O Anticastelhanismo e a construção da identidade de Portugal no século XVI

June 9, 2017 | Autor: José Eduardo Franco | Categoria: Cultura E Identidades
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Anticastelhanismo e construção da identidade de Portugal no século XVI: O contributo da primeira História de Portugal de Fernando Oliveira 1

A construção identitária de um povo

José Eduardo Franco *

A Identidade Portuguesa foi esculpida culturalmente através de processos que passavam pela afirmação de valores próprios e distintivos acompanhados pela negação dos apostos ou tidos como aquilo que se requeria identificação como o outro contrário de nós. A construção de uma cultura negativa do outro ou dos outros, como o castelhano e o mouro, para referir apenas dois “antis” estruturantes, constitui o lado negativo da nossa cultura nacional que não deixou de ser relevante para a consolidação da ideia de povo capaz de gerir os seus destinos. Fernando Oliveira, primeiro gramático e autor da primeira História de Portugal, ilustra um desses processos de elaboração identitária que passou pela figuração negativa do castelhano.

opera-se através de processos de diferenciação e distinção, pela via da mitificação, mas também por oposição a um pólo considerado hostil, que funciona como o lugar da negação, ou, noutra óptica, por relação comparada valorativamente com um pólo positivo, lugar de afirmação ou mesmo de imitação criativa. O processo de construção ideológica de um conceito, de uma iconografia mítica, de uma filosofia da história de Portugal, a qual se pode designar por portuguesismo, é, em grande medida, edificada em confronto com uma mitificação negativa da imagem de Castela e dos Castelhanos 2. Está na base um esforço programático de diferenciação primeiramente em relação a outro grande reino e conjunto cultural protonacionalizante da Península Ibérica, Castela. Só em segundo lugar, mas não menos importante a outro nível, o nível da projecção, o esforço ideológico tem no horizonte a Cristan*  Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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  Este estudo recupera parte do trabalho feito sobre este assunto para a tese em História Moderna do autor: Franco, José Eduardo, Mito de Portugal: A Primeira História de Portugal e a sua Função Política, Lisboa, FMMVAD/Roma Editora, 2000. 2

  Sobre o tema da castelhanofobia ou lenda negra desenvolvida em torno de Castela e dos Castelhanos ver o interessante estudo de: Cárcel García, Ricardo, La Leyenda Negra. Historia y opinion, Madrid, Alianza

1

Editorial, 1992. Este autor recorda que o termo “Lenda Negra” é uma designação inventada por Julián Juderón que em 1913 deu título a um livro seu sobre o assunto, definindo assim este conceito: “Por lenda negra entendemos o ambiente criado pelos fantásticos relatos que vieram a lume acerca da nossa pátria em todos os países, as descrições grotescas que se fizeram sempre do carácter dos espanhóis, como indivíduos e como colectividade, a negação ou, pelo menos, a ignorância sistemática de quanto é favorável e formoso nas diversas manifestações da cultura e da arte, as acusações que sempre foram projectadas contra Espanha, fundando-se para isso em factos exagerados, mal interpretados ou falsos na sua totalidade” (Apud, Ibidem, p. 13). 3

  Sobre Fernando Oliveira ver a mais recente obra de estudos publicada: Morais, Carlos (coord.), Fernando Oliveira: Um humanista genial. V Centenário do seu nascimento, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2010.

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  Tirado de uma carta de Sá de Miranda dirigida a D. João III: Miranda, Sá de, Obras Completas, Vol. II, Lisboa, Sá da Costa, p. 45.

