O Acre em cena: a questão Brasil-Bolívia nas páginas de humor da revista O Malho 1

May 24, 2017 | Autor: F. da Silva | Categoria: Amazonia, Bolivia, Humor Studies, Charges
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O Acre em cena: a questão Brasil-Bolívia nas páginas de humor da revista O Malho1 Francisco Bento da Silva Doutor em História Universidade Federal do Acre – Brasil e-mail: [email protected]

Resumo: O atual estado do Acre, unidade federativa brasileira situada na Amazônia sulocidental, foi alvo de disputa territorial entre dois países em fins dos séculos XIX e inicio do XX: Brasil e Bolívia. Legalmente o Brasil reconhecia a região de parte do atual território do Acre como boliviano desde o Tratado de Ayacucho celebrado em 1867 entre as duas nações. Contudo, a região vai sendo ocupada majoritariamente por brasileiros que exploram fundamentalmente a borracha natural nos vastos seringais que vão sendo abertos em diversos territórios indígenas. Em fins do século XIX a Bolívia intenta ocupar formalmente a região e fazer valer sua soberania e domínio, algo que desagrada os seringalistas que exploravam o látex na região, preocupados em muito com os impostos e taxas que a republica andina iria cobrar a partir da chegada das suas autoridades fiscais e administrativa. De pronto, movimentos armados são formados tendo na linha de frente seringueiros conduzidos por seringalistas e outros proprietários da região. O primeiro conflito ocorre em 1899, liderado por José de Carvalho, que ele próprio denomina de Primeira Revolução Acreana. Logo em seguida, o espanhol Luiz Galvez lidera um movimento em que proclama em 14 de julho de 1899 o Estado Independente do Acre. Em todos esses eventos o Brasil fica favorável e respeita os direitos bolivianos sobre o Acre. Contudo, em 1902 iniciam-se novamente os conflitos armados da chamada ultima fase da “Revolução Acreana” que termina em 1903 com o Brasil intervindo militarmente na região e ocupando-a até que se resolvesse a disputa pelas vias diplomática. Algo que redunda na assinatura do Tratado de Petrópolis em 17 de novembro de 1903, quando a Bolívia cede formalmente o Acre ao Brasil em troca de compensações financeiras, territoriais e a promessa da construção da Ferrovia Madeira-Mamoré. É diante dessa questão que pretendemos discutir alguns aspectos relacionados às disputas e o desfecho do supracitado acordo. Iremos trabalhar fundamentalmente com o uso de charges e crônicas publicadas nas páginas da revista humorística O Malho, que lidou de maneira cômica, burlesca, depreciativa e com menoscabo acerca do assunto. De maneira geral, a região acreana é simbolizada como local de morte, isolado, distante, bárbaro, doentio e insalubre. Os objetivos que pretendemos abordar neste artigo são: Mostrar que havia uma visão pejorativa e negativa sobre o Acre e que é reforçada após 1903 quando ele é incorporado ao Brasil; Discutir de onde provinham tais representações e quem as irradiava; Apontar para questões de ordem simbólica e material como alicerces desse tipo de pensamento; Realçar como esse imaginário e discursos se mostraram duradouros e presentes ainda nos dias de hoje. Temos como referencial teórico as discussões sobre representações de Roger Chartier, questões de gênero e colonialidade em Anne McClintock e Franz Fanon e trabalhos que abordam os aspectos teóricos e metodológicos do uso de charges, tais como obras de Luiz Teixeira, Elias Saliba e Marcos Silva. Palavras-chave: Acre. Bolívia. Charges. Humor. Representações.

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Artigo apresentado em forma de comunicação oral no X Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazonia Ocidental (http://www.simposioufac.com/), realizado em novembro de 2016 na Universidade Federal do Acre – UFAC.

