O Alma-Grande de Miguel Torga: um conto do fantástico?

May 26, 2017 | Autor: C. Capela Ferreira | Categoria: Fantastic Literature, Miguel Torga
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O Alma-Grande de Miguel Torga: um conto do fantástico?

Cláudia Capela Ferreira UTAD – Doutoranda em Estudos Literários

XVI Encontros Internacionais de Reflexão e Investigação - 2012

«Quando chegaram ao lugar indicado por Deus, Abraão edificou um altar; colocou nele a lenha, e amarrou Isaac, seu filho, e pô-lo sobre o altar em cima da lenha. Depois, estendendo a mão, tomou a faca para imolar o filho» (Gén 22 8-10)

A narrativa fantástica ostenta um longo percurso que remonta ao período clássico, alongando-se pela Idade Média, pelo Renascimento, cultivando uma intensa atividade, especialmente no século XVIII do Romantismo, sendo igualmente uma realidade na literatura contemporânea. Desta forma, e ao contrário do que defendem alguns teóricos, o fantástico dificilmente se poderá conceber como género nem tãopouco como modo, pelo que o devemos olhar como uma componente modal supletiva. Tzvetan Todorov, como estrututuralista, defendeu o fantástico como género, mas apontou com grande ênfase uma singular caraterística do mesmo, a hesitação. A ponte basilar sobre a qual assenta a ligação entre quem conta e quem lê será, então, esta hesitação sobre o narrado. De facto, Filipe Furtado, na sua obra A construção do fantástico na literatura, propõe-nos diversos meios de tecedura do fantástico literário. Graças à sua leitura, fomos capazes de descobrir e destrinçar o conto «O Alma-Grande» de Miguel Torga nesse sentido. Onde antes víamos o calafrio da incerteza, agora vemos com clareza o enlear de dois mundos, e a indecisão face àquele que brota disfarçadamente do meta-empírico. De facto, como defendem Filipe Furtado e Pampa O. Arán (El fantástico literario), a ambiguidade é uma estratégia inerente à literatura do fantástico. O conto em análise, inserido em Novos Contos da Montanha, publicados em 1944, em plena Guerra Mundial, momento trágico da humanidade, apresenta-nos Riba Dal como terra de judeus e o tio Alma-Grande como o salvador da “honra do convento”

(Torga 1999:11), o abafador1. Ora, ao ultimar o sofrimento alheio, eliminava igualmente a confissão e a extrema-unção, o último dos sacramentos católicos, e a velada possibilidade de o moribundo ceder à agonia e contar o segredo da conversão disfarçada e a manutenção do judaísmo, da fidelidade às leis de Moisés e do Pentateuco. As primeiras linhas fazem-nos criar um espaço real, até localizável, seja física, seja temporalmente: uma aldeia judaica que, contudo, é batizada pelo padre João. Ora, rapidamente acedemos a um dos elementos que providencia o surgimento do sobrenatural num ambiente familiar e quotidiano: é, pois, a subversão do real. Segundo Caillois (apud Furtado 1980: 19) existe a erupção do inadmissível no seio da legalidade quotidiana. Louis Vax, por sua vez, explica-nos que da narrativa fantástica se infere a “introdução de terrores imaginários no seio do mundo real” ou a “inclusão de um elemento sobrenatural num mundo dominado pela razão” (Apud Furtado 1980: 19). Em «O Alma-Grande» vamos acedendo a este mundo veladamente, através da descrição inicial da figura do abafador, cuja lenda nos atemoriza. O narrador principia o conto, revelando que o Alma-Grande (nome assaz interessante para quem tem a tarefa de abreviar as penas deste mundo), “alto, malencarado, de nariz adunco” era o “pai da morte”, cuja morada era no Destelhado, com o vento galego “a assobiar sem descanso o ano inteiro” (Torga 1999: 11). Quando atravessava a multidão que o esperava era olhado com “terror e gratidão” (Torga 1999:11) e, sob a perspetiva dos leitores, a sua resposta vai sendo hesitante, relativamente a tal personagem. De facto, enquanto o Alma-Grande “aceita o seu destino de abreviar a morte como um rio aceita o seu movimento” (Torga 1999: 12), o leitor sente receio ao conhecer esse “pai da morte” que é convidado a deslocar-se a casa das pessoas na perspetiva de ceifar a vida ao seu próximo. Assim, quando Abel o chama, e "o pai da morte" entra em casa de Isaac (ressalve-se os nomes bíblicos), temos uma descrição muito clara: “Em casa havia lágrimas desde a soleira da porta. Mas a entrada do Alma-Grande secou tudo. Atrás dos seus passos lentos e pesados pelo corredor ficava uma angústia calada, com a respiração suspensa” (Torga 1999: 12). Notamos que a descrição deste momento origina angústia e infelicidade, obrigando, quase, à suspensão da vida momentaneamente. Este efeito relembra a sensação e 1

