caricatura: imagens e imaginações no início do século XX através das charges

Francisco Bento da Silva Doutorando em História Universidade Federal do Paraná - UFPR 1 – Introdução

O final do século XIX e os anos iniciais do século XX foram bastante agitados na capital da infante República brasileira. A cidade do Rio de Janeiro foi sacudida por revoltas das mais variadas: de cunho popular, de caráter militar, de opositores políticos civis do governo e até de monarquistas. Em todos esses momentos, os presidentes estabelecidos buscaram reprimir e punir os revoltosos com medidas judiciais e políticas. No primeiro caso, fazia se uso do Código Penal (FARIA, 1913) com punição pelos crimes Contra a constituição da República e sua forma de governo (artigo 107), cuja pena máxima era o banimento do país; Sedição e ajuntamento ilícito (artigos 118 a 123), com penas que variavam entre três meses e quatro anos; e, Conspiração (artigos 115 a 117), com penas entre um e seis anos de reclusão; Para o segundo caso, fazia-se uso da Constituição Federal. Esta dava aos poderes legislativo e executivo federais, juntos ou separados, atribuição para que instaurassem o estado de sítio. Isso significava que o Estado podia usar poderes especiais para suspender as garantias constitucionais e reprimir com extremo rigor atos de “comoção intestina” (artigo 80) que pusessem em perigo a ordem estabelecida ou a existência da República. Decretado o estado de sítio, o presidente poderia desterrar os envolvidos em distúrbios para outros pontos do território nacional, se brasileiros; os deportá-los, se estrangeiros. No primeiro caso, tem-se uma punição jurídica para determinados tipos de crime. No segundo, há uma punição essencialmente política para atos de natureza política, mas que também poderiam se enquadrar como crimes em alguns dos artigos do Código Penal. Então, qual seria a diferença entre usar a Constituição Federal e o Código Penal? Decretar estado de sítio e desterrar os indesejáveis do momento eram medidas muito mais céleres do que adentrar ao mundo jurídico e suas idiossincrasias. Além do mais, as penas jurídicas eram de natureza leve e com os recursos possíveis, os condenados logo estavam de volta às ruas da cidade. Tirar essas pessoas de cena, expulsá-las da capital federal era geralmente uma medida mais eficaz para o governo, pois além de resolver questões de ordem política podia também aproveitar para se livrar de problemas de ordem social como aconteceu em fins de 1904 após

ser debelada a chamada Revolta da Vacina (SEVCENKO, 1984; CARVALHO, 2004; PEREIRA, 2002). Essa revolta teve como estopim a divulgação de um projeto que regulamentava a lei1 que tornava obrigatória a vacinação antivariólica em massa da população da cidade do Rio de Janeiro (PEREIRA, op. cit.). Ao ocorrerem os primeiros distúrbios, de pronto o Governo Federal decretou estado de sítio, sufocou os vários focos de revolta e prendeu milhares de pessoas. Parte dessas pessoas foi desterrada para o Acre, Território Federal incorporado formalmente ao Brasil um ano antes e tornado uma espécie de Sibéria tropical para os indesejados da República na primeira década do século XX. Na época, diversos jornais e revistas satíricas da capital federal retrataram esses desterros em textos e em charges. No caso das iconografias, além de remeterem às expulsões elas também trazem um conjunto de representações e estereótipos acerca do Acre. São essas questões que passarei a analisar na sequência, a partir da seleção de algumas dessas imagens da época.

