O ano político de 1958 na correspondência do embaixador José Nosolini para Salazar

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O ANO POLÍTICO DE 1958 NA CORRESPONDÊNCIA DO EMBAIXADOR JOSÉ NOSOLINI PARA SALAZAR Selecção, introdução e notas de José Barreto Instituto de Ciências Sociais ‒ Universidade de Lisboa, Fevereiro de 2015

INTRODUÇÃO

José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão (10.2.1893-7.1.1968) foi um advogado, administrador de empresas, político, deputado à Assembleia Nacional e diplomata de nomeação política. Era natural do Porto e licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1914. Católico e monárquico, foi companheiro de Salazar e Cerejeira no CADC em Coimbra e colaborador do órgão deste, o Imparcial (1912-1919). Integrou até 1925 o Centro Católico Português (de que foi candidato a deputado em 1918), passando depois a promover a criação de uma "Milícia Lusitana", inspirada nos fasci italianos e nas milícias espanholas somatén, projecto que abandonou em 1927. Aderiu depois à União Nacional e foi deputado nas I, III, IV e V legislaturas da Assembleia Nacional, governador-civil do Distrito do Funchal (1938-1941), administrador da Companhia de Ambaca, da Companhia de Fomento Colonial e da Sociedade Nacional de Fósforos, embaixador na Santa Sé (1950-1954) e em Madrid (1954-1959), governador do Banco de Angola (1959-1962), vice-presidente da companhia petrolífera SONAP e presidente da assembleia-geral do Banco Fonsecas & Burnay. Amigo e “partidário incondicional” de Salazar, José Nosolini foi-lhe “devotado”, segundo Franco Nogueira, durante mais de meio século. Conselheiro dos mais escutados pelo ditador, era dos poucos que lhe falavam num tom familiar, prestando-lhe informações de carácter reservado, aconselhando ou desaconselhando nomes de pessoas para cargos do governo, da administração central, da banca, etc. e opinando sobre os mais diversos assuntos. As cartas de José Nosolini adiante transcritas, na sua quase totalidade enviadas de Espanha, foram seleccionadas entre a correspondência do ano de 1958, o último da sua missão em Madrid. Nosolini completara já 65 anos e entrara no quinto ano como embaixador em Espanha, tendo apresentado credenciais a Franco em 4 de Março de 1954. Aparentemente, Salazar não dispensava os seus conselhos, mesmo à distância. O ano de 1958 foi fértil em acontecimentos, constituindo um momento crítico do Estado Novo: a luta entre facções do regime em torno da eleição presidencial; a agitada campanha eleitoral do candidato da oposição, general Humberto Delgado; a remodelação governamental de Agosto, com a saída de Marcelo Caetano e Santos Costa do governo; o caso do bispo do Porto a partir do mesmo mês; e, por fim, a continuada agitação pós-eleitoral, cuja repressão levaria ao pedido de asilo político de Humberto Delgado na embaixada do Brasil em Janeiro de 1959. A correspondência aqui reproduzida, em que as relações do regime de Salazar com a Igreja são frequentemente abordadas, é de relevante interesse histórico, dada a

experiência de Nosolini como embaixador no Vaticano e em Madrid, bem como o relacionamento que há muito mantinha com a hierarquia católica. Na sequência da divulgação clandestina da famosa carta a Salazar do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que teve grandes repercussões nos tempos que se seguiram às eleições presidenciais de 1958, Salazar recorreu ao seu amigo Nosolini, começando por lhe enviar para Madrid uma cópia da missiva do bispo. O embaixador em Madrid, que tinha estado directa e indirectamente envolvido nos antecedentes do caso, voltaria a intervir nele, escrevendo uma carta ao bispo D. António Ferreira Gomes, que aqui se anexa no local pertinente. Entre outros assuntos abordados nas cartas de Nosolini para Salazar que aqui se reproduzem, destaquem-se as passagens sobre o general Humberto Delgado, quer por ocasião da sua candidatura à presidência da República, quer no período pós-eleitoral, em que o candidato derrotado se lançou na tentativa de criação do Movimento Nacional Independente, procurando, inclusivamente, que um seu representante pessoal, o arquitecto Artur Vieira de Andrade, portador de uma carta sua, fosse recebido em audiência pelo bispo do Porto. São também abordados alguns aspectos da crise interna do regime que levaria à remodelação governamental de Agosto de 1958, com a saída dos ministros Santos Costa e Marcelo Caetano, entre outros. As cartas de José Nosolini provêm do núcleo Correspondência Diplomática (CD) do Arquivo Salazar (AOS) da Torre do Tombo (TT). Este volumoso núcleo inclui, entre muitos outros itens, a correspondência do embaixador Nosolini para Salazar entre 1950 e 1959. As cartas são reproduzidas integralmente, embora algumas delas abordem colateralmente questões mais pessoais, relacionadas com a carreira diplomática de Nosolini. Aparentemente desgostoso por ter de abandonar o lugar de embaixador em Madrid, Nosolini valeu-se de uma curiosa argumentação para tentar conseguir, sem êxito, o apoio do chefe do governo ao seu visível desejo de permanecer na capital espanhola, apesar de ter atingido nesse ano o limite de idade como embaixador. Em 1961 tentará de novo junto de Salazar o regresso à embaixada em Madrid, novamente em vão. Corrigiu-se e actualizou-se a ortografia, mas conservou-se, em geral, a deficiente pontuação original, excepto quando o sentido podia ser afectado.

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1. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fls. 21-26. Carta de José Nosolini, de Madrid, em 5 de Maio de 1958, para Salazar, com indicação por este de Recebido a 9 de Maio de 1958. No canto superior esquerdo da primeira página Salazar escreveu a lápis: secreto. [Madrid,] 5 de Maio de 1958 Meu Caro Salazar As informações que chegam do Porto de alguns dos mais devotados amigos nossos são no sentido de que causou certa perturbação a candidatura do Humberto Delgado. Diz-se que ele é bom elemento da Situação, embora discordante em relação a um ou outro ponto da acção política actual, mas que isso oferece vantagem porque pode constituir força revigorada e abrir caminho para sã continuidade1. Isto explica em parte a conversa que – em inteira boa-fé, creio-o – teve comigo o adido militar 2 ao dar-me a notícia que estivera com esse candidato aqui e que ele o encarregara de me pedir escusa por não ter tempo de vir cumprimentar-me, mas que por ele me mandava os seus cumprimentos. Eu respondi com muito boas palavras e ouvi. O adido explicou que o candidato era muito inteligente e sabedor e muito rijo; que o seu desejo era de trabalhar com o Dr. Salazar, devendo, porém – parece – tratar logo de esclarecer certos problemas da vida nacional. Era, por exemplo, pessoa para ter força para reunir as mais altas e mais firmes individualidades da Situação, incluindo os Embaixadores..., para os ouvir e assentar na maneira de garantir a continuidade política no caso de faltar ou de se impossibilitar o Presidente do Conselho. Perguntei-lhe se o considerava pessoa serena e ele respondeu-me imediatamente que era pessoa valente e decidida e que lhe parecia que, como não era proposto o General Craveiro Lopes, as suas probabilidades de êxito aumentavam. Perguntei-lhe se soubera o que tinha vindo fazer a Madrid; respondeu-me que ele lhe dissera que viera descansar. Hoje, porém, fui informado pelo Freitas da Costa3 que um agente da United Press lhe contara o seguinte: Foi procurar o General; perguntou-lhe por que motivo viera a Madrid. Este respondeu que tinha aqui muitos amigos, que se propunha a Presidente e que viera, pois, descansar e consultá-los. Foi esta a palavra, segundo o tal agente, e, então este perguntou-lhe: ‒ Amigos portugueses ou espanhóis? O General, vendo, explicou: ‒ Eu não falo nem compreendo bem o espanhol. Eu quis dizer conversar com amigos, porque vim apenas descansar. Depois disso não lhe arrancou mais palavra.

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No dia seguinte à recepção desta carta por Salazar, a 10 de Maio, Humberto Delgado abriu a sua campanha eleitoral com uma conferência de imprensa em Lisboa, na qual, referindo-se à atitude a tomar para com o chefe do governo caso ganhasse as eleições, declarou que obviamente o demitiria. 2 Tenente-coronel José de Oliveira Vitoriano, adido militar da Embaixada em Madrid (F. Ribeiro de Meneses, Salazar, Alfragide: D. Quixote, 2010, p. 456). Já com a patente de general, Oliveira Vitoriano foi subsecretário de Estado do Exército no governo de Marcelo Caetano (1970-1972). 3 Eduardo Freitas da Costa (1915-1980), jornalista, escritor e colaborador assíduo do órgão de propaganda do regime, o SPN, depois SNI. Nos anos 1950 trabalhou na Embaixada de Madrid como adido de imprensa. Após o 25 de Abril exilou-se em Madrid, onde escreveu os livros Acuso Marcello Caetano (1975), Portugal Urgente (1978), Para uma Nova Fundação de Portugal (1978), Spínola, o Anti-general (1979) e História do 28 de Maio (1979).

Entretanto chegou aqui o Luís Lupi4. A conversa com este teve excepcional interesse. Reduzo-a ao principal. Quando lhe perguntei novidades sobre a eleição começou por lamentar que o Presidente Salazar não houvesse aceitado a natural ascensão. ‒ Eu teria falado ultimamente com o Presidente do Conselho? Não me teria parecido que estava cansado? Respondi-lhe que não. Calou-se. Vi que não concordou e levantou o célebre problema da continuidade. Conversámos longamente à volta disto e a certa altura eu disparei-lhe esta: ‒ Entendo que uma das razões por que Salazar não aceitou a candidatura foi por não querer prender-se à função até à morte. Quem conhece bem o Salazar pode compreender que o seu verdadeiro e íntimo desejo é acabar naturalmente como político. Passados uns anos deve querer ir para Santa Comba como qualquer outro português que terminou os seus trabalhos. Os olhos do senhor luziram. Gostou. E passado instantes dizia: ‒ A eleição do Tomaz é um triunfo do Santos Costa. Eu admiro o Santos Costa e gosto dele, mas entre ele e o Marcelo 5 entendo não poder hesitar-se. E receio que o Marcelo seja o cordeiro imolado pelo Presidente do Conselho 6. Disse-lhe que o Marcelo tinha magníficas qualidades que o Presidente Salazar muito admirava e que o juízo dele, Lupi, me parecia inteiramente errado, como errada era a sua ideia de Salazar se agarrar apaixonadamente ao poder. O Lupi não se mostrou muito convencido e atalhou que o Presidente Salazar era admirável, grande na sua força e no seu prestígio, mas que por isso mesmo teria interessado a sua eleição para preparar o futuro. Depois falou-me na candidatura do Humberto Delgado. Perguntou-me se eu soubera o que tinha vindo aqui fazer. Disse-lhe que me constava que viera descansar. Então ele disse-me: ‒ Eu só desejava saber a razão pela qual ele se candidatou e como consegue suportar as despesas da campanha eleitoral. E acrescentou: os jornais americanos trazem na primeira página e com relevo uma fotografia desse novo candidato, referindo que é um grande amigo da América. Um americano, parece que jornalista, teria tido uma conferência com o General e, no dia seguinte à sua saída para Lisboa, saía por sua vez para Londres. Isto seria certo? – perguntou-me. Respondi-lhe que não sabia. Pareceu-me que não acreditou. 4

Luís Caldeira Lupi (1901-1977), jornalista e escritor, correspondente em Portugal das agências noticiosas Associated Press e Reuters. Fundou em 1944, com o apoio de Marcelo Caetano, a primeira agência noticiosa portuguesa, a Lusitânia, voltada para a informação sobre o Ultramar e financiada pelo governo. A Lusitânia antecedeu de três anos a agência ANI - Agência de Notícias e de Informações (1947-1974), também financiada pelo regime. Em 1958, Luís C. Lupi publicou A Informação e a Formação da Opinião Pública no Ultramar Português. Em 25 de Abril de 1974 a Lusitânia foi encerrada pelos militares revoltosos e, pouco depois, Luís C. Lupi partiu para o exílio, onde aparentemente morreu. 5 Marcelo Caetano, à data ministro da Presidência, pasta que ocupou de Julho de 1955 a Agosto de 1958. 6 O ministro da Defesa Fernando Santos Costa (1899-1982), um “ultra” do regime em quem alguns viam um possível sucessor de Salazar, opusera-se à recandidatura do presidente Craveiro Lopes. Especulara-se que Caetano, alegado representante do salazarismo reformista, seria apontado por Craveiro Lopes, caso este fosse reeleito, para suceder a Salazar. Afastada por Salazar a recandidatura de Craveiro Lopes, Caetano tentara, em vão, convencer o chefe do governo a candidatar-se à presidência – como, aliás, vinha defendendo desde a década de 1940. Tanto Santos Costa como Marcelo Caetano, que protagonizaram esta crise nos bastidores do poder, iriam ser afastados do governo em Agosto de 1958, como resultado das pressões exercidas pelas respectivas facções sobre Salazar.

