O AMOR E O HUMOR: AS CONDIÇÕES PARA A RELAÇÃO ENTRE \" NÓS E OS OUTROS \" 1

May 22, 2017 | Autor: Luiz Antonio Coppi | Categoria: Humor, Dialogue, Society, Humberto Maturana, Irony
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O AMOR E O HUMOR: AS CONDIÇÕES PARA A RELAÇÃO ENTRE “NÓS E OS OUTROS”1 L’AMOUR ET L’HUMOUR: LES CONDITIONS DU RAPPORT ENTRE “NOUS” ET LES “AUTRES”

por Luiz Antonio Callegari Coppi, mestrando na FEUSP desde 2013 e bolsista CAPES desde 2015. e-mail: [email protected]

Resumo A partir da repercussão de uma coluna de jornal de 2013, este ensaio pretende investigar a possibilidade da relação entre “eu” e “outro” no Brasil contemporâneo e, especialmente, nas ações de aprender e de ensinar. A coluna, que abusava da ironia ao descrever as minorias brasileiras como as parcelas privilegiadas da nação, foi compartilhada e elogiada como se aquilo que veiculasse não fosse uma sátira, mas a própria realidade. Nossa hipótese é de que a não compreensão da ironia se deve ao fato de que, imerso em si, o “eu” tem dificuldade de conceber a realidade a partir de uma visão diferente da dele mesmo, o que o leva a subtrair a legitimidade do “outro” e, por isso, a eliminar as possibilidades para a relação com ele. Esse distanciamento, no ensaio, será pensado a partir da obra do biólogo chileno Humberto Maturana, para quem o amor, não entendido em sua dimensão mais corriqueira, mas sim como uma emoção na qual se reconhece o outro como alguém legítimo na convivência social, é o que fundamenta a própria socialidade humana. Sem essa emoção, porém, a socialidade fica ameaçada. Apagando a alteridade do campo de relações, o indivíduo tende a se colocar em um processo interminável de ruminação de si mesmo, em que já não há mais lugar para desestabilizarse. Com o enrijecimento subjetivo, em que o “eu” se crê absoluto e inquestionável, talvez à Escola não caiba mais o esforço de intensificar essa dinâmica e de questionar-se a respeito de como formar um sujeito; caberia a ela oferecer o cenário para desconstruí-lo, desmobilizá-lo de sua certeza no que diz respeito a si mesmo – e o meio para fazê-lo, Texto apresentado em: VIII Colóquio Internacional de Filosofia da Educação.O AMOR E O HUMOR: AS CONDIÇÕES PARA A RELAÇÃO ENTRE 'NÓS E OS OUTROS'. 2016. 1

como queremos defender, é permitindo-lhe rir de si. É aí, ao final, que pretendemos trazer a noção de “autoironia”, apresentada por Jorge Larrosa em sua “Pedagogia Profana”. Palavras-chave: ironia; relação; amor; humor; autoironia. Résumé A partir de la répercussion d’un article publié par Antonio Prata en 2013, cet essai a pour but de rechercher quelles sont les possibilités du rapport entre le “moi”et l’autre au Brésil contemporain, particulièrement dans les actions d’apprendre et d’enseigner. Cet article, très ironique pour décrire les minorités comme les vraiment privilegiées de la nation, n’a pas été partagé comme une satire, mais comme une realité inconstestable. Notre hypothèse est que ce malentendu est dû au fait que le “moi”, centré exclusivement sur luimême, a des difficultés à percevoir que la realité peut être comprise d’une manière differente de la sienne – et ça l’amène à la diminuition de la legitimité de l’autre et à l’impossibilité du rapport avec lui. C’éloignement, dans cet essai, va être pensé a partir de l’oeuvre du biologiste Humberto Maturana; selon lui, l’amour est une émotion qui nous permet reconnaître l’autre comme quelq’un légitime dans la vie social et, en conséquence, c’est l’émotion qui fonde la dimension social humaine. Sans cet amour, toutefois, la socialité est menacée. Quand il n’y a pas l’altérité, il y a une tendence à fermeture de l’individu autour de lui-même, parce que il n’est plus déstabilisé. En face d’un individu comme ça, qui crois qu’il même est incontestable, la tâche de l’École n’est plus de constituer un sujet, mais d’ouvrir des possibilités pour sa déconstruction – L’École doit offrir des conditions de la démobilisation identitaire; et nous croisons le moyen pour cela est faire cet individu rire de soi-même, se moquer de soi-même. À la fin de l’essai, enfin, nous aborderons la notion de “autoironia”, chez Jorge Larrosa, pour comprendre mieux le puissance du rire. Mots-clés: ironie; rapport; amour; humour; “autoironia”.