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dade Europeia, ou já claramente dito como realidade geográfica denominada como continente Europa. No humanista filólogo, engenheiro naval e historiador Fernando Oliveira, autor da primeira gramática da língua portuguesa e da primeira história de Portugal, a configuração da identidade portuguesa assente na ideia da sua superioridade e primazia em relação a todos os outros reinos da cristandade é transversalmente atravessada por um anticastelhanismo militante 3. É a partir do que patenteia na sua obra historiográfica escrita no âmbito da crise sucessória de 1580 que vamos analisar a imagem de Castela e do Castelhano, ali desenhada de forma estereotipada. Fernando Oliveira procura apresentar factos, argumentos, histórias, juízos que engrossam a tradição anticastelhana patente na cultura portuguesa, cristalizada no ditado popular que ainda subsiste actualmente: “De Espanha nem bom vento, nem bom casamento”. Com efeito, embora a visão negativa do autor incida com mais acuidade sobre os Castelhanos, as suas invectivas estendem-se também, contundentemente, aos Leoneses que acabam, enfim, por ser agregados na mesma avaliação. Da parte destes reinos vizinhos, que no presente da escrita da obra oliveiriana estavam unidos sob a mesma coroa, o autor não aceita que tenha resultado algo de positivo para a afirmação de Portugal enquanto reino, nos períodos que as histórias destes estados se cruzaram em termos de relações políticas e militares. Esta visão hostilizante em relação a Castela, que atinge em Oliveira um paroxismo inédito na cultura erudita portuguesa, não é, todavia, nova. Ela filia-se numa tradição de anticastelhanismo bem marcada na literatura, na poesia e no teatro nacionais. Vejamos dois exemplos bem ilustrativos. Sá de Miranda adverte D. João III, acerca dos Espanhóis, caracterizando-os como sendo um povo petulante, provocador de conflitos militares e cobiçoso do alheio: Geralmente é presumptuosa Espanha, e disso se preza: Gente ousada e belicosa; Culpam-na de cobiçosa. Tudo sabe Vossa Alteza 4.

Em Gil Vicente também emergem aqui e acolá caracterizações muito pouco abonatórias de Castela e do povo castelhano. A visão quase beatífica e idílica de Portugal é contraposta a uma figuração demonizada de Castela: Todo o Bem e a Verdade Neste Portugal nasceram, E se há alguma ruindade De Castela a trouxeram. (...) É a mais ruim relé Esta gente de Castela, Que juro pela bofé, Que melhor é a da Guiné Setecentas vezes que ela 5.

Nesta linha, poderíamos citar outros exemplos e evocar outros autores que formulam e veiculam por meio da escrita esta mentalidade anticastelhana que atravessa a cultura portuguesa. Entre estes, devemos recordar, a título de exemplo, António de Sousa, António Ferreira, André de Resende 6, João de Barros e Luís de Camões 7. O anticastelhanismo que, nestes autores, não passa de uma componente ideológica pouco mais que acidental, em Oliveira atravessa transversalmente a sua obra historiográfica e constitui-se como uma das suas colunas ideológicas estruturantes. O anticastelhanismo é o traço dominante da dimensão polémica que caracteriza esta obra histórica. Este vector ideológico projecta-se na releitura hermenêutica da história de Portugal, como reacção contundente em relação à hegemonia espanhola e à sua ambição anexacionista no que se refere a Portugal. Cobiça política do reino vizinho que não se coíbe de usar todos os meios possíveis para alcançar maquiavelicamente o domínio de Portugal. Esta “maquinação” política do reino vizinho fere profundamente os sentimentos patrióticos de Fernando Oliveira e confirma, em grande medida, a imagiologia dos espanhóis, perfilhada na literatura antecedente. Assim se compreende, como tipifica Paul Teyssier, o “anticastelhanismo violento, furioso, apaixonado do nosso autor” 8.

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  Vicente, Gil, Colleçam de todalas obras de..., Introd. e normalização do texto de M. Leonor C. Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional‑Casa da Moeda, 1983.

6

  Cf. Pereira, Virgínia Soares, Os Castelhanos segundo André de Resende, Braga, Universidade do Minho, 1986. 7

  Díos, Ángel Marcos, “A Lusofilia Espanhola”, Revista de História das Ideias, 18 (1996), 149-165.