2 – O Acre como a Sibéria dos trópicos

A primeira dessas charges (figura 01) que tomo como foco analítico foi publicada no final de abril de 1904, no Jornal do Brasil. No desenho de Raul Pederneiras, dois homens com aspectos que procuram apontar para suas condições de eruditos, olham o globo terrestre de maneira professoral e fazem uma análise de geografia política. Um deles indaga onde seria a “Sibéria” brasileira e de pronto o outro responde com uma certeza que não deixa margem para dúvidas: “Que pergunta! No Acre...”. Essa associação por semelhança com a região russa não era gratuita e carregava um conjunto de preconceitos e estereótipos, que naquele momento, são explicitados via imprensa. O historiador Mark Bassin em um artigo interessante e revelador, discute como em fins do XVIII e ao longo do século XIX se construiu a imagem da Sibéria russa como uma região distante, “vazia”, habitada por bárbaros incultos, descolada da “nacionalidade e dos valores russos” e local privilegiado de internação forçada dos inimigos do regime czarista (BASSIN, 1991). Uma das explicações para essa associação entre o Acre e a Sibéria asiática, se deu exatamente pela constante utilização daquela região pelo poder imperial russo como desaguadouro de inimigos políticos e indesejados sociais de São Petersburgo. Aos poucos, a Sibéria vai se transformando em sinônimo e adjetivo para degredo e desterro e, tal olhar transcende as fronteiras russas. No Brasil do início do século XX, é atribuído ao Acre aquelas mesmas características nos olhares de muitas pessoas influentes da República, pois é “através da analogia que o exótico se torna inteligível, domesticado” (BURKE, 2004, p. 154). Associa-

se ao Acre a ideia de um lugar distante, de difícil acesso, com doenças mortíferas, selva cheia de perigos, espaço quase vazio, povoado por índios “bárbaros” e lugar considerado sem lei e sem história. Ou seja, o território havia sido incorporado ao Brasil fazia pouco tempo e a presença do Estado nacional não tinha ainda dotado o lugar com sua burocracia legal. Além do mais, era uma terra “sem história” porque não tinha um passado vinculado à pátria brasileira. Ou em sentido mais restrito, não pertencia de fato à “tradição histórica” da unidade nacional e ainda não estava “dominada” pelo Homem (CUNHA, 2000). Nos dizeres de um sociólogo contemporâneo, no Acre “pode se dizer que a maioria da população está fora da lei e do governo. O poder público e disciplina política é como se não existissem, estão praticamente abolidos” (OLIVEIRA VIANA, 1946, p. 149).

Figura 01: Jornal do Brasil. Geographia política, ano XIII, nº 334, 29/11/1904, p. 01. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - FBN.

Essa terra tida como “virginal”, pouco conhecida e povoada, onde abundavam seringueiras nativas das quais se extraía a cobiçada borracha natural, torna-se aos olhos de muitos na capital republicana, o endereço privilegiado para receber os desterrados da Revolta

da Vacina, como de fato ocorreu. Um local visto como o mais adequado para internar forçadamente os indesejados e excluídos da República e da sua capital, que se “modernizava” e se “civilizava” a partir dos cânones da Belle èpoque (BENCHIMOL 1990; MENEZES, 1996; NEEDELL, 1993). O Acre seria uma espécie de oposto do que era o Rio de Janeiro, uma espécie de “anti-mundo” da modernidade e da civilização. Essas imagens em oposição não são simples invenções, são exemplos de como se constroem percepções exageradas, distorcidas e estereotipadas acerca de determinados lugares e pessoas.

3 – Quem foi para o Acre? A próxima charge (figura 02) retrata de forma alegórica uma, entre centenas, daquelas pessoas que foram expulsas para o Acre nos porões de um dos cinco navios fretados pelo Governo Federal em fins de 19042. Porém, o mais importante para a discussão em tela é a frase que o desenhista Raul Pederneiras coloca como sendo o comentário, em tom meio arrependido, do desterrado conduzido displicentemente por um guarda da Força Policial do Distrito Federal.

Figura 02: Gazeta de Notícias. Para o Acre, nº 331, 26/11/1904, p. 01. Acervo da FBN.