Introdução: a ironia não compreendida e a relação fragilizada No dia 3 de novembro de 2013, o escritor Antonio Prata publicou, em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, o texto “Guinada à direita”2. Logo no primeiro parágrafo, o autor afirmava que, chegando aos 40 anos, já era hora de trocar “as sístoles pelas sinapses” e substituir a impulsividade e o romantismo de um pensamento de esquerda pela objetividade e pelos “pés no chão” de um modo de pensar de direita. A argumentação que segue daí deixa claras as suas razões: seria inegável, segundo ele, que estaríamos vivendo “sob um totalitarismo de esquerda”, em que os índios, apoiados pelo “poderosíssimo lobby dos antropólogos”, atravancariam o progresso agrícola, uma vez que as reservas indígenas impediriam o Centro-Oeste brasileiro de produzir soja “suficiente para a China fazer tofus do tamanho da Groenlândia”; em que os negros, beneficiados pelas cotas universitárias, sentados nas mesas do Fasano, dirigindo enormes SUVs e na primeira classe dos aviões, caçoariam “da meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral”; e em que os “ex-pobres”, possuiriam “dinheiro para avacalhar, com sua ignorância, a cultura reconhecidamente letrada de nossas elites”. Diante de tudo isso, não restavam mais dúvidas para o escritor: ele conclui defendendo que, dali em diante, era preciso “não apenas ser reacionário, mas sê-lo de modo grosseiro, raivoso e estridente”. Sua coluna, então, passaria a ser usada como plataforma de luta contra os esforços de domínio engendrados “pelo crioléu, pelas bichas, pelas feministas rançosas e por velhos intelectuais da USP”. O texto de Prata se desenvolvia basicamente em torno do que foi exposto aqui entre aspas. A intenção do autor era, em teoria, clara: fazer pilhéria com um tipo de discurso calcado no senso comum de que as minorias sistematicamente oprimidas em nível político, econômico e cultural, como negros, homossexuais, índios e pobres são os grupos verdadeiramente privilegiados da sociedade. A ironia com que se desenrolava o texto do autor, afiada e, em teoria, bastante explícita, porém, não foi percebida como tal. Seu artigo foi compartilhado por muitos como uma análise objetiva da realidade; nos comentários da própria página do jornal, não foram

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Disponível em: http://migre.me/txiw7. Acesso em 16/04/2016.

