O ANTIESCRAVISMO DA ILUSTRAÇÃO EM ADAM SMITH E JOSÉ DA SILVA LISBOA

May 27, 2017 | Autor: R. Periódico dos ... | Categoria: Adam Smith, Administração, Sociologia do Trabalho, Século XIX, José da Silva Lisboa, Antiescravismo
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Revista FOCO. ISSN: 1981-223X  

O ANTIESCRAVISMO DA ILUSTRAÇÃO EM ADAM SMITH E JOSÉ DA SILVA LISBOA Rafaela Domingos Lago1

Resumo Até meados do século XVIII escravidão e servidão faziam parte da natureza das sociedades no Ocidente. Na segunda metade do Setecentos, contudo, iniciou-se a condenação da escravidão pelos escritores da Ilustração principalmente na Inglaterra e França. Tal ideário foi trazido para o Brasil nas primeiras décadas do Oitocentos por estudantes brasileiros que frequentaram universidades europeias. Este artigo pretende examinar como as ideias antiescravistas de Adam Smith foram assimiladas nos escritos de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, no início do Oitocentos. Palavras-chave: Adam Smith. José da Silva Lisboa. Antiescravismo. Século XIX.

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SOBRE ADAM SMITH E A RIQUEZA DAS NAÇÕES Na apresentação do livro A Riqueza das Nações, Winston Fritsch (SMITH, 1996, p. 7-

8) destacou a obra como a mais famosa de Adam Smith, publicada pela primeira vez em Londres em 1776. Considerada como ponto de partida obrigatório para o estudo da Economia ao longo de quase todo o século XIX, A Riqueza das Nações não teve de imediato um impacto impressionante. Segundo Fritsch (SMITH, 1996, p. 7- 8), a repercussão da primeira edição ficou restrita aos círculos de intelectuais iniciados e políticos esclarecidos. A obra foi mencionada pela primeira vez com peso de autoridade após pouco mais de uma década de sua primeira publicação, em debates parlamentares por Willian Pitt (em 1792), o famoso ministro liberal que havia conhecido Adam Smith em 1787 e se dizia seu discípulo. Aos poucos, contudo, o livro firmou seu prestígio. De acordo com Fritsch (SMITH, 1996, p. 7- 8), nove edições inglesas já haviam sido dadas a público antes de iniciar o século XIX. Sua difusão no exterior também se acelerou, com várias edições americanas disponíveis em 1800.                                                                                                                         1

 

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

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No Brasil, a tradução da obra de Adam Smith foi um dos primeiros empreendimentos da Imprensa Régia.2 Em 1811, dois anos após a publicação da primeira obra brasileira, encontrava-se finalizado e editado o compêndio em português do livro clássico de Adam Smith, organizado e traduzido por Bento da Silva Lisboa, filho de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu. A obra de Adam Smith marcou o início da abordagem científica dos fenômenos econômicos e tornou-se a fonte dos paradigmas teóricos sobre os quais foi construída a Economia Política Clássica. A teoria econômica apresentada em A Riqueza das Nações é essencialmente uma teoria do crescimento econômico.

Já nas páginas iniciais, Adam Smith (1996, p. 10)

identifica a riqueza ou o bem-estar das nações com seu produto anual per capita, determinado pela produtividade do trabalho “útil” ou “produtivo” – entendido como aquele que produz um excedente de valor sobre seu custo de reprodução – e pela relação entre o número de trabalhadores empregados produtivamente e a população total. Gunnar Myrdal explicou a dinâmica do modelo de crescimento de Adam Smith a partir do que chamou de “causalidade circular cumulativa” (SMITH, 1996, p. 10). De acordo com o economista, o crescimento da produtividade do trabalho, que tem origem em mudanças na divisão e especialização do processo de trabalho, permitiria o crescimento do estoque de capital, variável determinante do volume de emprego produtivo. A pressão da demanda por mão de obra sobre o mercado de trabalho, causada pelo processo de acumulação de capital, provocaria um crescimento concomitante dos salários e, por conseguinte, melhoria das condições de vida dos trabalhadores. O aumento paralelo do emprego, salários e população ampliaria o tamanho dos mercados, que é o determinante básico da extensão da divisão do trabalho, iniciando-se assim a espiral de crescimento. A construção da teoria de Adam Smith deve ser analisada considerando seu contexto de produção: a Inglaterra do século XVIII. Fortemente influenciado pelas preconcepções filosóficas correntes na Inglaterra (Iluminismo) e pelo cenário econômico da época, Smith centrava-se na explicação do crescimento econômico e no aumento da produtividade e acumulação de capital, considerados como suas causas finais. Os fatos da história econômica da Inglaterra no período revelam o excelente desempenho da agricultura, a substancial melhoria do sistema de transporte e o grande crescimento da indústria têxtil rural, das                                                                                                                         2