Esta personagem terá sido criada com base na lenda do Abafador, figura de relevo e respeito, que ecoa

desde o tempo histórico dos cristãos-novos, referente aos séculos XV e XVI (e eventualmente mais tarde). Alguns registos sublinham a existência do abafador em Trás-os-Montes e nas Beiras até ao século XX, mas numa perspetiva não religiosa.

impressão a que os Dementors, na narrativa de J.K Rowling, Harry Potter, nos submetem e submetem as suas ‘vítimas’: "Dementors are among the foulest creatures that walk this earth. They infest the darkest, filthiest places, they glory in decay and despair, they drain peace, hope, and happiness out of the air around them. Even Muggles feel their presence, though they can't see them. Get too near a dementor and every good feeling, every happy memory will be sucked out of you. If it can, the dementor will feed on you long enough to reduce you to something like itself...soulless and evil. You will be left with nothing but the worst experiences of your life."

(Rowling 1999: 155).

Nessa casa vivem Lia, Abel e Isaac. Isaac debate-se heroicamente com a morte, pois a réstia de coragem que subsiste não aceita o seu fim: “Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara, opresso, como que só esperava a ordem para largar a vela” (Torga 1999: 12). A citação descreve um homem no seu leito de morte, mas parece assumir igualmente os contornos da caracterização de um fantasma, de uma alma penada. Com efeito, a utilização do pretérito imperfeito é reveladora de um quadro tétrico: “Gemia, gemia, finava-se, mas com aquelas duas contas de azeviche a reluzir” (Torga 1999: 12). Ora, essas contas de azeviche, os seus olhos, espelhos da alma, revelam, contudo, que Isaac anseia viver e por isso se debate. Mas com quem se debate Isaac? O narrador, certamente conhecedor deste efeito sobre o narratário, impulsiona o mundo sobrenatural neste instante quando faz surgir “uma sombra estranha”2 que radica no rosto do moribundo, fazendo Lia desistir da esperança. Será a morte a sombra estranha, a Morte personificada ou uma qualquer outra possessão? A possessão, como elemento fundamental da temática fantástica, parece também incluir-se no conto em questão, bastando recordar o momento em que se instala em Isaac uma “sombra estranha” de “forças que nunca ao certo se conheceram” (Torga 1999:12-13) ou “as garras da morte ao natural” (Torga 1999: 12). De facto, o efeito que tais descrições, inscritas num envolvimento já dúbio, tem sobre nós, enquanto leitores, abeira-se do medo, dada a ambiguidade: será uma metáfora que o escritor usa para evidenciar a proximidade do fim de vida de Isaac ou as garras surgiram mesmo (garra enquanto metonímia da figura da Morte)? O narrador semeia, deste modo, a dúvida, a hesitação, ao depositar no papel tais palavras que nos toldam o discernimento. 2

Será interessante acrescentar que, ao longo desta descrição, de Issac esperando a morte, facilmente se

reconhece a aliteração da fricativa dental surda ou sibilante surda, /s/, provocando algum suspense.