raros os internautas que tomaram a sério as declarações. A recorrência de uma tal leitura foi tão grande, que, na semana seguinte, Prata usou seu espaço na Folha para escrever um outro texto a fim de explicar que o anterior se tratava de uma sátira “do discurso mais raivoso da direita brasileira”, e para que não houvesse risco de estar “reforçando as ideias nefastas” que tentara ridicularizar. Neste segundo artigo, o “Abaixo, a ironia”3, o autor afirmou que fizera uma caricatura de um tipo de pensamento conservador – como tal, portanto, a caricatura escolheria alguns traços do discurso de direita observado e os exageraria. O problema, segundo Prata, foi que aquilo que, para ele, seria um evidente exagero não foi entendido assim, o que revelaria que a realidade talvez estivesse mais raivosa e reacionária do que sua própria caricatura. O caso, no entanto, parece-nos ser passível de uma outra análise. Ironia, grosso modo, é dizer X para fazer entender não-X, o que implica duas posturas frente ao discurso com o qual se entra em contato. A primeira é reconhecê-lo como descolado da realidade, em outras palavras, para entender um discurso irônico é preciso perceber que o conteúdo veiculado por ele não é a realidade, mas sim uma forma de dizêla, de representá-la. Em segundo lugar, deve-se também estar disposto a compreender que essa realidade pode ser concebida de uma maneira diametralmente contrária àquela construída na superfície discursiva, ou seja, é necessário estar aberto à possibilidade de que há mais de uma maneira de se conceber um objeto qualquer. A repercussão do artigo jornalístico, todavia, parece apontar para a inviabilidade dessas duas posturas. Interpretar esse texto – cujas afirmações não resistiriam à verificação de uma simples olhada para o SUV parado ao lado no trânsito, por exemplo – como diagnóstico objetivo da realidade indica que a fantasia por ele apresentada é vista como a própria realidade e que talvez só o seja porque não se olha para o lado, o qual sequer existe para aquele que compartilha a coluna crendo-a realidade absoluta. O “não-X” irônico, então, morre como possibilidade interpretativa – assim como o “outro”, isto é, aquele que o conceberia. Quando questionados, na descrição deste “VIII Colóquio Internacional de Filosofia e Educação”, a respeito de “como tem sido possível delinear relações mais alegres e potentes entre nós e os outros na ação de aprender e na de ensinar?”, automaticamente veio à mente a polêmica em relação à coluna de Antonio Prata. A questão posta pelo Colóquio talvez, antes mesmo de se relacionar com a ação de aprender e ensinar, só seja

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Disponível em: http://migre.me/txkdp. Acesso em 16/04/2016.

uma questão em um contexto em que a “relação entre nós e os outros” se mostra enfraquecida. Nesse cenário, do qual o artigo de Prata seria um sintoma, perceber o outro, isto é, aquele para quem a interpretação acerca do real diverge da construída e fixada pelo “eu” – aquele para quem é o “não-X” o sentido –, e estabelecer uma relação com ele nem sempre são condutas presentes. Quando o “eu” se esquece de que suas convicções são possibilidades dentre outras leituras interpretativas, ele as toma como Verdade absoluta. O “outro” torna-se alguém a quem se deve evitar, uma vez que seria um ignorante incapaz de ver aquilo que o “eu” já viu, ou, por outro lado, um simples mentiroso. Quanto mais distantes, “eu” e “outro” tendem a se alimentar, cada vez mais, apenas de suas próprias crenças, de discursos convergentes àquilo em que já acreditam – no limite, afinal, alimentar-se-iam de si mesmos, reforçando a crença de que é Verdade o que é simples crença. A relação, aqui, já não é mais possível e, de 2013, ano de publicação de “Guinada à direita”, até hoje, parece ter se fragilizado ainda mais: dos muros de concreto que se pediam após os resultados eleitorais de 2014 ao de metal erguido em frente ao Palácio do Planalto na votação do “impeachment”; dos ataques nas ruas às camisas vermelhas ao ódio viralizado nas páginas virtuais – no reino do “eu”, outro nenhum tem vez. O ambiente escolar, no interior de um tal cenário, parece refletir a disposição à separação mais do que à relação, e já não são poucos os relatos de problemas entre as crianças decorrentes de tal distanciamento4. Assim, para que possa ser palco de relações alegres e potentes, a Escola deve ser capaz de problematizar esse muro que se ergue entre “eu” e “outro”. Nesse sentido, o que se pretende neste ensaio é justamente essa problematização. Para tanto, num primeiro momento, esboçaremos uma breve análise das disposições – ou indisposições – para a relação e quais os efeitos delas nos processos de subjetivação, isto é, na dinâmica do “tornar-se aquilo que se é”. Na sequência, aproximaremos essas reflexões de um dos artigos de Jorge Larrosa em sua “Pedagogia Profana” (2010). Em “Elogio do riso”, o autor espanhol, questionando-se a respeito da falta de risos na Escola, ressalta a necessidade de se “autoironizar”, isto é, de nos percebermos construção contingente – ridícula, afinal de contas –, pois, a partir daí, conseguir-se-ia ter o “outro” como legítimo também. Da ironia de Prata, não percebida por quem fechou os olhos a um “outro” não