Outra vez, a “fala” de uma das personagens retratadas aponta caminhos para discutir algumas questões interessantes. A frase “noutra é que não caio... senão quando for senador ou deputado” indica que ocorreram — ou que poderiam ocorrer — tratamentos diferenciados às pessoas acusadas de envolvimento naquela revolta. Isso dependeria então da inserção social e política do indivíduo, o que definiria se ele seria desterrado ou não para o Acre. O lamento expresso na fala, as mão no bolso indicando certa apatia e aceitação bem como o tipo de roupa e aspectos físicos, apontam para a representação de um homem comum sendo conduzido por um policial para embarcar em um navio com destino ao Acre. Essa cena se repetiu de fato com centenas de pessoas, todas tidas pelo chefe de polícia do Distrito Federal, Antônio Cardoso de Castro, como criminosos irrecuperáveis, sujeitos pertencentes às chamadas “classes perigosas”, e que infestavam a cidade causando preocupações constantes nas autoridades policiais da capital (CASTRO, 1905). Diante de tal quadro, o Governo Federal utilizou o estado de sítio para desterrar pessoas que em muitos casos não tiveram envolvimento nenhum com a Revolta da Vacina. Parte dessas pessoas era de prisioneiros da Casa de Detenção; outras eram aquelas que viviam pela região central da cidade sobrevivendo de subempregos, biscates e até mesmo de atividades consideradas ilegais ou que atentavam a moral (jogos de azar, prostituição, esmolas, golpes); por fim, existem relatos do desterro de operários de algumas fábricas acusados de envolvimento nas badernas de outubro de 1904 e de outros sujeitos que efetivamente se envolveram em ações contra as forças policiais, depredação de prédios, obras públicas e de alguns comércios do centro da cidade. Contudo, o que predominou foi a generalização de que todos eram criminosos, como se isso fosse motivo suficiente para os desterros, como expressa a o editorial da revista O Malho a dizer que “valia a pena um estado de sítio de vez em quando, só para se poder exportar livremente, sem peias, essa onda de lama que invade as nossas cidades”3. A tese do governo foi de que essas pessoas marginalizadas foram usadas politicamente por gente importante e com interesses em desestabilizar o governo. Ou seja, afirmou-se com ênfase que a revolta contra a vacina era na verdade contra o governo e que as pessoas das classes subalternas foram manipuladas para reforçar a trama. Vejamos o que diz ainda a matéria do jornal O Paiz: Sob o comando de exaltados anonymos, insuflados pelos diretores de uma revolta que não se justifica (...) dominados por falsas sugestões geradas em cérebros doentios e transmitidas em cérebros

desequilibrados, onde facilmente se aninharam as mais tolas idéias. Pobre gente explorada, instrumento inconsciente de um grande mal4. Outro periódico segue nessa mesma direção explicativa ao publicar uma matéria que dizia: “o Chefe de Polícia affirma que tantos os malfeitores, como os desordeiros, como o mulherio, como os ébrios, obedeciam, evidentemente, um ‘plano da maldade’, cumprindo estrictamente as ordens recebidas”5. Mas quem seriam os cabeças, a vanguarda “ilustrada” a liderar essa gente “inconsciente” para propósitos do qual não eram portadores e nem compreenderiam?

Figura 03: O Malho. Boa resolução, anno III, nº 116, 03/12/1904, p. 31. Acervo da FBN.

O governo prendeu políticos, militares, representantes operários e jornalistas acusando-os de líderes dos distúrbios. Porém, o tratamento dados a eles foi bastante diferente: nenhum deles foi desterrado para o Acre como punição. Entre eles estavam os deputados Alfredo Varela e Barbosa Lima, este último também militar; senador e militar Lauro Sodré; major Gomes e Castro e general Olympio da Silveira; jornalistas Edmundo Bittencourt (Correio da Manhã) e João Pompílio Dias (Commercio do Brazil); Vicente de Souza, presidente de um sindicato operário; o monarquista Visconde de Ouro Preto, entre outros. Foram presos, ouvidos em segredo de justiça, processados de acordo com as normas jurídicas vigentes e no ano seguinte todos foram anistiados pelo Congresso Nacional e a lei sancionada pelo presidente Rodrigues Alves6. Nenhum deles precisou, como tantos outros anônimos, “seguir para o Acre”. Isso seria uma punição considerada deveras pesada para pessoas importantes e de certa forma influentes na sociedade carioca de então. Por isso, o desterro coube apenas a determinadas categorias de múltiplos indesejados sociais. A charge anterior (figura 03) procura retratar, através de estereótipos sedimentados há bastante tempo, mestiços e negros como sendo a composição básica dos revoltosos miúdos, malandros que deveriam ser expulsos para o Acre. Isso diz muito sobre os preconceitos de cor e a associação do negro ou mestiço como sendo invariavelmente vinculados às chamadas “classes perigosas”. Entre essas chamadas classes perigosas, estavam os grupos de capoeiras. A atividade era considerada crime (artigo 399) e os praticantes perseguidos pela polícia. Uma das personagens da charge é claramente mostrada como sendo um capoerista, através de pretensa identidade uniforme construída sobre ele. De acordo com as representações da época, ele usa lenço no pescoço, calça sapato bicolor, porta uma bengala, tem cabeleira volumosa e carapinha, veste paletó-saco com camiseta justa por baixo, calças folgadas e deveria portar uma navalha que trazia escondida na cintura (MORAIS FILHO, s.d.). No diálogo, ambos mais uma vez expressam impressões sobre o Acre a partir das concepções do autor da charge e do veículo de comunicação. Um comemora não ter sido desterrado, pois considera que o “tal Acre não é brinquedo”. O outro, pelo contrário, pretende se “apresentá” à polícia e seguir viagem e se juntar aos seus “companhêros” para experimentarem o “negócio da borracha”. Aí, se reproduz o discurso do governo, que atestava terem os desterrados embarcados para o Acre para trabalharem como seringueiros nas selvas ocidentais da Amazônia. Por fim, a parte final do fictício diálogo expressa a idéia de que esses revoltosos tinham sido arregimentados a soldo pelos líderes políticos da revolta, como se fossem mercenários.