Introdução A “questão” acreana, como a imprensa falava à época, ganhou as páginas da imprensa no início do século XX. Seja no Brasil, na Bolívia, nos demais países do continente sul-americano e nos centros financeiros e industriais dos EUA e da Europa. A evidência seu deu pela importância que a região acreana adquiriu desde os últimos anos do XIX em função da larga produção de borracha natural extraída das florestas por caboclos, indígenas e outros migrantes. Esse produto era então uma importante matéria prima e base da economia de origem colonial que o Brasil e demais vizinhos da panamazônia dispunham para oferecer para as emergentes indústrias dos países centrais. Com as querelas diplomáticas e bélicas envolvendo brasileiros, bolivianos e peruanos pela região acreana na virada do XIX e primeiros anos do século seguinte, a elite política da Republica brasileira e os periódicos das suas principais cidades não tem como manter silencio sobre o que vinha ocorrendo no Acre. O tom das narrativas oficiais, discursos de seringalistas, comerciantes principalmente de Manaus e Belém, jornalistas da capital federal e demais vozes transitam dos tons patrióticos, passando pela questão econômica, militar e de segurança de fronteiras até ao jocoso, carregado de ironias e estereótipos. Neste artigo iremos privilegiar estas ultimas significações construídas e reverberadas através de diversas iconografias no periódico humorístico O Malho, que circulou na cidade do Rio de Janeiro em sua primeira fase entre os anos de 1902 e 1930. Para esta abordagem, selecionamos quinze charges que circularam entre os meses de fevereiro a dezembro de 1903 fazendo referencias às disputam pela região acreana, os embates diplomáticos entre Bolívia, Brasil e EUA – através de Bolivian Syndicate2 – e as discussões no Congresso brasileiro e autoridades do executivo sobre a aquisição do Acre como parte do território nacional. Esse período marca o fim da chamada “Revolução acreana” em 24 de janeiro de 1903 e a ocupação do território litigioso pelas tropas brasileiras por ordem do ministro das relações exteriores, Barão do Rio Branco, até a definição de um acordo definitivo que resolvesse a “questão acreana”. Esse modus vivendi estabelecido formalmente em La Paz no dia 21 de março de 1903, 2

Foi uma companhia colonial criada em Londres no ano de 1901, mas o seu capital era majoritariamente de investidores norte-americanos. Por isso o Bolivian Syndicate vai estar identificado com os interesses norte-americanos na região acreana. O intuito da Bolívia era arrendar com fins comerciais a região para esta companhia por um período de 30 anos, o que fez aflorar uma intensa oposição do Brasil e de brasileiros diante do acordo (Tocantins, 2000).

perdurou até a assinatura do Tratado de Petrópolis firmado entre o Brasil e a Bolívia em 17 de novembro de 1903 (TOCANTINS, 2000; CASSIANO RICARDO, 1954). No Brasil uma das figuras que reverberou sua opinião através da imprensa sobre a “questão” acreana foi o senador Rui Barbosa, já afamado como político e grande orador. Sua posição de defesa dos brasileiros que viviam no Acre, chamando ali de “território brasileiro do Acre”, leva o Barão do Rio Branco a convidá-lo para compor o trio de plenipotenciários3 que representaram os interesses brasileiros nas negociações bilaterais com o país andino durante a vigência do referido modus vivendi. Ele se posiciona favorável à incorporação do Acre ao Brasil com pagamento de compensação financeira mas é frontalmente contra a cessão de territórios à Bolívia, o que faz ele pedir exoneração do cargo antes da assinatura do Tratado de Petrópolis, já em outubro de 1903 (ANDRADE & LIMOEIRO, p. 107, 2003). Se tivemos artigos como os produzidos sob a pena de Rui Barbosa, sérios, patrióticos e alicerçados em bases jurídicas, tivemos também artigos e charges satíricos que transitaram no campo da ironia e da galhofa, que desconstroem determinados territórios discursivos naquele momento. Mas ao mesmo tempo, as narrativas das charges são carregadas de estereótipos, lugares comuns e preconceitos que retratam em muito determinadas visões de mundo de uma época. Segundo Teixeira (2005, p.11), a charge é algo que repassa uma reflexão mediante a um contexto social, trazendo em suas imagens e palavras um sentido de crítica com amplos significados. Ela “conta e resume histórias reais de modos e maneiras convincentemente irreais” (p. 91). As charges que vamos apresentar aqui estão carregadas de conotações de gênero, de etnia e de lugar geográfico. A charge é caracterizada por ser uma representação satírica de uma pessoa, de um acontecimento, de uma situação em evidencia numa determinada época e lugar. Assim, torna-se a crônica de um tempo, documento valioso para captar as representações coletivas, já que ela é lida socialmente pelo público leitor do periódico de acordo com o espírito do tempo. 1 – A Bolívia como mulher e a representação colonial do gênero