Com efeito, a ambiguidade permite, em determinados momentos textuais, a duplicidade e a hesitação até ao último minuto, diferindo do maravilhoso, cujo mundo é arbitrário e impossível (ainda que paralelo ao mundo real), sem lugar à discussão sobre a possibilidade de existência, e também contrário ao estranho, cujos acontecimentos são posterior e logicamente esclarecidos. Assim, há um mundo coerente e outro que se intromete sem anulação do primeiro. Até ao fim do conto, narrador e narratário dificilmente sairão da esfera da ambiguidade, ou seja, não resolverão a dialética entre o fantástico e o natural, permanecendo a dúvida, a hesitação face ao que é narrado. Desta forma, aceitamos, como nos diz Filipe Furtado, a falsidade verosímel já que os acontecimentos surgem falseados de forma a assumir a indecisão entre a consideração ou não do acontecimento narrado. Issac, deitado sobre a cama, avista Alma-Grande. Estaria no auge do seu combate, um momento solene, como nos descreve Torga: “Mas de nada mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir a grandeza e a solenidade de tal hora” (Torga 1999: 13). Contudo, o Alma-Grande, “Insensível à profundidade dos mistérios da vida, sem o estremecimento de uma fibra sequer, avançou para o leito num automatismo rotineiro” (Torga 1999:13). Na verdade, o abafador não distingue a réstia de vida que ainda permanece no corpo e alma de Isacc, o moribundo: “O seu papel não era olhar; era ir inteiro com as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirarse uns minutos depois, como um instrumento que tivesse cumprido corretamente a sua função” (Torga 1999: 13). Issac, por sua vez, no seu castelo3, peleja sempre. De facto, logo depois, o narrador apresenta-nos a casa: “A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos petrificados e mudos” (Torga 1999: 13). Porém, quando Alma-Grande avança, uma voz, “que parecia vir do outro mundo” negava-lhe a vida de Isaac4. Novamente, a questão ambígua: a voz era apenas a do moribundo ou, sub-repticiamente, o narrador empurra-nos cada vez mais para a possibilidade de possessão? E assim, essa voz fê-lo parar, pois os gemidos e os apelos soavam de outra maneira. Subitamente, o fazedor de 3

O vocábulo castelo remete a imaginação do leitor para um local assustador e tenebroso, cuja inserção,

neste momento, poderá fazer despertar sentimentos de estranheza e medo perante tal lugar, normalmente associado a velhas histórias de fantasmas, as quais povoam o nosso imaginário infantil. 4

Enquanto o texto bíblico apresenta Isaac como sacrifício a Deus, e, consequentemente, sob o signo da

morte, o texto torguiano valida Isaac como um lutador em prol da vida, sujeito ao seu livre-arbítrio, inconformado com a morte. Ao debater-se, Isaac preconiza a vida, em contraste com a figura de AlmaGrande, a morte, e com Isaac bíblico, mero cordeiro sacrificial, abnegado.

almas, a lembrar a tecedeira de anjos, de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, desvenda os seus mistérios e vê, claramente, a luz, a verdade: “Um pano escuro que até ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se de cima a baixo. E o abafador, paralisado entre as trevas do hábito e a luz que rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino” (Torga 1999: 13). Ora, se até ao momento, Issac encetava uma luta com grandeza e solenidade contra si próprio ou contra a Morte ou qualquer outra força que desejaria a sua alma, num jogo entre a vida e a morte, pois era “um pedaço de ser nobre e agradecido à seiva” (Torga 1999:12), agora empreende igualmente uma batalha contra Alma-Grande: “À luta que Isaac sustentava contra forças que nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate de dois homens, um a saber que ia matar, outro a saber que ia ser morto” (Torga 1999: 13). Neste instante, instala-se a dúvida: venceria Isaac esta batalha ou AlmaGrande levará a cabo o seu aparente desígnio? Enquanto continuavam a medir-se, dá-se a entrada de Abel, momento decisivo. A inocência da criança, à semelhança do anjo enviado pelo Senhor, na Bíblia Sagrada, exterminou a força do abafador. O narrador revela, de imediato, que se havia extemado em Alma-Grande o assassino, “o animal que bebia a grossos tragos o fio de vida que encontrava no caminho” (Torga 1999: 14). E foi precisamente o que o abafador viu (o mesmo ‘ver’ de Aparição de Vergílio Ferreira) nesse instante. A razão do seu destino até aí, matar, extinguira-se aparentemente, pois a testemunha, Abel, não o permitiu fazê-lo: " Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a presença atónita do Abel, tiraram às mãos e ao joelho do Alma-Grande a força habitual" (Torga 1999:14), tal como o anjo do Senhor, gritando a Abraão: "Abraão! Abraão! Eis-me aqui! Não estendas a mão contra o menino, e não lhe faças mal!" (Gén 22 11-12). A inocência de Abel dialoga com a prefiguração angélica, na prevenção da morte. De facto, contrariamente a Abel bíblico, morto às mãos de Caim, cujo nome evoca o perecível e a transitoriedade efémera, este Abel torguiano convoca a sacralidade da vida. Lívidos, Isaac e Alma-Grande despedem-se, pois este abandona aquele e atravessa a sala “cabisbaixo, longe da majestade trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava grandeza” (Torga 1999: 14). Entrecruzam-se momentos do universo real, empírico, e momentos de evidente inclusão de um universo fantástico, mas sobretudo de reconhecimento do ‘eu’. A trágica luta entre a vida e a morte, a batalha entre dois homens − um na senda da morte e outro na luta esfaimada da vida − , revela a subversão da moral, mesmo que baseada numa lenda ou factos