8

  Teyssier, Paul, L’«História de Portugal» de Fernando Oliveira d’après le Manuscrit de la Bibliothèque Nacional de Paris, Separata das Actas do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, Lisboa, [s.n.], 1959, p. 377.

3

Este elemento ideológico é também um dos mais relevantes testemunhos de que a sua obra constitui uma tomada de posição polémica em relação aos acontecimentos que se desenrolaram em torno da crise de 1580. Com efeito, a reconfiguração da história de Portugal e do seu entendimento fundamental enquanto reino, opera-se com uma demarcação em relação ao reino vizinho. De facto, assim se entende o seu escopo programático de retrotrair a antiguidade de Portugal, de nobilitar os seus heróis e as grandes figuras do passado nacional para refutar as “chufas dos mofatões” espanhóis que, na sua historiografia, desvalorizaram a história de Portugal em contraponto com a espanhola. Aplicando ao discurso uma grelha nitidamente maniqueísta, demoniza a acção dos espanhóis em Portugal e no mundo. Por seu lado, angeliza, heroicizando o carácter e os feitos dos Portugueses constituídos como entidade colectiva. Quanto à presença dos castelhanos em Portugal, esta só serviu apenas para alimentar o seu egoísmo ambicioso, prejudicando seriamente este reino. A acção dos Portugueses, liberta da colaboração interesseira dos espanhóis, expandiu e solidificou Portugal e desinibiu-o para levar a cabo a sua missão sagrada no mundo, predestinada por Deus: universalizar o Cristianismo. Para este efeito, Portugal foi constituído matricialmente e preservado providencialmente ao longo da sua história, resistindo à “inveja” usurpadora dos povos estrangeiros, mormente dos Castelhanos, os quais tinham Portugal como o reino mais cobiçado. Nesta linha, o autor ensaia a apresentação de um quadro sinóptico da história das relações de propinquidade entre o reino de Castela e o de Portugal. Isto com o objectivo de demonstrar (e antever), através de uma apreciação agudamente negativa destas relações, que a presente união do país ao reino vizinho não beneficiará em nada Portugal, antes o prejudicará grandemente, como a lição da experiência do passado ensina. Com base neste esquema maniqueísta, esculpe uma imagiologia do reino de Portugal, caracterizado pelos pilares da antiguidade, da singularidade de carácter sacral, da liberdade 4

perene, da eleição divina, da superioridade e da dignidade dos seus heróis, da sua lídima e superna nobreza, da grandeza e predestinação da sua missão histórica. Esta imagem é configurada como reacção a uma imagiologia antinómica. Invertendo os argumentos dos historiadores espanhóis, atribui a Castela uma menoridade etária enquanto reino politicamente constituído, desqualifica a matriz genealógica da sua nobreza, relativiza o valor dos seus heróis e da sua acção histórica, caracterizando-a como tendo sido marcada por intrigas, ambição, crueldade e manchas morais graves. Do ponto de vista da análise histórica, Castela é classificada como um reino inferior no que respeita à dignidade da sua origem e um reino detestado pelas outras nações devido ao seu carácter cobiçoso e dominador, que tende a asfixiar os reinos com quem convive. Este esforço intelectual e esta laboração ideológica no plano da construção da história, no sentido de recortar uma imagem singular e distinta de Portugal por antinomia à visão de certos historiadores castelhanos, projecta, em nosso entender, ao nível teórico, um combate pela afirmação de Portugal, o qual já se vinha experimentando, efectivamente, ao longo da sua história no terreno político-militar. Como sublinha António Dias Farinha, constata-se desde o nascimento do reino o forte desiderato de separação e distinção por confronto contra a hegemonia espanhola: A delimitação do território português foi feita em oposição a Leão e Castela, quando o soberano destes reinos era o «imperador» Afonso VII. Apesar deste título ser contestável (como no século XV viria a escrever Vasco Fernandes de Lucena), alguns monarcas de Leão assim se nomearam, entre os séculos X e XII, reivindicando a supremacia sobre todos os reinos ibéricos («imperator totius Hispaniae») 9.