Fora disto falou-me do que por cá fizera. Foi falar com o Embaixador Manuel Aznar, director da EFE7, para lhe dizer que estava sempre às ordens da Agencia EFE para combinar com ela a troca de notícias com a Lusitânia. Sabia que havia um esboço de contrato com a ANI mas não se metia de permeio, nem o moviam interesses que não tinha com isso. Eu esclareci-o de que, na verdade, me parecia que ainda havia algo de pé, mas que talvez o Marcelo pudesse esclarecê-lo melhor. Na opinião dele o que havia não tinha sido iniciado pelo Marcelo. O arranjo preparado tinha inconvenientes em seu entender, mas o principal interventor teria sido o Paulo Cunha8. Outro assunto que tratara fora o de dar notícia a Nicolás Franco 9 da marcha brilhante da Sonaefa [?]. Creio que é assim que se denomina uma célebre empresa nova que pretende fazer tudo e mais alguma coisa em Angola e Moçambique. Agora, segundo me referiu, vai lançar uma emissão de duzentos mil contos e é a primeira em que poderiam interessar-se capitais estrangeiros. Não conheço bem isto, mas creio tratar-se de uma sociedade em que está metido um velho amigo meu, Eng.º Mário Filgueiras – pessoa inteligente e activa e... tão hábil que politicamente não é situacionista, ou não era. Tem assim a vantagem de comer e de não ser tubarão... Aqui tem uma carta cheia de notícias e algumas com interesse. Hoje ou amanhã vou procurar explorar alguns dos caminhos que as conversas me apontaram e, se descobrir mina de valor, voltarei a escrever. Tenho hesitado em escrever ao Marcelo. Não convirá focar alguns aspectos desta conversa? Não será preciso evitar que erradas sopradelas de certos amigos o envenenem? Sei como ele é sensível e um nada pode contribuir para magoar e para posições que a ninguém aproveitam... Que diz? Você, porém, não diga que recebeu esta carta minha. Ela é para si e só para si. Um abraço do mt.º amigo José Nosolini

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Manuel Aznar Zubigaray (1893-1975), jornalista, político e diplomata espanhol, foi director da agência noticiosa EFE e embaixador na República Dominicana, na Argentina e, nos anos 1960, na ONU. O político José María Aznar é seu neto. 8 Paulo Cunha (1908-1986) foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Agosto de 1950 a Agosto de 1958, com duas curtas interinidades asseguradas por Marcelo Caetano em 1956 e 1957. 9 Nicolás Franco Bahamonde (1891-1977), irmão mais velho do ditador Francisco Franco, foi oficial da Armada espanhola, político e, durante quase vinte anos, embaixador em Lisboa (1938-1957), onde em 1939 subscreveu com Salazar o Tratado de Amizade e Não Agressão entre Portugal e a Espanha, depois conhecido como Pacto Ibérico. Dedicou-se posteriormente a uma intensa actividade empresarial, presidindo a diversas empresas espanholas do sector automóvel e metalúrgico.

2. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fls. 41-49. Carta de José Nosolini, de Madrid, em 17 de Agosto de 1958, para Salazar, com indicação por este de Recebido a 23 de Agosto de 1958. [Madrid,] 17 d’Agosto [de 1958] Meu Caro Salazar Há dias telefonei-lhe, porque entendi ser meu dever indiscutível dizer-lhe uma palavra sobre a pessoa que me apontavam como possível ministro do Interior – pessoalmente óptimo, politicamente inaproveitável. Ainda bem que tal candidato já tinha sido posto de parte10. Mas note – repito – que, por mim, não falei tarde; falei um quarto de hora depois de aqui me chegar a notícia. Anteriormente também tive a tentação de lhe dizer mais umas palavras, por carta, sobre a crise, mas venci-me, porque isso já não seria dar-lhe uma informação sobre factos ou pessoas, mas expor-lhe o meu modo de ver sobre aspectos ou problemas políticos e, por isso, menos correcto para com o Presidente do Conselho a quem pertence a iniciativa de abrir conversas deste género. Agora, porém, arrumadas as coisas, já posso dizer algo, até como homem da rua que aprecia o novo Ministério 11 e as possibilidades que se lhe abrem. De um modo geral parece-me, pelo que aqui me chega – através de amigos e de jornais, que o Ministério caiu bem e que o ambiente político nacional tem melhorado. O tom geral, no entanto, dá-me a impressão de que não mostra ainda perfeita saúde dos espíritos. Pelos discursos que tenho lido – incluindo alguns oficiais – pela imprensa, por uma ou outra carta – e varro da ideia uma de quinze páginas do Conde de Aurora12! – parece-me que não se encontrou ainda a “tónica” salutar. Fere que se fale tanto de erros, de imperfeições, de falhas, de necessidades de corrigir e que nem ao menos se vinque marcadamente que só nós, e não os que nunca nada fizeram, é que sabemos e podemos corrigir. Isto tem valor: mostrar que temos a consciência da excelência das nossas possibilidades; que temos sempre o mérito de uma obra; e, assim, que não ocupamos o poder por favor de ninguém, mas pela compreensão justa de todos os que contam. Eu creio – e julgo acertar – que é necessário e possível chegar à natural formação deste ambiente. A quebra de ânimo provocada pelo choque psicológico de uma candidatura desvairada que provinha das nossas próprias trincheiras, o natural cansaço do governo, inalterado por circunstâncias conhecidas durante cerca de seis anos, e, ainda, algumas fantasias que hoje se chamam “inquietudes”, criaram uma atmosfera política que no meu modesto modo de ver, terá que se modificar sem hesitações.

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O ministro do Interior realmente nomeado em 14 de Agosto de 1958 foi José Pires Cardoso, que se demitiria meses depois. 11 Trata-se do governo remodelado em 14 de Agosto de 1958, com, entre outros, Pedro Teotónio Pereira como ministro da Presidência (sucedendo a Marcelo Caetano), o general Júlio Botelho Moniz na Defesa (sucedendo a Santos Costa), Marcelo Matias nos Negócios Estrangeiros (sucedendo a Paulo Cunha) e José Pires Cardoso no Interior (sucedendo a Joaquim Trigo de Negreiros). 12 José António de Sá Pereira Coutinho (1896-1969), filho do segundo conde de Aurora, era um magistrado, proprietário e escritor, assinando as suas obras como Conde d’Aurora. Católico, monárquico e tradicionalista, foi um apoiante de Salazar, mas nunca teve funções de relevo no regime.

Eu sei que todo o bem real que se proporcionou e que todas as grandes realizações deste magnífico período da nossa história são e serão pouco para quem não quiser ver. Os povos, muitas vezes, jogam todo esse bem recebido, movidos apenas por uma ilusão ou por uma paixão. E então? Então o Ministério novo há-de ter caído bem; tem figuras de relevo; traduz um pensamento de política nacional e até, como vi numa apreciação de Le Monde – “on ne manquera pas de noter que la plupart des nouveaux ministres, tous catholiques pratiquants, appartiennent à une tendance plus modérée, plus ouverte, que leurs prédécesseurs...” E mesmo o Teotónio Pereira “passe pour plus libéral, plus indépendant que son prédécesseur...” O novo Ministério há-de administrar bem e continuar a realizar bem. Mas simplesmente é certo que para isso seja e para que isso não se perca, é indispensável uma atmosfera política salutar. Pois bem: parece evidente que esta atmosfera dependeria – excluo por desnecessária a referência ao alicerce “chefe do governo” – primeiro, da própria reorganização do Ministério; segundo, de vir a condescender-se um pouco com algumas compreensíveis ambições do povo, distribuindo mais, ainda que sacrificando um pouco o ritmo das realizações; e terceiro, de se desenvolver uma campanha séria de doutrinação e, mais, de informação e de estímulo, no país e num ou noutro sector do estrangeiro. Eu lembro quanto se deve ao trabalho dos primeiros anos do Secretariado 13 e lembro o que são, lá fora, os múltiplos ataques ou indiferenças que, podendo ser em grande parte efeito de uma “poussée” comunista, não deixam de coincidir com a agonia ou marasmo desse organismo que já nos últimos tempos de Ferro pedia remodelação. Por isso estou certo de que se teria visto com agrado e de que teria tido interesse um “mudar d’agulha” – passe a expressão ferroviária – do Secretariado Nacional de Informação. Conseguirá a simples acção pessoal do Teotónio fazer reorganizar ou reviver aquilo? Chegar-lhe-á tempo? A tarefa da Presidência, ainda que – parece – aliviada, o rendimento e a capacidade de trabalho do Ministro permitir-lhe-ão vencer as dificuldades que o Marcelo Caetano, segundo creio, julgava invencíveis por si só? Por isto mesmo a até para [que] se desfizesse de vez a ideia feita de que o Ministro da Presidência é um possível sucessor do Presidente do Conselho, eu supus que exprimia a verdade de um rumor que me chegara de que se remodelaria a Presidência e se iam criar dois Secretários de Estado da Presidência. Deus queira que sem isso, pelo menos o Secretariado, se reforme e reviva. Desse sector – e ainda da reorganização da U. N., amparada discreta, mas seriamente, pelo Governo, podem brotar – creio-o bem – elementos vivos e capazes de fazer reflorir a nossa árvore. Mas, como na lavoura, farão falta: trabalho a tempo, jardineiro capaz e boa poda. Quanto à União Nacional, o Ministro do Interior14 saberá ampará-la? Eu não o conheço. Tenho vaga ideia do seu nome. Não sei porquê ligo-o ao grupo dos amigos do Albino 15. E poderá o Lumbrales16, apesar da sua dedicação inexcedível, levar aquela cruz? 13

Secretariado de Propaganda Nacional - SPN, criado em 1933, rebaptizado Secretariado Nacional de Informação, Cultura popular e Turismo - SNI em 1944. 14 José Pires Cardoso (1904-1990), professor de Economia, administrador da Caixa Geral de Depósitos e procurador à Câmara Corporativa. Pediu a demissão da pasta do Interior a 27 de Novembro de 1958, três meses e meio depois de nomeado, na sequência da prisão, a 26 de Novembro, de quatro destacadas figuras da oposição (Francisco Vieira de Almeida, Jaime Cortesão, António Sérgio e Mário de Azevedo Gomes), episódio em que se sentiu desautorizado pelo chefe do governo. 15 Albino Soares Pinto dos Reis Júnior (1888-1983), advogado, magistrado e político. Pertenceu a

E já que se fala de saneamento e de educação política aproveito este canto para falar do célebre caso Van Zeller17, do Douro. Não sei bem como o problema foi posto, mas vou seguir os factos. Depois do telefonema do Paulo Marques 18 cujo assunto é do seu conhecimento, a Maria Lívia19 recebeu uma carta da minha prima Alice que encontrou, no Porto, a Ana Maria. Esta disse-lhe entre muitas coisas que quanto aos problemas do seu marido tudo está já sossegado e resolvido. Não teria recebido ainda, nesse momento, a notícia? É possível; mas hoje – já lá vão mais de oito dias – a Maria Lívia recebeu do Porto outra carta. Esta é da Maria José Magalhães. Nela nem sequer se fala no assunto Van Zeller e isso não seria muito natural no caso de despedimento. Isso faz-me prever duas hipóteses – isto é, que os interessados se calaram, porque, feito o despedimento que se efectiva somente no fim do mês corrente, esperam ‒ 1.ª hipótese) mover o actual Ministro20, colhendo de surpresa uma excelente pessoa que, aliás, andava anteriormente no mesmo sector (coisas eléctricas); 2.ª hipótese) obter a solução de se pagar na mesma ao Engenheiro, mediante o encargo de trabalhos e consultas, embora ficando fora do quadro da empresa. Para a primeira forma é preciso mais trabalho e mais risco; para a segunda, basta só silêncio, desde que a administração queira. Se qualquer destas soluções se desse, o exemplo e o efeito deseducativo seriam terríveis. Não quero nem gosto de ferir por ferir, mas entendo que não é admissível torpedear os castigos. Para isso mais vale começar por não castigar. Eu não sei, no fim de contas, como o problema inicialmente foi posto – e pode não ter sido posto bem, isto é em termos que permitam manter bem as decisões tomadas. Desta sorte convirá sempre contar com a actuação do Paulo Marques. O Ulisses21 terá sido tão preciso com ele como você me referiu? Eu duvido-o. Seja como for aqui fica o meu aviso sem qualquer ódio, porque não o tenho e até porque me dói o prejuízo que sofrerá aquele casal, mas porque entendo ser tão deseducativo socialmente e tão inconveniente para o próprio atingido o fracasso ou o simples disfarce do castigo aplicado, que descargo a consciência sobre o que se passa e sobre as hipóteses possíveis. Quando estava, agora, para terminar esta carta chegou-me dos Açores uma do Secretário do Governo Civil de Ponta Delgada 22. Junto-a. O que nela se diz é verdade. É verdade também que ele tem feito várias tentativas para sair dos Açores e para, dentro vários partidos republicanos até 1926. Próximo de Salazar, ocupou diversos altos cargos no Estado Novo, mas no pós-guerra aproximou-se da corrente dita “reformista” de Marcelo Caetano. Era, à data, membro vitalício do Conselho de Estado, presidente do Supremo Tribunal Administrativo (1936-1958) e presidente da Assembleia Nacional (1945-1961). 16 João Pinto da Costa Leite (Lumbrales) (1905-1975) era desde 1957 presidente da comissão executiva da União Nacional, deixando esse cargo em Dezembro de 1958. 17 O engenheiro Cristiano Van Zeller participou nos trabalhos de projecto e construção da barragem do Picote, no Rio Douro, que entrou em funcionamento em 1958. 18 O engenheiro Paulo Marques foi presidente do conselho de administração da Hidroeléctrica do Douro SARL, responsável pelo projecto e construção da barragem do Picote. 19 Maria Lívia de Sá Osório da Maia e Gama Nosolini Leão (1902-1996), mulher de José Nosolini e pessoa das relações de Salazar. 20 O novo ministro da Economia, engenheiro José Ferreira Dias Júnior (1900-1966), empossado a 14 de Agosto de 1958. 21 Ulisses Cortês (1900-1975), ministro da Economia de 1950 até 14 de Agosto de 1958, tendo-lhe sucedido nessa pasta José Ferreira Dias Júnior. Em 1959, Ulisses Cortês será nomeado administradorgeral da Caixa Geral de Depósitos. 22 Sublinhado a lápis de Salazar aqui assinalado em itálico.

do seu quadro, subir. Somente há pouco teve possibilidades (porque não tinha ninguém à sua frente) para ir, embora interinamente, para o lugar de Lopes Dias ‒ se não erro – quando este ocupou um lugar no Supremo Administrativo. O Trigo23 não recusou, mas evidentemente não queria, porque me deu como razão poder ser menos conveniente para o rapaz uma interinidade que poderia terminar de um dia para o outro – mas se assim foi, também não me queixo. Tomei isso como forma amável de dizer que não podia ser. O certo é, porém, que o rapaz merece ajuda e que é trabalhador certo, dedicado e leal. Ao dizer certo quero significar que é meticuloso e bom sem ser pessoa de grandes voos. Consequentemente, se o lugar que ele pretende for considerado voo demasiadamente alto, poderá sempre admitir-se a simples melhoria de posição no quadro ou a designação para posto ou função da administração com melhor remuneração, e na metrópole ou no Funchal, sua terra, para resolver o problema da educação dos filhos. Perdoe-me, meu Caro Salazar, por o incomodar com isto, mas faço-o porque o senhor merece e porque a carta dele revela, pela primeira vez, uma certa inquietação de espírito. Descubro-a nas suas palavras “aguentei” e “com algum direito de o fazer”. Lembro-me de que, naquela altura, na Madeira, aquele aguentar era o seu maior desejo e a sua maior satisfação... Coitado! É a vida. 24 Muitas lembranças da Maria Lívia. Abraça-o o mt.º amigo José Nosolini