Com a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, houve a criação da Imprensa Régia e a possibilidade de impressão de livros no Brasil. No mesmo ano ocorreram profundas transformações na capital da Colônia, como a abertura dos portos, as medidas de estímulo à indústria e os tratados comerciais com a Inglaterra.

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manufaturas e do comércio, que propiciaram um progresso material sem precedentes.3 O aumento de produtividade, acumulação de capital, melhoria dos padrões de vida e crescimento populacional foram, portanto, a fonte de inspiração empírica de sua obra. Soma-se o fato de grande parte de seu círculo de amizades ser composto de homens de negócio da região. Contudo, segundo Winston Fritsch (SMITH, 1996, p. 17-18), seu toque genial decorre da percepção das consequências analíticas da acelerada generalização dos métodos capitalistas de organização da produção, do progressivo aumento da competição e da maior mobilidade de capital entre as diferentes ocupações. É a incorporação desses fatos históricos em uma teoria do lucro e da alocação de capital em seu modelo que constitui a grande contribuição de Smith ao desenvolvimento da Economia Política clássica e o traço distintivo entre Smith e outros economistas do período final do mercantilismo.4 2

AS IDEIAS ANTIESCRAVISTAS DE ADAM SMITH Como visto anteriormente, segundo Adam Smith (1996, p. 122) o aumento da renda e

de capital é o aumento da riqueza nacional. E somente quando há um aumento da riqueza nacional, ou seja, seu incremento contínuo, é que cresce a demanda de assalariados, e, por conseguinte, a elevação dos salários do trabalho. Para ele não é nos países mais ricos, mas nos países mais progressistas, ou seja, naqueles que estão se tornando ricos com maior rapidez, que os salários do trabalho são os mais altos. Adam Smith prossegue sua análise afirmando que numa sociedade civilizada, “o homem sempre precisa viver de seu trabalho, e seu salário deve ser suficiente, no mínimo, para a sua manutenção”. E caso não constituísse em algo mais, seria “impossível para ele sustentar uma família e os trabalhadores não poderiam ir além da primeira geração” (SMITH, 1996, p. 120). Esse fragmento torna clara a ideia de incompatibilidade entre sistema escravista e sociedade civilizada. Nota-se nos escritos de Smith que o combate à escravidão e à servidão constituíram, em princípio, numa identificação entre ambas as instituições no vocabulário. De fato, como

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Nesse sentido, conferir: RIOUX, Jean Pierre. A revolução Industrial (1780-1880). São Paulo. Pioneira, 1975. Como Steuart, que associava os lucros aos ganhos comerciais, Petty, que os incorporava à renda, ou Hume e Cantillon, que os identificavam analiticamente com os salários, ou os fisiocratas, que simplesmente ignoravam sua existência, identificando o excedente sobre os salários com a renda fundiária (SMITH, 1996a, p. 18). 4

 