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Pelo lado brasileiro atuaram Barão do Rio Branco, Assis Brasil e Rui Barbosa. Pelo lado boliviano, Cláudio Pinilla e Fernando Guachalla (TOCANTINS, 2000).

Diz Anne McClintock em seu estudo sobre gênero e colonialidade que desde o período da conquista do Novo Mundo figuras femininas foram plantadas como fetiches em pontos ambíguos de contatos, nas múltiplas fronteiras que foram se estabelecendo no mundo colonial (2010, p. 47). Se tomarmos a América e as amazonas como esses fetiches inaugurais, temos também outras representações posteriores que foram criadas e reatualizadas em torno de leituras essencialistas dos gêneros feminino e masculino. Alguns dos casos que iremos aqui tratar parecem se enquadrar nessas buscas colonizadoras e imperiais de domesticação e conquista, atributos historicamente figurados no elemento masculino, patriarcal.

Charge 01: O Malho, 31 de janeiro de 1903, nº 20, p. 09.

Nesta direção analítica, temos na charge 01 (acima) uma critica que O Malho4 faz ao jornal argentino La Prensa, que teria publicado anteriormente matéria favorável à causa boliviana. Desta vez é o jornal argentino representado por uma mulher, uma portenha, que é objeto de ironia misógina de tom sexista. O jornal argentino é acusado pelo brasileiro de ser contra o Brasil, pois La Prensa assopra o vulcão do Acre, prestes a explodir, se posicionando como aliado dos adversários. A sugestão feita é que o 4

O MALHO, 31 de janeiro de 1903, nº 20, p. 09. Todas as edições deste periódico foram consultadas através do portal www.memoria.bn.br da Biblioteca Nacional.

governo brasileiro presenteie La Prensa com um objeto fálico derivado da borracha brasileira, para lhe aplacar os furores. A conotação sexual é direta, sem intermediação. Que se soma ao componente sexual sublimado: vulcão, fogo e mulher devem ser “pacificados” para que a “normalidades” nas fronteiras políticas e de gênero se restabeleçam. As duas últimas charges analisadas neste tópico, charges 02 e 03 (a seguir), fazem referencias ao acordo diplomático entre Brasil e Bolívia que começou a ser discutido em fevereiro de 1903 e se encerrou em novembro do mesmo ano. A primeira charge é de fevereiro e a segunda é de outubro. As duas trazem a mesma imagética: o Brasil é a figura masculina, representada não mais pelo índio e sim na figura do seu poderoso ministro Barão do Rio Branco. A Bolívia continua sendo mulher, figura inferior que acaba sendo superada pela figura masculina e patriarcal. Na primeira charge busca se mostrar uma relação de pretensa igualdade e de pacificação, ao se estabelecer uma divisão territorial benéfica a ambos os países5. O Brasil precisava construir uma narrativa que minorasse a perca da Bolívia, dando a atender que tal acordo seria benéfico aos dois países. E assim, talvez diminuir a barganha boliviana de compensação por abrir mão do Acre.

Charge 02: O Malho, 14 de fevereiro de 1903, nº 22, p. 05.

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O MALHO. Solução pacifica. 14 de fevereiro de 1903, nº 22, p. 05.

Charge 03: O Malho, 10 de outubro de 1903, nº 56, p. 25.