Este paradigma de confrontação e afirmação repete-se sucessivamente na história do reino, mormente de forma mais nítida, nos momentos fulcrais do seu percurso de afirmação nacional. Por exemplo, no limiar da modernidade, Dias Farinha destaca a presença da intencionalidade intrínseca às estraté-

9

  Farinha, António Dias, “O Conceito de «Império português”, in Medina, João (dir.), História de Portugal, op. cit., Vol. V, p. 12.

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gias expansionistas ao nível das grandes decisões e iniciativas político-militares e económicas:

10

  Ibidem.

No alvor do século XV, ao equacionarem a situação peninsular, os conselheiros de D. João I propuseram como solução a conquista do reino de Granada, por forma a garantir nessa área uma presença portuguesa, mesmo sob soberania castelhana, ou a tomada de algum território em Marrocos, como primeiro passo para a conquista de África, que já fora cristã antes da expansão do credo muçulmano10.

Paradigma de afirmação política que aspira a uma visibilidade “potencial” não só perante o soberano vizinho, como também perante os outros estados da Cristandade, como acrescenta o historiador citado sobre a conquista de Ceuta:

11

  Ibidem.

A expedição contra Ceuta, em 1415, insere-se, claramente, numa estratégia de alicerçar a independência do Reino através da posse de uma cidade de grande valor militar e de aumentar a autoridade portuguesa, em especial do monarca e da família real, perante os restantes países da Europa11.

Fernando Oliveira elabora ideologicamente, induzindo daquilo que foi, no fundo, a experiência da caminhada histórica da afirmação de Portugal. O reino sedimentou a sua idiossincrasia, o seu carácter nacional, fomentou a sua expansão, em grande medida, como forma de se libertar e afirmar como reino autónomo contra as pretensões hegemónicas de Leão e Castela. O seu anticastelhanismo transporta a experiência estigmatizada de um povo que, para cumprir o seu ideal de nação livre, teve que vigiar, à prova de sangue, a ambição usurpadora dos reinos vizinhos, que sempre cobiçaram Portugal. Ambição que na conjuntura presente da escrita da obra se revela ameaçadoramente eficaz e passível de curvar Portugal sob a tirania espanhola, como sucedeu no passado.

O mito da primazia de Portugal A apologia teórica daquilo que designamos por mito da primazia de Portugal é realizada por Oliveira em concorrência e 6

para confutar as pretensões de primazia castelhana sustentadas na historiografia do reino vizinho. Disputa de primazia da parte dos castelhanos que era vista como uma forma de justificar a sua ascendência sobre os reinos da Península Ibérica, nomeadamente sobre Portugal. Assim, à questão da afirmação histórica da primazia ligam-se questões de prestígio, de nobilitância e de reivindicação de direitos de superioridade de um reino em relação a outro. A esta apologia operada no terreno da história não são certamente indiferentes as lutas político‑jurídicas do presente na conjuntura da crise de 1580. Embora Filipe II nunca tivesse alegado manifestamente os direitos de primazia histórica de Castela sobre Portugal para reivindicar o seu direito de sucessão ao trono lusitano, o rei de Espanha estava ciente deles, pois vários dos historiadores afectos à coroa castelhana tinham produzido história da Espanha, na qual o reino de Castela é colocado à cabeça dos reinos da Península. Esta historiografia é, acima de tudo, a projecção, culturalmente formulada, da ambição hegemónica deste reino em relação aos outros estados propínquos. Esta ambição maquiavélica é denunciada por Oliveira no plano histórico, e que, no fundo, é a expressão da actuação astuciosa e corruptora de Filipe II no quadro do pleito sucessório português de 1579/80. Assim, o historiador vai objurgar como sendo inconsistentes e fabulosas as leituras nobilitantes do passado remoto do reino de Castela e avoca para Portugal as primazias que os historiadores do reino vizinho atribuíam ao seu reino. Assim, seguindo uma esteira polémica anticastelhana, advoga para Portugal a primazia no que respeita à antiguidade e longevidade ininterrupta do reino. Deste modo, inicia a disputa da primazia do reino de Portugal a partir das suas origens primaciais, tendo em vista refutar, a par e passo, os historiadores espanhóis, nomeadamente Garibay y Zamalloa. Seguindo o paradigma histórico fornecido pela Bíblia, a partir da tábua das nações, no quadro do repovoamento pós-diluviano explicado miticamente pelo Génesis, o autor vai defender que o povoamento da Península Ibérica começou a ser empreendido a partir do que viria a ser 7