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Alguns casos podem ser conferidos na reportagem disponível em: http://migre.me/txlIN. Acesso em: 16/04/2016.

só possível, mas, de fato, real, à “autoironia” proposta por Larrosa – é esse o sentido que tomaremos a seguir.

“Falta amor no mundo. Mas também falta interpretação de texto” A frase acima é do blogueiro e ativista Leonardo Sakamoto. Ele a publicou em sua página pessoal do Facebook também em 2013, e os dizeres logo viralizaram na rede. A relação entre o “amor” e a “interpretação de texto”, ou de ironias, para retomarmos o artigo de Antonio Prata, é bastante cara à argumentação deste ensaio, mas é necessário, antes de continuá-lo, precisar o que entenderemos por “amor”. É imprescindível, para tanto, retirarmos a palavra de suas conotações mais ligadas aos sentimentalismos e buscarmos seu sentido em outro lugar. E é na obra do biólogo chileno Humberto Maturana (2014: 199) que encontraremos uma interpretação bastante pertinente a respeito do termo. De acordo com ele, ainda que seja muito frequente, no senso comum, estabelecer-se uma divisão entre a dimensão racional e a dimensão emocional humanas, a humanidade propriamente dita teria se desenvolvido justamente “em um modo particular de viver o entrelaçamento do emocional e do racional”. Para ele, qualquer sistema racional seria erguido sobre uma emoção fundadora, ou seja, não refletiria uma base transcendente e absoluta, pois, construídos sobre emoções distintas, esses esquemas racionais disporiam de lógicas e coerências variadas. “Toda aceitação apriorística”, escreve o autor a respeito dos sistemas de raciocínio e das ações possíveis dentro deles, “se dá partindo de um sistema emocional particular, no qual queremos aquilo que aceitamos, e aceitamos aquilo que queremos, sem outro fundamento a não ser o nosso desejo que se constitui e se expressa em nosso aceitar” (id: 204). Segundo Maturana, então, uma suposta “transcendência” ligada ao domínio racional seria ilusória. A razão, afinal, seria erguida sobre uma disposição emocional específica e, portanto, toda sua coerência e lógicas internas serviriam, de alguma forma, para justificar e recobrir esse fundo de emoção. Uma lógica erigida sobre o medo, por exemplo, organizar-se-ia em torno de fundamentos diferentes de uma que tivesse por base a raiva; sobre a desesperança, a coerência interna de um sistema racional seria distinta daquela de um raciocínio instaurado por cima do ódio. As ações decorrentes de cada um desses sistemas tendem a se limitar e a convergir a eles: um funcionário que espera um aumento salarial, quando precavido de que o chefe se encontra num mau dia, sabe não se tratar de

uma boa ocasião para pedir o reajuste, não porque alguma coisa, quando “dita na raiva, seja menos racional que uma coisa dita na serenidade, mas porque sua racionalidade se funda em premissas básicas distintas” (Maturana, 1998: 15). Quais, então, seriam as premissas básicas de um domínio de condutas racionais constituído a partir do amor? Maturana (id: 23) nos traz uma resposta: [...] O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social. Por isso, digo que o amor é a emoção que funda o social. Sem a aceitação do outro na convivência, não há fenômeno social. Em outras palavras, digo que só são sociais as relações que se fundam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, e que tal aceitação é o que constitui uma conduta de respeito. Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, envolventes e amplas, em que haja aceitação mútua num espaço aberto às coordenações de ações, não podemos esperar que surja a linguagem. Se não há interações na aceitação mútua, produz-se a separação ou a destruição.