Algo que fica mais explicita na segunda charge6, publicada cerca de oito meses depois. Novamente temos um casal, Rio Branco e Bolívia, em tratativas que remetem a figura da mulher interesseira que quer tirar o máximo de vantagens do homem a quem promete se entregar se seus pedidos forem atendidos. Pensando a partir das questões levantadas por Anne McClintock temos a “típica” mulher boliviana representada e vista como “carne viva do corpo nacional desvelada e exposta ao ataque lascivo do homem colonial” (2010, p. 534), patriarcal, branco e conquistador. Os humoristas de traço chargístico apresentados aqui são fazedores de uma crítica política e de costumes com forte conotação sexual. Carregavam os preconceitos e ideologias de seu tempo. Esse humor trazia uma carga de estranhamento ao debate público quando insere “absurdos” e irrealidades que “o conduz ao território ambíguo e instável da fragmentação e impermanência” (Saliba, p. 27).

Este tipo de humor

possibilita dizer o impensável, o não dito, o que hoje chamaríamos de politicamente incorreto ao ampliar o terreno do real com outras dimensões geralmente ausentes nas narrativas ditas sérias.

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O MALHO. Idyllio, 10 de outubro de 1903, nº 56, p. 25.

2 – EUA e Brasil, os conquistadores – Barão e Tio Sam disputam a dama

Charge 04: O Malho, 24 de janeiro de 1903, nº 19, p. 01.

Em uma dessas charges que trazemos, charge 04 (acima), foi publicada em 24 de janeiro de 1903, temos a representação de uma numerosa tropa de militares brasileiros armados e montados em cavalos que seguem em direção à fronteira imaginária boliviana. Após a linha fronteiriça, temos uma mulher sozinha à frente, tendo atrás de si a figura de Tio Sam, personagem que simboliza os EUA e neste caso especifico metonímia do Bolívia Syndicate. A legenda da charge traz o seguinte texto: “os arreganhos da Bolívia denotam que ela tem as costas quentes”7. Ou seja, temos a sátira de uma situação vista como absurda: uma mulher petulante que enfrenta sozinha o Brasil com sua tropa de muitos homens, porque manipulada por outro homem e porque intrinsecamente o gênero feminino não é portador de autonomia e visto como privado de motivação histórica. A ironia e o preconceito não deixam de ser contra a elite política e econômica que governava a Bolívia, composta de pessoas do meio militar e do grande latifúndio agro-extrativista, os chamados tierra tenientes (Mesa et alli, 2003). Continuando na metáfora militar-sexual e lembrando o texto de Fanon (1995, p, 27), A Argélia se desvela, temos então os brasileiros conquistadores se dirigindo para 7

O MALHO, 24 de janeiro de 1903, nº 19, p. 01

penetrarem em um território que não era seus de direito, mas já ocupado, aberto e desprotegido para o domínio colonial como fato e de gênero como metáfora.

Charge 05: O Malho, 07 de fevereiro de 1903, nº 21, p. 03

Na charge 05 (acima), aparece de maneira direta a relação de gênero estabelecida na representação dos três países mostrados na cena construída pelo desenhista: Brasil e EUA são os homens, e a Bolívia uma mulher. Os três carregam seus estereótipos do “tipo nacional”: o brasileiro é um índio de cocar e vestido de penas; a mulher boliviana é uma criolla cholita em seus trajes ditos típicos, chapéu e pollera; o americano é o Tio Sam, homem branco de trajes aristocráticos – cartola e fraque – inspirados na bandeira nacional de seu país. Enquanto o Brasil está armado com canhões e navios bélicos, a Bolívia traz à mostra apenas uma pequena espada embainhada e às escondidas um revolver, que parece ter sido dado pelo Tio Sam retratado como abobalhado. A imagem sugere que a Bolívia ao estender a mão em direção ao Brasil em um ato aparentemente pacifico, quer que este se desarme para então revidar de maneira traiçoeira incentivada pelos EUA. Esta parece ser uma das leituras possíveis da cena apresentada graficamente, que traz ainda um texto do dialogo entre as três nações: diz a Bolívia “não faça caso homem, que isso foi uma piada”. Retruca o Brasil: “não faça piadas que podiam te sair muito caras”. E o surpreso Tio