históricos. Inferir o reconhecimento da sociedade pela suposta grandeza de um homem que apressa a morte, especialmente se o moribundo revela hipóteses de sobrevivência, parece ir ao encontro da subversão do real que Maurice Lévy menciona (apud Furtado 1980:22), pois há, claramente, uma inversão de valores (independentemente do sofrimento do ser, o que nos abriria a porta da discussão sempre atual sobre a eutanásia e sobre a dignidade humana em fim de vida). Com efeito, como dissemos anteriormente, a subversão do real imiscui-se na narrativa criando ambiguidade, mas, para além da subversão física, e de acordo com Maurice Lévy, citado por Filipe Furtado, esta perversão pode ocorrer também no plano moral, através da inversão dos valores e da destruição de tudo o que na sociedade tem uma função integrante ou que confere segurança (Furtado 1980: 22). Cremos que, neste sentido, da subversão do real através dos valores, da ética e da moral, podemos inserir o conto torguiano na literatura fantástica, dado o desmoronamento universal inferido no conto “pois nada do que poderia permitir ao homem situar-se consegue ser poupado: nem mesmo o sagrado, que deve tornar-se sacrílogo” (Furtado 1980: 22). O sagrado torguiano, a vida, encontra-se, neste conto, sob a cruel fatalidade da morte através do assassinato, o que é posto em causa através do constante dialogismo bíblico. Issac melhora, mas o segredo inclui os três, unindo-os irrevogavelmente. Todos os outros seriam inconscientes; de facto, o narrador diz-nos que apenas os três, tal como Jesus Cristo crucificado, passaram da “agonia à morte e da morte à ressurreição” (Torga 1999: 14). Assim, o drama negro e profundo fez com que “Issac visse as garras da morte ao natural; o Alma-Grande olhara pela primeira vez a escuridão do seu poço; e o garoto, esse, pressentira coisas que não podia clarificar ainda no pensamento” (Torga 1999:14). A imaturidade não lhe permite compreender o sucedido, mas de novo o sobrenatural – “pressentira coisas” (Torga 1999: 14). A angústia que todos vivenciaram dissipa-se no final; durante muito tempo, Issac olhava e via vingança, Alma-Grande o medo e Abel a angústia de não compreender a realidade. Uma vez mais, Miguel Torga recorre ao Evangelho: “ − Não matarás... Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros caminhos, como o próprio Alma-Grande sabia” (Torga 1999: 15). Ora, fazendo alusão à religião judaica e ao Pentateuco, aos herdeiros de Moisés e da sua lei, a do Antigo Testamento, o narrador evoca as palavras do Êxodo: “Aquele que ferir mortalmente um homem será morto [...] urge dar vida por vida, olho por olho, dente por dente” (Êx 21:12-25). Deste modo, os papéis invertem-se e os outrora implacáveis olhos de Alma-

Grande eram agora os de Isaac. Com efeito, a lei do Evangelho apela à fraternidade e à compreensão, o mandamento novo de Cristo, enquanto o Antigo Testamento pressupõe uma realidade cuja justiça parece repousar sobre a vingança privada, a lei de talião, isto é, a rigorosa reciprocidade do crime e da pena. Desta forma, a lei dos homens, que no conto diverge da do Novo Testamento, e tal como o próprio Alma-Grande augura, devia punir aquele que intentara contra a vida5. Com a morte do abafador, Issac “tinha a sua vingança, o Alma-Grande já não sentia medo, e a criança compreendera, afinal” (Torga 1999: 15). O Isaac torguiano rebela-se, então, contra a figura castradora da morte, acabando por a eliminar, tal como o corvo Vicente o faz, em Bichos:" A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao ato de insubordinação" (Torga 2000:45) Inevitável será pensar que a sombra que tentara Isaac viera agora reclamar a alma de Alma-Grande. Mas o que nos leva a acreditar nesta possibilidade? De facto, outro elemento que pretende incutir veracidade à narração fantástica é o recurso à autoridade cuja encenação é feita através de diversas formas (pretensos documentos, personagens de prestígio, entre outros). Torna-se interessante observar que o facto de a aldeia do conto poder ser localizada geograficamente em Riba Dal, “terra de judeus” (Torga 1999: 11), atesta a provável veracidade dos acontecimentos, tal como o aproveitamento da lenda e de factos históricos apoiados no cenário empírico de contornos fantásticos. Por outro lado, o testemunho do narrador-personagem é outro meio utilizado normalmente pelo fantástico de forma a garantir a realidade objetiva da narração. Neste caso, não se verifica a inclusão do narrador como personagem (narrador homodiegético ou autodiegético) mas, no prefácio à 2.ª edição, Miguel Torga confessa vir “ver a sepultura do Alma-Grande e percorrer a via-sacra da Mariana” (Torga 1999:7). Ainda que possa ser metafórica, esta confissão de Torga ecoa nos nossos pensamentos como uma sugestão, fazendo-nos, enquanto leitores, pensar em AlmaGrande como homem verídico e, por isso, conferindo veracidade à história e aos factos narrados. Para finalizar, será importante referir que a coexistência de dois mundos representa, por vezes, as potencialidades da espécie humana e as limitações que lhe são inerentes, como nos diz Filipe Furtado (Furtado 1980: 134). A condição humana será, assim, um vetor do fantástico, permitindo o debate sobre a mesma. Filipe Furtado