Para encerrar essa breve exposição, minha idéia foi mostrar que imagens, mesmo sarcásticas e humorísticas, podem ser utilizadas como evidências históricas. Ou seja, podem ser indícios importantes para a compreensão de determinados acontecimentos ou concepções de mundo sedimentadas em determinadas épocas e lugares. No caso do Acre, serviram para reforçar concepções negativas acerca da sua inserção como território brasileiro e também sobre a cultura local e os tipos de gente que habitavam um espaço geográfico que até meados de 1903 pertencia oficialmente a Bolívia. A imagem da Sibéria que se associa às terras acreanas buscava tornar aquele “deserto ocidental” como local mais indicado para que a República descartasse aqueles considerados como indesejados sociais. 1

A minuta da regulamentação foi publicada no jornal A Notícia no dia 09 de novembro. No dia seguinte, outros jornais também publicaram o mesmo texto e no fim da tarde, já ocorriam os primeiros protestos no centro da cidade contra a obrigatoriedade da vacina. Cf.: PEREIRA, L. A. M. op. cit. 2 Atualmente estou finalizando minha tese de doutoramento em que discuto mais detalhadamente os desterros para o Acre após o fim das revoltas da vacina (1904) e da chibata (1910). O título do trabalho é: Acre, a pátria dos proscritos: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910. 3 O MALHO. Caftens fichados pela polícia, ano II, nº 116, 03/12/1904, p. 15. Acervo da FBN. 4 O PAIZ. Porto Arthur, ano XXI, nº 7.345, 17/11/1904, p. 02. Acervo da FBN. 5 O ESTADO DE SÃO PAULO. O relatório, ano XXX, nº 9.524, 30/12/1904, p. 01. Acervo da FBN. 6 Ver: JORNAL DO COMMERCIO. [Coluna Gazetilhas], ano 85, nº 246, 04/09/1905, p. 02. Acervo da FBN.

4- Referências BASSIN, Mark. Inventing Siberia: visions of the Russian East in the Early Nineteenth Century. American Historical Review, vol. 96, nº 03, pp. 763-794, june, 1991. BENCHIMOL, J. L. Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Coleção Biblioteca Carioca. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura, 1990. CARVALHO, J. M. Os bestializados da República: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CASTRO, A. A. C. Relatório do Chefe de Polícia do Distrito Federal (1905). Anexo G. In BRAZIL. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Relatório apresentado ao presidente dos Estados Unidos do Brazil pelo ministro Dr. J. J. Seabra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, março de 1905. Disponível em , acesso em 20 dez. 2008. BURKE, P. Testemunha ocular: história e imagem. Tradução de Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004. CUNHA, E. Um paraíso perdido: reunião de ensaios amazônicos. Brasília: Senado Federal, 2000. FARIA, A. B. Annotações theorico-práticas ao Código Penal do Brazil. Volumes I e II, 02ª edição, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1913.

MENEZES, L. M. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade – protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890/1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996. MORAIS FILHO, J. A. M. Festas e tradições populares do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. NEEDELL, J. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. OLIVEIRA VIANA, F. Pequenos estudos de psychologia social. 03ª edição, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1942. PEREIRA, L. A. M. As barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da primeira República. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002. SEVCENKO, N. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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