Sam, diz: “por esta eu não esperava”8. Mesmo em tom de ironia, a charge é francamente favorável ao Brasil ao apresentá-lo como superior militarmente, superior como figura de gênero e superior na astúcia, no jeitinho macunaímico avant la lettre, que surpreende o metódico norte-americano de origem anglo saxônica. Lembremos que Fanon vai alertar tempos depois que no contexto colonizador “a militarização e a centralização da autoridade de um país automaticamente provocam o surgimento da autoridade do pai” (FANON, 2008, p. 127-128). Nos parece ser útil fazer tal alusão ao caso do Acre, incorporado ao Brasil como filho menor, Território Federal administrado pela União de maneira autoritária e firme (SILVA, 2012). O humor que trata das nacionalidades é algo em voga na virada do século XIX para os anos iniciais do século XX, como demonstram os trabalhos de Marcos Silva (1990) e Elias Saliba (2002). O primeiro, em sua obra aqui citada, faz uma analise da figura da personagem Zé Povo, criada pela revista Fon-Fon e reproduzida por muitos chargistas à época como figuração do brasileiro alheado da política, homem simples e pobre que servia pretensiosamente para dar vazão à uma crítica humorística da vida brasileira e seus estratos sociais. Sobre a funcionalidade da charge, diz Marco Silva: “a ocupação do espaço do humor visual (...) estabelece uma permanente comparação entre o mundo imaginário e o mundo vivido, apresentando o primeiro como instrumento privilegiado para a indagação sobre o outro e sugerindo sua recíproca pertinência” (1990, p.58). Já Saliba traz uma abordagem na parte inicial do seu trabalho sobre humor e narrativa nacional assentado nas discussões de Ernest Renan, Hommi Bhabha e Bendict Anderson. Começa apontando para algo já dito por muito humoristas, que o Brasil é um país sem graça porque as piadas já vêm prontas. Ou seja, a realidade muitas vezes soa como algo impossível, ridículo e ficcional. Isso tornaria o trabalho do humorista difícil, pois a sua criatividade seria tolhida pela antecipação do real, do vivido. A anedota não é ficção, mas verdade. Assim, “o humor seria impossível no Brasil – segundo Mendes Fradique – pela ausência de contraste ‘entre o que é e o que deverá ser’” (SALIBA, 2002, p. 33). Daí resultaria a dificuldade de se conceber uma comunidade imaginada de brasileiros e de nação de forma séria diante de tantos contraste e paradoxos (idem, p. 35).

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O MALHO. O que acontecerá na questão do Acre¿ 07 de fevereiro de 1903, nº 21, p. 03.

3 – Acre, o “mau” negócio do Brasil – a vitória de Pirro O Acre como um estorvo para a nação, lugar distante, vazio, povoado por selvagens indígenas e migrantes tumultuários se constrói fortemente na virada do século XIX para o XX, tal como a Amazônia em momentos anteriores e de maneira concomitante ao longo do século XX (Silva, 2013). Durante as discussões em torno da questão acreana, em 1903, afloraram tais estereótipos na imprensa e no parlamento brasileiro. Trazemos aqui essa vertente imagética vinculada ao que seria o sentimento de brasileiros e bolivianos, onde de maneira semelhante as autoridades dessas duas nações percebiam as diversas dificuldades em exercerem o controle de uma região marcada pelo signo do “atraso”. Como bem situa Durval M. Albuquerque Jr. (2007), “não existe região sem que se elabore em torno dela e de seus moradores uma série de conceitos que podem vir a se tornar, com o passar do tempo, preconceitos” (p. 33). Nesta direção, as figuras centrais das charges deste último tópico são o ministro Barão do Rio Branco, pelo lado brasileiro, e o general e presidente José Manuel Pando pelo lado boliviano.

Charge 06: O Malho, 31de janeiro de 1903, nº 20, p. 24.