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demonstrou Jean Ehrard, o século XVIII nem sempre distinguia escravidão e servidão com clareza.5 Em texto intitulado O Desestímulo à Agricultura no Antigo Estágio da Europa, após a Queda do Império Romano, Adam Smith (1996, p. 382) fala de uma escravidão “nas antigas condições da Europa”, em que os escravos pertenciam mais diretamente à terra do que ao patrão. Ou seja, poderiam ser vendidos juntamente com a terra, mas não independentemente dela. Poderiam casar-se, desde que com o consentimento do patrão, o qual não podia, posteriormente, dissolver o casamento, vendendo marido e mulher a pessoas diferentes. Smith explica que é negado ao escravo o direito de adquirir propriedade, de possuir um salário e ascender economicamente – condições inerentes a uma sociedade civilizada. Em suas palavras, os “escravos rendeiros não tinham possibilidade de adquirir propriedade. O que quer que adquirissem pertencia ao patrão, o qual podia tirar-lhes à vontade o que haviam adquirido” (SMITH, 1996, p. 382). Qualquer cultivo e melhoria que fossem feitos na terra com o trabalho de tais escravos contavam como realizados pelo patrão. A semente, o gado e instrumentos agrícolas lhe pertenciam. Tudo era empregado em benefício do patrão. Tais escravos não tinham condições de adquirir nada, portanto, era o próprio senhor da terra que, na realidade, ocupava sua terra e a cultivava, por meio de seus servos. Esse tipo de escravatura, segundo Smith “continua a existir na Rússia, na Polônia, na Hungria, na Boêmia, na Morávia e em outras regiões da Alemanha. Ela foi gradualmente abolida de forma total apenas nas regiões do Oeste e do sudoeste da Europa” (SMITH, 1996, p. 382). De acordo com Smith, raramente se pode esperar grandes melhorias da terra por parte dos proprietários que empregam escravos como trabalhadores. Para o economista, “a experiência de todas as épocas e nações demonstra que o trabalho executado por escravos, embora aparentemente custe apenas a própria manutenção dos escravos, ao final é o mais caro de todos” (SMITH, 1996, p. 383). Em seguida afirma que uma pessoa incapaz de adquirir propriedade não poderia ter outro interesse senão comer o máximo e trabalhar o mínimo possível. Se algo ela fizer, além do suficiente para pagar a própria manutenção, só o fará se isso a beneficiar pessoalmente, sendo impossível obrigá-la a fazer esse algo mais sob violência. Tal visão deixa clara a crítica de Adam Smith sobre a escravidão. O uso de escravos causava danos econômicos porque considerava o trabalho menor e menos lucrativo nas mãos                                                                                                                         5

EHRARD, Jean. L’esclavage devant la conscience morale des lumières françaises: indiff érence, géne, révolte. In Les Abolitions de l’Esclavage. De Sonthonax à V. Schoelcher.Vi ncennes, Presses Universitaires de Vincennes/UNESCO, 1995, p. 137.

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do escravo. Além disso, o cativo consumiria mais e trabalharia menos. Cabe destacar, contudo, que tais ideias foram elaboradas a partir da análise de outra sociedade, diferente do Brasil, por isso foram adaptadas de forma peculiar por intelectuais do início do século XIX, período em que ainda não havia um pensamento antiescravista propriamente brasileiro, como veremos adiante. 3

IDEIAS ANTIESCRAVISTAS NO BRASIL NA PRIMEIRA METADE DO OITOCENTOS A existência da escravidão foi garantida pela legitimidade que lhe conferiu uma rede

de ideias tecida desde a Antiguidade. Aristóteles já havia definido o “escravo (como) sendo propriedade privada com alma” (FINLEY, 1991, p. 75) e que por ser uma propriedade, ele perdia o controle sobre seu trabalho, sua pessoa e também sobre sua personalidade.6 A escravidão era reconhecida como um elemento constitutivo das sociedades, ligada à política, economia, estrutura social, religião e cultura. Segundo Antônio Penalves Rocha (2000) a condenação da escravidão ocorreu como resultado de um processo de negação de sua legitimidade, graças a uma construção lenta e custosa, iniciada com o desatamento dos fios que prendiam a escravidão às demais instituições sociais. Para provar a ilegitimidade da escravidão foi necessário, portanto, demonstrar que ela se opunha aos princípios do cristianismo, representava uma ameaça ao Estado, era economicamente nociva e violava o direito natural. Foi necessário, em suma, demonstrar que tal instituição era prejudicial e que deveria ser substituída pelo trabalho livre. Essa operação de desmontagem iniciou em meados do século XVIII, ocupou todo o século XIX para, finalmente, alcançar seu ponto mais alto ao fim da primeira metade do século seguinte com a Declaração dos Direitos Humanos (ROCHA, 2000, p. 45). Durante a primeira metade do século XVIII ocorreram as primeiras manifestações de condenação da escravidão principalmente na Inglaterra, França e Estados Unidos. De acordo com Antônio Penalves (2000, p. 41), ao que tudo indica, não houve no Brasil um antiescravismo genuinamente brasileiro. Caso tenha ocorrido alguma manifestação contra a escravidão gerada internamente, sua difusão deve ter sido inexpressiva, pois, além das limitações impostas pela censura, a impressão tipográfica era proibida no Brasil. Além dessas                                                                                                                         6