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Trigo de Negreiros, ministro do Interior até 14 de Agosto de 1958. A pessoa em causa lembrava, na sua carta a Nosolini que, quando este era governador-civil do Funchal (1938-1941) e passava grandes temporadas em Lisboa, era ele que “aguentava” na Madeira com os afazeres do cargo. 24

3. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fls. 52-56. Carta de José Nosolini, de Madrid, em 3 de Setembro de 1958, para Salazar, com Visto deste de 6 de Setembro de 1958. [Madrid,] 3 de Setembro [de 1958] Meu Caro Salazar Estou a preparar alguma coisa para a mala diplomática e estou a preparar-me para ir por isso mesmo a S. Sebastian que fica a uns quilómetros d’aqui e por isso não posso escrever longamente. Sobre a entrevista do Figaro cuja 2.ª parte ainda aqui não chegou falaremos depois.25 Vi a 1.ª parte porque o Castiella 26 me mandou aqui, simpaticamente, o jornal em envelope muito urgente e com um cartão em que me dizia “Que grande bomba! Salazar!” Vamos, agora, ao caso da exposição 27. Chegou aqui em envelope grande, da Presidência28, escrito à mão com letra bem parecida à sua, mas mais legível e com selos de lacre, tendo servido de lacre uma moeda de 1 escudo. Veio assim? Se veio, não foi violado. Li a prosa. Fiquei boquiaberto e não sei se não é caso de deixar cair a coisa. Em primeiro lugar, em muitos aspectos está na linha de certos elementos do sector e na forma da célebre interpelação do Daniel Barbosa 29. A este ainda se lhe podia dizer para o calar: “Diga como remedeia”. Ao senhor d’agora30, já não é o mesmo, porque, na parte social e política, ele poderá dizer as mais belas barbaridades sem compromisso e com delírio das gentes. Há porém uns pontos sobre os quais eu quero escrever-lhe: é sobre os inconvenientes e a deselegância de publicar um texto que servia de base a uma prevista conferência de trabalho. Mas há um ponto a considerar. É que ele, ao princípio da própria exposição, diz que “como não a deveria fazer publicar”, a faz a V. Ex.ª. Que se passou então para mudar? Pode ter-se dado uma das três hipóteses seguintes: 1.ª A distribuição31 foi abusiva sem seu conhecimento; 2.ª A distribuição foi aconselhada por sopradelas do diabo; 3.ª A distribuição é resposta e resultou de algum dos senhores32 ter ido dizer-lhe 25

Entrevista concedida por Salazar ao jornalista Serge Groussard, do jornal francês Figaro, publicada em 2-3 de Setembro de 1958 (vd. Salazar, Discursos, vol. VI, pp. 3 e segs.). Na carta de 8 de Setembro de 1958 (ver adiante), Nosolini voltará a falar dessa entrevista. Groussard entrevistaria Salazar novamente em 1962. 26 Fernando Castiella (1907-1976), político católico do franquismo, foi embaixador na Santa Sé (1951-1957) e ministro dos Assuntos Exteriores de Espanha (1957-1969). 27 Refere-se à famosa carta do bispo do Porto a Salazar, datada de 13 de Julho de 1958. 28 Refere-se à Presidência do Conselho de Ministros. 29 Daniel Maria Vieira Barbosa (1909-1986), engenheiro, professor, governador civil do Funchal, ministro da Economia (1947-48), deputado à Assembleia Nacional (1949-57 e 1973-74) e governador do Banco de Fomento Nacional (1965-1974). A sua demissão do governo em 1948 deveu-se à obstrução de que se sentiu alvo por parte do ministro das Finanças João Pinto da Costa Leite, com a aparente aquiescência do chefe do governo. Em Maio de 1950 escreveu uma carta a Salazar com críticas ao regime, que teve divulgação privada. Em Junho desse ano, Nosolini denunciou a Salazar a "distribuição" privada da carta, taxando Daniel Barbosa de “perigoso” (F. Ribeiro de Meneses, Salazar, p. 730, nota 72). Sob Marcelo Caetano, Barbosa foi ministro da Indústria e Energia no último mês antes do 25 de Abril. 30 Refere-se ao bispo do Porto. 31 Refere-se à divulgação da carta do bispo do Porto a Salazar. 32 Refere-se a algum bispo ou a alguém do grupo de pessoas que pressionou o bispo para ir votar, em

que V. lhes falou dela ‒ o que se deu, mas só na parte relativa à coacção (passe o termo) para votar, isto é, da primeira página ‒ espécie de prólogo. Eu, na minha carta33, baseio-me somente na 1.ª hipótese; nem sequer falo nem admito a 2.ª; e cerro o caminho a que ele, injustamente, me venha com a terceira para se defender, porque digo que ele podia34, sim, mostrar ao grupo que o foi procurar para votar, mas mostrar-lhe somente que fazia a declaração de voto ‒ quer dizer, mostrar-lhe a 1.ª página da exposição e não o conteúdo da declaração que se seguia. Como vê, isto seria, em resumida conta, o que muito natural e justamente Você fez ao falar com os senhores, e que ele ‒ digo-o por palpite ‒ quererá fazer valer para justificar o facto de se ter aberto o papel ao público. A propósito dos inconvenientes da publicidade, refiro ‒ sem aliás discutir os problemas ou os actos em si: 1.º a frase de sabor revolucionário "a organização profissional não podia deixar de ser o açaimo do operariado português"; [2.º] a situação dos católicos portugueses e a dos partidos católicos italiano e belga; [3.º] as reticências sobre nacionalismo, que poderão levar os católicos a perguntarem-se se podem ser mais ou menos contra a Nação; e finalmente [4.º] digo que com a publicação até ele 35 sofre, especialmente por ter votado. Na verdade, os católicos supunham que ele, por convencimento, tinha votado a favor 36, agora perguntarão se, afinal, por dever de consciência, teria votado em branco ou contra e, então, perguntarão mais porque foi que os induziu em erro. Mostrando assim os efeitos desastrados de se espalhar o documento, aviso-o37 de que se está a espalhar ou já se espalhou, para que ele possa evitar ou, no último caso, reprimir o abuso e, ao mesmo tempo esclarecer o Presidente do Conselho. Em todo o caso, esta carta38 só poderá ir se, na verdade, a distribuição se deu suficientemente. As informações que recebi do Porto foram que ia dar-se; as de Lisboa, como sabe, foram francamente afirmativas. Pode dizer-me uma palavra de informação? Preciso dela, não aconteça que, afinal, meta água... e me sujeite a ouvir que só aos Bispos e a dois ou três amigos foram dadas cópias. Para lá, porém, destes desagradáveis e inesperados factos, está o que é a posição do Senhor39 e o que ela representa de perigos para a Igreja e para a Nação, pela perturbação dos espíritos e pela desunião que estimula. O caso é de tratar na Santa Sé. Não é caso novo nem fácil; mas o Castiella resolveu um idêntico.40 que se incluía Lívia Nosolini. 33 Refere-se a uma carta que Nosolini estava a escrever ao bispo do Porto e que lhe iria enviar com data de 15 de Setembro de 1958 (ver aqui Apêndice à carta de 17 de Setembro de 1958). 34 Os sublinhados são de Nosolini no manuscrito. 35 Refere-se ao bispo do Porto. 36 A favor do candidato do regime. 37 Quer Nosolini dizer que avisa o bispo do Porto na carta que lhe pretende enviar. 38 A carta de Nosolini ao bispo do Porto. 39 Refere-se ao bispo do Porto. 40 Como embaixador na Santa Sé, um dos casos de que Castiella teve de tratar foi o do cardeal arcebispo de Sevilha, Pedro Segura, suscitado em 1952 por uma carta pastoral deste contra o protestantismo em Espanha, acusada de causar dano às relações da Espanha com os EUA. Castiella teve ainda de tratar com os cardeais Tardini e Montini de novo incidente provocado pelo cardeal Segura em Abril de 1953, quando este se esquivou a receber Franco na catedral de Sevilha e tomou outras atitudes desafiantes para com o Caudilho. Como resultado, a Santa Sé admoestou o cardeal Segura e criou a nova diocese de Huelva, desmembrada da de Sevilha. Em 1954, Segura também recusou cumprir o artigo 6.º da recente Concordata, que mandava rezar na missa pelo chefe de Estado (Franco), o que ocasionou nova queixa de Castiella no Vaticano. O cardeal Pizzardo, prefeito da Congregação dos Seminários e

Neste há que considerar não só que, no aspecto político, parece haver na Santa Sé muita gente que navegue nas mesmas águas, mas também que por lá pensarão como Mons. Castro41, que há, no fundo, um problema de sucessão 42. Eu sobre isto tenho reflectido muito ‒ principalmente no que respeita à preparação ideológica para dar solidez à estrutura corporativa, mas... mas... isso já não vem para aqui e, contudo, o problema poderia, talvez, vir a ser enxertado num dos aspectos políticos que o Senhor em causa 43 tocou. Fica isto para uma conversa. Saudades da Maria Lívia44. Um abraço do seu muito amigo José Nosolini P.S. Por equívoco passei a escrever em outra folha sem ter aproveitado esta página. Aproveito-a, agora, para lhe dizer que recebi notícias do norte de um amigo que fez a viagem de automóvel do Porto a Lisboa. Viu em larga extensão da estrada ‒ não me explica em que parte ‒ escrito nas indicações de viação, a vermelho e verde, as letras H.D.45 e também, nalguns sítios, a palavra Luta! Dada a extensão em que isso aparecia, esse meu amigo entende que só poderia ser executado havendo ordem ‒ quer dizer, organização.

Universidades e secretário do Santo Ofício, sugeriu então a Segura que renunciasse à arquidiocese, o que ele recusou. Em Outubro de 1954, Roma nomeou Bueno Monreal arcebispo de Antioquia e coadjutor de Sevilha com direito de sucessão. Em Outubro de 1955, após um conflito entre o arcebispo titular e o coadjutor, Roma nomeou Bueno Monreal administrador apostólico de Sevilha, retirando assim a Segura os seus últimos poderes. Segura morreu desgostoso em Abril de 1957, já com o seu “inimigo” Castiella elevado a ministro. O embaixador Castiella também teve de tratar junto do Vaticano, em 1954-55, do caso do bispo das Canárias, Antonio Pildain, que tinha publicado uma carta pastoral intitulada O sistema sindical vigente em Espanha está ou não de acordo com a doutrina social da Igreja? (1954), a qual, por questionar em termos contundentes a catolicidade e representatividade da “organização sindical” franquista, pode considerar-se até certo ponto precursora da carta do bispo do Porto a Salazar. Embora não fosse exigido o afastamento do bispo Pildain, o governo espanhol protestou junto da Santa Sé por motivo da publicação dessa pastoral e da divulgação do seu conteúdo pela imprensa vaticana (Feliciano Blázquez, La traición de los clérigos en la España de Franco, Madrid: Editorial Trotta, 1991, p. 112, e Javier Tusell, Franco y los católicos, Madrid: Alianza Editorial, 1984, pp. 363-365). 41 Refere-se a mons. José de Castro (1886-1966), que entre 1930 e 1952 foi consultor eclesiástico da embaixada de Portugal na Santa Sé e reitor do Colégio de Santo António dos Portugueses. Escreveu várias obras de história da Igreja e foi membro da Academia Portuguesa de História. 42 Entenda-se: o problema da sucessão de Salazar no poder em Portugal. 43 Refere-se ao bispo do Porto. 44 Maria Lívia Nosolini tinha-se deslocado ao Porto, juntamente com outros “católicos”, para tentar persuadir o bispo a votar nas eleições presidenciais de 8 de Junho de 1958. Com efeito, D. António Ferreira Gomes ia participar de 5 a 8 de Junho, em Barcelona, no IV Encontro Hispano-Português de Patrões Católicos e, logo de seguida, em Bruxelas, numa conferência internacional promovida pela Union Internationale des Associations Patronales Catholiques. Pressionado, o bispo acedeu a deslocar-se a Portugal no dia 8 expressamente para votar, com a condição de se encontrar posteriormente com Salazar – condição que este aceitaria, após ter consultado também José Nosolini. Foi para preparar esse encontro que o bispo enviou a 13 de Julho ao ditador a famosa carta, também descrita como “exposição” ou “memorando”. 45 Iniciais de Humberto Delgado.

4. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fls. 57-58. Carta de José Nosolini, de Alzola (Guipúzcoa), em 8 de Setembro de 1958, para Salazar, recebida por este em 10 de Setembro de 1958. [Alzola,] 8 de Setembro [de 1958] Meu Caro Salazar A Maria46 vai hoje à noite. Aproveito para continuar algumas considerações e para que o pensamento que determinou as outras se conclua. Passou uma geração que não ganhámos nem podíamos ganhar. Para a ganhar teríamos de contradizer a nossa própria formação. A Rússia ‒ que já tem desviacionismos ‒ ganhou duas gerações porque cortou a cabeça dos mestres, queimou a história e os livros que lhe conveio, fez ciência, literatura e arte rigorosamente bolchevique, fechou fronteiras e relações o exterior; fez depurações, matando. Assim acontece que temos nós uma geração à porta que na maioria ‒ digamos ‒ é contra o governo ou desinteressada. É católica insatisfeita, é católica progressista, é comunista ou é filo-comunista e é... nada. Perante este quadro não vale a pena tentar encaminhar a que está indiferente ou mais perto de nós? Isto não quer dizer seguir ou pactuar com o célebre Bispo que, aliás, é louco ou ‒ coitado! ‒ sofre do maior dos pecados, o orgulho. Não. O estudo e o plano, dentro das possibilidades, convinha ‒ parece-me ‒ ser concertado com a Igreja ‒ interesse dela e interesse incontestável da nossa terra. Seria acordar em que aceitaríamos e discretamente facilitaríamos ‒ que os católicos pela sua acção social, e sem organização partidária, formassem uma elite presumível herdeira do regime corporativo, mas que a Igreja por si não acarinharia as tendências partidárias dos católicos, como, na verdade, nalguns casos faz. Tem isto os seus quês? Tem, mas... Nós, por nós, já não ganharemos ‒ creio ‒ a nova geração. Mas para que ela se não perca [e] tanto quanto possível se mantenha dentro do nosso espírito, podemos fazer muito e podemos durar ainda. Para isto não será pequena a tarefa. Iniciou-a já Você, na entrevista ao Groussard47. Assim haja quem agora distribua o pão amassado, para que se anule ou modifique o ambiente interno e o da esquerda internacional. Porque não os outros passos? É preciso durar. Contudo a coisa está também em que o Mundo Ocidental igualmente pesa sobre nós; em política interna seguindo o falso conceito de que os países se fortalecem procurando agradar a todos e, para isso, pulverizando as forças políticas; em política externa, transigindo com o inimigo e considerando-se réu. Veja: a sua voz é talvez a única firme e serena clamando no deserto: consciência de uma doutrina, verdade do valor real do colonialismo, etc. Nessa entrevista, demais, quantas "guardas" Você prepara contra presumíveis ou já esboçados golpes! Magnífica entrevista! Tenhamos Fé. Com a ajuda de Deus, esperemos que o milagre continue! Um grande abraço do muito amigo José Nosolini

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Refere-se a sua mulher, Maria Lívia Nosolini. Referência à entrevista aqui já citada, concedida por Salazar ao jornalista Serge Groussard do Figaro, publicada em 2-3 de Setembro de 1958. 47

5. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fls. 59-62. Carta de José Nosolini, de Alzola (Guipúzcoa), em 8 de Setembro de 1958, para Salazar, recebida por este em 10 de Setembro de 1958, aparente continuação da anterior, datada do mesmo dia. [Alzola,] 8 de Setembro [de 1958] Ao correr da pena Meu Caro Salazar Aproveito a portadora para lhe escrever algumas linhas. Tinha uma carta grande, mas doeu-me a alma de lh'a fazer ler. Reduzo esta a algumas considerações e perguntas sobre o problema da sucessão política. Nós temos uma organização corporativa capaz de exprimir o pensamento e os interesses reais do País por largo e largo tempo; simplesmente não a completámos quando a Situação tinha juventude, não só por causa dos imperativos da guerra, mas também por falta de elementos preparados. Agora, vamos fazê-la, mas as dificuldades não são menores. E não temos uma nova geração formada e não podemos suceder-nos a nós mesmos. Diz-se que perdemos uma geração. Não sei se a perdemos ou se a ganhámos porque actualmente, no plano do pensamento, a medida das gerações já não iguala a fixada pelo encadeamento médio da vida humana. O que é certo, porém, é que há aí a ‒ digamos assim ‒ segunda geração, que convinha ainda agarrar. Mas nós somos velhos e somos governo ‒ duas coisas que bastam para a juventude repelir. É, pois, aqui que alguns pontos de vista da Igreja ‒ e isso há-de mover um pouco o Bispo ‒ merecem alguma reflexão. Na Espanha a Igreja sopra, sem sombra de dúvida, o movimento pró-partidos, discretamente chefiado pelo Bispo de Málaga48 e pelo Artajo49. Descubro nisso os males presumíveis do futuro e os 48

Angel Herrera Oria (1886-1968), figura destacada da Igreja espanhola, foi bispo de Málaga (19471966) e cardeal (1965). Não foi um ultra do franquismo (como o Cardeal Gomá ou o bispo de Madrid, Eijo y Garay), antes tinha uma imagem de moderado, sem ser propriamente incómodo para o regime. Jornalista e político antes de ser sacerdote, o jovem Herrera apoiara o movimento democrata-cristão em 1919 e, no início dos anos 30, fora fundador da Acção Popular, partido da direita moderada que se esforçou por colaborar com a República. Liderou a ACNP ‒ Asociación Católica Nacional de Propagandistas, corpo de elite da Acção Católica e alfobre de futuros políticos e governantes, considerado o mais influente lobby da Espanha franquista pós-1945, tanto ou mais do que o Opus Dei. Fundou, no início dos anos 30, o jornal El Debate (depois Ya), ligado à ACNP. Ordenado bispo (1947), Herrera nunca deixou de incensar o regime de Franco. Aparentemente, preocupou-o mais “A honestidade pública nas praias de Málaga”, título de uma pastoral sua. Apoiou o regime de censura à imprensa, mau grado o seu passado de jornalista. Alguns consideram-no, todavia, um elemento chave da evolução política espanhola, eficaz opositor do integrismo e pai do “catolicismo renovado” que, fazendo aceitar “o mundo moderno” pelos católicos, tornou possível, com outros factores, a conciliação das “duas Espanhas”. Foi Herrera o mentor, entre outros, do político Martin Artajo, figura emblemática do “nacional-catolicismo” do pósguerra (Vd. nota seguinte). 49 Alberto Martín Artajo Álvarez (1905-1979), jurista, ligado a Angel Herrera Horia, foi uma das figuras cimeiras do sector católico do franquismo. Foi director do diário El Debate (1931-1936), dirigente da ACNP e presidente da Acção Católica (nomeado por Franco em 1940) e ministro dos Assuntos Exteriores de Espanha de 1945 até 1957, quando o seu amigo Fernando Castiella o substituiu. Foi sob a sua orientação que foi assinada a Concordata com a Santa Sé (1953) e a Espanha ingressou na ONU (1955). Personificou o período de máxima identificação entre a Igreja e o regime de Franco. Segundo um autor, não eram as democracias parlamentares europeias o seu modelo político, mas sim o Portugal salazarista (Alfonso Botti, Cielo y dinero - El nacionalcatolicismo en España, Madrid, 1992).

perigos indiscutíveis do presente. Mas pergunto: ‒ quanto a nós ‒ não seria possível, num alto plano, acordar com a Igreja a tarefa de preparação imediata de uma elite jovem que viesse a tomar as chaves da organização corporativa? Mais simplesmente a pergunta reduz-se a isto: feita a nossa experiência; posta de pé uma estrutura que apesar da sua precaridade se tem revelado benéfica, é preferível deixá-la para que espíritos de outra formação a percam ou voluntariamente a desfaçam, ou tentar e sacrificar alguma coisa para que ela continue na vida do País a servir, conduzida por gente que aparentemente se julga diferente de nós, mas que na essência vive os mesmos princípios? Quer isto dizer que ensaiemos ou combinemos a possibilidade de formação de um partido católico? De nenhum modo e nem vale a pena estar a dizer-lhe porquê. Você sabe-o melhor do que eu. Mas não seria possível facilitar a criação de institutos sociais católicos, ligados à acção das Juventudes Católicas ‒ isto é, com carácter puramente religioso ‒ e a fundação de uma boa revista, com a finalidade fundamental de combater pela organização corporativa ou profissional livre? Nós já dificilmente faremos ver à "massa" que a organização nova virá a ser feita, ou está a ser realmente feita, de baixo para cima. O combate por gente católica para fazer coisa diferente do que foi e há-de ser sempre no espírito público. O grémio e o sindicato de direcção imposta poderá criar mística e equipas úteis para tomar conta e dar útil continuidade ao Estado Corporativo? Ou é preferível evitar tudo o que seja um claro ou disfarçado abrir de diques e, por conseguinte, ter força, insistir... e durar? A estas considerações e perguntas acrescento apenas o que Você, certamente, bem sabe: é que mesmo os Bispos, os mais insuspeitos, têm preocupações quanto ao espírito das suas juventudes. Bem vê: é que elas, como as de todos os tempos, adoram o combate e crêem que só elas sabem e poderão fazer justiça. Conquistar gente nova, sendo governo, é caçar focas no Cantábrico: aparece uma ou outra por excepção. Bom seria encaminhá-la, facilitando-lhe um combate afinal por princípios e verdades que são também nossos. Já sei no que está a pensar... No progressismo!... Mas o progressismo já é um problema a que também a Igreja vai deitando a mão severa logo que pode e em que o Governo não deixaria de intervir com mais facilidade também. E oiça ‒ já agora que abordo isto: tenho para mim que o nosso célebre Bispo tem tinturas de progressista e que com o problema que criou as revelou suficientes para uma discreta, mas útil intervenção da Santa Sé. Perdoe tanta conversa. As respostas dar-m'as-há quando conversarmos, porque por enquanto as suas tarefas não hão-de ser poucas. Parece que o Pedro Teotónio 50, Marcelo Matias51 e Silva Tavares52 ainda não 50

Pedro Teotónio Pereira (1902-1972) era então o novo ministro da Presidência, nomeado em Agosto de 1958. Monárquico e católico, tinha sido subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social (1933-1936), ministro do Comércio e Indústria (1936-1937), agente do governo português junto de Franco (1938), embaixador em Madrid (1938-1945), embaixador no Rio de Janeiro (1945-1947), Washington (1947-1950) e Londres (1953-1958), além de deputado à Assembleia Nacional (1934-1942) e procurador à Câmara Corporativa (1949-1953). Seria ainda novamente embaixador em Washington (1961-1963) e conselheiro de Estado. 51 Marcelo Mathias (1903-1999), diplomata, foi durante 24 anos embaixador em Paris. Era então o novo ministro dos Negócios Estrangeiros (nomeado em Agosto de 1958), cargo que exerceu até 1961. 52 Álvaro da Silva Tavares (1915-?) era então o novo subsecretário de Estado da Administração

começaram a trabalhar. Deve, pois, cair sobre si muita coisa. Ponto final. Vou tomar as águas e aguardar o pessoal que vem aqui almoçar comigo, depois da visita a Loyola ‒ museu das maravilhas... da arte jesuítica. Mas enfim, os jesuítas têm cabeça e isso lhes basta. Um abraço do muito amigo José Nosolini

Ultramarina, nomeado em Agosto de 1958. Tinha sido governador da Guiné (1956-1958) e viria a ser governador-geral de Angola (1960-1961).

6. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fl. 63. Carta de José Nosolini, de Madrid, em 17 de Setembro de 1958, para Salazar. [Madrid,] 17 de Setembro [de 1958] Meu Caro Salazar Uma carta telegráfica para aproveitar a mala e para não lhe roubar tempo: 1.º Mostrei ao Sr. Cardeal53 uma carta que escrevi ao Bispo do Porto54. Também a mostrarei a si. O Sr. Cardeal compreendeu-a e achou-a clara e justa. 2.º Soube que o Sr. Cardeal também lhe escreveu uma carta com as primeiras impressões, mas da qual decorria bem que não aprovava. Suponho ter falado não só nos inconvenientes que mesmo alguns dirigentes da Acção Católica notaram, mas ainda na atitude estranha de o Sr. Bispo, excedendo a sua competência, se meter em problemas políticos concretos, em problemas religiosos que ultrapassam os limites da sua Diocese (sem ter ouvido os colegas), e de tocar um assunto sobre o qual todos os Bispos portugueses haviam resolvido manter-se por enquanto em prudente expectativa. O Sr. Cardeal a quem falei na necessidade de pôr-se a Roma problema tão grave, disse-me não dever tomar a iniciativa por diversas razões55 e até porque já tivera um pequeno diferendo com esse prelado, mas que, se fosse ouvido, diria toda a dolorosa verdade. Creio não se dever perder tempo, até porque o Sr. Bispo já mandou o papel até para além-Atlântico para o Mons. Mozzoni56! Quer fazer ambiente. Ao mesmo tempo envio-lhe essa maravilhosa entrevista do Delgado. Termina o papel. Até breve. Abraça-o o muito amigo José Nosolini P.S. Preciso muito de falar consigo.

Apêndice. Carta de José Nosolini a D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, datada de 15 de Setembro de 1958, de que Nosolini enviou cópia a Salazar (TT/AOS/CO/PC51-1, fls. 248-255). 15 de Setembro de 1958 Exmo. e Revmo. Senhor Bispo do Porto 53

O cardeal Cerejeira. Carta de José Nosolini ao bispo do Porto, de 15 de Setembro de 1958 (transcrição no Apêndice a esta carta). 55 Este parágrafo sublinhado até aqui a lápis por Salazar. 56 No original está, erradamente, Monzzoni. Umberto Mozzoni (1904-1983) nasceu na Argentina de uma família italiana. Foi ordenado sacerdote em Roma (1927). A partir de 1935, desempenhou diversos cargos nas nunciaturas da Santa Sé, nomeadamente em Portugal, onde nos anos 50 terá mantido contactos com o bispo D. António Ferreira Gomes. Em 1954 foi nomeado arcebispo titular de Side e núncio na Bolívia, cargo em que se manteve até ser nomeado núncio na Argentina (20 de Setembro de 1958). Foi depois núncio no Brasil (1969-1973), tendo sido elevado ao cardinalato por Paulo VI em 1973. 54