A reflexão trazida pelo biólogo nos reaproxima de nossa discussão inicial. Em primeiro lugar, o amor, como é entendido no trecho supracitado, implica a aceitação do outro como alguém legítimo. O “eu”, portanto, reconhece no “outro” uma entidade com a qual está em pé de igualdade: a visão de mundo manifestada pela alteridade não será mais tratada como “ignorância” ou como “mentira”, afinal, no “eu” não se concentra mais a Verdade absoluta a respeito do mundo. Admitir a alteridade, em última instância, já implicaria reconhecer a realidade como algo complexo, maior do que as versões únicas com as quais, muitas vezes, tentamos capturá-la. É esse reconhecimento que cria as possibilidades para a dimensão social humana – sem aceitar o outro como um “legítimo outro na convivência”, essa socialidade não seria possível. Assim, talvez nos fosse permitido alterar a relação conjuntiva entre os dois períodos da máxima de Sakamoto. No lugar da adversidade do “mas”, caberia pensar uma relação de causa e consequência: falta interpretação de texto porque falta amor. Conforme indicamos na apresentação do ensaio, a não compreensão da ironia do artigo de Antonio Prata pode ser entendida como um sintoma de uma relação rompida, já que não se enxergaria como legítima uma outra possibilidade interpretativa sobre a realidade: para aquele que crê no X como verdade absoluta, o “não-X” ao qual aponta a ironia não tem espaço algum. Se o amor, então, é a emoção que enxerga no outro, e em toda a potência de alteridade que este carrega, em tudo aquilo que o faz radicalmente diferente do próprio “eu”, um alguém

legítimo, a incapacidade de interpretar a ironia textual indica a falta desse amor, ou seja, indica uma dinâmica humana em que aquilo que difere do “eu” não goza, aos olhos deste, da mesma legitimidade existencial. Enfim, falta interpretação da ironia, porque falta amor. Sem esse amor, já nos alertara Maturana, “produz-se a separação ou a destruição” da relação, do vínculo social. Fechamo-nos sobre nós mesmos e deslegitimamos a presença de qualquer manifestação que escape a esse encerramento. Ensimesmados, tendemos a intensificar o processo de distanciamento, uma vez que o diferente passa a ser reduzido a um estereótipo e, como tal, deixa de reunir as condições necessárias para afetar o “eu” encastelado. Spinoza, para quem a mente e o corpo não são entidades distintas, em sua “Ética” (2010: 359), afirma que “quanto mais o corpo é capaz, de variadas maneiras, de ser afetado pelos corpos exteriores e de afetá-los, tanto mais a mente é capaz de pensar”. Quanto mais esse “corpo exterior”, todavia, é retirado de cena, é colocado do outro lado de um muro, é reduzido à cor de uma camiseta, menos o “eu” é capaz de se deixar afetar e, por conseguinte, mais se diminui a amplidão de seu pensar, mais seu pensamento se superficializa. Perto da superfície, aliás, são raras as opiniões próprias, aponta Nietzsche (2005: 249). Segundo o autor alemão, “a primeira opinião que nos ocorre [...] não é geralmente a nossa própria opinião, mas sim aquela corrente, de nossa casta, posição ou origem”. Quando, porém, é apenas a essa casta, a essa posição e a essa origem que expomos nosso pensar, não é estranho que ele se cristalize em referências já conhecidas. Num outro trecho da “Ética”, Spinoza (id: 133) afirma que as noções que a mente humana é capaz de formar têm a ver com a capacidade corporal de ser afetado. O autor exemplifica o raciocínio escrevendo que “os que frequentemente consideram com admiração a estatura dos homens compreenderão, pelo nome de homem, um animal de estatura ereta; os que estão acostumados a considerar outro aspecto formarão dos homens outra imagem comum”. Na sequência, o filósofo conclui que “cada um, de acordo com a disposição de seu corpo, formará imagens universais das outras coisas”. Sendo, portanto, irrisória a variedade de afetos, essa universalidade percebida pelo “eu” é não mais que um espelho. Ele passa a se realimentar daquilo que é ele mesmo e, em tal processo, transforma suas crenças e convicções em Verdade absoluta, pois que nada mais as desestabiliza. A superfície do discurso irônico, então, por sua semelhança com a convicção, torna-se a própria realidade; a interpretação distinta daquela em que se crê de antemão, enfim, é sufocada e desaparece.