As charges, charges 069; 0710; 0811 e 0912, lidam com o que seria a situação de Pando diante dos infortúnios enfrentados por ele e a Bolívia em terras acreanas. Temos então um general apressado em uma “partida arriscada” ao Acre (charge 06). De esporas e sem cavalo ele é um militar de cavalaria com apenas uma espada na cintura conduzindo uma tropa de improviso e sem muita dotação bélica. O retorno do Acre à Bolívia é mostrado como uma fuga carregada de desculpas e quando conveniente o Acre é a motivação da saída e não o rechaço dos militares brasileiros, conforme indicam as charges na sequência.

Charge 07: O Malho, 14 de fevereiro de 1903, nº 22, p. 08.

Em um momento (charge 08 – a seguir) a partida repentina e veloz do Acre é justificada por questões familiares inusitadas (não se despediu) e noutra (charge 07 acima) temos um Pando, comandante militar, em trajes civis – quase andrajoso – como um bisaco nas costas sustentado por uma espada quebrada indo embora porque ali na há lugar para ele – ou seja, não há espaço para os bolivianos. A representação da espada no meio militar da época estava associada à honra e bravura, arma pessoal e identidade do 9

O MALHO. A caminho do Acre, 31 de janeiro de 1903, nº 20, p. 24. O MALHO. A volta de Pando, 14 de fevereiro de 1903, nº 22, p. 08. 11 O MALHO, 07 de março de 1903, nº 25, p. 03. 12 O MALHO. Acre mania, 28 de março, nº 28, p. 15. 10

militar, entregá-la ao adversário significava rendição, quebrá-la significava humilhação. Temos então um general Pando, ex-presidente, recuando humilhado, impotente e despossuído de seu símbolo fálico militar.

Charge 08: O Malho, 07 de março de 1903, nº 25, p. 03.

E por fim, temos na charge 09 (a seguir) um diálogo travado entre um homem e uma mulher, brasileiros, onde provavelmente a mulher é quem pergunta se não haveria perigo para os brasileiros a chegada do general José Manuel Pando ao Acre com sua tropa militar. O homem na charge é a representação de gênero a quem cabe a informação correta e abalizada, responde á mulher “desinformada” fazendo uso de um trocadilho hibridizado com o português e o espanhol, de uma broma, ao dizer que “há de ver o Pando lá que aquilo não é pan de ló...”. Ou seja, que sua presença em terras acreanas seria um estorvo, algo nada tranquilo e positivo aos intentos bolivianos. Percebemos dualmente um discurso irônico e nacionalista, onde a primeira interpretação remete ao imaginário da floresta, da natureza que confronta os homens, das dificuldades do lugar. E na segunda interpretação possível, teríamos um brasileiro que acreditava no ímpeto bravio e heroico dos brasileiros do Acre lutando em nome dos interesses nacionais.

Charge 09: O Malho, 28 de março de 1903, nº 28, p. 15.

No caso envolvendo a figura do Barão do Rio Branco, trazemos cinco charges onde ele e outras personagens, em quatro delas, lhe dão suporte aos diálogos irreais baseados em acontecimentos reais. Na ultima, o ministro confabula consigo mesmo. Mais uma vez essas narrativas visuais e escritas articuladas possibilitaram sentidos cômicos ao leitor da época ao trazerem para eles uma crônica daquele tempo sobre a “questão” do Acre.

Charge 10: O Malho, 18 de julho de 1903, nº 44, p. 06.

Na charge 10 (acima), intitulada O Ruy e o Rio13, aparecem duas figuras centrais nas confabulações iniciais sobre o que viria a ser o futuro acordo entre brasileiros e bolivianos. O riso se constrói em torno da imagem de Rui Barbosa, incensado como grande advogado, orador notável e político de discursos longos. Ele “ameaça” o Barão do Rio Branco com sua “arma” poderosa caso as questões do acordo não sejam do seu agrado. Ou seja, produzir um relatório tão caudaloso quanto seus infindáveis discursos caso a “espiga” (contratempo, maçada) do Acre se tornasse uma “batata” (problema, prejuízo, logro).

Charge 11: O Malho, 03 de outubro de 1903, nº 55, p. 07.