Quando recentemente estive em Portugal telefonei a V. Excia. Revma. para me informar da ocasião que lhe seria propícia para a realização da conferência com o Snr. Presidente do Conselho, como se previra na altura em que um grupo de católicos (nele estava também minha Mulher) foi solicitar a V. Excia. Revma. que, como Pastor, mostrasse pelo exemplo às ovelhas do seu rebanho que era aconselhável naquela conjuntura votar – e votar pelo candidato que oferecia mais garantias à Igreja e à Nação. V. Excia. Revma. disse-me que poderia pensar-se em qualquer data a partir de vinte ou vinte e tal de Julho porque desejaria, para que a conferencia resultasse mais eficiente, escrever e enviar antecipadamente ao Snr. Presidente do Conselho uma exposição sobre assuntos e problemas que pretendia tratar com ele. Pois bem; tendo intervindo em tal e embora em razão das tarefas da minha vida não haja voltado ao caso, julgo-me obrigado, hoje, a escrever a V. Excia. Revma. É que acaba de me chegar às mãos um papel – possível cópia dessa exposição – que, sendo dirigido ao Snr. Presidente do Conselho, vem no final como assinado por V. Excia. Revma. Esse documento – espécie de declaração de voto como refere – diz expressamente: “como a não deveria fazer ao público, requeri fazê-la a V. Excia.” Esta frase fez-me concluir desde logo – se esse papel que anda a ser espalhado é cópia daquele que V. Excia. Revma. destinou ao Snr. Presidente do Conselho – que V. Excia. Revma., Snr. Bispo, está a ser vítima de um inqualificável abuso. Na verdade, como nesse documento se afirma e muito bem, o seu conteúdo não devia ser exibido – excepção feita quando muito, e sempre com a maior reserva, aos Snrs. Bispos e, possivelmente, às pessoas que pediram a V. Excia. Revma. que votasse; mas quanto a estas só na parte inicial referente ao pedido e decisão de votar. Pois dou notícia a V. Excia. Revma. de que essa cópia anda a ser espalhada e, segundo suponho, embora não se tenha ainda realizado a conferência com o Snr. Presidente do Conselho. Isto, evidentemente, é desagradável e inconveniente por três ordens de razões: ‒ a primeira, por se passar com um documento destinado a servir de base ao estudo de soluções ou de esclarecimento de matéria a tratar numa conferência combinada; ‒ a segunda, por o seu conteúdo envolver não só problemas – pelo menos alguns como no próprio documento se diz – sobre os quais V. Excia. Revma. não se crê suficientemente habilitado ou não tem por ora posição firme e que podem vir ainda a ser equacionados de modo diferente, mas também problemas que podem estar irremediavelmente longe de solução útil, por força de circunstâncias consideradas afinal pelas duas partes justificadamente válidas; ‒ a terceira, por se facilitar o juízo precipitado e possivelmente injusto da ”massa” impreparada sobre dirigentes zelosos e de boa-fé –

neste caso o Snr. Presidente do Conselho e também V. Excia. Revma., como verá. Em consequência: a distribuição do papel pode trazer inconvenientes para a Igreja e para a situação política; inconvenientes para o Povo português como tal e como católico; e pode ser causa de injustiças para com Vossas Excelências, e envolver deselegante incorrecção. Eu desenvolvo melhor o meu pensamento e ilustro-o: 1.º - Inconvenientes para a Igreja e para a situação política, porque só o sistema de não se tornarem públicos e de se manterem em segredo os textos ou notas que respeitam a problemas desta natureza permite o ambiente de calma, a apreciação e o estudo perfeitos que garantem a eficiência e o êxito das negociações. A governação hábil e a admirável diplomacia do Vaticano trabalham assim. A diplomacia em geral também. Exceptua-se, é claro, a diplomacia comunista, talvez porque se prefere o escândalo ou o desacordo ao acordo. 2.º Desvantagens para o Povo português, como tal e como católico, porque se lhe perturba o espírito ou se lhe aumenta a perturbação e se estimula dissensões – e isto nem sempre bem, e nem sempre com necessidade, e nem sempre com razão. Assim, a – Vem-me à ideia a frase do documento que qualifica de certa forma a organização profissional portuguesa. A frase não quis ser, sem dúvida, um slogan revolucionário, mas tem o jeito daquela outra, desgraçadamente bem conhecida, que considera a religião o ópio que adormenta os miseráveis. b – E vem-me à ideia também a referência desse documento às nossas misérias e ao bem alheio, pela qual o católico português que não viaje pode não se limitar a dobrar-se, mais cristãmente, sobre os males da casa, mas começar a sentir ímpetos de revolta consolidando ideias erradas, como serão as de supor que não há misérias nem pedintes no estrangeiro, e as de crer que o “grito de dor” dos comunistas é realmente pelos que sofrem, quando se vê afinal ser dos que sofrem trucidados por eles. Mas além disso, os católicos que viajem podem também deixar tomar alicerces no seu espírito essas impressões pouco exactas. E isto porque, quando viajam, ou não se dão conta, mesmo não salvando diferenças de circunstâncias, que encontram misérias e mendigos no estrangeiro – mendigos que não pedirão esmola, mas a esperam e a recebem, mercê do cão amestrado que mostra a salva, do violino que geme implorando, e da oferta de tabaco ou dos cigarros que vendem barato – ou porque, vão muito naturalmente ver apenas riquezas – que na gíria turística se designam como “coisas dignas de se ver”. Quem vai a Londres não se mete em Whitechapel; quem vai a Bordéus não percorre os antros das docas; quem vai a Madrid não

acompanha nos subúrbios o jesuíta Padre Llanos 57. E, por vezes, até com quem está largo tempo no estrangeiro se passa o mesmo. Eu estive vários anos em Roma, V. Excia. Revma. também. Pois eu, eu por mim, visitei museus, palácios, a Universidade Gregoriana, o Colégio Português, as ruínas admiráveis, as Embaixadas, o Vaticano, os templos magníficos. Nunca fui até às espeluncas e à miséria de Trastevere. Mas minha Mulher foi. Ia por lá todas as semanas com as suas companheiras de S. Vicente de Paula. Viu. c – E vem-me à ideia ainda a parte da exposição em que se fazem reticências sobre o nacionalismo, dando azo talvez a que os católicos portugueses se perguntem se é legítimo para eles serem mais ou menos portugueses ou mais ou menos contra a Nação. Há – sabe-se – o supernacionalismo da Igreja, mas ele constitui uma estrutura que, pairando acima das nações não é contra elas, mas até em certa medida as serve. Só as nações comunistas fazem crer – e isto porque afinal as informa o supernacionalismo comunista em luta com o católico – que este as desagrega ou subordina. Por isso mesmo essas nações criam as igrejas nacionais desligadas de Roma. Mas quero anotar que a referência a estes pontos que antecedem não se destina a discutir a matéria da exposição nem a manifestar qual é sobre ela o meu modo de pensar; destina-se apenas a pôr em evidência alguns aspectos que podem revelar bem a inconveniência de se espalhar o documento. Não sou eu a raciocinar; é o “homem da rua” a ver, a observar. E vamos agora ao terceiro ponto. 3.º - Injustiça – deselegante incorrecção, a) para com o Snr. Presidente do Conselho por o documento ser base de uma conferência de trabalho, combinada e ainda não realizada, e, consequentemente, por se poder provocar um juízo público precipitado e injusto sobre a atitude e possibilidades de acção do Governante; b) para com V. Excia. Revma., não só pelo que decorre do que vou dizendo, mas ainda por uma razão que passo a expor. V. Excia. Revma. votou. Votou e não foi coagido. Pode ter havido qualquer motivo íntimo de ordem moral que o tenha obrigado; mas não foi coagido por ninguém. As pessoas que o procuraram nem tinham função pública para o intimidar ou forçar, nem ascendente moral para lhe fazerem imposições. Pelo contrário; eram obedientes ovelhas do seu rebanho. Pediram-lhe – pediram-lhe, isso sim – que desse exemplo em confirmação pública de que os católicos portugueses não podiam 57

José María de Llanos Pastor (1906-1992) foi um jesuíta inicialmente ligado ao franquismo que, a partir de 1955, desenvolveu notável actividade junto da população do bairro proletário Pozo del Tío Raimundo, nos subúrbios de Madrid, encetando um percurso político que o aproximaria das Comisiones Obreras, sindicato ilegal que ajudou a fundar, e do Partido Comunista de España, a que chegou a aderir.

desinteressar-se na escolha do Chefe de Estado. Pediram acto ou palavra semelhante à que agora profere em França Mons. Lefèbvre, Arcebispo de Bourges58 – que se não erro é Presidente da Comissão de Doutrina da Assembleia de Cardeais e Arcebispos de França. V. Excia. Revma. esteve perante três caminhos: Votar a favor do candidato que veio a ser eleito; Votar contra; Abster-se. V. Excia. Revma. votou. Quando votou todos ou quase todos terão dito que V. Excia. Revma. votou a favor. Disseram-no os católicos que o procuraram; disseram-no as pessoas que souberam que V. Excia. Revma. veio propositadamente de Barcelona para votar. Quer dizer: disseram-no as pessoas dos dois sectores em luta, porque nessa luta ideológica que no fundo se tratava, o voto de V. Excia. Revma., como Padre, era afinal um voto aberto59. As excepções terão sido muito raras. Pois bem: assim, lida agora a exposição, muita gente e sem dúvida grande número de católicos – poderá admitir que V. Excia. Revma. votou contra. Mas, então, aqueles que votaram a favor, crendo seguir o exemplo de V. Excia. Revma., poderão passar a admitir, dolorosamente, que o seu Pastor os induziu em erro. Quer dizer: grande abuso e mau serviço praticaram aqueles que espalharam o documento que, em bom rigor, só V. Excia. Revma. e o Snr. Presidente do Conselho podiam compreender e por isso conhecer. Eis as razões, Exmo. e Revmo. Snr. Bispo, que me determinaram a vir dizer-lhe que essa exposição anda a ser espalhada. Assim, V. Excia. Revma. poderá não só procurar evitar a continuação do abuso e condená-lo, mas também, como certamente deseja, esclarecer o Snr. Presidente do Conselho, principalmente se o papel distribuído é, na verdade, cópia da exposição que foi enviada como base das conversações da entrevista combinada. Testemunhando a V. Excia. Revma. o meu muito respeito e enviando-lhe os melhores cumprimentos, beijo-lhe o Anel e subscrevo-me Mt.º Att.º e Venr. José Nosolini 58

Joseph-Charles Lefèbvre (1892-1973), bispo de Troyes (1934) e arcebispo de Bourges (1943), seria elevado ao cardinalato por João XXIII em 1960. Era primo do tradicionalista Mons. Marcel Lefebvre (1905-1991), então arcebispo de Dakar (Senegal). 59 “Voto aberto” foi a expressão com que D. António Ferreira Gomes qualificara, na sua carta a Salazar, o modo como ele fora pressionado publicamente por pessoas apoiantes do regime a deslocar-se a Portugal para votar, dado que no dia das eleições o bispo tinha compromissos fora do país. Na presente carta ao bispo, Nosolini designa impavidamente o voto do clero como “voto aberto”, pois que segundo ele, os padres, com excepções “muito raras”, votavam naturalmente no candidato do regime.

7. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fls. 64-67. Carta de José Nosolini, de Sinde, Tábua, em 1 de Outubro de 1958, para Salazar, recebida por este em 2 de Outubro de 1958. [Sinde,] 1 de Outubro [de 1958] Meu Caro Salazar Depois de ter conhecimento de algumas coisas mais sobre o problema que nos interessa, resolvi passar por Coimbra e falar com os meus dois amigos; no entanto, sem deixar de seguir o conselho do amigo de Fátima, isto é, sem fazer qualquer sugestão, mostrarei a minha carta. Se isso der conversa provocada por eles, o caso é diferente. Sigo, pois, amanhã de manhã para lá. Após as conversas tomarei o Sud e espero, por volta das 7 horas ter a primeira conversa com o Macelo Matias e, à noite, consigo. Para isso telefonarei para saber. Acabo de ler nos jornais que foram adiadas as eleições 60 e que se restringem as cerimónias comemorativas do 5 de Outubro. Quando eu era deputado discutiram-se os feriados nacionais. Fui sempre de parecer que só o 28 de Maio deveria admitir-se61. A meio da discussão recebi uma carta do Olívio França62 dizendo-me que, por eu ser um “espírito compreensivo”..., me mostrava a conveniência de manter-se o 5 de Outubro, para não dividir mais a família portuguesa. Desde esse dia mais se arreigou a minha convicção de que era erro fazer-lhe a vontade. No entanto, a falta de coragem geral ou a débil convicção da nossa razão permitiu conservar o feriado antinacional. Parece-me que, hoje, a medida adoptada é acertada, mas se se cumpre sem umas pequenas adaptações, é inútil e prejudicial até. Explico: Inútil porque, quer na romagem ao cemitério, quer na deposição de flores, se especulará e se forçará até o número com o estímulo da proibição; prejudicial: porque se argumentará que as manifestações teriam sido muito maiores se não tivessem sido condicionadas pelos “ditadores”. Quais podem ser as adaptações? Em meu entender, diversas; mas sugiro as seguintes: 1.º a autoridade faz saber às Juntas de Freguesia e aos Senhores do outro lado 63 que costumam ou querem manifestar-se, que para a romagem e deposição de flores, deverão designar por freguesia [uma] delegação de cinco indivíduos e que essas delegações é que se deslocarão aos locais; 2.º a autoridade esclarecerá que os discursos do banquete se restringirão à matéria do “5 de Outubro” e que um deles será proferido por uma pessoa que representará os elementos oficiais. Mais: poderia pensar-se em excluir a participação dos inscritos que por ligações comunistas se tornassem suspeitos de fraudar os reais objectivos do banquete. Parece-me que à volta destas ideias, aperfeiçoando um ou outro pormenor ou um 60

As eleições para as Juntas de Freguesia, que tinham sido inicialmente marcadas para fins de 1958. Refere-se, obviamente, apenas aos feriados civis. 62 Olívio França (1901-1981), advogado portuense, foi durante o Estado Novo uma figura da oposição republicana liberal e candidato da oposição em eleições dos anos 50 e 60. Foi fundador do PPD no pós-25 de Abril. 63 Refere-se, muito plausivelmente, a pessoas da oposição. 61

ou outro modo de fazer, se chegaria a resultado útil. Entendo isto tanto mais conveniente quanto é certo que o governo ou a autoridade se desprestigia se, tendo mostrado querer atingir certo objectivo, os factos atestarem que o não conseguiu. Tenho por aqui confirmado a minha convicção de que é preciso espevitar a nossa gente e os nossos quadros. Prepare-se vassoura para varrer presidentes de Câmara e muita gente que se anicha em certos serviços pela província. É coisa para fazer devagar, mas sem perda de tempo. Ponto final. Ponto final, não. Acabo de ler um número da Voz do Pastor 64 que é um “mimo” de inspiração episcopal e de... falta de Fé! De falta de fé, sim, como numa frase em que, referindo-se à necessidade de realizações materiais, vai censurando que em vez de dar rega à lavoura se limite a gente a pedir a Deus que dê chuva (!) e em que se confunde o pensamento de Mons. Montini65 que quer ‒ e bem ‒ que o padre como tal vá até ao operariado, mas mantendo-se como padre, com a loucura dos que crêem que para conquistar o operariado, deve o padre descer e ser afinal conquistado por aquele! Perdoe! Perdoe! Perdoe! Não lhe roubo mais tempo. Muitas lembranças nossas. Um abraço do muito amigo José Nosolini

64 65

Órgão da Diocese do Porto. Giovanni Battista Montini, arcebispo de Milão (1954-1963) e futuro papa Paulo VI (1963-1978).

8. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fls. 74 e 79. Carta de José Nosolini, de Madrid, em 23 de Outubro de 1958, para Salazar, recebida por este em 25 de Outubro. Anexa fotocópia de artigo da revista New Statesman. [Madrid,] 23 de Outubro [de 1958] Meu Caro Salazar O Castiella, revelando sempre o seu interesse amigo acaba de me enviar essa fotocópia. Verá qual a reacção amiga e inteligente... do New Statesman.66 Mas o que mais interessa é a nota final. Parece que por essas terras amigas se prepara reportagem escandalosa – escandalosa e velhaca.67 Teria interesse não só a intervenção da nossa missão diplomática que, contudo, pouco poderá fazer, mas ainda a preparação de uma resposta boa e a tempo. Por exemplo um folhetinzinho à laia das Notícias de Portugal 68 , com fotografias de Whitechapel e de outros antros londrinos e de Nova York e de alguns dos seus miseráveis habitantes. Isto devia ser preparado por um jornal e espalhado às mãos cheias com algumas palavrinhas – poucas – de explicação. Não se pode dormir na forma. Isto está assim. Não basta estar na verdade. É preciso gritá-la. Um abraço do muito amigo José Nosolini P.S. Sobre o meu caso preveni, particularmente, como sabe, o Castiella. Disse-lhe: 1.º que desde Fevereiro me encontrava (situação que muito me honrava) em comissão de serviço por decreto de 10 daquele mês69; 2.º que anteriormente o Ministro da Presidência 70 me indicara para governador do Banco de Fomento; 3.º que dada a sua saída eu entendia que ele era mais do que eu a pessoa indicada para tal função e, por isso, que não a aceitaria eu, viesse ou não ele a ocupá-la; 4.º que o Governo estava disposto a designar-me governador do B[anco de ] A[ngola] o que indirectamente me ligava à acção do Banco de Fomento e à execução do 2.º plano71 – o que muito me apaixonava e honrava; 5.º que lhe anunciava, pois, sob reserva, particularmente, a minha próxima saída. Ele, como lhe disse, respondeu quanto o magoava a notícia; exprimiu o desejo e a esperança de que ela não se efectivasse, dadas as possibilidades de acção comum e os 66

Ver em Apêndice a esta carta a transcrição do artigo do New Statesman. José Nosolini manifestamente não entendeu a parte final do artigo da New Statesman, onde se diz que foi o organismo de propaganda do governo de Salazar (o SNI) que convidou equipas de reportagem dos canais de televisão BBC e ITV para visitar Portugal e apresentar a “verdadeira imagem” do país, com o fim de contrabalançar as críticas que no estrangeiro se faziam ao governo de Salazar. 68 O Notícias de Portugal foi um boletim semanal publicado pelo SNI, entre 1947 e 1974, para distribuição no estrangeiro pelos consulados de Portugal. 69 Em Fevereiro de 1958 Nosolini atingira o limite de idade (65 anos) como embaixador, passando por essa razão à disponibilidade, mas manteve-se na embaixada de Madrid, em comissão de serviço, graças ao aludido decreto de 10 de Fevereiro de 1958. 70 Marcelo Caetano, que em 14 de Agosto de 1958 deixou o governo. 71 Refere-se ao II Plano de Fomento (1959-1964). 67

grandes problemas sobre os quais já havíamos trocado impressões: e, horas depois, telefonou-me para me dizer que o Caudilho lhe manifestara a mesma opinião e sentimentos e que se a triste nova se confirmasse me concederia a grã-cruz de Carlos III que como Embaixador de Portugal e pessoalmente considerava muito merecida. Neste pé está o problema. Acresce que aí o Ministro do Ultramar 72 me disse que quanto à execução conversaria consigo, sobretudo para se ver como se faria a nomeação73 e se ela seria comunicada ao mesmo tempo ou antes ou depois da notícia oficial da minha saída. Eis pois, o que falta para que, depois, o mais breve possível, mas sem precipitações que arrasam, eu começar os preparativos. Ser-me-á indispensável voltar aí, o que aliás farei à minha custa, para ultimar alguns pormenores. Agradeço-lhe, por isso, que converse com o referido Ministro e também com o meu para que, quando tudo estiver alinhavado, eu dê aí um salto. 74 Agradeço-lhe que dê conhecimento dos n.ºs 1 a 5 ao Marcelo Matias, pois quando chegar a altura de ele falar com o Ibañez Martin, convém que saiba tudo o que se passou entre mim e o Castiella. Abraça-o o mt.º amigo José Nosolini Apêndice. Transcrição do artigo “Portuguese Catholics in Revolt”, inserto no New Statesman n.º 1439, de 11 de Outubro de 1958, cuja fotocópia Nosolini anexou à sua carta de 23 de Outubro.

Portuguese Catholics in Revolt Salazar’s decision to postpone the local parish elections, due this month, and to ban celebrations on the anniversary of the Republic, are the gestures of a desperate man. Opposition is now widespread and increasingly active; and much of it is coming from quarters once faithful to the dictator, notably the church. Senhor Lino Netto, a leading member of the Catholic Information Centre, has published a leaflet calling on the church to dissociate itself from “this antiChristian, totalitarian regime”.75 He reveals that the government has banned various Catholic congresses and is constantly interfering in the policy of the Catholic newspaper, O Trabalhador 76. On 13 July, the 72

Vasco Lopes Alves sucedeu em 14 de Agosto de 1958 a Raul Ventura como ministro do Ultramar. Refere-se à nomeação de Nosolini como governador do Banco de Angola. 74 Este parágrafo destacado por linhas à margem pelo lápis de Salazar. 75 Trata-se de um texto do militante católico Francisco Lino Neto (1918-1997), intitulado “Considerações de um católico sobre o período eleitoral”, publicado em Junho de 1958 em edição do Centro de Informação Católica, depois rebaptizado Círculo de Informação Católica. A publicação do texto valeu a Lino Neto, em Outubro, um inquérito da PIDE e a prisão. O texto seria 11 anos depois reproduzido por José da Felicidade Alves (ed.) em Católicos e Política: De Humberto Delgado a Marcello Caetano, Lisboa, 1969, pp. 17-30. 76 De facto, o jornal O Trabalhador já tinha sido encerrado pelo governo em 1948. 73

Bishop of Oporto wrote to Salazar that he could no longer bear “the sight of bare-foot and ragged beggars and under-fed, pallid children” roaming the streets. The regime on which he had placed such high hopes, he said, was today run by an “economic despotism” of the corporative union, which “is nothing more than a trick for depriving the workers of their right of free association ...” 77 The bishop adds: “In Minho, the Catholic heart of Portugal, the people once joined the priests in the polling booths, but at the last election they walked away from the churches in an almost disrespectful manner as soon as the priests mentioned the election”. The Bishop of Algarve also complains of this “spiritual crisis” in his August pastoral letter; and recently the government suppressed a Catholic welfare organisation for political reasons. Salazar has tried to meet the rising tide of criticism by reshuffling his Cabinet, dismissing the hated Defence Minister, Santos Costa, and appointing two “enlightened” ex-ambassadors as deputyPremier and Foreign Minister. But he is equally concerned by adverse criticism from abroad, and this explains why his Propaganda Bureau has invited teams from the BBC and ITV to visit Portugal and present British viewers with “the true picture”.

77

Na carta a Salazar, o bispo do Porto aludia nesta passagem ao "corporativismo", erradamente traduzido pelo New Statesman como corporative union, em lugar de corporatism (corporativism) ou corporatist (corporative) system. Em outro trecho da sua carta, o bispo referia o "economismo despótico" da política de Salazar, que o New Statesman traduz aqui, erradamente, por economic despotism, em lugar de despotic economism.

9. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fl. 71. Carta de José Nosolini, de Madrid, sem data, para Salazar, recebida por este em 25 de Outubro de 1958. [Madrid, s/d, Outubro de 1958] Meu Caro Salazar Duas palavrinhas somente: 1.ª Em Roma, Mons. Ciriaci78 disse-me que se o Conclave79 viesse a decidir-se por um Cardeal não italiano, o Patriarca de Lisboa teria grandes probabilidades. 2.ª Aqui dizem-me que o grande boato de Lisboa que perturba muita gente é que Você, quando fizer 70 anos80, sairá do Governo. Consta que até um ou outro elemento superior da Legião o referiu, falando aos seus subordinados sobre a necessidade que têm de estar atentos para os riscos nesse momento se vão correr. 3.ª Em Roma também alguém disse que, como há séculos, há um Bispo de Tarso, Cardeal e que foi Núncio em Lisboa 81. O de há séculos foi Papa Inocêncio XIII.

78

Pietro Ciriaci (1885-1966) foi durante quase vinte anos núncio em Lisboa (1934-1953). Elevado ao cardinalato em 1953, foi nomeado prefeito da Congregação do Concílio em 1954, exercendo esse cargo até à morte. 79 O conclave que viria a eleger João XXIII. 80 Salazar fazia 70 anos em 28 de Abril de 1959. 81 O bispo de Tarso do séc. XX era o cardeal Ciriaci, que Nosolini aqui insinua como papabile.

10. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fl. 72. Aparente continuação da carta anterior, de Madrid, sem data, para Salazar, igualmente recebida por este em 25 de Outubro de 1958. Tive conhecimento em Roma, ao falar com o Cerejeira, do conteúdo desta carta que peço me devolva. Tranquilizei-o, dizendo-lhe que me parecia ser errada a informação. Quanto a mim, nada se reclamara contra a Acção Católica, pelo que respeita à sua actividade reconhecida pela Concordata. Do que se tratava era de não se criar confusão sobre o conteúdo da sua acção, ampliando-o a matéria política, desde que, como se sabe, se eliminara da Concordata, por acordo, o artigo que dera causa a discussões e dúvidas. O Cardeal ficou tranquilo e acrescentou que o caso do Bispo do Porto se resolveria desde que não houvesse precipitações e dentro dos processos da Santa Sé: não levantar ondas e deixar passar certo tempo para interesse geral e por interesse dos outros Bispos. Aqui tem. Abraça-o o muito amigo José Nosolini

11. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fl. 73. Aparente continuação das cartas anteriores, de José Nosolini, de Madrid, sem data, para Salazar, igualmente recebida por este em 25 de Outubro de 1958. Aí vai a resposta que me enviou o Sr. Bispo 82. É razoável e é também um mar de confusão e habilidade. O Sr. Bispo fê-la acompanhar da carta que escreveu ao arquitecto Andrade 83. Esse facto aumenta-lhe o significado. Não lhe parece? Agradeço a devolução dos documentos.

82

Trata-se da resposta do bispo do Porto à carta que José Nosolini lhe enviara, datada de 15 de Setembro. 83 Trata-se do arquitecto Artur Vieira de Andrade (1913-2005), que foi o responsável da campanha de Humberto Delgado nas eleições presidenciais em 1958. A carta de D. António Ferreira Gomes ao arquitecto, datada de 12 de Setembro de 1958, era a resposta a um pedido de audiência que lhe foi endereçado por Artur de Andrade, enquanto representante pessoal de Delgado. O bispo recusou a audiência, alegando o seu descomprometimento de qualquer “parcialidade” política e protestando contra o aproveitamento de que a sua carta a Salazar fora alvo pelas hostes da oposição. A censura impediu a publicação da carta ao arquitecto no jornal Novidades e até num boletim paroquial da diocese do Porto.

12. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fl. 80. Carta de José Nosolini, de Madrid, em 24 de Outubro de 1958, para Salazar, falando sobre Humberto Delgado. [Madrid,] 24 de Outubro [de 1958] Meu Caro Salazar Acabam de informar-me ‒ não sei se é mais um boato, já que os boatos fervem à espera de que se recomece o sistema das multas contra os boateiros, como outrora ‒ de que o ministro da Defesa 84 ofereceu ao H. Delgado o lugar de adido militar no Canadá e que ele recusou depois de dois dias de meia hesitação. A solução não me parecia interessante. O General H. Delgado já perdeu a cabeça bastante para não aceitar tais propostas e se as aceitasse desenvolveria no estrangeiro actividades no sentido político que lhe parecia útil e que era nefasto para o País. Depois, nesse caso, demiti-lo era voltar ao ponto de partida. Parece-me que se deve aproveitar o General H. Delgado, tendo em conta a sua valentia e os seus deveres para com a Pátria. Poderia ser destinado a General Comandante das Forças de Goa. Aí faria e teria de fazer bom serviço. Aí poderia até valorizar-se e acalmar-se, conseguindo porventura qualidades de serenidade e equilíbrio essenciais para a chefia que tanto ambiciona. Uns anos por lá não lhe faziam mal. Não lhe parece? Um abraço do muito amigo José Nosolini

84

O general Júlio Botelho Moniz (1900-1970) foi ministro da Defesa de 14 de Agosto de 1958 a 13 de Abril de 1961. Nesta última data liderou um golpe frustrado contra Salazar, sendo de imediato demitido pelo ditador.

13. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fls. 81-83. Carta de José Nosolini, de Madrid, em 5 de Novembro de 1958, para Salazar, recebida por este a 8 de Novembro de 1958. Anexa uma minuta de ofício (provavelmente dirigido por Nosolini ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Marcelo Matias) que o remetente pedia ao destinatário para lhe devolver ou para a "rasgar". [Madrid,] 5 de Novembro de 1958 Meu Caro Salazar Mando-lhe um projecto de ofício. Perdoe; e perdoe esta carta. Mas veja: o sorriso, aliás amigo, com que Você recebeu a ideia de eu o escrever, convenceu-me mais ainda da sua conveniência e decidiu-me a dizer-lhe, mais concretamente o que lhe disse há dias em termos vagos, por acanhamento respeitoso perante o Chefe do Governo e por saber que o meu Ministro pode sempre dar por finda a minha missão quando entender – e isso estará sempre certo e bem. O que tenho, então, a acrescentar? Isto: eu conservo-me aqui em situação rigorosamente legal e expressamente prevista na lei. Não há construções interpretativas. Há a letra expressa da lei. A lei diz assim: "Os funcionários na disponibilidade podem por motivo de interesse público e até ao número de três, ser chamados ao serviço na Secretaria ou no estrangeiro." Isto é a lei; agora a justificação do interesse público. Basta referir um ponto: a partir de 1841 cessaram as reclamações ou diligências do Governo Português à Espanha, sobre Olivença. Em 1956, porém, eu tive ensejo de pôr o problema ao Ministro Artajo 85, embora sem que se abrissem perspectivas de conversações. Contudo em 1957, e já também em princípios deste ano, foi possível voltar ao assunto com o Ministro Castiella, com o êxito de se ter admitido, mutuamente, a hipótese de negociar. De facto, abrindo-se a conversa a propósito de manifestações em Portugal por parte dos Amigos de Olivença 86, o Ministro e eu recordámos uma outra conversa que tivéramos em Roma sobre a possibilidade de restituição. Ele dissera-me então, na Embaixada de Espanha87, conversando junto do fogão de um salão íntimo: "Considero tão útil o são e sólido entendimento entre Portugal e Espanha, que se fosse preciso para reforçá-lo restituir Olivença, eu trabalharia por isso." Foi o que se recordou, mas, mais adiante, voltando-se ao assunto, o Ministro acrescentou: "Tudo o que viermos a ver ou a estudar sobre isto não deverá passar pelas chancelarias; passar-se-á, de um lado, com o Caudilho e eu, e, do outro, consigo e com o Dr. Salazar." Mais tarde – quando da viagem à Madeira – numa ligeiríssima troca de palavras – disse-me que voltaríamos ao caso quando a oportunidade surgisse. Depois junto ao Marquês de Santa Cruz, dias antes da sua saída para Londres como Embaixador de Espanha, eu deixei cair também uma palavra que foi compreendida. E recentemente,