Spinoza receita-nos, para combater essa mente obtusa, que nos alimentemos de uma exterioridade diversificada (id: 359). Fazê-lo é condição para percebermo-nos em relação com o exterior. Percebermos, aliás, o quão tênues, e quiçá ilusórias, são as linhas que distinguem o interior do exterior. A mente é recheada pelo lado de fora e se torna mais potente conforme o permite entrar. É essa, aliás, a forma da ética para o autor holandês: compreendendo que quanto mais não impedir que o outro busque toda a sua potência de ser e que a realize, o “eu” pode também aumentar a sua própria potência, pode realizarse mais. Para Spinoza, negar o que é diferente – algo que faria todo o sentido em uma ética estabelecida a partir do medo –, portanto, seria diminuir a potência. Para ser, é preciso que tudo e todos sejam: a ética do autor é alegre e afirmativa, ela não nega, não inviabiliza a relação com um outro carregado de uma alteridade radical. Dessa maneira, a partir do momento em que o “outro” é subtraído do campo de relações, o discurso do “eu” se cristaliza para ele mesmo como realidade exata e, seguindo a mesma linha, ele mesmo passa a se crer como tal. Em outras palavras, ele deixa de se perceber construção atravessada por imagens construídas de forma plural e passa a se pensar como coisa dura e definida. Ensimesmado, perde as rédeas da própria criação de si: sua voz é eco de verdades já constituídas; sua existência não é mais produção com autonomia em relação ao entorno, mas sim uma reprodução deste. Nesse momento, a identidade se enrijece, começa a ser escrita com “I” maiúsculo. Jorge Larrosa (2010: 49), analisando as formas com as quais lidamos com o mundo, as quais possibilitam nossa relação com ele, defende ser preciso tomar cuidado para que a “forma” não se converta em “fórmula, em bordão, em rotina”, pois isso mata a relação com o mundo, já que o fecha e o falseia, ou seja, faz crer que ele é exatamente a forma. É-nos possível tomar suas palavras para examinar também a identidade: tornando-se fórmula, ela fecha o mundo para o diferente, para o vir a ser. Despotencializado, resta a esse “eu” cercado por muros a prepotência de ser dono da verdade. O amor, a relação, o vínculo social, a interpretação de textos e a ironia, porém, são insubordinados aos muros.

Amor: humor Em um curtíssimo poema, sob o título “Amor”, Oswald de Andrade (2006: 45) se limita a escrever um único verso: “humor”. A brincadeira do modernista mobiliza termos