A ideia do escravo coisificado, passivo e não construtor de sua própria história foi amplamente criticada pela revisão historiográfica da escravidão na década de 1980. Nesse sentido, Cf.: FLORENTINO, Manolo Garcia; GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

 

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restrições interessa destacar que Estado, Igreja e senhores estavam interessados em preservar a escravidão, e se empenhavam em dificultar a expressão de ideias que ameaçassem a ordem vigente. Escritores da Ilustração atacaram veementemente a escravidão. Incorporaram, inclusive, críticas de grupos religiosos ingleses, como os Quakers, que fundamentaram a repulsa do mundo contemporâneo a qualquer espécie de trabalho forçado, legitimando o estabelecimento universal das sociedades baseadas no emprego do trabalho livre. De acordo com Penalves (2000, p. 38), a eficácia histórica desse ideário foi de tal ordem que movimentos abolicionistas e estadistas da América e da Europa usaram seus princípios, nos séculos XVIII e XIX, para desmantelar as últimas sociedades escravistas da história, ou para eliminar os remanescentes do trabalho feudal. Segundo Maria Odila S. Dias (1968, p. 105), as ideias Ilustradas foram trazidas para o Brasil nas primeiras décadas do Dezenove por estudantes brasileiros que tinham frequentado universidades europeias, principalmente em Coimbra, a partir de 1772, Montpellier, Edimburgo, Paris e Estrasburgo. Enquanto as sociedades europeias já utilizavam no século XIX o trabalhador livre como figura dominante no mundo do trabalho, a sociedade brasileira de mesma época tinha a mão de obra escrava como base de sua economia. Pretende-se verificar nas próximas linhas como as opiniões sobre a escravidão de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, foram escoradas nos textos do economista clássico Adam Smith e, ao mesmo tempo, foram moldadas pela sociedade escravista que a circunscrevia. 4

JOSÉ DA SILVA LISBOA, O VISCONDE DE CAIRU, E AS IDEIAS ANTIESCRAVISTAS DE ADAM SMITH EM SUAS OBRAS A vida de José da Silva Lisboa constituiu-se em dois extremos: filho de arquiteto

português e uma mulata baiana,7 nascido na Bahia na segunda metade do século XVIII,

                                                                                                                        7

Há entre os biógrafos e intérpretes de Cairu duas imagens sobre sua filiação: para uns, filho de um pedreiro e de uma mulata; para outros, filho de um arquiteto português de profissão e de mãe baiana. Segundo Fernando Novais e José Arruda a última alternativa parece mais verossímil, pois seus estudos foram custeados por mesadas remetidas por seu pai, interrompidas somente quando Cairu decidiu-se pela carreira jurídica e filosófica ao invés da eclesiástica, como ele desejava. Cf.: NOVAIS, Fernando Antonio; ARRUDA, José Jobson de Andrade. “Prometeus e Atlantes na forja da nação”. Economia e Sociedade, Campinas, v. 12, n. 2 (21), p. 225-243, jul./dez. 2003, p. 229.