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Alberto Martin Artajo Alvarez (vd. supra nota 49), ministro dos Assuntos Exteriores de Franco até 1957, sucedendo-lhe Fernando Castiella. 86 Associação nacionalista e irredentista fundada em 1938, sob o nome de Sociedade Pró-Olivença, por iniciativa de um grupo de alentejanos liderados pelo livreiro e editor oliventino há muito radicado em Lisboa, Ventura Abrantes (1883-1956). Em 1945 a associação mudou de nome para Grupo dos Amigos de Olivença, a que, por escritura pública de 1997, se acrescentou a designação de Sociedade Patriótica. 87 Embaixada de Espanha na Santa Sé.

antes da minha ida para S. Sebastián, tive com o Ministro da Guerra88 a conversa de que lhe dei conhecimento, na qual este me falou da atitude espanhola em relação a Gibraltar e das possibilidades de arranjo que se iam desenhando com amizade. Tenciono, como lhe disse também a si, contar essa palestra ao Castiella para lhe dizer que a solução do nosso problema é o maior trunfo de valorização para os espanhóis tratarem do seu caso. Quer dizer, "Olivença" tornou-se conversação aberta, E basta isso – creio-o, embora sejam grandes as dificuldades previsíveis – para justificar o interesse público de eu estar aqui, pelo menos até agora. Por isso mesmo já nem falo do Calheiros que, aliás, não passou à disponibilidade no momento próprio, mas depois. Eis tudo. Se depois disto Você entender que o ofício tem mérito, devolva-me por favor a minuta que vai junta para eu fazer dactilografar e seguir; se entender que revela "caturrice", rasgue-a. Ficará apenas esta carta no seu dossier, para – se necessário – atestar um dia a limpidez de posição e que não houve situação ad usum delphini. Ao mesmo tempo serve já de nota escrita sobre o caso de Olivença. Um abraço do mt.º amigo José Nosolini P.S. Gostaria de saber com uns dias de antecedência quando se dá a notícia pública das novas funções. Desculpe.

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O ministro do Exército (e não da Guerra, como escreveu Nosolini) era, desde 25 de Fevereiro de 1958, Antonio Barroso y Sánchez Guerra, que tinha sucedido a Agustín Muñoz Grandes.

14. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fl. 84. Carta de José Nosolini, de Madrid, em 17 de Novembro de 1958, para Salazar, recebida por este a 18 de Novembro de 1958, relatando um encontro com o ministro espanhol Castiella. [Madrid,] 17 de Novembro [de 1958] À pressa Meu Caro Salazar Ontem o ministro Castiella e eu combinámos um passeio a Toledo, para ver a magnífica Exposição de Carlos V e para conversar. Eu tinha de falar-lhe sobre a pergunta urgente do nosso Ministério cuja resposta foi para aí há 24 horas e que, seguramente, já passou pelas suas mãos. Durante a viagem falando, cito-lhe, por ordem: 1.º Abordou o caso do Bispo do Porto, afirmando que me podia fornecer elementos concretos sobre o que se passara com o Cardeal Segura 89 e um Bispo do [?], porque supunha poder isso convir-nos. Esclareci-o que a Santa Sé já tomara posição útil, mas ele acentuou convir estar-se atento, visto que a ela muitas vezes não desagradava ter o pé no que podia considerar "ponte de passagem"', se acaso... Ele dizia tudo isto não só por amizade para com Portugal, mas também por natural interesse de Espanha. “A minha cooperação até por egoísmo se explica”. A seguir: 2.º Falou do artigo que leu no Times sobre a proibição da conferência do Bevan90. Achou-o pouco amigo, apesar da justiça que lhe fazem a si e comentou a referência à não consideração por parte do governo português de que o Bevan pode ser amanhã o Ministro dos Estrangeiros de Inglaterra: “O governo inglês também não considerou, ao negar-me o agrément 91, que eu podia ser em breve o Ministro dos Assuntos Exteriores de Espanha, como, aliás muitos já previam.” Eu achei interesse no comentário que, aliás, podia ser completado, dizendo que o Snr. Bevan não teve em consideração, ao dispor-se aceitar cooperar no acto de política 89

Pedro Segura y Sáenz (1880-1957), cardeal arcebispo de Toledo (1927-1931) e de Sevilha (19371957), foi um dos expoentes do integrismo católico espanhol do século XX. A Segunda República expulsou-o do país em 1931, com o acordo, segundo ele, do núncio Tedeschini e de Angel Herrera Oria (democrata-cristão que preconizara a colaboração com a República, futuro bispo de Málaga). Exilado em Tarbes, Pio XI obrigou-o a renunciar à arquidiocese de Toledo. Famoso pelo seu fanatismo, intolerância em matéria de costumes, intransigência perante a Segunda República e escassa diplomacia, criou conflitos também com os falangistas e, a partir de 1952, com o próprio Franco. O Vaticano pediu então ao arcebispo que resignasse e, perante a sua recusa, nomeou em 1954 para junto dele um bispo coadjutor e, em 1955, um administrador apostólico, retirando-lhe assim os últimos poderes. Ver supra a nota 40. 90 O dirigente trabalhista inglês Aneurin Bevan (1897-1960), antigo ministro a quem se ficou a dever a criação do serviço nacional de saúde britânico, fora convidado em fins de Outubro de 1958 por cinco figuras da oposição, com Humberto Delgado à cabeça, para vir a Portugal proferir uma conferência. Em 11 de Novembro, o governo anunciou que não seria autorizada a sua vinda a Portugal. Os signatários civis do convite ‒ Francisco Vieira de Almeida, Jaime Cortesão, António Sérgio e Mário de Azevedo Gomes ‒ seriam presos a 26 de Novembro, motivando a demissão do ministro do Interior, José Pires Cardoso. 91 Fernando Castiella, que fora em 1941, em plena segunda guerra mundial, co-autor de um livro contendo diversas reivindicações territoriais espanholas, incluindo sobre Gibraltar (José María Areilza e Fernando María Castiella, Revindicaciones de España, Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1941), viria negado em 1950 o agrément do governo inglês quando foi nomeado embaixador em Londres. Em 1951, Castiella seria nomeado embaixador na Santa Sé e, em 1957, ministro dos Assuntos Exteriores.

interna de um país (para mais amigo, como Portugal) que ele próprio, amanhã, podia ser Ministro dos Estrangeiros, da Inglaterra... Mas vamos adiante. A seguir disse ao Ministro Castiella que na 2.ª feira – isto é, hoje – lhe iria oficiar, dando notícia, ou melhor, confirmando a notícia particular da minha saída. Ele reagiu dizendo novamente que não acreditava, dado o interesse das relações entre Lisboa e Madrid e, ainda mais, por motivo do que as circunstâncias ainda permitiriam fazer. Informei-o de que era certo. Então ele disse que se supusera que tudo quanto eu lhe havia dito se dissipara, e recordando o largo período da estadia de Franco (Nicolás), admitiu a hipótese de o Caudilho se dirigir ao Governo Português numa carta que ele Ministro (!) se preciso seria o próprio a levar a Lisboa. Mostrei-lhe que outros serviços me chamavam, que a minha comissão de serviço, após os 65 anos, já constituía atenção para com a Espanha e para com os interesses portugueses das relações com ela, e até para comigo, mas pareceu-me que ele se não convenceu muito; primeiro porque viu o Calheiros em Roma, justamente quando lá estava também92, conservar-se muito mais tempo e em situação diferente; depois porque, entre dentes, deixou cair uma palavra sobre a premência que podia ter a direcção de um Banco. É evidente que me agrada este testemunho de apreço que reflecte o do Caudilho, mas perturba-me ao mesmo tempo e fez-me perguntar a mim próprio se no fundo de tudo isto andava a célebre possibilidade de negociar sobre Olivença. 93 Bem sei quanto isso é difícil; bem sei como os êxitos se apresentam remotos; mas pôs-me logo a dúvida se devia ou não transmitir já esta conversa. É evidente contudo que ainda hoje telefonei ao Ministro para lhe significar por novas razões que achava bem não se fazer tal démarche, mas que pessoalmente muito a agradecia pelo apreço que comprovava. Dei ordem para comprar as acções e as depositar 94; mas isso não quer dizer que não faça o que for preciso. Em verdade, como ocupar a cadeira de um banco dá mais a ideia de servir-se do que servir, não posso deixar de dizer de transmitir-lhe [sic] toda a conversa nas suas linhas principais, asseverando-lhe o que você já sabe: farei o que quiser, sobretudo se no fundo de tudo isto está – o que aliás, contudo, me oferece dúvidas – também o caso de Olivença 95. É certo que o Santa Cruz foi para Londres com as suas ideias96; o certo é que ao deixar Madrid eu lhe afirmei – e ambos nos entendemos – que sabia o problema que o preocupava, que eu e ele tínhamos problemas iguais e por isso que devíamos manter-nos em contacto. Mas... Mas... Em todo o caso, meu Caro Salazar, descargo a consciência e por cautela só na 5.ª feira oficiarei para Lisboa e aqui para Castiella, depois de V. ter lido esta carta. Um abraço do mt.º amigo José Nosolini

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Francisco Calheiros de Meneses, embaixador de Portugal na Santa Sé a partir de 1954, posto em que sucedeu a José Nosolini. Fernando Castiella foi embaixador na Santa Sé de 1951 a 1957, onde também conheceu pessoalmente José Nosolini, embaixador na Santa Sé de 1950 a 1954. 93 Este trecho sublinhado a lápis por Salazar. 94 Esta frase sublinhada a lápis por Salazar. 95 Este trecho sublinhado a lápis por Salazar. 96 José Fernandez Villaverde, marquês de Santa Cruz, embaixador de Espanha em Londres de 1958 a 1972, onde defendeu as pretensões espanholas sobre Gibraltar.

15. TT/AOS/CD-10, pasta 1/1, fls. 101-106. Carta "pessoal e reservada" de José Nosolini, de Madrid, em 25 de Dezembro de 1958, para Salazar, recebida por este em 3 de Janeiro de 1959. [Madrid,] 25 de Dezembro [de 1958] Meu Caro Salazar Não me saiu da cabeça o célebre caso do Porto. Já aí, durante as largas horas em que estive no Patriarcado, o dei a conhecer aos nossos dois amigos 97. Agora, ao chegar aqui, uma personalidade católica, altamente responsável, já se fazia eco do boato de que o Sr. Cardeal se magoara com o seu discurso 98 e de que também o magoara o ABC desta cidade por ter transcrito na íntegra esse mesmo discurso, sem excluir a parte que respeitava aos católicos!! Quer dizer: a coisa, além de se manter, corre depressa os fios e vai fazendo mal com as verdades e as mentiras. Eu vejo três maneiras de resolver o caso: uma pelo Núncio ou Vaticano; outra pelo Episcopado; e outra por Você. No entanto, entendo que, afinal, esta última maneira não o resolverá. Resolve-o, sim, porque Você toma posição e anda; mas aumenta a brecha política. Quer dizer: afinal decide, mas não resolve. A segunda, a do Episcopado, seria a melhor e a mais fácil, se ele se decidisse. Deus queira que isso se dê. O Carneiro de Mesquita99, no entanto, está descrente. Quando o Santo Padre Pio XII era vivo 100, como o Episcopado soube a reacção d’Ele101, sentia-se amparado; a coisa ia. O Episcopado, porém, se puder agachar-se, fá-lo, porque é melhor ser vítima e mártir de um Poder que só mete medo como o pau da fábula, do que do Rei dragão, que pode vir... e, realmente, escaca os ossos... No entanto, o Episcopado, embora desacostumado dos heroísmos, é um corpo com dignidade e creioo incapaz de se encobrir atrás de uma falsa invocação dos interesses da Igreja, deixando para isso que a sua própria doutrina, tão bem posta pelo Senhor Cardeal, caia sem ser pública e unanimemente confirmada. Espero, pois, ainda que nos começos deste Janeiro o Episcopado faça a sua declaração. Contudo, parece indispensável preparar tudo. E, então, a solução boa que queda é a do Núncio ou do Vaticano. A do Núncio é e será a do Vaticano. Nestas condições, é para este que tem de se olhar. Será preciso para isso acompanhá-lo ‒ acompanhá-lo, considerando-o como ele é e não como nós queríamos que ele fosse. O Vaticano é a hierarquia. É uma hierarquia humana e internacionalizada. É preciso saber tratá-la, com rigidez, com intransigência, mas submissamente 102. Tem que 97

