O ambiente da arquitetura em São Paulo: três exposições

May 22, 2017 | Autor: Bruno Schiavo | Categoria: Art History, Architecture, Museum Studies, Modernism, São Paulo (Brazil)
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O ambiente da arquitetura em São Paulo: três exposições Bruno Schiavo 2011.19.06

! Em tempo, a Ocupação Flávio Império no Itaú Cultural soma a duas outras exposições de arquitetura montadas em São Paulo atualmente: “Razão e Ambiente”, curada por Lauro Cavalcanti, e “O Coração da Cidade: a Invenção do Espaço de Convivência”, por Julio Roberto Katinsky (Museu de Arte Moderna e Instituto Tomie Ohtake, respectivamente). Diferenciando-se quanto às estratégias de implantar no circuito de arte da cidade um assunto caro tanto à arte quanto à cidade, as três mostras podem ser interpretadas em conjunto, como unidade problemática, assim como é necessária a complementaridade entre arquitetura e ambiente. ! Sendo a arte o que nos chama, tomamos inicialmente como experiência o próprio dirigirse (motorizado ou não) às Instituições citadas. É possível que se chegue às portas ansioso por um abrigo, por um consolo, ou pela própria expectativa de que aquilo que não se caracterizara exatamente por riqueza experimental se reverta. O acesso do tema à cidade - arquitetura ou ambiente -, pela via (não de mão única, espera-se) da arte, lhe dá um sentido de oportunidade, se não amplia a sua urgência. Ao “sairmos” da cidade, entramos no igualmente áspero território de reflexão sobre como ocupar o espaço, como liberá-lo: o tema do acesso à cidade. A mediação entre exposição e público beneficia-se da universalidade do habitar e da curiosidade do “leigo”. Sentir o desconforto e perceber a diversidade na cidade não são prerrogativas apenas dos artistas e curadores que, com maior frequência desde recentemente, passam a incluir o urbano (em forma de arquitetura ou não) em suas atividades. A sensibilidade ao ambiente nunca foi exclusividade de arquitetos e isso vem sendo levado em conta por nossas Instituições que dão os primeiros passos pela construção de sentido - arquitetura, propriamente -, a partir do campo mesmo da curadoria, para um objeto que, por sua vez, oscilará entre os caminhos da disciplina arquitetônica e o lugar, a qualidade do experimental no ambiente. ! Desembaralhar os níveis de discurso implícitos em cada uma das seleções implica o exame das estratégias de curadoria empregadas caso a caso. As noções de arquitetura subjacentes trazem diferentes conformações ao espaço, sendo estas relações objeto da análise. Percebe-se a diferença entre pontos de partida que, em choque, abrem a possibilidade da leitura complementar proposta em vista de uma necessária reflexão sobre a cidade e seu público pelo entrelaçamento do conhecimento especializado com a vivência do espaço. ! É justamente com a intenção de consolidar uma linha mais ou menos precisa de desenvolvimento da disciplina que Julio Katinsky apresenta o edifício do Ministério da Educação e Saúde (Rio de Janeiro, 1936-1943), a origem da arquitetura brasileira como entendida pelo Professor, a partir daí, por “autônoma como proposição estética”. Tomando-se essa linha e suas ramificações pode-se ler, como proposto, a existência de um centro de gravidade (os espaços de convivência) nas obras selecionadas, independente da consideração sobre os programas a que se destinam. Sua compreensão unificadora é herdeira dos primeiros esforços da historiografia no Brasil em busca de uma matriz arquitetônica que encontrará seu sentido pelas incursões teóricas de Lucio Costa junto à obra de Oscar Niemeyer, enfatizando a correspondência formal entre as elaborações destes por uma síntese de identidade nacionalcosmopolita e o poder do Estado. Bem-intencionada, a linha não consegue justificar a escolha