As duas personagens anteriores são evidenciadas nas charges seguinte, charges 11 (acima) e 12 (a seguir). Nelas aparecem novamente Rui Barbosa e Barão do Rio Branco em situações de tratativas acerca do caso Acre. Na primeira, intitulada A bota do Acre14, as duas autoridades conversam e no dialogo Barão do Rio Branco acometido de calos que lhe machucam os pés causadas pelas botas que usa, sugerem que ao descalçálas o seu problema seria resolvido. O humor metafórico compara o Acre a um par de botas que causa desconforto e dores ao Brasil e às autoridades nacionais envolvidas na questão. O ato de tirar as botas na charge remete ao momento em que as tratativas finais do acordo entre plenipotenciários brasileiros e bolivianos caminhava para uma 13 14

O MALHO. O Ruy e o Rio, 18 de julho de 1903, nº44, p. 06. O MALHO. A bota do Acre, 03 de outubro de 1903, nº 55, p. 07.

resolução final com o envio do texto para aprovação nos congressos dos respectivos países em litígio15. Acordo final que desagradou Rui Barbosa devido sua recusa em ceder qualquer parte do território brasileiro à Bolívia como compensação pela anexação do Acre. Barbosa considerava o Acre território brasileiro sob domínio estrangeiro e como legalista e nacionalista que era, declarava a nulidade dos acordos bilaterais de 1895 e 1898 estabelecidos entre os governos do Brasil e da Bolívia e defendia para o caso o princípio do Uti possidetis (ANDRADE & LIMOEIRO, p. 100, 2003).

Charge 12: O Malho, 07 de novembro de 1903, nº 60, p. 23.

Na segunda charge, intitulada A grande droga16 (acima), temos um Barão do Rio Branco retratado como uma espécie de garçom ou maitre, que serve em um copo chamado Acre uma bebida desconhecida para um decrépito freguês identificado como Tesouro. A crítica humorística ocorre em um momento que antecede os poucos dias antes da assinatura do Tratado de Petrópolis e na imprensa carioca já se sabia dos pontos centrais do termo final. O Acre representa então uma droga oferecida ao já combalido tesouro nacional que iria arcar com os custos financeiros do acordo firmado com a Bolívia. O Brasil ganha perdendo, de acordo com a ironia traçada pelo chargista do Malho. É então uma vitória sobre a Bolívia e os EUA com sabor de derrota, de porre,

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Após a assinatura do Tratado de Petrópolis, o acordo foi enviado para apreciação da Câmara Federal e Senado Federal, sendo aprovado respectivamente em 28 janeiro de 1904 e 12 de fevereiro de 1904. Por fim, foi sancionado pelo presidente Rodrigues Alves em 18 de fevereiro de 1904 (Tocantins, 2000). 16 O MALHO. A grande droga, 07 de novembro de 1903, nº 60, p. 23.

uma vitória de Pirro. A penúltima charge aqui exposta (charge 13 – a seguir) faz alusão ao momento posterior a assinatura do Tratado de Petrópolis, quando se esperava para o inicio do ano seguinte a votação na câmara federal do acordo firmado entre brasileiros e bolivianos. Temos então o ministro Barão do Rio Branco enviando uma “bomba”, que é o Acre, para ser debatido e votado pelos deputados brasileiros. Atrás do ministro vem o senador Rui Barbosa, um crítico do acordo final, que acende o pavio da “bomba” entregue ao parlamento. Seu comentário jocoso é o seguinte: “cuidado barão! Com esta bomba nem S. Pedro com seus tiros o salvará”17. O aviso de cautela apontava para uma situação que poderia causar uma crise profunda entre o executivo e o legislativo em torno da aquisição do Acre, que talvez nem o navio de guerra mais poderoso da marinha brasileira – o São Pedro – poderia salvar os interesses do governo. O tom de belicosidade é realçado pelos termos bomba, tiros e São Pedro. Parecia que uma guerra tinha terminado com os bolivianos e começada outra e executivo e legislativo.

Charge 13: O Malho, 26 de dezembro de 1903, nº 67, p. 03.