Provavelmente, o cardeal Cerejeira e o arcebispo de Mitilene, D. Manuel dos Santos Rocha. Alusão ao discurso de Salazar em 6 de Dezembro de 1958, na tomada de posse da comissão executiva da União Nacional, em que o ditador teceu considerações humilhantes para o episcopado e a Igreja. 99 Mons. Alberto Carneiro de Mesquita, antigo companheiro do CADC de Coimbra e do Imparcial, pertenceu ao círculo de Salazar com Cerejeira, Nosolini, Pacheco de Amorim, Dinis da Fonseca, Francisco Veloso e outros. 100 Pio XII morreu em 9 de Outubro de 1958. 101 Dizia-se em 1958, em círculos próximos de Cerejeira, que Pio XII, comentando a divulgação pública da carta do bispo do Porto a Salazar, teria exclamado: "Mas isso não se faz!" 102 Quando Nosolini foi embaixador na Santa Sé, foi censurado por "ter exposto com excessivo vigor e com quebra de hábitos protocolares a política de Portugal" relativamente à questão do padroado 98

ser um filho que chora e magoa, mas um filho. Tem que se ter Fé, entusiasmo e convicção que se chega ao fim; sem pressas, dando voltas e mantendo-se a aparência do prestígio da hierarquia ‒ mesmo daquela que não presta. É, afinal, destroçar Mons. Nigris103, fazendo-lhe reverências e beijando-lhe o anel... É tudo isto que é necessário preparar e fazer. Como? Temos em Roma o Vasco da Cunha 104 que é excelente diplomata, cheio de qualidades e dedicadíssimo. Isso bastará? Creio que não basta e digo porquê. Não refiro já a sua última doença, que pode tê-lo diminuído; nem o facto de estar ainda ‒ pelo menos por agora ‒ bastante isolado. Mas há outras razões. A primeira, é que ele, cansado, como dizia, pelos trabalhos da Secretaria Geral105, já se batia pela missão do Vaticano como antecâmara da reforma, como lugar de repouso e de poucas fadigas. Faltar-lhe-á o ânimo? A segunda é porque, como Você me disse aí, ele se convenceu de que o Vaticano é contra nós, o que não é, por definição, verdade. O Vaticano é apenas difícil, cauteloso, manhoso, porque não tem canhões, e trabalhado por forças de diversos cantos do mundo. Mas nós também lá temos amigos. Não temos no Osservatore a ‘furtiva lágrima’ do Conde de la Torre106, mas temos o Dr. Alessandrini107, que manda tanto como ele; temos a Rádio com os jesuítas portugueses e até com o Padre Pellegrini ‒ os jesuítas que gostam mais do Dr. Salazar do que do Cardeal Cerejeira, ao qual consideram menos simpatizante; temos na Secretaria de Estado não talvez as graças do difícil Mons. Tardini108, mas o seu espírito conservador e, para ele, os empenhos do Alfredo Mattei e dos seus cinquenta ou sessenta companheiros de Villa Nazareth... 109; português na Índia. Esta crítica, formulada em 1958 por um elemento da Nunciatura, Mons. Luigi Gentile, chegara aos ouvidos de Salazar. 103 Leone Giovanni Battista Nigris (1884-1964), arcebispo de Filippi (ord. 1938) e núncio na Albânia (1938-1947). Foi expulso da Albânia em 1945 pelo ditador comunista Enver Hohxa. Regressado a Roma, foi secretário da Congregação para a Propagação da Fé até à morte 104 Vasco Pereira da Cunha, embaixador de Portugal na Santa Sé (1958-1961), que anteriormente fora secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros e viria posteriormente a ser nomeado representante permanente junto da NATO (1961-1970). Nos anos 30 foi cônsul-geral em Madrid e, durante a guerra civil, representante do governo português junto dos rebeldes (Franco), em Salamanca. 105 Secretaria-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros. 106 O conde Giuseppe Dalla Torre del Tempio di Sanguinetto (1885-1967) foi director do diário do Vaticano L’Osservatore Romano entre 1920 e 1960. Tinha sido um oponente do fascismo e do nazismo e um defensor da democracia, próximo do político democrata-cristão Alcide De Gasperi. Em 1960 demitiuse da direcção do jornal, por divergências antigas com o secretário de Estado Tardini. 107 Federico Alessandrini (1905-1983), jornalista e professor de história italiana, foi longos anos redactor do Osservatore Romano e, a partir de 1961, seu vice-director. Dirigiu também Il Quotidiano (1946-1950), jornal da Acção Católica. Da sua biografia consta que entre 1934 e 1939 publicou, sob diversos pseudónimos, correspondências fictícias do Osservatore Romano, supostamente enviadas das principais capitais europeias, incluindo Berlim, mas por ele redigidas no Vaticano a partir dos relatos da imprensa estrangeira e de informações diplomáticas obtidas da Secretaria de Estado da Santa Sé. 108 Domenico Tardini (1888-1961) serviu na Cúria Romana, entre outras funções, como secretário da Congregação para os Negócios Eclesiásticos Extraordinários, substituto da secretaria de Estado da Santa Sé e, a partir de 1952, pro-secretário de Estado para os Negócios Eclesiásticos Extraordinários, partilhando com Giovanni Battista Montini (pro-secretário de Estado para os Negócios Eclesiásticos Ordinários) as funções de secretário de Estado da Santa Sé (cargo deixado vago por Pio XII desde a morte do cardeal Maglione, em 1944, até 1958), e finalmente cardeal secretário de Estado da Santa Sé, de 1958 até à morte. No caso do bispo do Porto, Tardini revelou-se um duro obstáculo às pretensões de Salazar de destituição do bispo. 109 A instituição cultural "Villa Nazareth", com sede em Roma, foi fundada em 1946 por Domenico Tardini, então um dos mais próximos colaboradores de Pio XII, para a educação de rapazes indigentes e órfãos de guerra. A instituição começou por viver de donativos de benfeitores estrangeiros, sobretudo americanos. Alfredo Mattei (?-2010) pertencia a uma família nobre e foi um dos primeiros jovens

temos ainda, na Secretaria de Estado, Mons. Dell’Acqua 110 e o montanhês Mons. Grano111, que não é uma voz, mas é um berro que também se ouve; temos no Sacro Colégio o Cardeal Ciriaci, o Cardeal Canali112, o Cardeal Valerio Valeri113, o Cardeal Ottaviani114, [o Cardeal] Tedeschini115, o Cardeal Cicognani116, que se poderá tocar por Espanha, e o Cardeal Montini ‒ o homem das soluções hábeis que, sendo contudo um antípoda do Cardeal Tardini, é Arcebispo de Milão, o que pesa alguma coisa. Temos ainda ‒ é preciso não esquecê-lo ‒ o Papa Negro117, que já nos deu as melhores provas de compreensão, de justiça e de amizade nos casos difíceis que envolviam alguns jesuítas da Índia. Isto indica-lhe que não se pode afirmar com cem por cento de verdade que o Vaticano é contra nós. Mas a convicção de que o é, fere pela descrença no êxito, o nosso Vasco da Cunha118. acolhidos na Villa Nazareth. A alusão de Nosolini à Villa Nazareth e aos "empenhos" dos seus alunos junto de Tardini a favor de Portugal pode significar que as autoridades portuguesas e a própria embaixada, nos anos em que Nosolini esteve em Roma (1950-1954), também terão contribuído para essa instituição. Após a morte de Tardini (1961), a Villa Nazareth tornou-se numa residência para estudantes e é hoje um colégio universitário gerido pela Fundação Comunidade Domenico Tardini. 110 Angelo Dell’Acqua (1903-1972), arcebispo de Calcedónia (ord. 27 de Dezembro de 1958), serviu na Cúria como subsecretário adjunto na Congregação dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários (19501954) e como substituto na Secretaria de Estado da Santa Sé (1954-1967), posto em que sucedeu a Giovanni Montini quando este foi nomeado arcebispo de Milão. Foi elevado ao cardinalato em 1967, ano em que também foi nomeado presidente da Prefeitura dos Assuntos Económicos da Santa Sé. 111 Carlo Grano (1887-1976), arcebispo de Salónica (ord. 27 de Dezembro de 1958), serviu na Cúria como chefe do protocolo (1945-1953) e substituto na Secretaria de Estado da Santa Sé (1954-1958). Foi nomeado núncio apostólico em Itália em 14 de Dezembro de 1958 e elevado ao cardinalato em 1967. 112 Nicola Canali (1875-1961) serviu em várias funções na Cúria e foi elevado ao cardinalato em 1935. Foi presidente da Comissão Pontifícia para o Estado da Cidade do Vaticano (1939-1961), penitenciário-mor da Penitenciária Apostólica (1941-1961) e pro-presidente da Administração do Património da Sede Apostólica (1951-1961). 113 Valerio Valeri (1883-1963), arcebispo de Éfeso (ord. em 1927), foi um diplomata da Santa Sé, nomeadamente núncio em França durante a segunda guerra mundial. Em 1944 o general Charles de Gaulle exigiu a sua destituição, pelo facto de ter sido acreditado junto do governo de Vichy, sucedendolhe no posto Angelo Roncalli, futuro papa João XXIII. Em 1953 foi elevado ao cardinalato e nomeado prefeito da Congregação dos Religiosos, posto em que se manteve até à morte. 114 Alfredo Ottaviani (1890-1979), desempenhou várias funções na Cúria a partir de 1922, tornandose assessor da Sagrada Congregação do Santo Ofício em 1935. Em 1953 foi elevado ao cardinalato e nomeado pro-secretário (secretário a partir de 1959) da Congregação do Santo Ofício, posto que manteve até 1968. Defensor de posições tradicionalistas e autoritárias, pertenceu ao grupo conservador de padres conciliares Coetus Internationalis Patrum e opôs-se a várias das reformas do Concílio do Vaticano II, nomeadamente em matéria de liberdade religiosa, colegialidade episcopal, reforma do Santo Ofício e abolição do Index de livros proibidos. No caso do bispo do Porto, o cardeal Ottaviani tomou claramente partido pelas posições do governo português contra o bispo. 115 Federico Tedeschini (1873-1959), desempenhou várias funções na Cúria desde 1904, foi núncio apostólico em Espanha (1921-1936) e elevado ao cardinalato in pectore em 1933 (confirmação pública em 1935). Foi nomeado datário apostólico (1938) e arcipreste da Basílica de S. Pedro (1939), cargos que exerceu até à morte. Foi nomeado cardeal-bispo de Frascati em 1951. 116 Gaetano Cicognani (1881-1962) e o seu irmão Amleto Cicognagni (1883-1973) foram ambos cardeais. Gaetano Cicognani foi núncio em Espanha (1938-1953), prefeito da Congregação dos Ritos (1953-1954) e prefeito da Assinatura Apostólica (1954-1962), tendo sido elevado ao cardinalato em 1953 e nomeado cardeal-bispo de Frascati em Dezembro de 1959. Amleto Cicognani foi delegado apostólico nos Estados Unidos (1933-1959) e secretário de Estado da Santa Sé (1961-1969), tendo sido elevado ao cardinalato em 1958 e, após a morte do irmão, nomeado cardeal-bispo de Frascati (1962). A carta de Nosolini refere-se provavelmente a Gaetano Cicognani, dada a sua ligação com Espanha. 117 Refere-se ao Geral dos jesuítas, que era então o belga Jean-Baptiste Janssens (1889-1964). 118 Vasco da Cunha, apesar de angustiado, na sua condição de “profundamente católico”, pela missão

Creio, por isso, que pelo espírito com que foi para o Vaticano e pelas ideias que formou, o nosso Embaixador terá dificuldades em vencer, porque já traz a derrota no coração. Deus queira que não. Isto tudo e a gravidade da questão em causa leva-me a dizer-lhe por um grito de consciência que eu julgo poder ajudar e que estou inteiramente às suas ordens para fazer tudo, assumindo todas as responsabilidades, isto é, sem preocupação e sem medo de ser liquidado ‒ exactamente nos termos em que tratei o diferendo resultante da designação do Cardeal Gracias119. Mas como agir? Vejo duas maneiras: uma directa, outra indirecta. Para isso seria indispensável estar em Roma, porque no Vaticano trabalha-se devagar. Contudo, para qualquer das maneiras vejo possibilidades. Vejo soluções. É bem possível que o Episcopado resolva o problema. É o caminho mais fácil e mais rápido. Mas... deve preparar-se tudo para a hipótese da solução Vaticano, já que a “d’aí” é um triste remédio. Não sabe o que me custou escrever esta carta. Lembrei-me das suas possíveis reacções e até da sua posição, formada através muitos anos de governo, de que muitos têm planos para concluir que eles próprios os devem executar. Em todo o caso obedeci ao imperativo da minha consciência e vi que Você não pode deixar de fazer justiça à minha lealdade e à minha devoção pela causa e pela terra que servimos. Faça e decida conforme lhe aprouver. Tenho passado meses de preocupação séria e sinto forças e talvez possibilidades para trabalhar na única solução útil do problema, se o Episcopado não a der sponte sua. Eis a razão desta carta. Agora sinto-me mais descansado. Um grande abraço do muito amigo. José Nosolini 120

que Salazar lhe confiara de obter do papa a destituição do bispo do Porto, só foi substituído no Vaticano, para seu alívio, em 1961, sucedendo-lhe o embaixador António Leite de Faria (1961-1968), considerado pelos seus pares como “ateu” (Bruno Cardoso Reis, Salazar e o Vaticano, Lisboa: ICS, 2006, pp. 244247). 119 Valerian Gracias (1900-1978), nascido em Carachi de pais goeses, foi nomeado arcebispo de Bombaim em 1950. Para consternação da diplomacia portuguesa, Gracias, “duro inimigo da presença portuguesa em Goa” (Franco Nogueira), seria elevado ao cardinalato em 1953. Esse foi um dos casos em que as excessivas pressões e protestos do então embaixador na Santa Sé, José Nosolini, desagradaram à Secretaria de Estado, em especial a mons. Tardini (ver, a este respeito, Bruno Cardoso Reis, op. cit., pp. 230 e segs.). 120 José Nosolini terminaria em Janeiro de 1959 a sua embaixada em Madrid, regressando a Portugal, onde o esperava o governo do Banco de Angola. Da sua falta de entusiasmo por esse lugar testemunha uma carta de 20 de Abril de 1961 para Salazar, em que de novo insiste, sem êxito, na importância da sua presença em Madrid, agora já com o especioso argumento de que a guerra colonial, entretanto iniciada, o recomendaria para esse posto (TT/AOS/CD-10/1/3).

Bibliografia adicional

Barreto, José. Religião e Sociedade: Dois Ensaios, Lisboa: ICS, 2003. ___ . “O caso do Bispo do Porto em arquivos do Estado”, in VV.AA., Profecia e Liberdade em D. António Ferreira Gomes – Actas do Simpósio, Lisboa: Ajuda à Igreja Que Sofre, 1999, pp. 119-145. ___ . “Caso do Bispo do Porto”, in A. Barreto e F. Mónica (eds.), Dicionário de História de Portugal, vol. VII, Porto: Figueirinhas, 1999, pp. 184-187. ___ . “Introdução”, in D. António Ferreira Gomes, Carta ao Cardeal Cerejeira (16 de Julho de 1968), ed. José Barreto, Lisboa: D. Quixote, 1996. Caldeira, Arlindo M. “O partido de Salazar: antecedentes, organização e funções da União Nacional (1926-1934)”, Análise Social, n.º 94 (1986), pp. 943-977. Nogueira, Franco. Salazar, t. VI, Lisboa: Livraria Civilização Editora, 1985. Revez, Jorge. Os “Vencidos do Catolicismo”: Militância e atitudes críticas (1958-1974), tese de mestrado, Lisboa: FLUL, 2008.

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