próximos demais da reflexão que tentamos desenvolver para a deixarmos passar. A conexão íntima que o poeta traça entre os dois vocábulos, para este ensaio, ultrapassa a proximidade sonora, e os busca enquanto disposições emocionais, isto é, enquanto fundamentos de ações e de razões que permitem reconhecer o “outro” como legítimo. Se o amor, entendido aqui a partir de Maturana, encontra dificuldades de se estabelecer e criar as condições para a legitimação do outro, talvez seja porque há pouco humor e muita seriedade do “eu” em relação a si mesmo. Schopenhauer (apud Alberti, 2002: 176), para quem o riso surgiria da incongruência entre a realidade e o conceito que usamos para capturá-la, afirma que, pelo contrário, a seriedade seria oriunda da sensação de concordância total. Para ele, “o sério está convencido de que pensa as coisas como elas são e de que elas são como ele as pensa”. Ora, quanto menos percebemos e admitimos interpretações distintas a respeito do real, menores as possibilidades de desconfiar de que a nossa não é a única, ou seja, de que ela não concorda integralmente com o mundo. Aos poucos, esse processo tende a colar de forma inequívoca a interpretação à realidade – ou seja, aos poucos, a realidade não comporta mais o diferente e se enche de seriedade. O caminho inverso, portanto, parece-nos possível. Se a seriedade é efeito de uma visão de mundo em que o outro foi de tal forma excluído que seus posicionamentos e interpretações sequer são percebidos pelo “eu”, talvez fazer esse “eu” rir de si mesmo, isto é, descolar da realidade o seu próprio esquema interpretativo seja um caminho para que o “outro” volte a ser um “legítimo outro na convivência”. Invertamos, enfim, a ordem de leitura do poema de Oswald – quem sabe não é do humor, do rir de si mesmo, que se pode chegar ao amor, ao reconhecimento do outro? A ideia, é bom que se diga, não é nova nos estudos a respeito do humor. Em um texto de 1900, o escritor italiano Luigi Pirandello já fizera uma análise similar: para ele, de um riso surgido quando percebemos que algo foge ao que deveria-ser, o que ele chama de “advertência do contrário”, algo ainda no campo da razão que define um programa para a realidade e nota quando algo foge a ele, seria possível, por meio do humor, chegar a uma espécie de “sentimento do contrário”. Neste caso, descreve o autor, ao olharmos mais de perto aquilo que, no objeto de nosso riso, notamos fugir de um esquema qualquer, perceberíamos que, no limite, o próprio esquema não se sustenta, pois seria uma mera tentativa humana de frear a irrefreável realidade. “A vida”, escreve ele, “é um fluxo contínuo que nós procuramos deter em formas estáveis e determinadas” (2009: 169), e o

homem, ao tentar definir essas formas, “faz rir, se se pensa”. Uma vez que ri de alguém porque esse alguém não cumpre uma determinada expectativa, o riso depende da crença na expectativa; Pirandello, contudo, faz ruir a própria pretensão da expectativa. Risível, então, seríamos todos nós em nossa busca vã de definir como absoluta a forma (ou fórmula) em que enclausuramos o real. Estar disposto a esse riso é, de certa maneira, abrir mão da carapuça de “dono da verdade”. Em lugar da carapuça, talvez vista-se melhor um chapéu. De bobo. É Nietzsche (2012: 124) quem o sugere: Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando para poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada nos faz tão bem como o chapéu de bobo: necessitamos dele diante de nós mesmos – necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós. Seria para nós um retrocesso cair totalmente na moral, justamente com a nossa suscetível retidão, e, por causa das severas exigências que aí fazemos a nós mesmos, tornarmo-nos virtuosos monstros e espantalhos. Devemos também poder ficar acima da moral: e não só ficar em pé, com a angustiada rigidez de quem receia escorregar e cair a todo instante, mas também flutuar e brincar acima dela! Como poderíamos então nos privar da arte, assim como do tolo? – E, enquanto vocês tiverem alguma vergonha de si mesmos, não serão ainda um de nós!

O chapéu de bobo propagandeado por Nietzsche joga por terra qualquer pretensão de realidade. Em primeiro lugar, ele não é colocado no outro, é colocado sobre o próprio “eu”, como uma condição para que ele mesmo, “pesado e sério”, possa pairar, “exuberante, flutuante, dançante, zombeteiro, infantil e venturoso” por cima das coisas. Em segundo lugar, como uma consequência de vestir o chapéu de bobo, é importante notar que o pensamento produzido daí tem esse acessório como ponto de partida, isto é, a disposição sobre a qual se organizam os sistemas racionais e os conjuntos de ações dele derivados têm origem numa disposição humorística. Quais os aspectos e qual a força do idealismo platônico, por exemplo, se colocássemos o chapéu sobre o grande filósofo grego? Como governaria o príncipe, caso Maquiavel escrevesse vestindo tal acessório? E os iluministas: qual o humano a ser defendido pelos direitos universais se Rousseau e Voltaire usassem o indumento? Como, por fim, seria recebido este ensaio no caso de seu autor comparecer ao Colóquio trajando o artefato?