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morreu em 1835, no Rio de Janeiro, com o título de Visconde de Cairu8 e ocupando uma cadeira no Senado. Ao chegar ao Brasil, a Corte encontrou Cairu em plena efervescência intelectual. Em 1808, ano da abertura dos portos, havia publicado Observações sobre o comércio franco do Brasil. Dois anos depois, entre discursos, observações, refutações e reflexões, Cairu produziu nada menos que cinco textos além do Franqueza da indústria.9 Antes da chegada da Corte ao Brasil, Cairu já havia publicado em 1804 em Portugal, Princípios de Economia Política.10 No ano de 1798, em Lisboa, Princípios de direito mercantil e leis de Marinha, que serviu por muitos anos em Portugal como Código Comercial. A publicação deste texto era a consagração de Cairu em Portugal, onde esteve em 1773, para ingressar nos cursos jurídicos de Coimbra, e onde formou-se em Cânones em 1778. Essa era, até aqui, a trajetória vitoriosa de um estudante baiano na capital do Império. José da Silva Lisboa foi nomeado por D. João VI para assumir a cátedra da aula de Economia Política em 1808, quando surgiu a Economia Política no Brasil. Apesar do curso não ter sido ministrado, e o decreto permanecido apenas no papel, o futuro Visconde de Cairu já era reconhecido como um especialista no assunto. Acompanhando a Corte mudou-se, em 1808, da Bahia para o Rio de Janeiro. De acordo com Arruda e Novais, José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, “é consensualmente apreciado como o primeiro economista brasileiro, no sentido de introdutor da economia política entre nós e, portanto, o pai fundador de nossa ciência econômica” (NOVAIS; ARRUDA, 2003, p. 225). Cairu compôs um conjunto lógico de ideias econômicas, cujo suporte foi dado pela Economia Política Clássica. De acordo com Carlos de Faria Júnior (2008, p. 19), o liberalismo pregado por Adam Smith teria produzido em Cairu ideias referentes à organização de formas e estruturas nacionais, num contexto de crise dos sistemas coloniais. Silva Lisboa teria procurado adaptar as ideias de Smith à sua realidade na América, e esta adaptação ficou marcada pela originalidade.                                                                                                                         8

José da Silva Lisboa foi elevado a barão de Cairu em 1825 e no ano seguinte a visconde de Cairu. Cf. OLIVEIRA, Marina Garcia de. Entre nobres lusitanos e titulados brasileiros: práticas, políticas e significados dos títulos nobiliárquicos entre o Período Joanino e o alvorecer do Segundo Reinado. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. 2013.p. 122. 9 No ano de 1810 José da Silva Lisboa produziu os seguintes textos, além da Franqueza da indústria: discurso sobre a fraqueza do comércio de Buenos Aires; Observações sobre a prosperidade do Estado pelos liberais; Princípios da nova legislação do Brasil; Refutação das declarações contra o comércio inglês; Reflexões sobre o comércio dos seguros; e, Razões dos lavradores do vice-reinado de Buenos Aires. (NOVAIS; ARRUDA, 2003, p. 229). 10 Primeira obra cientifica brasileira sobre Economia Política.

 