o território português, onde o patriarca Tubal teria aportado primeiramente. E não a partir do território espanhol como advogavam os historiadores castelhanos. Sintomaticamente, o historiador português fundamenta a sua apologia da primazia da aportagem do patriarca bíblico no seu reino, não em documentos, mas em conjecturas resultantes de conclusões acomodatícias relacionadas com os trajectos e facilidades de navegação, em que Oliveira era perito:

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  Fernando Oliveira, História de Portugal, fls. 2-2v. Citada do manuscrito patente no Fonds Portugais da Biblioteca Nacional de França e editado na nossa obra José Eduardo Franco, O Mito de Portugal, op. cit.

13

  Recorde-se que, de acordo com a tradição, a Arca de Noé teria estacionado, com o abaixamento das águas diluvianas, num monte da Arménia, donde o patriarca bíblico teria lançado o repovoamento do orbe terrestre. 14

  Ibidem, fls. 2v-3.

15

  Ibidem, fl. 21v.

8

Veio Tubal a esta terra, duzentos anos depois do dilúvio, segundo Beroso; e veio por mar, porquanto vinha das ilhas, que ele e seus irmãos, filhos de Japeto povoaram (...). Das quais vindo para a Hespanha, a razão da navegação nos constrange crer que veio surgir na costa de Portugal e não da Andaluzia, como alguns quiseram dizer; porque a Andaluzia jaz dentro do estreito e daquelas ilhas para cá navega-se com sul, o qual não deixa embocar o estreito, e para Portugal cai em popa12.

Com base numa hermenêutica filológica, prova que o patriarca bíblico escolheu Setúbal para estabelecer a sede do povoamento ibérico: “Setúbal quer dizer assento de Tubal e que lhe puseram este nome porque Tubal fez ali seu assento e morada. Porque Set é palavra de Arménia, donde Tubal era natural13, e quer dizer assento de morada como sedes em latim (...). Da terra de Setúbal, onde Tubal estava d'assento, mandou ele às outras terras seus filhos e companheiros a povoá-las”14. Assim, não é apenas em Portugal que se inicia o povoamento como também é neste território que se organiza politicamente o primeiro reino da Península. O patriarca bíblico é, assim, visto como o fundador do reino de Portugal e da primigénia dinastia portuguesa e, assim, é o progenitor do povo português. Lança os fundamentos nobres que estão na base do florescimento da “primeira antiguidade” do reino, antiguidade dourada em que “houve estudo de letras e primor de costumes urbanos (...) aqui nesta terra de Portugal”15. É desde esta era matricial que o reino persiste ininterruptamente, quando não em forma de organização política materializada na pessoa do rei ou de um outro governo concreto, sobrevive no povo livre que guarda a herança do reino.