Rir de si, a partir daí, significa perceber em si mesmo a discordância inevitável entre realidade e discurso. É arma contra o costume de colocarmos em alta conta nossas próprias crenças e de nos deixarmos cristalizar em torno delas. É a própria materialidade corporal que, de pedra dura em estátua erguida em homenagem a um “eu” demasiadamente seguro de si mesmo, transforma-se em superfície úmida e fértil para receber, do outro, a possibilidade de tornar-se mais potente, de recriar-se, de reinventarse. Rir de si, assim, é condição para o amor, para o reestabelecimento da relação. Mas ainda precisamos levar esse riso para o interior da escola. Levemos para lá, pois, junto de Jorge Larrosa (2010: 167), nosso chapéu. Questionando-se a respeito do pouco riso que se ouve no interior da instituição escolar, o professor espanhol afirma que a Escola se caracteriza pela seriedade – talvez porque, podemos acrescentar, ela desconfia pouco da incontornável incongruência entre o que pretende ensinar e a realidade sempre fugidia. Larrosa, então, indaga-se a respeito do que poderia ser dessa instituição caso trocássemos a respeitável toga de professor pelo chapéu de guizos: a ironia crítica, escreve ele, “que se toma a si mesma como objeto é, ao mesmo tempo, o alimento e o veneno de nosso mundo, a garantia de seu próprio dinamismo, de sua própria abertura” (id: 182). Uma escola sem medo de mostrar as fissuras em seus muros, de assumir seus fundamentos como contingentes, mutáveis, incertos é, nesse sentido, o máximo de rebeldia em um mundo de muros aparentemente indestrutíveis. Que ela mesma se ridicularize, então, parece uma condição para que possa ser um lugar de onde surjam relações potentes e alegres, em que “eu” e “outro” reconheçam-se numa existência legítima. Sua rebeldia é rir no meio da seriedade, é não se levar a sério, é ser capaz de dançar com o “outro” em terreno em que se marcha para a guerra contra ele. É ironizar-se, como propõe Larrosa (id: 180): O chapéu de guizos não é uma máscara a mais, mas é uma garantia contra a fixação das máscaras. O chapéu de guizos é o que põe a nu que toda roupagem é máscara, que todo rosto é máscara, e impede que as máscaras, crentes de si mesmas, se solidifiquem e se ressequem. E essa é sua contribuição para a aprendizagem: não a destruição das máscaras, mas o reconhecimento de seu caráter de máscaras e o impedimento que se grudem completamente. O chapéu de guizos da agilidade permite que a consciência continue fazendo piruetas. E, então, o baile de máscaras converte-se em uma alegre dança.

Como delinear relações mais alegres e potentes entre nós e os outros nas ações de aprender e ensinar? Rindo de si, enfim. Fazê-lo traz para perto o “outro”, junto do qual,

numa relação calcada no amor, podemos dançar ao som de uma melodia efetivamente plural, podemos rir das ironias, pois que não mais nos fechamos para a complexidade do real.

Referências Bibliográficas ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. ANDRADE, Oswald de. Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 2006. LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 2ªed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Cristina Magro, Miriam Graciano e Nelson Vaz (orgs). 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. _____________________. Emoções e linguagem na educação política. trad: José Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. trad: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ___________________. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2005. PIRANDELLO, Luigi. Do teatro no teatro. J. Guinsburg (org.). São Paulo: Perspectiva, 2009. SPINOZA, Benedictus de. Ética. trad: Tomaz Tadeu. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.

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