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Recordemos «Vicente»: " A morte temia a morte" (Torga 2000:45), cuja liberdade e vida contrastam e

vencem a morte.

sugere ainda, acerca da narrativa fantástica, que esta: “não raro aflora questões fundamentais de existência do homem, sobretudo a atitude deste perante o universo, o seu próprio abismo interior e o grande limite, a morte” (Furtado 1980: 138). O universo torguiano evidencia uma clara preocupação com o homem e com as suas limitações. Aliás, Eduardo Lourenço, num riquíssimo ensaio, explica-nos o desespero humanista torguiano (embora haja igualmente um humanismo apolíneo em Torga) e ao longo das obras do poeta temos acesso a diversos exemplos de reflexão sobre o homem, sobre a sua relação consigo próprio, com os outros, com a sociedade e a humanidade e com Deus, cuja omnipresença e omnipotência, proclamadas na Bíblia Sagrada, relembram constantemente a efemeridade da vida humana e a sua irrevogável morte, que tanta angústia causava a Torga. Destarte, a citação acima exposta rápida e claramente nos denuncia a interpretação deste conto: a descoberta, o conhecimento e consciência do ‘eu’ e do nosso “abismo6 interior”, refletido em Alma-Grande, a atitude perante o universo7, e a nossa atitude perante a morte, especialmente centrada em Isaac, que a nega. Reconhecemos, desta forma, no texto torguiano, as palavras de Sartre: “El fantastico no es, para el hombre contemporaneo, más que una manera entre cien de reenviar su propria imagen” (Apud Arán 1999: 15). Pampa Arán acrescenta que as formas de loucura, possessão e impulsos bestiais (recordemos o impulso animal de Alma-Grande) serão os aspetos marginais e negativos da conduta humana, as primeiras manifestações do fantástico moderno. Esta faculdade e humanidade do contista, ao apresentar um quadro de crise interior, sublinham uma certa sensibilidade apocalítica ao estender o individual à humanidade, ao mundo em crise (relembre-se que o conto foi escrito e publicado numa época de guerra e de holocausto). Compreendemos assim a assertividade das palavras de Roger Caillois quando defende que a narrativa fantástica “nace en el momento en que cada uno está más o menos persuadido de la imposibilidad de los milagros” (Apud Arán 1999: 19).

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Sublinhe-se que o mesmo vocábulo é referido por Torga no conto e por Filipe Furtado em A construção

do fantástico na narrativa. 7

Esta atitude é protagonizada pela criança que, inocente, acaba por tomar consciência da realidade.

Bibliografia consultada:

Arán, Pampa O. (1999): El fantástico literario, Aportes teóricos. Madrid: Tauro Producciones. Bíblia dos Capuchinhos. 1993. Edição de Herculano Alves. Lisboa: Difusora Bíblica. Furtado, Filipe (1980): A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte. Rowling, J.K. (1999): Harry Potter and the Prisoner of Azkaban. New York: Scholastic. Torga, Miguel (1999): Novos Contos da Montanha. Lisboa: Dom Quixote. ___________ (2000): Contos. (Edição digital). Lisboa: Publicações Dom Quixote. Kermode, Frank (1997): A sensibilidade apocalíptica. Lisboa: Edições Século XXI.

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