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Como visto anteriormente, Adam Smith baseava-se no princípio de que o trabalho escravo era o mais caro de todos. Tal argumento desdobrava-se numa série de ideias, como a baixa produtividade e a resistência do escravo ao trabalho, bem como a impossibilidade de inovações técnicas em sociedades escravistas. O universo ideológico brasileiro no início do século XIX, edificado sobre uma sociedade escravista, deveria ser, por suposição, hostil ao antiescravismo da Economia Política. No entanto, de acordo com Antonio Penalves Rocha (1996, p. 119), as ideias econômicas sobre a escravidão não só entraram no Brasil, como também se acomodaram e, prestando serviços às representações dessa sociedade, chegaram até mesmo a justifica-la, sem que se desligassem formalmente da Economia Política. No livro Princípios de Economia Política (1804), José da Silva Lisboa fez poucas referências à escravidão, tida como o “compêndio dos males e o emblema e prova da depravação do homem que, ou não quer trabalhar, ou se apraz do espetáculo da violência e miséria alheia” (LISBOA, 1956, p. 79-80). Antônio Penalves Rocha (1996, p. 120) observou que o tema tratado por Cairu, no lugar em que aparece esta menção não tinha relação com o trabalho escravo. Tal crítica foi inclusive colocada entre parênteses pelo escritor. Nesse momento observa-se, portanto, uma condenação genérica à escravidão, que não se apoiava somente nos fundamentos teóricos da Economia Política. Adiante no escrito, Cairu enunciou os princípios fundamentais da economia Política. Ao defender as ideias de Adam Smith em detrimento do pensamento de Jacques Stewart, que aprovava a escravidão, Lisboa destacou a direção judiciosa do trabalho, “isto é, feita segundo a sua ordem natural, proporções e circunstâncias oportunas do país” (LISBOA, 1956, p. 228). Nesse princípio o autor defendeu o trabalho que fosse o fruto da espontânea escolha dos indivíduos e de suas capacidades, e não da força de artificiais ou por “violentas operações do Ministério e dos Tribunais” (LISBOA, 1956, p. 127). Nesse fragmento observa-se, portanto, a defesa que Cairu fazia do trabalho livre, considerado como mais adequado à ordem natural. Em mesma obra, contudo, Cairu reconheceu que certas circunstâncias de caráter político ou econômico poderiam inviabilizar o trabalho livre. Ou seja, ainda que o trabalho do homem livre seja desejável por estar adaptado à ordem natural, o do escravo surge como uma possibilidade imposta por determinadas circunstâncias. Nesse sentido, Silva Lisboa manifesta uma posição ambígua: ao mesmo tempo que a escravidão é vista como “compêndio de males” é também considerada como uma possibilidade de organização do trabalho para atender às “circunstâncias oportunas do país” (ROCHA, 1996, p. 121). Tal ambiguidade em José da Silva Lisboa é melhor compreendida inserindo-o em seu tempo e espaço. Os intelectuais no Brasil do século XIX, como visto anteriormente, foram V.9, nº1. Jan./jul. 2016.

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fortemente influenciados pelas ideias iluministas que já circulavam na Europa do século XVIII. Contudo, o Brasil constituía-se numa sociedade escravista, ou seja, diferentemente das nações europeias, a economia baseada na exportação de gêneros agrícolas dependia da mão de obra escrava,11 que, por sua vez, era alimentada pelo intenso comércio transatlântico de africanos até 1850, apesar da ilegalidade do tráfico de escravos depois de 1831.12 O livro de Cairu denominado Observações sobre a Franqueza da Indústria e Estabelecimento de Fábricas no Brasil (1810) pretendia demonstrar que era mau negócio tentar implantar fábricas no Brasil. Para sustentar esta posição, Cairu utilizou como um dos argumentos o predomínio da população escrava, que obrigava o Brasil a manter sua condição de nação agrário-exportadora. Parecia-lhe mais correto que o Brasil adotasse o modelo dos Estados Unidos, dando prioridade a agricultura, porque aqui e lá a “população principal é de escravos; e a de brancos e gente livre é pequena e avança muito lentamente” (LISBOA, 1999, p. 11). Nota-se, portanto, que para Cairu cabia ao escravo a execução de trabalhos que não exigissem qualificação. Tal opinião fundamenta-se nas ideias desenvolvidas pelos economistas europeus da época, que acreditavam faltar motivação ao escravo para o aprendizado de novas técnicas. Entretanto, segundo Antônio Penalves Rocha (1996, p. 122123), Cairu colocou de pernas para o ar essa opinião dos economistas. Se para eles a escravidão devia ser extinta porque não despertava a motivação para o trabalho especializado, impedindo o desenvolvimento industrial, para Silva Lisboa as fábricas eram impraticáveis no Brasil em consequência da existência de escravos. Ou seja, para Cairu, a escravidão brasileira era inelutável. Deste modo, para combater a instalação de fábricas no Brasil, Silva Lisboa adaptava uma ideia antiescravista a uma sociedade escravista. Do ponto de vista político, deve-se considerar o fato de Cairu ter vivido sob uma monarquia, em que todas as decisões políticas ficavam a cargo do rei, D. João VI. Aos olhos de Silva Lisboa, a chegada da Corte portuguesa marcava o início do processo de restabelecimento da ordem natural no Brasil. Em suas palavras, as medidas tomadas pelo                                                                                                                         11