O historiador tenta prestigiar, assim, Portugal pelo estabelecimento de uma mitologia das origens do reino. Isto com a pretensão de lhe conferir uma primazia e, consequentemente, uma dignidade excelente de modo a superiorizá-lo em relação aos reinos vizinhos. Mas para que o seu labor apologético se apresente mais eficaz, Oliveira não podia satisfazer-se apenas com a afirmação positiva da primazia de Portugal, mas teve de desautorizar os historiadores adversários, demolindo os seus argumentos. Na primeira parte do capítulo IX do I livro da História de Portugal, o autor rebaixa as origens sociogénicas do povo castelhano e demonstra a menoridade do seu reino contra aqueles “autores que querem fazer este nome antigo”16. E acrescenta, depois de desconstruir (e denegrir), com base em fontes clássicas, a mitificação do passado castelhano: “(...) o primeiro que em Castela se chamou rei dela, foi Dom Sancho, o Maior, rei de Navarra, quase no ano de mil e dez. Desde Dom Sancho começou, como digo, Castela ter título de reino, o qual d’antes nunca teve e o mais é graça”17. O autor faz também a apologia da primazia portuguesa em matéria respeitante à pregação do Cristianismo, à organização e direito eclesiástico e no que se refere à fidelidade à pureza da fé da Igreja. Portanto, tenta, assim, conceder uma primazia ao seu reino no plano espiritual em paralelo com a primazia temporal. Mostra que os primeiros pregadores do Evangelho de Cristo encontraram sempre no dito reino18 de Portugal bom acolhimento e patrocínio para o anúncio da sua doutrina. No capítulo segundo do I livro da História de Portugal, em que demonstra a profunda antiguidade das principais cidades do reino, advoga acerca de Braga: “além de ser antiga na sua povoação e nome, é também das mais antigas da Hespanha na conversão da fé e instituição da prelazia metropolitana; porque el-rei Dom Afonso (...) diz que o imperador Constantino fez esta cidade arcebispado (...). E Lisboa já era bispado e o Porto e Beja e Coimbra. E havia nesta terra muitos cristãos e reis cristãos”19. No quadro ideológico da obra de Oliveira, a este passo supra citado subjaz certamente o eco, embora muito matizado, da histórica disputa de supremacia de

16

  Ibidem, fl. 47v.

17

  Ibidem, fls. 48-48v.

18

  Cf. ibidem, fls. 16v e ss.

19

  Ibidem, fl. 11.

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jurisdição eclesiástica entre Toledo e Braga, que é um tópico muito sensível das polémicas nacionalistas entre os dois reinos vizinhos. Mais do que defender a larga antiguidade da recepção da fé pelo reino de Portugal, o historiador português procura demonstrar que este reino foi o único que a conservou na sua pureza ortodoxa, imune às desvirtuações doutrinárias heréticas introduzidas e desenvolvidas na Península aquando do tempo da chegada e instalação dos povos bárbaros. Portugal estava, portanto, rodeado de heréticos mas resistiu incólume à heresia, resistência que justifica para o autor a sua liberdade e imunidade enquanto reino frente às pressões da dominação estrangeira:

20

  Ibidem, fl. 35v.

Em Galiza viviam os Suevos que eram arianos e em Lucena viviam os vândalos que eram maniqueus. Mas pois não havia contradição às coisas sobreditas da religião católica, que usavam nesta terra, parece e é de crer, sem dúvida, que eram Godos, nem essoutras gentes suas companheiras eram senhores de Portugal nem o foram jamais 20.

A defesa da fé ortodoxa pelo reino de Portugal é vista como um factor de dignidade e primazia em relação aos outros reinos ibéricos. Esta fidelidade espiritual garante a Portugal, na óptica do autor, a sua perenidade enquanto reino, pois para esta fidelidade e propagação religiosa foi constituído primordialmente:

21

  Ibidem, fls. 34-34v.

22

  Cf. ibidem, cap. VI.

10

(...) «protegente fide manet inexpugnabile», que quer dizer, que defendendo a fé, o reino dos Galacienses permanece inexpugnável (...). E assim significa que a fé defendeu o reino dos Galacienses (...), porque diz o salmista: «Os que confiam no Senhor eram firmes e seguros» (...). E mais este floresceu sempre, e floresce na fé pela bondade de Deus e na nobreza humana, pela qual sempre trabalhou a gente portuguesa 21.