Por fim, nos referimos à charge final, denominada de acrite (charge 14 - a seguir)18, que faz alusão às questões de fronteira em aberto com o Peru e só resolvidas diplomaticamente em 1910 (Cf.: SENADO FEDERAL, 2009). Na representação visual 17 18

O MALHO. 26 de dezembro de 1903, nº 67, p. 03. O MALHO. Acrite, 26 de dezembro de 1903, nº 67, p. 06.

temos o Barão do Rio Branco em sua mesa de trabalho redigindo os pontos principais do acordo com a Bolívia, porem ele é interrompido de maneira repentina com a entrada da ave em sua sala derrubando o tinteiro e “melando” o acordo bilateral. A sugestão é que os peruanos iriam querer tirar proveito do acordo entre o Brasil e a Bolívia para também apresentarem suas demandas diante das questões de suas fronteiras com o Brasil na região acreana.

Charge 14: O Malho, 26 de dezembro de 1903, nº 67, p. 06.

Portanto, temos o Acre retratado como um fardo pesado para brasileiros e bolivianos, terra rica contudo ignota, distante da civilização no espaço e atrasada em relação aos mesmos valores no tempo. Lugar à margem da história e aberto à colonização feita à gandaia, como irá falar Euclides da Cunha. Mas aparentemente estamos ficamos diante de um paradoxo: um território renegado, problemático mas disputado por três países. Talvez nos ancorando em McClintock, podemos chegar a um entendimento. Ela, citando F. Fanon, diz que “o colonialismo impõem a si mesmo uma domesticação da colônia” (p. 534). Assim, havia três países como intuitos internos colonizadores e exploratórios do Acre, mas subordinados externamente aos interesses do grande capital. Outro entendimento possível e não excludente, remete ao fato destes três países não terem suas fronteiras plenamente definidas, “fechadas”, “seguindo a

tradição de pensar a formação da nação como a formação do território” (ALBUQUERQUE Jr., 2014, p. 124). Para finalizar lembrando o escritor paraguaio Damian Cabrera (2014) em suas discussões sobre fronteira em Ciudad del Leste, podemos afirmar que essa tríplice fronteira acreana era um espaço atravessado por territorialidades em conflito que pulsavam por se consolidar e se impor sobre outras, tornando a fronteira um campo de múltiplas semanticidades (p. 169). 4 – considerações finais

Nas charges que mostramos, trouxemos os traços cerca de cinco chargistas, sendo os principais os afamados K. Lixto (charges 02, 04, 09, 12 e 14) e Raul Pederneiras (charges 07, 10 e 11). O humor mostrado por eles transita pelo campo do erotizado, carregado de duplos sentidos, às vezes marcados pelos preconceitos e conservadorismo do mundo do qual faziam parte. As charges embora se apresentem com o intuito de causar o riso através do humor irônico, satírico e paródico traz também o contra discurso. É uma crítica política com uso de ilustração, capaz de demolir certos cânones estabelecidos pelas forças do poder e criar outros. Como diz a frase famosa atribuída a Moliére, rindo castigam-se os costumes. Para que isso ocorra, “a percepção do cômico [deve] está totalmente subordinada à capacidade do interlocutor de perceber a ambivalência da mensagem” (Silva, 2003, p. 13). Ou seja, o humorista trabalha com representações sociais, imaginários coletivos arraigados historicamente. 5 – Bibliografia

ANDRADE, José H. Fischel de & LIMOEIRO, Danilo. “Rui Barbosa e a política externa brasileira: considerações sobre a questão acreana e o Tratado de Petrópolis”, pp. 95-117. In Revista Brasileira de Política Internacional, jan-jun, Volume 46, nº 01, Brasília, 2003. ALBUQUERQUE JR., Durval M. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar. São Paulo: Cortez, 2007. ALBUQUERQUE JR., Durval M. “Por uma história acre: saberes e sabores da escrita da historiografia”, pp. 111-134. ALBUQUERQUE, G. R. & ISHII, R. (eds.), Desde as Amazônias: colóquios. Volume 2. Rio Branco: Nepan, 2014.

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