No século XIX a produção de café tornou-se um baluarte do sistema escravista. Entre 1817 e 1820, a exportação do café brasileiro alcançou uma média de 5.500 toneladas por ano, e entre 1826 e 1829 a exportação anual média atingiu quase 25 mil toneladas. Cf.: CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1975, p. 5. 12 Apesar da dificuldade em se saber com exatidão o número de africanos desembarcados nos portos brasileiros, estima-se que depois de receber de 100 a 1.200 escravos por ano entre 1831 e 1834, o Brasil conheceu desembarques anuais de mais de 40 mil africanos em 1838 e 1839. Chegando a uma média anual de quase 50 mil africanos desembarcados entre 1846 e 1850. Tais africanos abasteciam, sobretudo, as regiões agroexportadoras. (FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 44).

 

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monarca colocaram fim “a cadeia de prejuízos com que por três séculos se achava agrilhoada a indústria desta grande terra” (LISBOA, 1810, p. 8). Cairu estava se referindo ao sistema mercantil vigente até 1808, que D. João VI como “um grande conhecedor de economia política, soube dar cabo” e aplicar no Brasil o sistema econômico liberal. Ou seja, tratava-se de um regente colocando em prática as ideias de Adam Smith. A partir dessa visão, o Visconde de Cairu analisou várias medidas tomadas pela Corte. Interessa para o presente trabalho as concernentes à escravidão. No livro Memória dos Benefícios Políticos do Governo de El Rei Nosso Senhor D. João VI, Cairu se empenhou em relacionar as legislações sobre o tráfico negreiro com conceitos da Economia Política. De acordo com Antônio Penalves (1996, p. 125), logo no início do livro, Silva Lisboa elogiou a indulgência que o rei manifestara para com “a classe infeliz, que sofre a infausta lei do cativeiro, que de repente não se pode abolir”. Neste texto, José da Silva Lisboa se posicionou claramente sobre a escravidão brasileira. A “infausta lei do cativeiro” não poderia ser abolida “de repente”, ou seja, ela atendia às circunstancias políticas e econômicas específicas do Brasil. Deste modo, o autor manifestava implicitamente sua opinião sobre a escravidão: uma fala abolicionista seria destituída de senso de realidade no Brasil, mas a elaboração de medidas graduais seria adequada naquele momento. Silva Lisboa estava se referindo ao ato de benevolência de D. João VI, que aprovara medidas que coibiam o tráfico negreiro. Sabe-se, contudo, que elas foram fruto das pressões inglesas pelo fim ao tráfico negreiro, que se intensificaram depois que a Inglaterra proibiu este comércio em suas colônias, em 1807. Cedendo às pressões, D. João VI aceitou a inclusão de um artigo no Tratado de Aliança e Amizade de 1810, que previa o fim gradual do comércio de escravos entre Brasil e África. Em 1815, o governo brasileiro foi obrigado a acatar a decisão internacional de abolir o tráfico ao norte do Equador e, pelo decreto de 5 de novembro de 1817, ficava suspenso o direito de reexportação de escravos. Todas estas medidas foram elogiadas por Cairu, que aguardava com “as mais bem fundadas esperanças que (o tráfico) diminuirá gradualmente, até se extinguir um mal tão horrível em cujo extermínio se empenham as preponderantes potências da cristandade” (ROCHA, 1996, p. 125). O posicionamento de Cairu equilibrava-se, portanto, entre a crítica à escravidão, em nome do bem comum, e em abster-se de qualquer ação no sentido de tentar eliminá-la, posto que este ato caberia ao monarca, inclusive as medidas de mitigá-la. Enfim, as decisões régias, que timidamente começavam a criar obstáculos ao tráfico, foram referendadas por Silva Lisboa, que deu a elas um ponto de apoio no discurso V.9, nº1. Jan./jul. 2016.