Ao passo que o resto da Península foi infestada pela “praga” das heresias dos “arianos” e “maniqueus”, propagadas, segundo o autor, pelos Bárbaros, de cujos povos descende a nobreza dos outros reinos ibéricos, particularmente a de Castela 22. A esta disputa da primazia espiritual e eclesiástica

não é indiferente a querela hagiológica que transparece na obra de Oliveira, isto é, a objurgação dos autores vizinhos que quiseram castelhanizar santos portugueses, bem como a relevância dada pelo autor à trasladação das relíquias de S. Vicente de Valença de Aragão para Lisboa 23. Nestas querelas em relação à primazia, Oliveira configura os traços fundamentais do seu portuguesismo em confronto com o castelhanismo, que é desmerecido. Portugal é apresentado como o reino que detém a primazia da antiguidade não só política, mas também ao nível dos méritos religiosos. O reino de Portugal, constituído matricialmente pela acção, ordenada sobrenaturalmente, do patriarca bíblico Tubal, sobressai em primazia pela antiguidade das suas instituições políticas e eclesiásticas, pela sua adesão positiva à fé cristã e pela sua conservação e anúncio fidedigno. Em contrapartida, as origens de Castela não só são rebaixadas e encurtadas temporalmente, como também a sua fidelidade à fé religiosa ortodoxa é vista como tendo sido manchada pela heresia. Tanto mais que os Godos que introduziram estas doutrinas heréticas e “imorais” estão na origem da fina flor da sua nobreza e do seu povo. Oliveira põe, assim, em causa, no campo da história, um dos motivos de ufanidade do reino castelhano e um dos argumentos de Filipe II para justificar as vantagens da união à coroa portuguesa: o reforço do combate às heresias. Isto é, tira força e autoridade histórica a este desiderato do partido sucessório filipino, denunciando os precedentes heréticos aferidos nas origens do reino de Espanha. Deste modo, o autor tenta demolir não só as pretensões de primazia do reino vizinho em termos histórico-políticos, mas também no que concerne à fidelidade à fé católica, que era um dos pontos de honra pelo qual se avaliava culturalmente a dignidade dos estados católicos. Mas, acima de tudo, Oliveira pretende corroer a consistência de qualquer primazia histórica do reino de Castela que lhe permita arrogar-se de uma ascendência política sobre Portugal. A ideografia anticastelhana de Fernando Oliveira acaba por representar, no contexto do dealbar da modernidade, um dos sentimentos que a voz intelectual portuguesa proto-nacio-

23

  Cf. ibidem, fls. 17v-18 e 132-132v.

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24

  Sobre a problemática do negativo ver aproximações reflexivas e analíticas recente em Marujo, António e Franco, José Eduardo, A Dança dos Demónios: Intolerância em Portugal – Antisemitismo, anticlericalismo, anti-islamismo, antijesuitismo, antiprotestantismo, antifeminismo, antimaçonismo, antiliberalismo, anticomunismo, antiamericanismo, Lisboa, Círculo de Leitores, 2009.

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nalizante procurava sedimentar como forma de esculpir uma identidade do nosso povo soberano e livre que tinha defendido a sua autonomia desde o século XII contra o receio permanente de uma ameaça real que a qualquer momento poderia pôr em perigo este projecto político, cultural e identitário. Podemos considerar mesmo que o anticastelhanismo é umbilical ao processo de construção da identidade portuguesa, acompanhando-o como o negativo necessário para afirmação da diferença e da distinção portuguesa e legitimar a sua existência autónoma 24. Este combate cultural e mental anticastelhano e o debate em torno das relações com o reino vizinho reincidiram, com maior ou maior intensidade, durante os séculos que se seguiram até hoje como um dos temas fortes em torno da reflexão sobre a identidade portuguesa e do lugar de Portugal na Península Ibérica e na Europa. Conhecer, pois, as raízes e metamorfoses históricas do anticastelhanismo é, pois, uma tarefa científica pertinente para a actualização da reflexão crítica da identidade portuguesa e do futuro de Portugal.

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