das obras, sendo o próprio percurso pela mostra índice de sua historicidade: a pluralidade de propostas arquitetônicas encontradas pulveriza aquela noção cívica questionando sua localização sob um mesmo teto comum. ! A hegemonia da categoria definida como coração da cidade, qual seja, o espaço em que convivemos, sofre da indeterminação com que é mencionada. O coroamento dessa ideia através da praça cívica de Brasília traz a legenda: “O espaço público construído só se efetiva quando há o encontro da sociedade civil com o Estado. Desse modo, com a presença dos indivíduos em convívio, e espaço se completa e adquire sua mais completa significação, por exemplo nas grandes comemorações cívico-populares”. O grande número de obras aponta para uma diversidade de opções técnicas, formais, políticas que extrapolam aquilo que o discurso pretende unificar. Assim, o critério de unidade se enfraquece e o caráter alusivo da arquitetura quanto a conter em seus limites a própria cidade chega à exaustão. Torna-se difícil discernir se o tratamento abstrato dado à criação de espaços de convivência vem das próprias obras ou da grande narrativa incorporada pelo curador. ! Da mesma forma que a inclusão de obras muito divergentes pode parecer forçada em relação à certeza do argumento, sua organização no espaço obedece a uma necessidade de compensação daquela ortodoxia pela disposição “livre” das fotos e maquetes. As paredes coloridas, o desalinhamento das fotos, o uso de 3Ds e imagens lenticulares dificultam a compreensão da razão hierárquica estabelecida. A atitude “desconstrucionista” de dispor imagens de edifícios tanto na parede quanto no chão, sem referência às implicações que os próprios signos arquitetônicos em questão (chão e parede) trazem a uma montagem de espaço expositivo, indica a incoerência entre o caráter de cânone das obras escolhidas e o modo como figuram no museu. O privilégio dado às poucas fotografias de cada projeto (em geral uma ou duas para cada um) e a ausência de qualquer desenho de aprofundamento técnico, antes de expressarem uma vontade didática, reforçam o distanciamento entre o público e a arquitetura, terminando esta ainda apresentada em fortes traços acadêmicos. ! Reservando o ponto alto da visita às maquetes, por exemplo a da Casa das Canoas, a do edifício da FAU USP transparente, e a da marquise do Parque Ibirapuera (referida pelo curador como “grande sala de estar da cidade de São Paulo”), cumpre dizer que, por sua vez, o conjunto de fotografias bem poderia ter sido apresentado numa sequência de slides sem prejuízo para o percurso ideológico pretendido. Ao contrário, na exposição “Razão e Ambiente”, o formato digital é utilizado de maneira favorável: muitos dos projetos contemporâneos também presentes na coleção de Katinsky podem aqui ser vistos em detalhe, através de croquis e desenhos (plantas, cortes, elevações) que podem ser ampliados. ! Além destes, são também expostos os desenhos para os bons Trabalhos Finais de Graduação de estudantes formados pela Escola da Cidade. Demonstrações de como a produção da arquitetura pode caminhar a partir da escala da metrópole complementam as soluções dadas por escritórios consolidados no mercado. A produção contemporânea é exclusivamente mostrada através de dispositivos eletrônicos: projeções, mesa interativa e tela. Os croquis de Lina Bo Bardi e Sergio Bernardes reforçam o aspecto projetual-propositivo, central na arquitetura. Em “O Coração da Cidade”, a opção por fotografias tendo a didática como justificativa questiona a dimensão processual de outros tipos de representação quanto à

eficiência para a apreensão do objeto. No entanto, parece ser precisamente pelo aspecto inacabado de croquis ou de desenho técnico que encontramos as entradas para os projetos. ! A compreensão de que meio (no sentido de técnica) e ambiente (para além de naturalizado em termos de “sustentabilidade”) foram complementares ou mesmo indissociáveis em momentos específicos da arquitetura moderna brasileira é o mais substancial da demonstração de Cavalcanti. Não é mera coincidência que um desses episódios reconstitua a mesma síntese teórica de Lucio Costa a que nos referimos acima: trazida aqui em sua imediaticidade, através de “Riposatevi” aproximamo-nos do que dela pode ser sentido. Se o pioneirismo em relação ao Helio Oiticica de “Tropicália” ou “Cosmococa” assusta aqueles que temem a dissolução do objeto de arquitetura no ambiente, deve-se ressaltar que é aqui onde se efetiva a original proposição geral de Costa por sua contundência cultural na arquitetura brasileira, ainda imune à instrumentalização pelo discurso. Deixar que isso se traduza na ocupação do espaço, lado a lado à utilização dos meios digitais - supostos responsáveis pela “virtualização” do mundo contemporâneo - contribui para questionar se os fatores que vêm montando a sedutora agenda ecológica podem continuar sendo tomados em si ou naturalizados, ao que a construção devesse responder de maneira exclusivamente heterônoma, reduzida a um agir por semelhança. A arquitetura presente na exposição de Cavalcanti torna-se mais palpável por fornecer o próprio procedimento da construção ao ambiente expositivo. Segundo Costa, o arquiteto não só vive de oposições e adversidades, mas preserva sua atualidade quando não recorre a qualquer tipo de síntese supra-histórica. ! “Eu trabalhei como arquiteto principalmente no começo, quando eu me formei. Depois disso, eu fui ficando de tal forma incompatibilizado com a arquitetura produzida normalmente, que eu fui me afastando, preferindo ficar no campo mais do símbolo do que da realidade, onde você tem mais possibilidade de exercer uma função crítica”. A “Ocupação Flavio Império”, no Itaú Cultural, exibe o documentário “Em Tempo” (links das partes 1 e 2: http://www.youtube.com/ watch?v=3jlQgTHqtUM e http://www.youtube.com/watch?v=7Xa3IhANQbs ), onde se encontra a citação acima e que trata da relação do artista com a arquitetura como um dos capítulos de suas múltiplas atividades (cenógrafo, figurinista, artista plástico). Se o contexto político e a “arquitetura produzida normalmente” impediam que a crítica tomasse o espaço do que ele chamava “realidade”, também a ficção cultural canônica cuidou que ficasse em suspenso o breve capítulo do Grupo Arquitetura Nova, protagonizado por ele, Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre. ! Principalmente baseada em experimentações construtivas, é possível que, naquele grupo, a arquitetura como objeto tenha sido ofuscada pelo próprio discurso que formularam, crítico à exploração através da divisão do trabalho no canteiro de obras. Por outro lado, qualquer análise daquelas obras do ponto de vista espacial, que as posicione em relação às outras já reconhecidas da arquitetura moderna brasileira, não pode existir sem que seja contrastada com a produção “não-especializada” de Flavio. A “Ocupação” pretende trazer o caráter experimental de sua obra ao uso do público, através de suportes que permitem analogias com a produção de arquitetura. ! Através de eventos, ou usos do espaço, tais são alguns dos dispositivos mobilizados: a contribuição de amigos e familiares para a organização de seu acervo, disponível a consultas

