O actor esse outro

June 3, 2017 | Autor: Rosa Vieira Guedes | Categoria: Acting Process
Share Embed


Descrição do Produto

O actor – esse Outro do/no Mesmo (uma curtíssima reflexão) O Outro, enquanto o distante diferente a quem não reconhecemos as mesmas competências, apetências e qualidades de que somos, enquanto um eu ou um conjunto de semelhantes, possuidores, apresenta-se nas mais pequenas acções. Por exemplo, diz-se de modo equivalente surdo e mudo. O mistério da surdez na sua diferença, no seu ser Outro em face ao ouvinte determina neste a “lógica da naturalidade” entre o “se não ouves, logo, não falas”. Não ouvir, no entanto, não é o mesmo que estar privado de instrumento vocal, aparelho respiratório, fonador e ressonador. Mesmo quem nunca ouviu “ouve por dentro” – o batimento cardíaco, os órgãos que se mexem – e sente as vibrações exteriores. O Outro é uma exterioridade e essa exterioridade é constitutiva de si próprio. Esta exterioridade essencial do Outro enquanto diferença, é reforçada pelas mais suaves e mais fortes camadas sucessivamente dadas pela aprendizagem da vivência social bem como pelo conjunto de conhecimentos e práticas de uma dada cultura. Estas aprendizagens resultantes de continuadas pressões expressas ou simbólicas são debilitadas e postas em causa no trabalho artístico. No teatro, o trabalho do actor abre-se ao Outro tomando-o como um si próprio a partir de uma des-construção em primeiro lugar física, que assenta em técnicas objectivas. Des-construção do Mesmo que não é uma destruição pura e simples de estruturas anteriores, mas antes a abertura a novas possibilidades físicas de disponibilidade, maleabilidade e elasticidade para acolher Outro na sua casa – no seu corpo. Disponibilidade não autolimitando o corpo próprio às suas práticas rituais, rítmicas e espaciais quotidianas, maleabilidade permitindo ao corpo moldar-se e desformar-se para, ao ter elasticidade, “moldar-se” ao Outro. Moldar-se entre aspas pois, no caso do actor, o Outro não se confunde – ou “co-funde” - no Mesmo, no entanto, é o “filho pródigo” que se recebe no próprio corpo com tudo o que pode “servir” o Outro. “Servir” no sentido de que o Outro usa o que lhe convém, sem que o mesmo/o eu próprio, o domine (ou absorva), nem que o Outro se aproprie enquanto puro usurpador. Existe um jogo de regras claras que começam e terminam nas possibilidades e nos limites do corpo próprio. Para jogar há que dar o corpo, o corpo próprio individual, ao trabalho de se auto-conhecer, de se auto-escutar, de se auto-ver, de se auto-sentir, através da des-construção das imagens de nós/Eu e dos outros/Outro. O corpo do actor não pode nunca ser servil ao Outro pois um corpo único tem experiências e vivências únicas que se abrem e estendem a possibilidades. Estas, são caminhos que se abrem como rede pela absorção, retenção e composição de imagens da e na exterioridade de si próprio, mas também na interioridade de um qualquer “eu”, fisiológico e genérico que, igualmente, absorve, retém e compõe, identificando-se com um “eu próprio”. Tanto este “eu”, como este “eu próprio” tendem à homogeneidade na sua heterogeneidade. Mais uma vez estabelece-se a “lógica da naturalidade”. As imagens habituais de si próprio, enquanto “eu próprio” coagem a re-ligação das possibilidades, reduzindo e mesmo bloqueando um leque amplo de caminhos e escolhas. As imagens, insidiosamente, pré-inscreveram uma rígida linguagem e um vocabulário restricto aos músculos, aos tendões, à respiração, ao som, ao olhar, aos restantes sentidos. Num primeiro momento, o poder exercido pelas imagens, já determinou todo o gesto, movimento, timbre e palavras do e no corpo do actor.

1

Como des-construir o corpo dado (identificado como um “eu-próprio”) para a disponibilidade, maleabilidade e elasticidade de acolhimento do Outro? Talvez experimentando um retorno ao “mistério da surdez” e a música enquanto relação entre um “eu” e “outro”, o instrumento.

Rosa Vieira Guedes 29 de Maio de 2016

2

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.