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econômico. Desta maneira, garantiu que o tráfico “empobrece o Brasil e arrisca ter fim (em conveniente período) a importação da escravatura”. Além do mais, os compradores de escravos punham “seu cabedal em fundos perdidos, com a fúnebre economia de comprar e enterrar e constituindo o Novo Mundo o cemitério da Etiópia” (ROCHA, 1996, p. 126- 127). Outra questão nítida nas obras de Cairu é a incompatibilidade entre escravidão e indústria. Silva Lisboa comparou a América do Norte, “onde prepondera a população livre”, com a América do Sul para apontar o avanço da indústria, que estava ocorrendo na primeira. Vale lembrar que Adam Smith (1996, p. 122) destacou os Estados Unidos como um dos países mais progressistas, ou seja, aquele que estava se tornando rico com maior rapidez, e onde os salários do trabalho eram os mais altos. Silva Lisboa também escreveu sobre a inferioridade produtiva do trabalho escravo e os vícios causados pela escravidão, recorrendo à crítica que lhe fizera Adam Smith. Cairu estava de tal modo calcado na obra Riqueza das Nações que reproduziu a citação do Espírito das Leis – sobre a escravidão nas minas da Turquia – feita por Smith. Contudo, enquanto o texto de Smith era pautado pela sobriedade, Cairu preocupava-se em exibir erudição buscando o socorro da cultura clássica para afiançar suas ideias e universalizá-las. Desse modo, segundo Penalves (1996, p. 138), o texto é repleto de citações em latim de autores da antiguidade clássica e toda a exposição é feita numa linguagem pomposa, “lembrando mais um sermão do que um texto de Economia Política”. Algo, aliás, comum ao estilo retórico dos intelectuais da época, como analisou José Murilo de Carvalho.13 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em seus escritos, José da Silva Lisboa admitiu a inevitabilidade da escravidão nas colônias americanas e a impossibilidade de abolir a escravidão naquele momento. Contudo, defendeu a possibilidade de abrandá-la com medidas para conter o tráfico transatlântico e os maus tratos dos escravos, ou seja, argumentou em prol de um processo gradual em direção ao fim do comércio de africanos, responsável por alimentar essa instituição no Brasil. Para tanto, Cairu utilizou-se da Economia Política clássica. Como representante dessa teoria no Brasil, delineou seus contornos sem deixar de considerar sua inserção numa sociedade escravista, por isso a especificidade de suas ideias. A proposta de reforma da escravidão apresentada pelo economista brasileiro é uma expressão desse fato.                                                                                                                         13

Sobre o tema, cf.: CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, p. 123-152.

 

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Apesar de no período analisado não podermos falar de um movimento social que pretendia a abolição da escravidão no Brasil – somente no fim dos anos 1860 houve condições para tanto, com uma conjuntura política que facilitou o uso do espaço público para exprimir reivindicações de associações –, Cairu é um exemplo de que houve no Brasil, no alvorecer do século XIX, intelectuais com inclinação antiescravista. A defesa da mitigação da escravidão seria, para ele, um caminho para o progresso dessa civilização. REFERÊNCIAS Fontes primárias: LISBOA, José da Silva (Visconde de Cayru). Princípios de Economia Política. Rio de Janeiro, Editora Pongetti, 1956. ______. Observações sobre a prosperidade do Estado pelos liberaes principios da Nova Legislação do Brazil. Rio de Janeiro: Impressão Regia, 1810. ______. Observações sobre a franqueza da indústria, e estabelecimento de fábricas no Brazil, Brasília: Senado Federal, 1999. (Coleção Biblioteca Básica Brasileira). SMITH, Adam. A riqueza das nações: Investigação sobre sua natureza e suas causas. Editora Nova Cultura. São Paulo, vol. 1, 1996. Bibliografias de consulta: CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, pp. 123-152. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1975. DIAS, Maria Odila Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nº 278, 1968, p.105-170. EHRARD, Jean. “L’esclavage devant la conscience morale des lumières françaises: indifférence, géne, révolte”. In Les Abolitions de l’Esclavage. De Sonthonax à V. Schoelcher.Vi ncennes, Presses Universitaires de Vincennes/UNESCO, 1995. FARIA JÚNIOR, Carlos de. O pensamento econômico de José da Silva Lisboa, Visconde de Cairú. Tese de Doutorado: Programa de Pós-Graduação em História Econômica da USP. São Paulo, 2008. FINLEY. Moses I. Escravidão Antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. FLORENTINO, Manolo Garcia; GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. V.9, nº1. Jan./jul. 2016.

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