por meio de um website; exibições de trechos de filmes de viagem de Flavio em Super-8 pelo Brasil, em que documenta arquiteturas prontas e sendo feitas; um seminário dedicado à arquitetura que, contando com as falas de Sérgio Ferro e Carlos Ferreira Martins, buscou inscrever o sentido de sua recusa à disciplina nos termos da prática arquitetônica na atualidade; o deslocamento das telas de serigrafia, que ficam expostas enquanto não são retiradas para manipulação pelos visitantes, e o pendurar dos panos no varal para a secagem das impressões, configurando um ambiente de produção e exposição. ! Aqui realiza-se a aproximação da arquitetura pela produção do espaço, o que sugere componentes análogos aos movimentos realizado por Flavio Império enquanto envolvido com a Arquitetura Nova. A presença do que é mais comumente entendido como resultado de práticas artísticas permite que estas sejam vivenciadas em semelhança aos procedimentos da crítica ao modo de se produzir a arquitetura resultante em cidade. Para tanto, é fundamental que o primeiro plano dessa atividade plástica tenha sido colocado em complementaridade ao pano de fundo de seus princípios na arquitetura, revelando as razões de sua “rejeição”, a partir do que a esta se seguiu. ! No documentário referido acima, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha recita Flavio Império: “João de Barro ou da Silva faz sua casa com a mão. Ninguém disse que é arquiteto, é João”. Para além da interpretação que levaria ao elogio da autoconstrução ou mesmo da arquitetura das favelas, pode-se compreender o poemeto como um desafio ao isolamento da cultura arquitetônica. Já no presente argumento, traduz-se como busca por maneiras de aproximação entre a arquitetura e o público não-especializado, impondo à curadoria, por um lado, um cuidadoso tratamento do conteúdo que parece ter consolidado a disciplina e, por outro, a exposição das lacunas históricas a partir das quais novas práticas podem ainda ser experimentadas. Sintomaticamente, a Arquitetura Nova é ausente na seleção de Katinsky, por ampla que esta se pretenda. O “desconhecido” necessário ao experimental é estranho à nostalgia e à austeridade disciplinar cobradas pela aparência de um futuro próximo promissor no setor econômico da construção. Ao se rejeitar a suposta “dissolução” da arquitetura, é dificultado também seu contínuo reconfigurar-se mais pleno de sentidos para a sociedade. ! Esta comparação buscou chamar atenção para a relevância do papel da curadoria nas revisões da produção arquitetônica contemporânea. Tem-se como principal exemplo a aliança entre o Museum of Modern Art de Nova York e arquitetos e designers de todo o mundo, que, ao longo do século XX até hoje, projetou perspectivas decisivas para a arquitetura. A definição da linha discursiva que concatena os projetos e seu modo de disposição no espaço qualificam a um só tempo a pertinência da discussão arquitetônica sobre e para a cidade. A identidade entre o espaço arquitetônico e o espaço expositivo é um ambiente fecundo de investigação por uma montagem à altura do campo contraditório de seu objeto.

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